Projeto Conte Sua História
Depoimento de Alex Atala
Entrevistado por Márcia Andrade e Rosana Miziara
São Paulo, 22 de maio de 2019
Realização Museu da Pessoa
PSCH_HV771 _ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Para começar, por...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Alex Atala
Entrevistado por Márcia Andrade e Rosana Miziara
São Paulo, 22 de maio de 2019
Realização Museu da Pessoa
PSCH_HV771
_ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Para começar, por favor, fale o seu nome completo, a cidade e a data de nascimento.
R – Meu nome completo é Milad Alexandre Mack Atala, eu nasci em São Paulo, na Zona Leste, cresci em São Bernardo. Nasci no dia 3 de junho de 1968.
P/1 – Quais os nomes dos seus pais?
R - Meu pai chama-se Milad Atala e minha mãe chama-se Otávia Maria da Silva Mack.
P/1 – E a origem da sua família, dos dois lados?
R – Do lado do meu pai é palestino. (risos) Predominantemente palestino, mas com uma avó inglesa. Do lado da minha mãe, irlandês predominante, com um pouquinho de austríaco.
P/1 – E você conhece um pouco da história da vinda deles para cá?
R – Mais da parte do lado do meu pai - árabe e inglês também - de pessoas buscando oportunidades e muitos querendo esquecer suas histórias, o que viveram para trás, assim. Acho que tem um lado mais claro na família do meu pai, mais visível no lado da família do meu pai, de pessoas que vieram morar no paraíso e tinham seu passado como alguma coisa amarga, que eles preferiam não falar. Eu sempre conto isso porque, apesar de ter uma família com a qual eu poderia ter aprendido muitas línguas desde criança, meu avô nunca falou comigo em outra língua. Só falava comigo em Português. Tinha uma vontade de esquecer, de não transmitir o que eles carregavam.
P/1 – Seu pai nasceu aqui?
R – Meu pai já é nascido em São Paulo. Meu pai é nascido no Mato Grosso, desculpe.
P/2 – Mas por que eles vieram da guerra? O que aconteceu?
R – Não. Na verdade, cada um tem uma história, não é? O pai do meu pai, meu avô, é palestino, vai morar na Inglaterra, vem trabalhar no Brasil, na divisa Brasil/Bolívia, tem uma parte da minha família na Bolívia, pela cura de mineração britânica. E vinham de momentos muito sofridos, ao ponto de achar que ir para a selva era mais legal (risos) do que fazer o que eles faziam, não é? Do lado da minha mãe, mineração também, família de mineradores irlandeses, vieram para tentar a vida. Cada um, da sua história, a gente sabe pouco, não é? Mas o que a gente sabe é que a vida dos avós era ruim. Então, vieram para cá, para tentar uma coisa melhor.
P/1 – Alex, e você até falou que eles passaram pela selva. Realmente passaram?
R – Meu avô morreu... Meu pai nasce em Cáceres, no Mato Grosso. Na verdade, ele é registrado em Cáceres. Meu pai nasceu em São Matias, lugar de nascimento, que é território boliviano. Não é Brasil ainda. Naquela época, era tudo uma convenção, era um mato só. Meu avô é assassinado, envenenado, perto de Rondônia, numa das poucas cidades que eu não vou lembrar agora qual é, mas coisas de...
P/2 – Como foi essa história? Te contavam?
R – Mais ou menos. Eu sei, mais ou menos, da história. Até tem um livrinho que eu fiz e que conta um pouquinho dessa história, como vou contar para vocês agora: meu avô era como cobrador de impostos. O que ele tinha que fazer era cobrar impostos e um cara que não pagava imposto o desafiou para um duelo e ele foi para o duelo e o cara não foi. E, como ele ficou muito nervoso, alguém ofereceu um suco para ele e o suco estava envenenado. (risos)
P/1 – Uau! Olha, gente!
R – Essa é a história que meu pai adora contar, que a gente não sabe se é verdade ou não, mas se non é vero, é bene trovato. (risos)
P/1 – E seu pai veio para São Paulo em que época?
R – Meu pai veio para São Paulo já para estudar, acho que ele tinha 17 anos, pelo que ele conta. Trabalhou na Johnson’s, foi propagandista de remédios, depois acabou indo trabalhar na indústria de borracha. Por conta da indústria de borracha foi ser vendedor de borracha para indústria automobilística, que se instalava em São Bernardo do Campo. Eu, apesar de ter nascido na Zona Leste, cresci no ABC, e a ida da família para o ABC, desse núcleo da família - meu pai, minha mãe e meus irmãos, éramos só nós da família que morávamos ali - era por conta da proximidade do trabalho do meu pai
________ [04:54].
P/1 – E viver lá em São Bernardo trouxe alguma influência para você?
R – Acho que várias, não é? (risos)
P/1 – Conte algumas.
R – O São Bernardo que eu cresci não é o São Bernardo de hoje. A região em que eu morei, alguns lugares em que eu morei, ainda eram mato, não é? A gente morava quase que numa chácara. (risos) Não era exatamente uma chácara, mas nos fundos das nossas casas não tinha cerca. Tinha árvores de fruta, riozinho, que hoje é uma avenida e um shopping. (risos) Era um outro São Bernardo naquele momento, mas deixou muitas coisas. Acho que tem essa coisa de entender o que é periferia. É uma coisa de uma imagem muito forte para mim, que eu saí muito cedo da casa dos meus pais e não por problema com eles, acho que eu fui precocemente independente. Eu pegava um ônibus de São Bernardo até o Ipiranga, do Ipiranga eu pegava um outro ônibus que ia para a Pompeia e, quando eu entrava na Avenida Paulista, entrava num outro mundo. Era um portal que eu cruzava, (risos) porque a Avenida Paulista tinha muito essa coisa... Então, eu fui entendendo um pouco esse momento da minha vida, que tem muito a ver com música, com punk rock, com uma série de descobertas, até a vontade de sair de lá para morar aqui. Antes de entender isso eu achava que morava no Centro da cidade, porque era São Bernardo e tinha um centro lá e, para mim, o meu mundo era daquele tamanho. E aí, através dessa coisa de ficar adolescente e querer ver outras coisas, eu fui descobrir um outro mundo, por isso que eu falei que a Paulista sempre foi um portal para mim. Entrar, pegar um ônibus e vir passar na Paulista, no Conjunto Nacional, era chegar na cidade. (risos)
P/1 – E voltando para a infância, então, conta um pouco assim de marcas que você teve da infância, lembranças, o que vocês faziam nesse lugar, brincavam...
R – Então... Vamos contar a história assim: minha primeira marca da infância foi ser ruivo, não é? (risos) Eu era o único ruivo da escola, (risos) eu era o único ruivo da região. Com um agravante mais. Quer dizer: meu pai é moreno, tem traços árabes; minhas duas irmãs nascem com traços muito árabes; minha mãe é branca, mas de cabelo preto; tenho um irmão adotivo, de criação, que é branco de cabelo preto e eu nasci branquinho, ruivo. E eu era o mais magrinho da família. Então, tinha uma brincadeira que era assim, até dentro de casa falava: “Que legal, que sorte vocês deram de adotar um ruivinho”. (risos) Eu destoava da família. Dentro do núcleo familiar, eu já tinha uma cor diferente. Na infância toda, então, tem aquela coisa que eu sempre brinco e falo que o que hoje a gente chama de bullying, naquela época era estreitamento de laço de amizade. Ou eu ficava amigo ou ia brigar. O cara vinha, fazia bullying comigo e eu tinha dois jeitos: ou ia brigar ou ia tentar reverter aquela história. Então, acho que ser ruivo, na infância, que não tem exatamente a ver com São Bernardo, mas tem a ver com a infância, eu comecei a lidar com adversidades e diversidades: ter amigo japonês, ter amigo negro, ter amigo rico, ter amigo pobre, eu fui tendo que entender porque, de alguma forma, essa leitura era muito forte para mim, porque eu era o ruivo.
P/1 – Você lembra de uma situação que você pudesse contar, que ficou bem...
R – (risos) Meu primeiro nome é Milad. Mas nunca ninguém me chamou de Milad. Então, na escola, era Milady. Além de ruivo, ainda tinha nome de veado. (risos) E eu mudei de escola. Enfim, eu dava um pouquinho de trabalho, me mandavam para outra escola. E aí a professora pega e fala assim: “Ana Maria, nota nove, parabéns; Roberto, nota sete; nananã, e essa menina aqui foi tão mal, tadinha, estou tão preocupada com ela, Milady”. Eu falei: “Sou eu, professora”. “Mas logo você, ruivinho?” Eu falei: “Caramba!” (risos) Falar: “Logo você ruivinho?” Você fala: “Poxa, ainda tenho que levar mais essa: decepcionei por ser ruivinho!” O ruivinho tinha que ter essa aura de bom menino. Ou sei lá do que tinha que ter e eu não consegui atender essa... (risos)
P/2 – E você estudou em escola pública?
R – Eu estudei nos dois: estudei em escola pública e particular. O problema é que eu tive cinco expulsões na escola, não é?
P/1 – O que acontecia? Conte um pouco.
R – Eu me divertia. (risos) Eu achava as coisas divertidas. Eu acho que tem um traço de personalidade meu que é independente. Com 14 anos eu saio da casa dos meus pais. E eu nunca fui desrespeitoso. Eu me via como, talvez, mais indisciplinado, mas eu nunca fui desrespeitoso para com a escola. Eu fazia o que queria. Na verdade, era difícil me segurar. Então, uma das expulsões foi porque a professora mandou eu sair da classe. Eu devia estar fazendo bagunça, falando, eu falei que não ia sair. Ela falou: “Sai da classe”. Eu falei: “Não vou sair”. Ela falou: “Vou chamar a diretora”. Eu falei: “Pode ir”. A diretora entrou na classe e falou: “Sai da classe”. Eu falei: “Não vou sair”. Ela falou: “Por favor, sai da classe”. Eu levantei e falei: “Agora que você falou direitinho comigo, eu saio”. (risos) Ou seja: eu tinha uma coisa de enfrentamento, mas com elegância, que não era exatamente aquele cara que dava outros problemas. Tinha essa coisa de ir muito no limite das coisas e ser afrontativo, mas elegantemente mal-educado. (risos)
P/1 – Alex, e com esse percurso todo, teve algum professor que teve alguma influência em você, forte?
R – Na escola, não.
P/1 – E teve em outra situação, alguém?
