Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Lourival Araujo Caldas Filho (Lourinho)
Entrevistado por Fernanda Prado e Marcelo da Luz
Paracatu, 05/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV04_Lourival Araújo Caldas Filho (Lourinho)
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Seu Lourinho, primeiro eu gostaria de agradecer de o senhor ter aceitado o convite para essa entrevista. E pra gente começar eu queria que o senhor falasse pra gente o seu nome completo.
R – Lourival Araújo Caldas Filho.
P/1 – Agora eu queria que o senhor falasse a data do seu nascimento.
R – Quinze de julho de 1943.
P/1 – E o senhor nasceu onde?
R – Em Paracatu.
P/1 – Qual o nome dos seus pais? O do seu pai fica fácil.
R – Fica fácil, né?
P/1 – Fala o nome deles pra gente.
R – Lourival Araújo Caldas e Maria da Conceição Araújo Caldas.
P/1 – Fala um pouquinho daquilo que o senhor sabe sobre a origem da família, da onde veio a família do seu pai, da sua mãe?
R – Olha, são descendentes todos de Paracatu mesmo. Desde quando se falava em Paracatu já se falava na família Caldas, conhecida como Família Caldas.
P/1 – E os seus pais, o que eles faziam?
R – Todos eram fazendeiros, agricultores, viviam da roça mesmo, como a gente viveu da fazenda. Falava roça porque todo mundo plantava de tudo pra sobreviver. O que alimentava era aquilo que você produzia, dificilmente você vinha na cidade, quando a gente vinha era para comprar o querosene e o sal praticamente, porque o resto a gente produzia lá mesmo, produzia tudo. Inclusive a iluminação era feita naquela época por azeite de mamona, produzia mamona, fazia o azeite pra iluminar, chamava candeia, onde colocava o cordão imbuído no azeite pra iluminar. Quando não tinha o querosene, né, porque às vezes usava querosene também.
P/1 – E o senhor falou que produzia de tudo, mas o que o senhor se lembra das coisas que produziam na roça do seu pai.
R – Ah, tudo. Do leite, carne, arroz, feijão, milho, hortaliças, farinha, produzia tudo, a gente vinha na cidade e só gastava pra comprar isso: o vestuário, o sal e querosene que não conseguia produzir tudo lá.
P/1 – E o senhor tem irmãos?
R – Tenho ainda quatro irmãos, já morreram dois.
P/1 – Então vocês eram em seis?
R – Seis. Tinha um, o mais novo, conseguiu se formar Medicina, foi médico por vários anos, mas morreu no ano de 2000. Era mais novo, morreu aos 55 anos.
P/1 – E o senhor está em que lugar nessa escadinha?
R – Eu hoje estou no fim da linha, estou na ponta (risos). O mais velho está com 81 anos, faz agora em agosto, e eu com 74, faço agora em julho, e tem mais uma irmã, que mora em Brasília e um irmão também que é fazendeiro, esse fica na fazenda.
P/1 – E o que o senhor se lembra de quando era menino da roça? Como é que ela era?
R – Nossa Senhora, ela era... Muita gente acha que naquele tempo, meus irmãos acham, era melhor do que hoje, mas eu discordo. Eu acho que as dificuldades que a gente passava, pra você ter ideia, o sítio do meu pai estava a 30 quilômetros daqui. Você tinha pra locomover pra vir na cidade era de a pé ou a cavalo, não tinha outra condução. Então não é tão bom assim, as dificuldades eram muito grande, muito grande mesmo. A gente tem passagens incríveis, então você lembra, mas não tem vontade que se repita, né?
P/1 – Conta uma dessas passagens incríveis.