R - Teve acho que várias outras pessoas aí que vão marcar a minha vida, não é? Meu primeiro emprego, quando eu tinha 14 anos, foi aqui na rua Mourato Coelho, na Vila Madalena, numa loja que chama Claumar. Uma loja de mergulho. Eu tinha uma fascinação pela Natureza, viajava com meu pai e com meu avô desde criança. Uma das cenas da infância é: sentado no sofá, com meu pai, várias vezes, para assistir Jacques Cousteau ou Muhammad Ali, lutar. E essa coisa do mergulho me fascinava muito. E aí a gente não tinha grana e eu descobri que podia, talvez, trabalhar. Entrei na loja do Cláudio, que eu nem sabia quem ele era direito - sabia que ele era um mergulhador, mas não tinha noção das coisas - e falei: “Eu quero trabalhar aqui”. Aí ele falou: “O que você vai fazer?” Eu falei: “Eu faço o que você quiser. Eu sei mergulhar”. Não sabia, também, nada. (risos) Falei: “Eu faço o que você quiser”. Aí ele falou: “Que horário você pode fazer?” Eu falei: “Eu estudo de manhã”. Ele falou: “Então tá, vem de tarde aqui, eu vou te pagar...”. Um salário-mínimo custava 54 cruzeiros, na época... “Eu te pago 50, está tudo bem?” Eu falei: “Está ótimo”. Porque, na verdade, eu não fui lá para trabalhar para ganhar dinheiro, eu fui lá para trabalhar para ir atrás das minhas realizações, dos meus sonhos. E o Cláudio é um dos caras que vai balizar um pouco minha personalidade, com a maneira de ser com o mundo. Porque você pode ser alternativo e ser feliz. Naquela época... Nós estamos falando de uma época onde caminhos alternativos não eram muito aceitos, não é? Começo dos anos 80 não tinha maior abertura para ir ver pessoas que levavam a caminhos não... Bem ou mal, ele tinha uma loja de equipamentos de mergulho, ele era um pescador e as pessoas falavam dele com orgulho, com admiração, e isso me marcou muito. Ao longo da minha vida, eu vou encontrar homens nos quais eu vou me espelhar, de alguma forma, e todos têm essa coisa de não serem o protótipo do homem esperado, mas talvez com essa coisa do masculino muito acentuado, do alternativo muito acentuado, e vencedores. E o vencedor não é de ganhar dinheiro, tá? (risos) Essa não é a minha.
P/1 – A gente vai e volta, tá? Você disse que tem uma lembrança forte, você sentado no sofá com seu pai, assistindo... Você pode falar um pouco mais desse momento? Como era a sensação?
R – Era a descoberta do mundo, não é? De um lado, você está na sua casa, do lado do seu pai, é aquela coisa: você tem uma proteção, vendo pessoas desbravarem o mundo. Um cara que inventou como é que mergulha. O Jacques Cousteau, acho que o grande feito dele para a humanidade foi poder filmar o que acontecia no fundo do mar, que a gente não tinha essas imagens. Então, era mergulhar em uma outra dimensão. Naquele momento, o mergulho tinha uma outra representação, que não era exatamente um esporte de entretenimento, como ele é hoje. Tinha uma coisa de desvelar um universo vizinho próximo, que era o mar. A história do Muhammad Ali é da luta, não é? Do enfrentamento, da porrada. Saía na porrada. (risos) Fascinava também. Fascinante.
P/1 – Alex, você disse que vinha... Começou a vir para a Paulista. Como foi essa passagem que você começou a sair de São Bernardo?
R – Na verdade, é assim: garoto, eu volto a falar, eu fui buscar a minha independência muito cedo. E volto a falar: não é por conta de ter problemas com meus pais. Era eu comigo mesmo. Eu queria mostrar para o mundo que, com 14 anos, eu já era um homem feito, formado, e que eu podia fazer o que eu quisesse. Eu acreditava piamente naquilo. E aí eu fui conhecer, tive a curiosidade da música. A música foi muito forte na minha vida. Então, essa história de ser branquinho, ruivo e gostar de rock, aí, um dia, eu abro uma revista e tem um especial de punk rock e eu olho as figuras, os caras pareciam comigo. Foi a primeira vez na vida que eu olhei e falei: “Puxa, esses ingleses, com esses cabelos diferentes, com essas roupas diferentes, parecem comigo”. Eu tinha uma coisa de identidade visual. Foi a primeira vez que eu me reconheci, a semelhança com outras pessoas. E já tinha essa coisa da música e da música para o sexo, do sexo para o rock and roll, aquela coisa velha, mas que eu sou assim, não é? E aí eu queria ver show e eu descobri que no Sesc Pompeia tinha um projeto que se chamava Fábrica do Som. E eu tomava um ônibus lá de São Bernardo e vinha para cá para ver a Fábrica do Som. Aí eu vi o Cólera e Inocentes tocando pela primeira vez na vida. Abriu outro portal na minha vida. (risos) Eu queria ser igual àqueles caras. Com os anos, as questões políticas, os existencialistas, as causas, crenças do punk rock, acabaram entrando, mas, na verdade, a primeira coisa que me moveu
essa coisa de falar assim: “Esses caras são diferentes. Eles têm atitude, eu quero ser que nem eles”. Comprei uma série de conceitos, porque eles estavam ali, não porque eu acreditava naquilo. Aprendi.
P/2 – Eu ia voltar um pouco, queria saber um pouco como era na sua casa, assim, a convivência com seu pai, quais eram as características dele, da sua mãe, quem exercia a autoridade, os papéis...
R – A gente tem uma família muito tranquila. Acho que uma característica da minha família é a tranquilidade. Meu pai é um cara sem altos e baixos, muito linear, emocionalmente falando. Minha mãe, com quatro filhos, tinha que ser mais enérgica, não é? (risos) Para quem teve quatro filhos, ela também era muito calma. (risos) A gente tinha uma relação boa. É tão boa, que meus pais se separaram cedo... Isso também, talvez, tenha uma coisa de eu buscar minha independência. Eu abri essa brecha. Minha mãe está para um lado e ela tinha um cuidado com as minhas irmãs, porque meu pai também não tinha muita grana, não tinha nenhuma grana para cuidar de ninguém naquele momento. Minha mãe protegeu as meninas, que tinham mais condição, e eu e meu irmão acabamos saindo de casa e fomos fazer... Mas foi tudo muito... Falando assim, parece que foi sofrido e não foi. Foi ok. Não foi um castigo. Eu não saí para a vida porque meu pai não tinha dinheiro e foi tudo triste. Não. Foi porque eu queria, mesmo. Eu podia ter ficado lá com a minha mãe, e minha mãe nunca iria falar não.
P/2 – Mas tinha festa? Na sua casa se comemorava alguma data?
R – Tinha, mas eu nunca gostei de aniversário. Então, das coisas que eu me lembro da infância é minha mãe ficando brava porque eu não queria festa: “Todo mundo quer festa, como é que você não quer?” “Eu não quero, mãe. Me deixa assim”. Meus irmãos gostavam. Eu acho que uma família normal. Tem festa de Natal, Dia das Crianças, tem essas coisas, mas esses ícones nunca foram tão presentes na vida da gente. A primeira coisa que eu tenho para falar da família é que era essa coisa muito tranquila, assim. Fora essa coisa de irmãos, de briguinhas de irmãos, o resto, com meu pai e com minha mãe, tudo muito fácil, e ainda é. São vivos, estão ótimos.
P/2 – Quem cozinhava lá? Como eram as comidas do cotidiano?
R – Familinha classe média, não é? Minha mãe cozinhava, final de semana não sei o quê, meu avô é que foi o primeiro homem que eu vi cozinhar na vida, então eu tenho que falar que, na minha infância, eu fui criado numa família em que cozinhar era coisa de mulher. Meu avô é quem rompe com essa história. Meu avô era um cara que gostava de pescar, gostava de andar no mato, de caçar e ele tinha essa coisa de falar assim: “Não, nós vamos cozinhar. Se nós vamos pescar, nós vamos comer. Então, tem que saber limpar o peixe, tem que respeitar. Esse bicho morreu, não pode ser jogado fora. Não pode matar. Matar não é um esporte”. Família muito... Desculpe te decepcionar, mas era tudo muito comum. (risos)
P/1 – Alex, você acha que esse seu avô teve alguma influência em você, depois, se interessar?
R – Muito.
P/1 – Conte um pouco de coisa que você lembre.
R – Meu avô é um desses homens que eu acho que triunfaram, que eram vencedores, que eram muito masculinos, muito afirmativos, assim, de macho, e tinha um lado dessa coisa de ir para o mato, de saber andar, acender fogo, saber pescar, saber atirar, fazer coisas incríveis, que, para uma criança, é incrível. Mas era um cara que cozinhava, que olhava para a gente e falava assim: “Você matou isso aqui? Vai ter que comer, bicho. Você matou tudo isso aqui? Então você vai comer tudo isso aqui”. É um cara que trazia um real valor sobre o ato de pescar, caçar, de cozinhar. Eu acho que grandes valores que eu tenho hoje, começaram ali. Acho que há pouco tempo eu coloquei uma foto no Instagram que falava que fazer sua comida era como imprimir seu dinheiro. Eu não estou falando de dinheiro, eu estou falando de valor. E esse foi um valor que meu avô, sem dúvida, deixou: de olhar a comida - ou o ato de ir à Natureza e colher - como valor. Eu acho que as pessoas, muitas vezes, não dão valor à comida porque a Natureza, muitas vezes, oferece de graça.
P/1 – Essa relação que você vê de onde vem o alimento...
R – É. Para mim, é muito vivo.
P/1 – Ele era o pai da sua...
R - ... Mãe.
P/1- Porque o outro já faleceu muito cedo.
R – Eu era muito ligado a esse meu avô. Muito, muito.
P/1 – Você ia com ele caçar?
R – Desde criança, desde muito criança. Eu fui o neto mais próximo dele, de todos. Ele teve sete filhos, então eu não preciso falar. Era meio coelha a família, assim, nascia filho, aparecia primo. Fora dos casamentos oficiais, tinha os de fora. Então era aquela família meio coelha, assim.
P/1 – Mas você estava ali, sempre, com ele?
R – Eu fui o mais apegado a ele. Até pela idade, assim. Eu sou um dos netos mais velhos e, naquela época, fazia muita diferença quatro, cinco anos para chegarem os próximos. Então, eu fui o que ganhou uma atençãozinha e eu tinha essa coisa de gostar das coisas que ele gostava.
P/1 – Teve alguma passagem, alguma situação que você lembra sempre? Alguma que você gostaria, até, de contar?
R – Acho que tem várias. (risos)
P/1 – Algum momento...
R – Meu avô era muito piadista. Tem algumas piadas ou expressões que ele fazia que a gente brinca e usa entre família, principalmente, até hoje. Ele tinha esse humor crítico, ácido, às vezes um pouco negro, beirando o mau gosto. (risos) Mas divertido, no final; era uma coisa que eu vou carregar, sempre. Eu, às vezes, me vejo fazendo piadas com as mesmas... Piadas de tão baixa qualidade quanto as dele. (risos) Coisa de menino.
P/1 – E você agora, adiantando um pouquinho, conte, se você puder descrever, mesmo, como foi essa saída. Foi com amigos que você começou: “Vou sair de casa”. Mas como foi isso?
R – Então... Na verdade, tinha uma coisa que é assim: eu fui um aluno que dava trabalho na escola, eu já contei isso. Então, alguns momentos, durante um ano, quase dois anos, eu morava em São Bernardo e tinha que estudar em Interlagos. Era muito longe. (risos) Se hoje já é longe!