R – Ah, foi uma que eu vim a cavalo e a gente não tinha costume com calçar botina, por exemplo. E eu peguei a botina, coloquei na capanga e pus na cabeça do arreio e vim, bom, quando chegar perto da cidade, a gente tinha o ponto de chegar lá que é essa praia que a Kinross acabou com ela aí, a gente parava pra lavar os pés e calçar a botina. Quando eu lembrei da botina, que vou olhar na cabeça do arreio, cadê? Perdeu, caiu. Você vê a dificuldade. Voltei seguramente uns dois quilômetros ou mais e não achei. O que aconteceu? Cheguei descalço aqui? Foi que a gente foi providenciar, comprar uma outra botina, com a dificuldade de encontrar naquela época, mas a gente mandava fazer. Tinha o sapateiro que fazia. Mas dei sorte que eu consegui pra calçar, senão ficava descalço na rua (risos). Isso foi incrível, viu?
P/1 – E quando o senhor era menino, do que o senhor gostava de brincar?
R – Olha, naquela época nossa não tinha brinquedo, você tinha que inventar. Tem uma fruta que dá no mato, chama marmelada. Você pegava ela, colocava o pezinho de madeira ou de cipó e pauzinho seco e fazia os bois, pra você fazer um carrinho ali com essas frutas do mato e durava, conseguia durar ali seis meses, até um ano. E ai de quem pegasse aquilo ali e destruísse, era briga certa.
P/1 – E o senhor logo teve que ajudar o seu pai ou a família com os trabalhos na roça?
R – É, nós começamos, meu pai até era bem dedicado porque ele nos trouxe pra escola aos sete anos, mas, nas férias, nos feriados, a gente ia pra roça pra ajudar eles lá, né? Como tinha influência deles já morarem lá, a gente não tinha aquela vontade de estudar, você pensava mais em estar na roça. Quando você conscientizou que aquilo estava errado, você precisava estudar, já era tarde, você já estava lá e às vezes não tinha como reverter. Só esse meu irmão, que depois dos 18 anos, ele já tinha parado de estudar, resolveu voltar a estudar e formou. Mas eu voltei a estudar, fazer o segundo grau depois de casado, que eu pensei mais também em dar exemplo pros meus filhos, como eu não tive, pra incentivar que eles estudassem. E foi o que aconteceu, eles estudaram.
P/1 – O senhor falou que veio pra escola, pra cidade, aos sete anos.
R – Aos sete anos.
P/1 – Conta como é que foi vir pra cá e como era essa escola.
R – Olha, dificuldade era muito grande. Então, o seguinte, era tão difícil que meus pais, gente de classe pobre, trabalhadora, mas não tinha um certo recurso, né? E a gente vinha de a pé pra escola, muitas vezes, eu fui descalço, você trazia as coisas, a merenda, que você levava, você trazia um pedaço de rapadura, um pedaço de doce, um pedaço de queijo, levava pra escola, né? E você passava às vezes até humilhação daqueles colegas que eram ricos que tinham um poder aquisitivo bom, né? Levavam na merenda pão. Pão pra nós era coisa de primeiro mundo. Não, eu não posso comer um pão. Mas a gente conseguiu reverter isso aí e fomos adiante. Mas quando chegava a época de férias já ficava louco pra ir pra roça: “Ah não, eu tenho que ir é pra roça ajudar meu pai capinar, colher, cuidar do gado”. Era tudo isso, trajetória terrível de labuta e muito trabalho.
P/1 – E o que o senhor se lembra dessa escola aqui? Como ela era?