P/2 – Por que Interlagos?
R – Eu não sei, foi para onde me mandaram. (risos)
P/1 – Era uma escola? Como chamava? Você lembra do nome?
R – Chama Colégio Santa Maria. E era muito longe. Essas distâncias, acordar muito cedo para ir para a escola, ficar horas... Eu passava mais horas num transporte público do que estudando. Isso não fazia sentido na minha cabeça. Eu já tinha essa fascinação por essa região dos Jardins, da Vila, de Pinheiros, da Pompeia. Eu já tinha uma coisa que, por incrível... Bom, depois eu conto essa história, mas hoje eu moro nesse lugar, eu faço todo esse trajeto, esses bairros continuam na minha vida até hoje, mas eu tinha fascinação por isso aqui. E, como eu não era um bom aluno, eu fui parar numa escola que chamava Bandeiras, que eu me lembro, era média quatro, era um colégio muito bom, ficava na Capote Valente. Quem não dava certo no Objetivo, no Indac, não sei o quê, ia para o Bandeiras, (risos) que era na Capote Valente. Ali eu comecei a me achar mais ainda. Quer dizer: eu comecei a conhecer mais gente parecida comigo, com essa irreverência, com mais diversidade. Efetivamente, era uma escola em que o bedel era veado. (risos) Ou seja: já tinha um outro mundo, um outro ecossistema, existia muito diferente de um colégio normal, onde tudo era muito - ou tentava ser - muito disfarçado, muito dentro de um padrão onde a diversidade era tapeada, vamos dizer assim, por uma convenção qualquer. E aí eu descobri que, na rua Mourato Coelho, tinha uma loja de mergulho. Eu falei: “Dá para estudar e trabalhar”. Aí, não ia para São Bernardo e voltar. Tinha que arrumar um jeito. Minha irmã fazia Faculdade e conheceu uns meninos que moravam... Que tinham uma República, na rua Cristiano Viana, e aí eu peguei e aluguei o quartinho do quintal, porque, antigamente, as casas antigas tinham os quartos dentro, um quintal, normalmente com um tanque, alguma coisa, e um quartinho que seria de empregada, aquela mini edícula. E eu aluguei aquele lugar lá e, para mim, era minha mansão, meu lugar, meu reino, meu tudo ali. Era só um quartinho, mas ali eu construí uma história para mim. Era a primeira vez que eu tinha um lugar meu. Eu conquistei. Do portal que eu passava, da Avenida Paulista, eu finquei meu pé na rua Cristiano Viana, vim trabalhar na Vila Madalena, depois fui trabalhar no Rose Bom-Bom. Eu construí uma história ali. A música estava ali, era do lado do Lira Paulistana, os meninos do Ira e do Titãs moravam, todo mundo frequentava a CPL, que está lá até hoje. Então, você tinha uma cena. Os meninos da casa sete, que eram artistas. Tinha um outro mundo ali, que eu tive a sorte de cair num mundo cultural muito cedo. Acho que teve, talvez não de cultura, mas quase contracultura. (risos)
P/1 – Aí você chegou em casa e falou: “Tchau, vou morar sozinho”?
R – Eu já tinha conseguido essa vaga na escola, minha irmã também foi estudar no mesmo lugar, minha mãe começou a trabalhar na Teodoro Sampaio. Então, minha irmã ia para casa com a minha mãe, que era em São Bernardo, e eu falei: ‘Não, bicho, eu vou para cá”. Mas não teve nada... A única coisa que eu falei para a minha mãe: “Então... Eu quero sair”. Ela falou: “Daqui a dois meses você está de volta”. E aquilo, para mim, foi... (risos) Se ela nunca tivesse falado isso, eu teria voltado. (risos) Aquilo foi pior do que me mandar para fora de casa. Não, ela vai ver que não volto em dois meses, não. Eu vou ficar anos.
P/2 – E como é que você foi trabalhar no Rose Bom-Bom?
R – Música de novo, não é? Daqueles punks que eu conheci no Sesc Pompeia, no show Inocentes e Cólera, tinha um menino que chamava Jaiminho. Jaime Gozzolli. E o Jaime era uma figura, porque o Jaime também era branco, magrelo, nananã, só que loiro, em vez de ruivo, e ele tinha um topete com o cabelo que vinha no meio da cara, assim. Então, ele tinha um visual muito... E o Jaime trabalhava, era DJ do Rose Bom-Bom. Eu morava na Cristiano Viana, são algumas quadras de distância. E o Jaime morava no Jabaquara. Então, além da gente ficar amigos, não sei o quê, a gente começou aquela história de falar: “Pô, posso dormir na sua casa? Não sei o quê, não vou embora”. Falei: “Dorme lá, não tem problema”. Era um quartinho, mas dava para colocar um colchãozinho do lado. E a gente começou assim. E eu ainda trabalhava na loja de mergulho e tentava estudar, mas já estava no rock and roll mais pesado, as coisas já não andavam direito e eu precisava fazer uma grana. Naquela época, a informação era muito cara para a gente. Então, a gente lia. Por exemplo: a gente gostava de música, a gente queria ler o jornal inglês. Um comissário da Varig trazia um jornal chamado New Musical Express, da semana anterior, para a gente, a gente lia jornal de música com uma semana atrasado. Tudo era muito... Música, ainda mais música alternativa, também rock and roll alternativo, era muito difícil. Então, a gente dependia mais uma vez de um comissário de bordo trazer discos para o Rose Bom-Bom, que era um dos lugares, o Satã, o Rose, era uma meia dúzia de lugares que tinham essa coisa de tocar música nova. Daí uma conexão entre DJs, de um se ajudar, de uma irmandade: “Olha, eu consegui tal disco, não sei o quê”. A gente se juntar e ir para o centro da cidade, para olhar capa de disco, para falar: “Olha o cabelo do cara, agora está diferente. Olha a foto da Siouxsie. Olha foto de caras que a gente nunca tinha visto”. E essa era uma informação que valia muito. Então, uma fita cassete com músicas novas era muito cool. (risos) E a gente sabia cobrar por isso, só que ninguém tinha saco de ficar gravando fita cassete. Até porque, naquela época, você ia gravar música por música, fita por fita. Anos depois, apareceram copiadores de fitas, mas nesse momento, não. Então, alguém tinha que ficar sentado dentro de uma cabine de som, gravando uma por uma. (risos) Eu não tinha escola, achei um jeito de começar a trabalhar. Eu sempre falo que emprego... Eu fui DJ. Primeiro, DJ do Jaime Gozzolli, depois, anos depois, fui trabalhar no Rose... Porque os primeiros anos eu não recebi um salário. Aliás, eu não tinha nem autorização para ficar dentro do Rose. Mas como era horário que estava fechado, que não estava aberto para o público, não sei o quê, eu ficava na cabine de som, lá, gravando fitinha e rachava o lucro com o Jaiminho. Então, num dia produtivo, eu conseguia gravar quatro fitas. (risos)
P/1 – E você curtia fazer isso? Como era?
R – Para mim, eu volto a te falar: foi esse sonho de ser fascinado, de encontrar um dia... Descobrir que São Bernardo não era o umbigo do mundo; naquele momento, o umbigo do mundo era isso aqui, e aí era a forma de manter esse sonho vivo, não é? Eu vou viver isso um pouquinho de novo quando vou morar na Europa, porque eu cheguei lá e aí tinha música, tinha os shows, tinha as pessoas, as roupas que eu queria usar estavam lá para comprar. Eu precisava trabalhar e viver isso. E aí eu viro cozinheiro. E ser cozinheiro, nesse momento, é a forma de ganhar. Não porque eu quisesse ser cozinheiro, mas era o ofício que me fazia ganhar grana e viver um outro sonho, que era morar na Europa.
P/1 – Então, vamos voltar, não é?
P/2 – Você chegou aí, vamos voltar.
P/1 – Alex, tem essa coisa forte da música. E, além da música, o que vem junto com a música? As relações com pessoas, como era essa vida? Tinha mais coisa? Namoros...
R – (risos) Era conturbada. A primeira coisa que eu posso te falar é o seguinte: existiam guetos aqui, São Paulo era feito de pequenos guetos: surfistas, heavy metals, punks, rockabillies. Existia intersecção entre esses guetos, mas, a priori, nós éramos tribos diferentes e, como tribos diferentes, frequentávamos, tínhamos os códigos diferentes. Tinha briga. Então, tinha as tribos de diferentes lugares: eu, por exemplo, era do ABC e então não podia falar para todo mundo aqui da cidade que eu era de São Bernardo, porque senão as pessoas achavam que eu era punk do ABC. E aí os punks da cidade tinham briga de verdade. (risos)
P/1 – E você era do grupo, vamos dizer assim...
R – Não. Na verdade, eu nunca fui... Eu volto a te falar: a música sempre foi mais forte do que essas convenções, para mim. De verdade, eu estava pouco preocupado se um era da cidade, outro era da coisa... Isso era uma briga deles. A minha era outra. Eu gostava da atitude, da independência. Para mim, eu estava vivendo uma fantasia. Talvez muita coisa que eu não pude viver em outros anos da minha vida, eu fui viver. Se minha família não podia me dar algumas coisas, pelo amor de Deus, eu não estou falando que a gente passava fome, não é nada disso, mas tinha limitações. Esses meus caprichos, eu fui conseguir viver através do meu trabalho, do meu ímpeto de querer ir atrás.
P/1 – E depois você passou pela Rose...
R – Aí, fiquei uns anos como DJ, trabalhando oficialmente, ou não oficialmente às vezes, como gravador de fita, mais do que DJ, e aí eu resolvi morar na Europa. Eu tinha uma história... Naquela época, tinha um cara aqui na Vila Madalena, que era o Marco Leoni, o Marco Tatoo, outro mundo para mim, que eu começo a achar incrível, que é o mundo da tatuagem, que na época ainda tinha muito... Era visto de uma outra maneira. Fico muito amigo do Marco e o Marco é o primeiro cara que começa a me falar de comida. O Marco era italiano, ele gostava, então ele voltava de viagem e trazia comida diferente. E a mesma coisa que eu tinha lá, com meu avô, dele pegar e falar: “Olha, matou, tem que comer, tem que saber limpar, tem que saber fazer”. O Marco chegava e falava: “Olha, esse é um cogumelo porcini, veio do mato, isso aqui é uma joia da Natureza”. Então, esses valores começam a aparecer de outro jeito. O Marco, fora a tatuagem, me mostra mais uma vez que é possível ser maluco e dar certo, para ser maluco não precisa comer mal. Ele traz esse valor. E essa é a mola para ir morar fora do Brasil. Falei: “Não, vou para fora. Quero ir ver outras coisas”.
P/2 – Mas por que a tatuagem? Vocês se conheceram...
R – Porque eu queria ter tatuagem. Já tinha tatuagem. Eu fiz tatuagem em mim, sabe? Aquelas bonitas. (risos) Segundo minha mãe, era um ventilador ligado. Tentei fazer a Cruz de Malta, mas ficou fora de esquadro. (risos)
P/1 – Mas você que se tatuou?
R – Eu tentei. Eu tenho até hoje uns pinguinhos assim que eu... A gente não tinha nada, tinha que fazer... A gente era maluco numa época que não tinha manual para ser maluco, que não tinha internet, que não tinha nada. Tinha que tentar, cara. Não tinha essas coisas. A gente olhava e falava assim: “Poxa, tem um tal de Lucky Tattoo lá em Santos, ele tatua desse jeito”. Falava: “Pô, vamos atrás desse cara, bicho, vamos ver como é”. Chegava lá, tinha que sair correndo, porque a gente era muito criança, entrava em bairro pesado, foge todo mundo, cara, volta para São Bernardo, porque... E queria ter tatuagem, cara. Eu lembro de, muito menino, ver um cara cheio de tatuagem e falar assim: “Eu quero ser daquele jeito”. Então, tinha essas coisas, essas projeções que você tem quando criança. Ficaram... A história, muito marcada. Aí, quando eu conheci a história: tem um cara que faz tatuagem na Vila Madalena, um italiano... Eram dois italianos e um brasileiro. Aí falei: “Pô, tenho que ir lá conhecer esses caras”. E aí eu vim atrás deles e conheci, eles não queriam me tatuar porque eu era muito novo, cara. E aí eu dei um jeito de conseguir conhecer (risos), e a me tatuar. E já comecei a achar legal para caramba tatuagem. Comecei a ficar muito amigo do Marco e tem essa história do Marco com a comida, que também é uma das coisas que me faz olhar: eu não precisava mudar para dar certo na vida. Tinha muito essa coisa: as pessoas eram mais padrão e eu era diferente, desde criança; então, eu não precisava mudar. Eu podia continuar sendo diferente, que dava para dar certo.
P/1 – E aí você viaja? Como que foi essa passagem, essa viagem?
R – Saí do Brasil como todo mundo sai, não é? Com mais sonho do que com razão. Eu falo que ignorância é uma bênção, as pessoas é que não sabem disso. Você não ter consciência do que vem pela frente é a maior motivadora. Se você começar a medir, você vai atrair medo e o medo vai te tirar essa espontaneidade, esse ímpeto de ir atrás do seu sonho. Eu tinha menos de 500 dólares no bolso, que eu achava que era um dinheirão. Porque na minha relação com dinheiro, aquilo era muito dinheiro. Cheguei na Europa e fiquei deslumbrado, porque era outro mundo.
P/2 – Quantos anos você tinha?
R – Eu já estava com 18 para 19. Chego lá e descubro outro mundo, outras coisas, que não eram só música. A padaria era diferente.
P/2 – Você foi para qual lugar?
R – Eu cheguei na Itália, mas fui morar na Bélgica.
P/2 – Mas foi por conta dele?
R – Eu fui encontrar o Marco, porque era porta de entrada. Tinha um amigo. E aí eu queria conhecer outras coisas, então fui para Amsterdã. De Amsterdã, eu tinha uns amigos que moravam na Bélgica e trabalhavam pintando parede. E aí eu fui lá para conhecer e ver e acabei ficando pintando parede, depois cozinhando.
P/1 – Mas você passou pelo Marco, lá na Itália?
R – Não, eu fiquei uma semana com o Marco. Mas era aquela história: só o conforto de poder... Ainda tinha muito medo, eu não falava língua nenhuma. Então, a sua primeira experiência ser com alguém que, pelo menos, fala a língua não era má ideia, para pegar e falar: “Não deve...”. Eu tinha medo de ir sozinho. De chegar e falar: “Nossa, eu não vou conseguir falar com ninguém, não vou conseguir andar na rua”. Eu cheguei lá e falei: “Para, isso aqui eu me viro e a gente vai embora”.
P/1 – Aí conta um pouco esse percurso.
R – Não. Isso foram semanas. De eu pegar... Eu tinha 500 dólares, ou seja: muito rapidamente eu já não tinha mais dinheiro, até porque eu passei em Amsterdã antes, não sei por que eu perdi muito dinheiro. (risos)
P/1 – Um pequeno detalhe.
R – Era um parquinho. Tudo que eu queria na vida estava ali. Tinha música, tinha sexo, tinha drogas. Cara, eu era um pinto no lixo. (risos) Eu estava achando tudo lindo, maravilhoso. Eu tinha 500 dólares e gastei. E aí fui parar na Bélgica, peguei um trem, fui para a Bélgica, fui para Bruxelas, encontrei meus amigos lá e aí eles trabalhavam em construção, eu falei: “Pô, eu volto para o Brasil, vocês me dão uma força”. Eles falaram: “Vamos dar uma força aí, encosta aí e trampa com a gente”. E aí eu fui trabalhar, e trabalhar é uma coisa que eu sou muito orgulhoso. Eu falo assim: “Se é uma coisa que eu nunca tive na vida, foi preguiça de trabalhar. Eu sempre fui melhor e mais rápido do que a maioria”. Então, se é para trabalhar, vamos para cima, jogava para cima, mesmo, não estava nem aí. E aí, os caras me viam trabalhando e falavam: “Pô, o moleque trabalha para caramba e custa igual ao outro, então pega o esforçado em lugar do preguiçoso”. Foi uma das grandes vitórias da minha vida. E aí eu tinha dois problemas: primeiro era de ganhar grana e o segundo era que ia vencer o terceiro mês e eu ia ficar ilegal. E daí eu conheci um cara que fazia escola de cozinha. Eu falei: “Esse negócio de cozinha é legal, porque eu não vou passar fome, já”. Falar isso hoje parece pueril, mas quando você está vivendo na história ali... Eu sempre falo: “Tem uma diferença de só e sozinho. Aqui em São Paulo eu estava só, mas se eu tivesse um problema, tinha amigos para recorrer e, cada vez que apertou meu calo, na pior das hipóteses, tomava um ônibus e ia para São Bernardo. Quando você está na Europa, sozinho, garoto, a comida de amanhã importa”. (risos) E, às vezes, você só descobre que ela importa quando ela está... Eu sempre falo isso: “As pessoas descobrem quanto a gente gosta das coisas, principalmente quando a gente não as tem”. E aí eu achei que cozinhar era legal, porque tinha isso. Fui cozinhar e era mais legal cozinhar do que pintar parede. Tem mais essa. Era muito mais legal cozinhar. Não passava frio, tinha comida, o ambiente era mais amistoso, tinha uma série de coisas que era mais legal e então eu fui cozinhar por conta disso. Mais uma vez, eu era aquele cara que os caras mandavam embora do restaurante: “Vai para casa, acabou seu horário”. E eu falava: “Não, vou ficar aqui, cara”. Ia fazer o quê em casa, sozinho? Não tinha nada, eu ficava olhando para a parede e falava: “Não, cara, deixa eu aqui no restaurante, eu fico trabalhando, não precisa me pagar, não”. E aí os caras ficavam amarradão, porque eu era trabalhador, não sei o quê, queria fazer, rapidinho eu fazia melhor do que os outros. Então, o crescimento da cozinha. Eu não escolhi ser cozinheiro. A vida me levou a ser cozinheiro e agora é a história que eu sempre falo assim: “As oportunidades que eu tive na vida, eu agarrei com muita força”. Então, eu acho que essa é uma coisa... E a cozinha foi exatamente isso: eu não queria ser cozinheiro, mas eu queria morar na Europa e a cozinha foi o primeiro instrumento para isso. Para eu poder morar lá.
P/1 – E aí, quando você começou a cozinhar, teve alguma história assim: o avô apareceu na lembrança? Teve alguma história assim?
R – Acho que tem vários momentos onde a minha vida anterior aparece. Então, por exemplo: meu avô caçava e gostava de caçar pássaros, aves, codornas, perdizes, essas coisas, e aí eu chego na Europa e tem essas coisas. Estação de caça. O caçador vem entregar no restaurante. Eu não estou falando de uma coisa escondida, não. Nós estamos falando de tradição. Na Bélgica, tem uma rua que se chama pequena rua do açougueiro, que é feita de peixes e caças na estação de caças, bichos mortos para tudo quanto é lado e as pessoas vão, é um programa turístico ir lá ver essa rua dos restaurantes. E aí eu começo a ver, aquelas mensagens que meu avô passava estavam ali presentes, e outras coisas aconteceram. Então, por exemplo, para a gente, nos anos 80, salmão era um bicho... (risos) E teve um dia que eu tive que limpar o salmão. Eu estava no restaurante, falou: “Você sabe limpar peixe, vai lá e limpa o salmão”. Só que, para mim, não era um peixe. O valor daquele peixe: era um peixe da Europa, tinha outra cor, era um salmão, fino. Eu tinha que cortar o peixe. Por mais segurança que eu tivesse de limpar qualquer outro peixe, aquele era... Eu fiquei nervoso para limpar meu primeiro salmão. (risos) Então, eu acho que tem muito essas coisas de coisas que eu ouvia quando era criança, valores que eu escutava falar, coisas que eu escutava falar e que elas foram se materializar dentro de um restaurante. Coisas chiques, por exemplo. Tem várias histórias dessas. Um dia, eu trabalhava em um restaurante que era uma casa, uma grande casa que foi transformada em restaurante. E tinha uma cozinha que era grande, mas ainda vamos dizer que era uma cozinha de casa grande. Era mais ou menos assim. E a gente tinha o estoque, que era do outro lado, que era na edícula, numa outra partezinha da casa, fora, e tinha um jardim. Eu estava na Bélgica, estava começando a fazer menos frio, vamos dizer assim, mas não era verão e aí eu estou atravessando, tinha uma arvorezinha lá e eu vejo um passarinho comendo uma frutinha. Eu falei: “Se esse passarinho come, esse negócio deve ser bom. Vou lá ver o que é”. E aí um negocinho verdinho, pequenininho, eu fui e peguei e era maçã, maçãzinha, uma macieira, como a gente tem limão aqui em casa, lá nasce. E eu comi a maçã, estava uma delícia e eu fui e comecei a comer a maçã, acho que comi todas ou quase todas que tinha no pé e tomei uma grande bronca da esposa do chef, que era manager do restaurante, que ela falou que aquela comida era dos passarinhos, que ali eles não negavam comida para ninguém, que se eu estava com fome, precisava pedir para ela. Que aquilo era do passarinho. Ainda que seja humilhante para mim, foi um grande aprendizado nessa relação de que outras coisas precisam dessa comida. A sua vontade não se sobrepõe à do coletivo ou do ‘coiso’, que eram outros valores que meu avô trazia também, não é? Tinha uma coisa que falava assim: “Aquela maçã do passarinho era do passarinho. Eu estava roubando de alguém”. (risos) Tinha comida, eu não precisava. Para mim, tinha.
P/1 – Muito bom! Você começou com essa escola lá de gastronomia, depois passou para um restaurante, teve alguma história...