R – Ah, eu estudei no Afonso Arinos, Escola Estadual Afonso Arinos. Era muito boa, sabe? Tinha as professoras, hoje ainda está aí Coraci Neiva, as outras parece que não tem mais, mas era uma disciplina completamente diferente de hoje, né? Menino não podia pintar, se professor olhasse ele obedecia. Mas estudei primeiro, segundo, até a quarta série. Ah, uma passagem de estudo também foi quando naquela época tinha Admissão, você passar do quinto ano pra primeira série era um vestibular. E foi aí que eu parei, eu não dei conta de fazer Admissão. Então, como não dei conta, voltei pra roça. Aí, passados uns anos acabou a Admissão e eu falei: “Opa, agora eu posso voltar”. Mas não tinha tempo, meu pai não tinha condição porque o outro irmão estava estudando, tinha que ajudar. Aí com isso eu me casei, voltei a estudar, não voltei mais no Afonso Arinos, já foi em outra escola. Mas continuei, passei, fiz o ginasial e fui fazendo Contabilidade, mas não consegui terminar. Por influência de terceiros, inclusive eu tinha um colega que até já morreu, ele falava assim: “Ah, Lourinho, pra que isso? Nós estamos estudando pra quê? Vamos trabalhar, é melhor do que estudar. Eu estou vendo aí advogado está vendendo coisa no mercado. Vamos trabalhar, nós ganhamos mais dinheiro do que foi estudar”. E essas influências atrapalhou a gente concluir. Como eu já estava casado, já tinha meus filhos, já estava encaminhado também, começando a estudar, eu falei: “Então tá bom, já deu pra resolver, não vou voltar a estudar mais”.
P/1 – E nessa sua juventude, antes da gente falar do casamento, o que o senhor fazia pra se divertir na cidade? O que tinha pro jovem fazer aqui?
R – Aqui na cidade não tinha, eu voltei pra roça eu tinha 12 anos e foi só trabalhar. A gente vinha aqui, tinha uma missa da liga, uma vez por mês, então a gente só vinha em Paracatu uma vez por mês. E tinha o cinema, você ia no cinema, mas raramente a gente podia ir porque tinha que pagar, não tinha dinheiro pra ir no cinema, né? Enquanto, você não tinha a namorada, as vezes você ia uma vez, duas vezes no ano no cinema, não tinha outra diversão. E lá na roça, tinha os pagodinhos que você ia, mas também não tinha liberdade de ficar muito tempo. Mas depois que veio a namorada, aí agora já é diferente. Apesar que a gente vinha da roça pra encontrar com a namorada, que era quando tinha as horas dançantes. E hoje eles falam as baladas, né? A gente ia pras horas dançantes mas ficava ali no máximo até dez horas, tinha que montar a cavalo, viajar 30 quilômetros pra trabalhar no outro dia cedo, estar em casa trabalhando. Isso aos 15, 16 anos, né? Essa é até uma época boa, não vou dizer, ela é difícil, mas era gostosa de viver. Uma hora você tinha uma namorada, depois você tinha outra (risos), era muito bom.
P/1 – E do cinema? O senhor lembra de ter visto algum filme que foi muito bacana ou a primeira vez que o senhor entrou lá pra ver um filme?
R – Olha, posso falar sinceramente que nessa época, quando você encontrava com a namorada que ia ao cinema, às vezes não tinha nem tempo, não prestava muita atenção no filme (risos). Mas era muito bom quando ocê, eu não me recordo bem de um filme, da gente falar dele. Mas ia sempre porque era a diversão que tinha, principalmente quando ocê conseguia o consentimento dos pais da namorada pra ir no cinema, né? Quando a sogra não tinha junto (risos), era muito bom.
PAUSA
P/1 – Onde que ficava o cinema?
R – O cinema fica ali na praça perto do Afonso Arinos. Não sei se vocês já viram a escola Afonso Arinos, perto da Praça do Rosário.
P/2 – Qual era o nome do cinema?
R – Cine Paracatu. Era naquela época ainda que tinha as torrinhas pra quem podia assistir ao filme na torrinha era gente importante, onde ficavam as máquinas pra passar o filme. A gente ficava embaixo. De vez em quando arrebentava a fica e aquela bagunça, o pessoal gritava e vinha emendar a fita.
P/1 – Agora eu queria que o senhor contasse um pouquinho pra gente como é que foi toda a história do casamento. Então como o senhor conheceu a sua esposa e ficou mais sério esse namoro e aí casou.