R – Sempre vai existir aquela coisa do novo. Cozinhar era novo, os equipamentos eram novos, as gestualidades eram novas. Vamos lembrar que um bom cozinheiro tem uma gestualidade: é bonito vê-lo cozinhar, se ele pega uma faca ou trabalha uma massa. Ele tem a gestualidade presente no ofício e isso me fascinava muito. Você vê um cara limpando peixe, tem uns caras que brigam com o peixe e tem outros que... Vê um cara limpando uma carne. Você vai em um açougue. Hoje em dia quase não tem mais, mas o açougueiro afiando a faca, as gestualidades, ou salteando. Essas coisas me pegavam muito. Eu queria aprender essas coisas. Então, tem essa coisa do novo, que todo tempo se embebendo. Tinha uma coisa do caro e do barato. Uma relação que subverte muito na minha cabeça. O que para a gente no Brasil era muito caro, lá eram muito acessíveis. E coisas que eram caras lá, aqui eram desprezadas. Como, por exemplo, colher coisas do mato e trazer para dentro da cozinha. Então, cogumelos. Trufas. O cara que vendia a coisa mais cara que tinha lá era um caipira que, aqui no Brasil, não ia ter valor nenhum. Então, eu tinha essa relação de caro e barato, ela começa a se inverter muito na minha cabeça, através da cozinha. Como é que a coisa mais cara que tem na cozinha o homem tinha que caçar? Como é que eu tinha que esperar o ano inteiro para poder fazer? Na Itália, anos depois, eu queria trabalhar com escargot. Eu tinha morado na Bélgica, eu falava Francês, aprendi a falar Francês na Bélgica, depois fui morar na França, aí fui morar na Itália. Na Itália, eu era um porcaria, um brasileiro que vinha de cozinha francesa. Eu era a antítese do que o italiano queria, principalmente naqueles anos, onde a moda na Itália, os anos 90, começo dos anos 90 na Itália... A Itália era muito orgulhosa dos seus ícones de moda e da comida, e toda uma história. E eu, como tinha trabalhado na França, eu vi que eles tinham uma polenta com lumache, mas eu podia usar o escargot e eu estava louco para mostrar para os caras. Eu ia fazer uma comida italiana legal, com uma coisa que eu tinha aprendido trabalhar fora e eu queria mostrar para eles isso. E eu tive que esperar meses para poder chegar a estação, para poder trabalhar na estação com aquele ingrediente. Essas foram relações de esperar o tempo de comer, que é o tempo natural, não é a minha vontade que se sobrepõe à vontade da Natureza. A Natureza é que me oferece. Eu não quero. Eu não peço para a Natureza. Eu acho que tem coisas que são chaves muito importantes para o que eu faço hoje, que já estavam na minha infância, que a cozinha reforça também.
P/1 – Alex, tinha a música, aí você começa a cozinhar. Como que vira?
R – Vamos dividir minha vida em dois momentos: fase música e fase cozinha.
P/1 – Mas é assim?
R – É. Depois que eu viro cozinheiro, eu viro cozinheiro. Eu viro tão cozinheiro que eu fico anos sem escutar música direito. Viro tão cozinheiro que, se eu estivesse conversando com vocês agora e, se tivesse um copo ou um vidro com rótulo, eu ia ler o rótulo. Durante alguns anos da minha vida, não existia pescar, caçar, música, droga, nada que não fosse cozinhar.
P/1 - E o que aconteceu para ficar assim?
R – Paixão. Eu pirei. A cozinha botou todas as diferentes fases da minha vida em comunhão.
P/2 – Mas quando você sai, você vai para a Bélgica, depois vai para a Itália...
R – Fui para a França e depois Itália.
P/2 – Quando você sai da Bélgica e vai para a França, você já estava com essa ideia de ser cozinheiro?
R – Já era cozinheiro.
P/2 – Você não tinha feito escola?
R – Não. Fiz a escola na Bélgica. Exatamente. Fiz a Escola de Hotelaria de Namur.
P/1 – Você primeiro trabalhou num restaurante e depois...
R – Eu trabalhei em mais de um restaurante, na Bélgica, mas trabalhei principalmente em um restaurante. Aí vou para a França.
P/2 – E você fez escola na Bélgica? Entrou na escola?
R – Sim. Para ter o visto, não é? Volto a falar: na Bélgica, eu não queria ser cozinheiro. Eu precisava de um visto. Eu não queria ser ilegal. E a cozinha me mostrou um caminho de viver bem. Daí fui para a França, vivi na França, conheci... Todo final de ano, que era inverno lá, eu...
P/2 – Mas daí você já mudou para lá? Você não voltou para o Brasil?
R – Eu ficava indo e voltando. Vamos falar o seguinte: lá na Europa, principalmente quando você está treinando, você é contratado por temporadas. Então vamos falar assim: tem os lugares que são de verão. E você é contratado para trabalhar na temporada de verão. É diferente da gente aqui. A história do contrato temporário ou de estação, existe. Então, eu estava na Bélgica, quando eu estava na Bélgica, por exemplo, o restaurante que eu trabalhava era muito fino, não sei o quê, nananã, e a Bélgica tem uma tradição muito grande de cavalos. O sheik do Catar, esses árabes, têm muito grana e tinham cavalos. E a Bélgica também é um centro hípico. Então, esses caras vinham comer no restaurante. Desse jeito, eu conheci um brasileiro que cuidava da maquiagem dos cavalos do sheik do Catar e aí eles nos convidaram para cozinhar uma vez em Nice, porque o barco do sheik estava lá, então tinha essas possibilidades de viajar. Nesse caminho, eu tinha a possibilidade de morar um pouco em Montpellier, de trabalhar uma estação em Montpellier. E eu achei que ia ser incrível, porque a França... Não foi incrível. (risos) Nessas idas e vindas, essas coisas, final de ano eu sempre vinha para o Brasil, primeiro... Não sei, vou falar numa ordem, não sei se é exatamente ordem de valor, mas é assim: estava frio lá, estava calor aqui. Eu queria - eu tinha saudade da família, tinha saudade dos amigos - vir para cá, mas eu também tinha uma coisa de grana. Cem dólares eu levava minha família inteira para comer num senhor restaurante. Então, era um exercício pueril, de afirmação, mas era a maneira que eu tinha para mostrar para a minha família que eu estava fazendo uma coisa legal. Eu tinha cem dólares, duzentos dólares, voltei com quinhentos. Saí daqui com quinhentos dólares, já voltei a primeira com quinhentos dólares. Já tinha uma casa lá. Então, você tinha uma coisa de se sentir triunfando, que era muito importante nessa história. Basicamente isso. Voltava para o Brasil, final de ano, conheci a Cristiana, mãe do Pedro, minha primeira esposa, aqui no Brasil. A gente achou que ia ser um namoro de verão, porque ela tinha data. Ela ia morar em Milão, para fazer o Instituto Marangoni, o curso dela, e eu ia voltar para a Europa para ser cozinheiro. E aí, no final da história, acabei indo com ela para a Itália. Estava ali meio bala perdida. Eu tinha um ofício que podia me levar a viajar. E vou morar na Itália para ficar junto com ela e me adaptar a uma nova coisa e aprender um novo idioma.
P/1 – E seu filho nasce lá?
R – Meu filho nasce no Brasil. A gente volta para o Brasil e, nesse momento, eu já estava de saco cheio de ser gringo. (risos) Você ser estrangeiro, toda vez que eu vejo um estrangeiro morando no Brasil, eu ainda me pergunto e, às vezes, até converso com ele sobre isso: tem algumas piadas que você nunca vai entender, se você não for local. O cara fala assim: “Eu sou cozinheiro”. E se eu falar: “Vocês querem bacalhau?”, eu não estou te oferecendo bacalhau, estou brincando com o Chacrinha. Só quem viu o Chacrinha entende isso. Quando você está anos morando fora e as pessoas fazem a piada e você fica hahaha, rindo porque todo mundo riu, você não sabe exatamente do que você está rindo. Tem uma hora que te enche o saco. E esses anos que eu morei na Europa é uma sensação que essa falta de registro cultural, por um lado, era fascinante e, por outro lado, era pesada no dia a dia. Fui morar na Itália e foi um país muito difícil, também, de morar, pelo seguinte: morei na Bélgica e me senti muito acolhido na Bélgica, até porque era o começo, a formação da comunidade europeia e a Bélgica é um país muito cosmopolita, era o núcleo de fundação, eu convivia com muito estrangeiro fora da cozinha, tinha circuito de festas e as baladinhas e aquelas coisas, então eu tinha amigo do Zaire, do mundo, de todos os jeitos, na Bélgica. Saio e vou para a França, para o interior da França, numa cidade muito linda, região linda, Montpellier, escola de arte, de famílias, de uma turma que eu não consegui me conectar muito bem ou talvez fosse muito diferente disso. Saio, vou para a Itália, vou para Milão, que era uma cidade de moda, consumista...
P/2 – Quando você vai para Milão, você já era uma pessoa conhecida lá?
R – Não. (risos)
P/1 – Mas aí você era um cozinheiro?
R – Era mais um cozinheiro. Era um garoto.
P/2 – Quantos anos você tinha lá? Quando você foi pai?
R – Devia estar com 22. Eu fui pai com 26. Eu devia estar com 22, 23 anos, mais ou menos, quando eu resolvo ir para a Itália com a Cristiana, para morar com a Cris.
P/2 – E você foi pai com quantos anos?
R – 26. Eu tenho um filho de 25. (risos)
P/1 – A gente pergunta como foi ser pai.
R – Ser pai foi incrível. Acho que pai é...
P/1 – Ele nasceu aqui e depois vocês foram para lá?
R – Não. Ele já nasceu aqui, eu já não...
P/1 – E como foi essa experiência, o que mudou na sua vida?
P/2 – Ou não mudou.
R – Então, vamos lá! Um cara que saiu com 14 anos de idade de casa, com 19 eu era um homem formado e estabelecido. Eu, com 19 anos, me achava homem maduro. Nada me tirava da cabeça que eu já morava há cinco anos sozinho, segurava minha onda há cinco anos. Aquele tempo, para mim, era muito tempo. Quando eu fui pai, com 26, na minha cabeça, eu estava muito pronto para ser pai. Eu já tinha morado em três países, eu tinha quilometragem que eu achava que homens de 30 não tinham, de 50 não tinham. Hoje eu olho para trás e falo: “Eu sei o quanto precoce eu fui”. Com 26, volto a falar: eu estava pronto para ser pai. Eu achava que estava pronto para ser pai. E fora a coisa da grana, que foi assustadora, o resto foi uma alegria, mesmo que o nascimento do Pedro, o parto do Pedro tenha sido muito complicado, a Cristiana teve um choque anafilático, uma anestesia colocada no lugar errado, era um peridural e então ela não pega da cintura para baixo, pega da cintura para cima. Em dois minutos, se não tira a criança, a criança não vai respirar mais porque o pulmão... A anestesia pega o feto e o chorar do nenê é quando o pulmão enche de ar e dói. Se não dói, ele não respira. Então, foi um parto muito atribulado. Eu estava na sala de parto, obviamente você acha que quando está acontecendo aquela cagada com seu filho, que está acontecendo a besteira e então eu me lembro perfeitamente deles pegarem o Pedro, enrolarem no ‘coiso’ e falarem: “Pai, sobe com o RN”. E eu bum, porque eu tinha que salvar o meu filho, e aí eles limpam o meu filho, o colocam na balancinha, eu conto os dedinhos, conto as perninhas, conto todas as coisas e falo: “Ele está perfeito”. E aí eu entendo que o problema não era com ele. Só que eles não deixam mais eu voltar para a sala. Então, foi um parto complicado. Graças a Deus, sem nenhuma sequela. Mas a primeira noite, os dois na UTI, não é? Ele na UTI e ela na UTI. Então, foi uma pancadona, debutei como pai com emoção, mas sem sequela. (risos) Ele está com 26, ótimo, já está casado, e a Cris está, graças a Deus, ótima também. Mora aqui em São Paulo. E ser pai, a hora que você se reconhece nas ações do seu filho, é muito louco, não é? Tem coisa que você sabe que você induziu seu filho. Tem coisas que você sabe quando ele copiou alguma coisa de você sem você nunca perceber que tinha. Fascinante, filho. Agora, eu sempre falo isso: os meus mais novos hoje já estão com 17: “Quanto mais eles crescem, mais eu gosto de ser pai”. Você fala assim: “Quer ter mais filhos?” “Só se já nascesse com sete, oito para frente”. (risos)
P/1 – Você tem mais dois?
R – Eu tenho mais gêmeos. Eu tive outro casamento, segundo casamento, estou casado até hoje com a Márcia, a gente tem o Tomás e a Joana, que são gêmeos e estão com 17.
P/2 – Tem algum ruivinho?
R – Não. Não sei fazer filho ruivo. (risos)
P/1 – Deixa eu te perguntar uma coisa, já que está falando de filho com 17, é rápido: quando você ficou sozinho, desde os 14, segurando a onda, o que mais pegava?
R – Nada pegava. Eu vivia meu sonho. Eu falo isso para as pessoas, as pessoas não entendem isso. Eu falo: “Eu não fui obrigado. Eu não sofri para fazer isso. Ao contrário, foi legal fazer isso”.
P/1 – E financeiramente?
R – Eu tinha todas as limitações do mundo, mas elas não eram pesadas para mim, talvez porque limitações sempre existiram na minha vida, mas elas não eram pesadas para mim. Eu posso ficar contando histórias aqui, pode até parecer que eu era coitado, se eu falar: durante alguns momentos da minha vida eu fazia uma refeição por dia, que é quando eu falei para vocês que é a história de ter grana, mas não era pesado. O que eu vivia era mais legal. Aquilo não era sofrimento para mim. Aquilo era uma condição de viver, boa; a coisa mais legal que eu queria. O benefício era maior do que o ônus, o preço que me cobravam para fazer. Eu comia todo dia, tomava banho todo dia, dormia num lugar direitinho, ainda que não fosse o lugar mais luxuoso, minhas roupas não eram... Mas era o que eu queria. Eu não queria outra vida. Eu não queria a vida que minhas irmãs tinham, com a proteção da minha mãe. Eu não queria. Aquilo eu sabia que eu não queria.
P/1 – A gente precisa, agora, começar a história de quando você chegou em São Paulo, até aqui.
P/2 – É. Que momento você decide abrir o seu próprio negócio?
R – Tá, então vamos lá! Eu volto para o Brasil...
P/1 – Infelizmente.
R - ... Com pouca grana, casado e grávido. O Pedro nasce em São Paulo. Então, você olha e fala: “Uau! Tem uma coisa: tem que trabalhar”. Eu achava que eu ia voltar para o Brasil e ia montar um bar, fazer alguma coisa assim, porque eu volto a falar: por mais que eu estivesse apaixonado, já, pela cozinha, naquele momento era uma maneira de eu me manter fora do Brasil. E eu sempre gostei do rock and roll, gostava da música, achava que eu ia ter essa chance de voltar para o meu país e poder montar meu bar, e cozinhar no meu bar e ter shows. Essa era a fantasia daquele momento. Mas aí eu voltei e não tinha grana, cara. Então, eu tinha que começar de novo, mais uma vez achar o meu espaço. Tinha que pagar um aluguel, tinha um filho que ia nascer, tinha uma história toda que era nova para mim e aí eu fui trabalhar, fui pedir emprego de novo, não é? Correr de novo, buscar salarinho e viver daquilo ali. Mas eu tive a sorte, nos anos em que eu morei em Milão, eu conheci algumas pessoas muito legais. E uma dessas pessoas me apresentou a um arquiteto, chamado Eduardo Longo, que é o cara que fez a Casa Bola. Quando eu chego no Brasil e estou lá tentando me adaptar, uma amiga me apresenta o Eduardo e conta que o Eduardo tinha um restaurante chamado Sushi Pasta, que era um restaurante que fazia sushi e pasta e que a sociedade estava se desfazendo e que eles precisavam de alguém que cozinhasse pasta, porque já tinha um sushiman. Mas que tivesse capacidade à gestão, gerir aquilo ali, e aí foi a única vez que o meu diploma de cozinheiro (risos) valeu para alguma coisa. (risos) Eu fui lá e falei: “Isso aqui eu administro, eu faço tudo”. A verdade é que eu administrava super mal, mas eu varria a rua, eu fazia tudo, mandava pau, cara”. E resolvia. A verdade é que o restaurante começou a ir bem. Esse restaurante, pela informalidade dele, pelo lugar em que ele estava - que era na rua Amauri, eu fui conhecendo alguns outros cozinheiros. Então, eu conheci o Érick Jacquin, por exemplo. O primeiro chef que ele conhece no Brasil sou eu. E, praticamente, o primeiro chef francês que eu conheço no Brasil foi ele também. Então, o Jacquin veio para fazer um Festival e a gente ficou amigo naquela coisa. Eu falava Francês e ele não falava Português, óbvio, e daí eu conheci um outro francês, que se chamava Pierre Patrick Bellissen, que era chef aqui também, já não está mais, voltou para a França. O Pierre me apresentou Emmanuel Bassoleil, que me apresentou o Lucciano, todo mundo ia para o Sushi Pasta, que tinha essa coisa fácil. Assim eu fui ficando e, através deles, eu fui indicado para abrir o Filomena, que nasceu para ser um bar- restaurante, concorrente do boteco de mauricinhos e patricinhas que tinha em São Paulo, que era o Cabral. Quando eu comecei a cozinhar e que a história colou, umas semanas depois aquilo que seria o bar-restaurante da filha do dono virou o restaurante do dono e da esposa e o Filomena passa... Em poucos anos, sei lá, em três anos, já era considerado um dos bons restaurantes de São Paulo. Eu saí do Filomena, fui para um restaurante pequeno, que se chamava 72. Restaurante pequeno, não. Restaurante novo, que era um restaurante muito importante. Foi um momento de glória da vida, porque era um restaurante que, apesar de novo, tinha um dólar de um para um. Então, eu podia ter a Carta de vinho incrível, eu podia ter manteiga italiana para fazer algumas preparações, eu podia ter cogumelos de não sei o quê. Foi um parquinho de diversões, um laboratório muito bom de aprendizado também trabalhar nesse restaurante. Esse restaurante dura pouco, dura um ano.
P/1 – Onde ficava?
R – Na Joaquim Floriano, número 72, embaixo de um prédio. Tem umas histórias engraçadas ali. Eu fiz um concurso de cozinha e ganhei um concurso de cozinha, ganhei um Ford Ka, que eu achava horrível, mas eu ganhei um carro zero. (risos) E o Giovani, meu braço direito hoje, era lavador de louça, depois eu fui ensinando-o a cozinhar e eu o ponho num concurso, ele ganha um concurso também e ganha mil dólares. Depois a gente ganha um milhão, é muito simples. Com o dinheiro do Ford Ka e o restinho que eu já tinha juntado... E o restaurante 72 começou a ir mal, ia fechar, eu arrumei um lugar na Consolação, que era um bar que era até divertido, que se chamava The Cube e eu monto o Namesa. Namesa é o meu primeiro restaurante. As pessoas acham, às vezes, que eu era sócio dos outros restaurantes. Não. Ali eu tinha salário, eu não tinha... A empreitada como dono de restaurante começa no Namesa. E do Namesa eu vou para o Dom. E essa é uma história engraçada, tem duas passagens engraçadas, porque eu ia comprar cordeiro num açougue de cordeiro, que era vizinho do Dom hoje e esse cara, dono da loja de cordeiros, chamado Jorge Calfat, falou assim: “Por que você não compra esse restaurante?” Eu falei: “Porque eu não tenho dinheiro”. E o Namesa ficou muito famoso, muito rápido. Afinal de contas, eu era um chef de cozinha com seu ajudante, dois caras na cozinha fazendo comida de alta qualidade e vendendo a preço de sanduíche. Assim acho que era um monte de gracinhas que a gente tinha ali. Eu bolei um jeito de fazer comida fina muito barata, com pouco trabalho. Então, a gente conseguia. Namesa foi um sucesso instantâneo. E esse cara falava assim: “Por que você não compra esse restaurante aí ao lado? É um japonês, está fechado”. Eu falava: “Porque eu não tenho grana”. Na terceira vez eu falei: “Quanto é que custa, em números reais?” “Trezentos mil”. Eu falei: “Eu pago 150 em 36 vezes, sem juros, e quero carência”. E virei as costas e fui embora. E passou uma semana, ele me liga e me fala... Me liga, não, eu volto para comprar cordeiro e ele fala: “Os caras aceitam sua proposta”. Eu falei: “Que proposta?” Ele falou: “Aquela dos 150 mil”. Eu falei: “Deu droga. Está errado”. Volto para o Namesa e lembro de um menino chamado Renato Moisés, que era advogado, que gostava de cozinhar e que tinha feito um estágio lá de dez dias comigo, na cozinha do 72. Ligo para o Renato e falo: “Caiu um negócio aqui no meu colo, está bom demais para ser verdade, mas fiz uma proposta indecente num restaurante e os caras aceitaram. Acho que deve ter alguma coisa de errado, você pode checar isso para mim?” Ele falou para mim: “Manda tudo”. Aí fui, peguei os papéis, levei para ele, passou uns dois dias, ele me liga e fala: “Alex, realmente o negócio é complicado”. Eu falei: “Então tudo bem, relaxa”. Ele falou: “Não, mas escuta”. Eu falei: “O quê?” Ele falou assim: “Se eu resolver esse problema, você deixa eu ser sócio?” Eu falei, eu lembro, os números são reais: “Você tem 25 mil reais?” Ele falou: “Eu acho que tenho”. Eu falei: “Então pode tocar o pau aí, que a gente vai fazer esse restaurante”. Obviamente 25 mil reais no meio do projeto já tinha ido e faltava conseguir um terceiro sócio e assim, em dezembro de 1999, eu consegui abrir o Dom, com uma história engraçada também, porque o Dom... Ontem, ela tinha me perguntado se tinha dia certo de aniversário do Dom, eu falei que acho que não, porque não sei se foi no dia 31de novembro ou no dia primeiro de dezembro. Dia 30 de novembro, não era 31, era 30 de novembro ou primeiro de dezembro. Porque é o seguinte: a gente marcou a inauguração do restaurante Dom no dia 30 de novembro, só que a Comgás não ligou o gás. Aí me deu um pânico, eu falei: “Como que eu vou receber pessoas para jantar e não tenho comida quente?” Então a gente afastou todas as mesas, eu catei o telefone, liguei para todos os amigos, para todo mundo, falei: “Vem para cá, me ajuda, pelo amor de Deus, vem tomar um champagne comigo. E a gente fazendo canapés frios, fizemos canapés frios, servimos comida e bebida. Então, a primeira noite que eu recebi gente dentro do Dom não foi para cozinhar. A primeira vez que entrou gente foram todos convidados, ninguém gastou um tostão e eu servi... Não tinha forno, não tinha fogão. E o segundo dia foi o dia primeiro da coisa, que aí a gente cozinhou. Aí ligaram o gás. (risos) Passaram os vexames agora.
P/1 – Bar e restaurante que não tem fogão é bom. A gente, agora, ia começar a perguntar muitas histórias de todo esse período, mas se você se propuser a vir outra vez...
R – Vamos, posso voltar. A gente volta.
P/2 – Vamos marcar, a gente combina com ele.
R – A verdade é que eu faço 30 coisas ao mesmo tempo.
P/2 – Eu posso imaginar. Bom, então eu nem vou perguntar o que é contar para o Museu da Pessoa - porque eu acho que você nem experienciou tudo isso, não é? Porque a gente sempre pergunta como foi contar sua história, estar no Museu da Pessoa, mas eu acho que a gente pode deixar para um outro momento, não é? Como você acha, quais você acha... Agora, essas são as perguntas específicas para o projeto do Observatório da Gastronomia... Quais são as características que marcam a gastronomia de São Paulo? Existe uma identidade?
R – A cidade de São Paulo tem uma característica de diversidade. É uma cidade que hoje representa... O cartão de visita de uma cidade é o seu mercado. E o ponto turístico de São Paulo mais visitado é o Mercadão. O Mercadão reflete, perfeitamente bem, essa diversidade cultural da cidade. Tem um mercadinho em frente, onde todo esse mundo asiático - chinês, japonês - está ali dentro. E quando você passa no Mercado, portugueses, espanhóis, árabes, italianos estão ali. Então, eu acho que essa é a primeira força dessa cidade de São Paulo. Eu morei e cozinhei, graças a Deus, pelo mundo inteiro e, às vezes, você chega com a comida brasileira, uma comida diferente, em alguns países as pessoas têm dificuldade em aceitar comidas de outros lugares, porque elas se acostumaram a comer aquela comidinha do país dela. E aqui no Brasil, São Paulo principalmente, é o oposto. Uma criança come sushi, come esfiha. A facilidade que o paulistano e o brasileiro têm de abertura para novos sabores é gigantesca. Vide o fenômeno sushi que, nos anos 90, não precisa falar anos 80, mas nos anos 90, era comida de gueto e, hoje em dia, as crianças preferem sushi a Mc Donald’s. Então, acho que é uma cidade de diversidade cultural e isso se reflete na gastronomia.
P/2 – Quais você acha que são os desafios para ativar um desenvolvimento sustentável da gastronomia em São Paulo?
R – Eu posso responder, mas eu não sei se vocês vão gostar de ouvir. (risos) Vergonha na cara, bicho. Desculpa. Eu tenho vergonha do meu país quanto a política, quanto a organização, quanto ao orgulho de ser brasileiro ou de ser... Enquanto não mudar essa chave de valor, não contem comigo para esses projetos. Desculpa, (risos) eu sou assim: claro. Ok? O italiano... Eu vou te falar: a gente falou de trufa agora, não falou? Se a trufa nascesse no Brasil, qual era o nome dela? Merda. “Eu não vou comer aquela merda, que porco cheira”. A baixa estima, o baixo valor que o brasileiro dá à sua própria cultura é isso: comida de índio é nojenta, de pobre. Enquanto o brasileiro olhar a gastronomia dele assim, não contem comigo para projetos. Existe uma coisa que é valor, que não é dinheiro. Você vai à Itália para comer a comida que sua avó faz num restaurante. Você vai comer o queijo que vem do Contadino. Não é sensacional imaginar que dos vinhos mais caros do mundo, são cinco vinhos grandes châteaus na França, o mais festejado, um dos mais, chama Château Le Pin, que tem uma vinícola de quatro hectares? Produzir qualidade é a viabilidade daquele pequeno produtor rural e só existe se o mercado assimilar. E o mercado só remunera se tiver valor. Enquanto o Brasil não entender isso, não contem comigo. É simples assim. Enquanto as pessoas querem fazer papagaiada para falar de gastronomia brasileira e paulistana, o ATA e o Alex não estão juntos. Desculpa ser tão duro assim, mas (risos) eu nunca dei meia resposta na vida. (risos)
P/2 – Essas são perguntas específicas. O Museu da Pessoa nem entra em perguntas opinativas. Você viu, na entrevista, a gente não vai por essa vibe. Essa candidatura que eles estão fazendo no projeto, o pessoal do Observatório da Gastronomia, tem a ver, muito, porque a Unesco pensa muito a gastronomia como desenvolvimento sustentável da cidade.
R – Outras cidades brasileiras já ganharam esse prêmio, sabia?
P/2 – É mesmo?
R – É. Belém do Pará e Florianópolis.
P/2 – E o que você acha que São Paulo poderia fazer, efetivamente, para ter esse título?
R – Vamos olhar isso de duas maneiras: primeiro, a primeira Capital do mundo que pode ganhar esse louro é São Paulo. Ok? Isso seria incrível, por um lado, porque é a primeira Capital. Ok? Nova Iorque fala de uma Capital, não tem... Porque nenhuma cidade megalópole no mundo ganhou. Podia ser, realmente, bom para várias coisas: para geração de valor da cidade. Agora, Florianópolis tem, ganhou esse prêmio. Belém do Pará ganhou esse prêmio. O Brasil soube usar? Eu não estou falando da qualidade do prêmio. Eu estou falando mais uma vez de valor. O que foi feito com esse agraciamento que essas duas cidades ganharam? Não vai adiantar nada São Paulo se candidatar a esse prêmio e ganhar esse prêmio, se a gente não souber usar. Aí agora, eu vou desdizer o que eu disse: “Se houver valor, contem comigo e com o Instituto ATA, sem fim. Só entusiasmo, só força para trabalhar”. Eu só me canso... Talvez tenha sido um dos primeiros caras dentro do Brasil e, com certeza, fora, a gritar pela nossa gastronomia. E sofro e sofri muito por essa baixa estima, esse pouco valor que o Brasil deu. Eu, há muitos anos, talvez mais de dez anos, dei uma entrevista para a Folha de São Paulo falando que Peru passaria o Brasil no cenário mundial da gastronomia. Mais rápido do que a gente imaginou, a gente concretizou. Peru recebe pessoas hoje para comer, o Brasil não é capaz. E o Peru não ganhou de restaurantezinhos bacanas, de chefinhos f.... Ganhou comida de rua, ganhou na produção agrícola, ganhou no valor da cadeia do alimento. O Peru foi capaz de usar a culinária como uma rede social violenta, como fonte de orgulho, de dinheiro, de história. Usou esse elo entre Natureza e cultura com propriedade, para divulgar sua marca, para reforço de imagem e como ferramenta socioambiental.
P/2 – Eu ia perguntar do Instituto ATA. Como é que você criou?
R – O Instituto ATA, eu vou contar um pouquinho, uma breve história do ATA. O ATA começa numa relação minha com coisas que eu aprendi na Europa: um bom chef tinha que ter o seu jardim e produzir as suas ervas e os seus vegetais. Então, tão logo quanto eu pude, eu resolvi ter meu jardim. Como é uma cidade que é difícil ter um jardim, eu resolvi comprar uma área, aqui pertinho, que chama Amapá. Para cima do hemisfério norte, ali. (risos) Para cima da linha do Equador. Eu comprei uma terrinha lá. Deu tudo errado. Porque a logística é absurda. Porque eu queria trabalhar com produtos da Amazônia e não tinha aqui. Mas eu tive uma série de aprendizados ali. Um dos aprendizados foi que eu, talvez, como cozinheiro, esteja pronto para lidar com ingredientes. Mas eu não estou pronto para lidar com o homem que está junto com o ingrediente. E colho uma série de tristezas naquilo lá e falo para um amigo sociólogo, conto para ele e ele falou: “Você tem que conhecer meu amigo, que é antropólogo, que é o Beto Ricardo, do ISA. Acho que ele pode lhe ajudar”. E o Beto Ricardo, carinhosamente, me atende, mas em um primeiro momento foi uma trombada, assim. O Beto me deu um ‘sabão’. E eu não entendi aquele ‘sabão’. Porque, na minha cabeça, eu tinha só vontade de trabalhar. Mas o Beto me fala uma coisa nesse ‘sabão’, assim: “Por que você vai só tirar da Amazônia? Por que você não vai deixar nada lá?” E eu começo a entender e digerir essas informações muito devagar e começo a trabalhar em parceria com o ISA alguns anos depois, num projeto de pimenta baniwa e entender que aquela pimenta não era gostosa. Ela também carrega cultura, ela também trata de orgulho. Que aquela pimenta poderia ser um modificador de valores daquela sociedade. E que a gente conseguiu. Hoje essa pimenta existe, não sei o quê, e o cara que é pai de família que ia minerar, fazer mineração ilegal, poluir a Amazônia com mercúrio, não sei o quê, hoje o grama de pimenta vale mais do que o grama de ouro. Aquele cara que ficava um mês fora de casa, porque a atividade era necessária, hoje está dentro da família. Você tem reforço. Que hoje o baniwa vê a pimenta dele indo para o mundo e que baniwa não é mais uma tribo desconhecida, você mexe no orgulho de ser baniwa. Você começa a ver que a comida não é... O dinheiro é o que menos conta. O valor que essas coisas geram. Esse trabalho foi crescendo a um ponto onde um Instituto de Antropologia tinha que se debater com problemas outros, que era comercializar. E aí a gente tem a ideia de fazer o Instituto ATA. Eu sempre fui um cara, talvez, muito cerebral e ficava, muito, pensando nessa cadeia do alimento. Vou falar coisas aqui só para ilustrar: a nossa cultura é de acúmulo de riquezas e de saberes. E as coisas se compra com dinheiro, então a gente ama dinheiro. E não tem nada errado em ganhar mais dinheiro. A gente ama tanto dinheiro, que a gente não joga moeda fora. Aquilo é um valor. Você vai para os Estados Unidos, ganha uma moeda de um cent, sabe que não vai usar, mas não a joga fora. Você não tem coragem de jogá-la no chão. Você não fala: “Vou largar isso aqui na cabeceira da minha cama no hotel”. Por que a gente joga comida fora? Se, muitas vezes, a comida que você está jogando fora, custa mais caro do que aquela moeda que você não joga fora? A gente está falando de valores. E eu tinha essa história de olhar e falar: “Por que o homem não respeita, não dá valor à comida? Porque ela está desconexa. O homem, hoje, não reconhece o alimento dele no primeiro momento, que chama vida. Matar um frango, hoje, é cruel. Agora, eu vou contar para vocês que tem coisa que é muito mais cruel: todos os frangos que nós comemos na vida morreram. (risos) Por que eu matar é cruel e o que você compra na feira, orgânico ou de supermercado ou de fast food ou de um restaurante de um chef não é feio? Onde o homem, nessa história, desumanizar essa relação com a comida, tira sua culpa?” É isso. Eu posso continuar falando horas, mas o ATA nasce com essa prerrogativa de tentar reorganizar e suportar a cadeia do alimento. Então, tem uma coisa que a gente tem que é parte do nosso manifesto, mas é uma coisa que eu tenho muito, na verdade, que é aproximar o saber do comer, o comer do cozinhar, o cozinhar do produzir e o produzir da Natureza. Essa é a cadeia do alimento. Ela, reorganizada, tem um poder de impacto maior do que a internet. E eu te falo muito simples porque a maior rede social do mundo não é o Facebook. A maior rede social do mundo, que conecta sete bilhões neste Planeta, quase oito, é comida. As pessoas precisam entender esse valor. E esse é o sonho maior do ATA: ressignificar o alimento para o Homem. A relação do Homem com o alimento precisa de uma revisão. Não é nossa gasolina. É fonte da vida. Ele é tão importante para a gente quanto o Sol, a Lua. O Homem não está acabando com o Planeta Terra. O Homem está acabando com a possibilidade do ser humano continuar nele. Tira todos os homens do planeta Terra hoje e o Sol, a Lua, vai estar todo mundo aqui amanhã. A floresta... Vai estar todo mundo aqui. Se a gente não se entender como parte integrante de uma Natureza. Mas eu, ainda assim, sou esperançoso. Eu acho que, se a relação do Homem com o alimento, hoje, está colapsada - e é um fato - ela não será amanhã. Porque o indivíduo, o coletivo, o mercado, a indústria, entenderam isso. E o primeiro passo para a mudança é a consciência do erro. E a consciência do erro existe. Talvez não tenha a ressignificação do valor, mas o Homem sabe que o caminho que nós tomamos hoje não foi legal.
P/2 – Maravilhosa a frase! A maior rede social do mundo não é o Facebook, é a alimentação!
R – É o alimento.
P/2 – É o alimento que conecta sete milhões de pessoas.
R – Se você der um google, você vai ver quantas vezes, em quantas línguas, essa frase já é famosa.
P/2 – É um clássico, não é?
R – É meu e fez assim: blufffffff. Depois que eu falei, o mundo assimilou isso. (risos)
P/2 – Eu amei o que você disse aqui. Eu já sabia que você tinha dito. A gente estudou você antes de entrevistar. É que eu estava vendo se saía em algum momento da entrevista.
R – Sai. São crenças muito fortes em mim.
P/1 – E eu lembro do avô, o tempo todo. Você falando isso...
R - Volto a falar: tem uma coisa, que a cozinha colocou, em comunhão, várias fases da minha vida. Do punk rock, do drogado, do briguento, do amante da Natureza, do caçador, do protetor, do pai. Todo mundo está ali em comunhão. Não dá para querer um mundo melhor se você não tiver um filho, não é? A primeira coisa que você fala é: “E amanhã, como vai ser?” A nossa existência nesse mundo é um segundo. Ou menos, no tempo dele. Este ano, no Fruto, um evento que a gente monta - o ATA monta todo ano - para discutir essa relação do Homem com o alimento, para trazer outros saberes... A primeira coisa que eu acho que é legal falar... Ou, se você quiser assistir às palestras do primeiro Fruto, que foi há dois anos, lá está ao vivo, gratuitamente, na internet. Vai lá, digita lá Fruto e vai assistir qualquer palestra do ano passado, deste ano, traduzida. Conhecimento é para ser dividido. Não deveria ser represado. Conhecimento é inovação. Inovação sem utilidade não é inovação. Não devia ser represado. Acho que tem esse tentar ressignificar. No Fruto, a gente traz pessoas do mundo para falar, aprender com a gente, e a gente tem visões de falar assim: “O Homem está acabando com o Planeta. O Planeta vai acabar, não sei o quê, nananã”. E eu chamei, li um artigo de um paleontólogo, na Folha, há um ano, e falei: “Vou chamar esse cara para o Fruto”. Porque esse cara começa falando que a extinção das espécies é natural e que este mundo vai acabar. E aí ele começa fazendo um raciocínio lá atrás, de como surgiu a vida na Terra, como as bactérias, os fungos se formam e vão virar animais vertebrados e fala dos seis ciclos de extinção, e depois que ele monta essa história inteira, você fala assim: “Puxa vida, então, para a gente chegar aqui hoje, foram extintos cinco outros momentos? Caraca”. E ele olha para a sua cara e fala assim: “Qual é o mundo mais legal? O de ontem ou o de hoje? Ou o de amanhã? Se você quiser frear o mundo hoje, você está proibindo o amanhã. (risos) E você não freia, não proíbe”. Então, tem visões. Eu acho que foi um soco no estômago de todos nós. Principalmente conservacionistas, todo mundo que está ali tentando proteger espécies, nananã, e saberes e culturas. A evolução, às vezes, é a depuração natural de um processo. Então, você fala: “Caraca”. Foi muito incrível ter e teve. Eu volto a falar: é gratuito. Está aí, para quem quiser ver.
P/1 – Esse é o primeiro capítulo, a gente agradece e, depois, se você quiser, a gente tem outro.
R – Podemos ir para mais. Eu ficaria horas aqui, mas...
P/1 – Eu sei e nós também.
R - ... A gente tem a vida de verdade lá fora.
P/1 – É, verdade.
P/2 – Aquele Mercado, eu adoro. Quando eu vou por ali, faço tudo lá.
P/1 – Fale do Mercado.
R – Um dos projetos mais legais, um dos maiores orgulhos do ATA é a revitalização do Mercado de Pinheiros. Vamos lá! Eu contei, passei minha vida nesse bairro, eu conheço o Mercado há muitos anos e o Mercado estava sujo, triste, decadente, sendo usado como entreposto pelos comerciantes, pelo preço barato que um comerciante que está estabelecido lá dentro fazia. Às vezes, ele tinha outros negócios fora e usava aquele espaço público como estoque. O Mercado era uma tristeza. E aí nós tivemos essa ideia de revitalizar o Mercado de Pinheiros. Juntamos aí com entidades amigas, irmãs e colocamos cinco boxes, botamos a boca no trombone e o Mercado, hoje, tem utilidade. E ele tem tanta utilidade, que ninguém fala do ATA lá dentro. E isso é o genial, porque...
P/2 – Isso é um case para contar, hein! Um case para destrinchar como nasceu a ideia de revitalizar, as parcerias que você fez.
R – Eu conto tudo depois. Eu tenho o maior orgulho dessa história, porque eu volto a falar: o ATA, como Instituto, não pode criar apêndice. Nosso trabalho não é de assistencialismo. O nosso trabalho é de suporte da cadeia do alimento. Fazer um projeto para outro ganhar vida e ninguém lembrar que saiu da gente, gol. Esse é o projeto perfeito. O Mercado de Pinheiros tem que ser tão bom, porque ele é do público, ele não é do ATA. Ele é das pessoas que estão lá dentro. Não de um Instituto que promoveu alguma coisa. Esse é o maior gol que a gente tem que ter. As pimentas baniwa é um pouco um caso parecido. Quer dizer: a ressignificação de valor da identidade baniwa e daquele território, daquela cultura, é maior do que a gente leva de dinheiro para lá. Aliás, não dá para medir com dinheiro. Hoje nós estamos com outros dois projetos com os yanomanis. Um que está com muito sucesso, com uma capilaridade na região incrível, que é de cogumelos. Até outras etnias que não são yanomanis, hoje colhem cogumelos na floresta e trazem. Os yanomanis são as únicas pessoas no Brasil... Vou repetir: são as únicas pessoas no Brasil, para ninguém ter dúvida, incluindo os cientistas, conhecedores, que são capazes de andar na floresta amazônica, colher cogumelos e dizer: “Esse cogumelo é comestível ou não”. E ele não conhece cogumelo. Ele conhece a madeira e a época do ano que deu. Ele catalogou isso junto com o ISA, num livro.
P/2 – Esse projeto você tem parceria com o ISA?
R – Sim. Eu sou a pedra fundamental. Fui eu que olhei e falei: “Vamos fazer esse projeto”. Eu, ATA, como Instituto. O projeto é vencedor, ganhamos, fizemos o livro, o livro sim foi capitaneado pelo ISA, escrito em yanomani e traduzido para o Português. Ele é um livro de manter essa sabedoria, esse saber da floresta, vivo, e quem tem que saber dele é quem está lá. Proteger a Natureza não é proteger o rio, o mar, a floresta. É proteger o homem que vive dentro dela. A gente ganhou um prêmio Jabuti com esse livro, então é muito legal esse projeto. Hoje a gente começou um projeto novo com eles também, de um cacau Maranhão, um cluster de cacau geneticamente muito primitivo. Então eu vou falar que a gente está quase descobrindo um dinossauro de cacau lá, junto com duas etnias.
P/2 – Que legal! E você vai junto para lá?
R – Sim.
P/1 – Por isso que a gente tem que saber mais.
R – Aí tem as pimentas baunilhas com os kalungas, que é outra realidade. Uma comunidade tão tradicional quanto a indígena, mas é negra.
P/1 – Você tem essas coisas escritas?
R – Tenho tudo escrito. A gente tem tudo documentado, tudo bonitinho. Nas fotos separadas eu sei que separei fotos de cogumelos, de baunilha... Pimenta eu separei foto? Eu sei que tem casa de farinha, eu não lembro se eu coloquei com pimenta.
P/2 – Eu separei no pen drive, com as outras coisas.
P/1 – E a gente quer perguntar assim: de tudo isso que você já tem registrado, algumas situações bem subjetivas, que isso é muito legal.
R – A gente tem pancadas, socos na cara muito fortes, não é? Que muitas vezes são passados para a gente, da forma mais doce do mundo. (risos)
P/1 – Mas é importante saber, registrar tudo isso.
R – Eu conto depois, com calma.
P/1 – Está bom.
R – Desculpa aí.
P/1 – Obrigada, viu?
R – Obrigada a vocês, imagina, uma delícia estar aqui!
P/1 – Um privilégio!Recolher