R – Essa história de namoro foi muito engraçada, viu? Eu tinha na época várias namoradas e ela, como parente, prima de segundo grau, era minha conselheira. A gente conversava e tal e um dia ela falou pra mim assim: “Ô Lourinho, você podia, você fica com esse negócio de um dia está com uma namorada, outro dia está com outra, escolhe uma e fica com ela, é melhor procê”. Aí eu pensei: “Quem sabe é ela?” (risos). E no outro dia, ou passados uns dias, eu convidei ela pra ir no cinema e ela aceitou. Aí estamos lá assistindo o filme, podia até recordar qual era o filme, seria bom, né? Mas aí no banco eu peguei na mão dela e ela falou: “Primeiro namorado que pega na minha mão”. Eu não tinha falado que era namorado (risos). Eu falei: “Opa, é isso que eu queria”. E aí começamos a namorar. E namoramos em torno de um ano, ela perdeu o pai, queria casar logo, então... bom, pra pedir casamento a gente não pedia diretamente, eu tive que arrumar, eu tinha um primo muito meu amigo que foi lá e pediu o casamento. No outro dia eu não fui saber da resposta, ele não me veio trazer também a resposta, né? E eu corri pra roça (risos). Nessa época eu já tinha um carro, isso nos anos 60, aí fui pra roça. Na hora que eu voltei, eu puxava leite nessa época, cheguei e perguntei pra ela, ela falou: “Ela aceitou sim. Ela falou pode, pode. Ainda bem que é filho da comadre Conceição e tal”. Aí, então nós podemos fazer a aliança. Fui lá, falaram que aceitava, aí fomos fazer a aliança. Mas a vergonha era tanta de colocar a aliança que eu coloquei ela no carro e fomos pra roça. Colocamos essa aliança na estrada. Aí eu nem cheguei a parar o carro, tirei a aliança do bolso, mostrei pra ela e falei: “Toma a sua, põe no seu dedo aí”, eu pus no meu. Chegamos em casa de aliança. Isso foi uma passagem que a gente não esquece, né? Aí depois veio o casamento, com tanta coisa. Muita coisa boa, mas coisas difícil também, né? A tragédia que nós tivemos que o primeiro filho teve paralisia, mas foi (emocionado). Vencemos, graças a Deus.
P/1 – Vamos mudar um pouquinho de assunto?
R – Isso!
P/1 – Fala pra gente do seu primeiro carro. Como é que foi daí começar a dirigir nas estradas.
R – Para eu aprender a dirigir, meu pai aos 17 anos já pensou me comprar o primeiro carro, porque nós trabalhamos toda vida em grupo na fazenda. Nós éramos em seis irmãos, todo mundo trabalhando pro mesmo bloco. E papai criava mais quatro, então nós éramos dez pessoas em casa, dava pra fazer muita coisa, né? Ele falou: “Agora quero comprar um carro. O ano que vem eu quero comprar um carro e ocê que vai ter que dirigir porque os outros já têm os seus afazeres”. E me pôs com um tio meu a aprender a trabalhar de trator primeiro. E eu trabalhei um ano de trator, aprendendo a dirigir trator, pra depois voltar pra aprender com carro. E aí foi assim, aprendi a dirigir trator, quando ele comprou o carro eu já tinha uma noção o que era dirigir. E aí eu comecei. Isso foi em 1963. Em 1962, eu passei todo o ano trabalhando de trator, depois em 1963 ele comprou um carro e aí que eu comecei a dirigir. Eu puxei leite, durante oito anos, de 1964 a 1972, aí eu parei de puxar leite porque uma dificuldade tremenda naquela época, não tinha estrada, era mata-burro de bica, chovia muito, muito atoleiro, mas a gente conseguia passar essa tragédia toda. Pra você ter ideia, daqui lá no sítio onde eu fazia a linha de leite, 45 quilômetros, a gente gastava quatro horas pra fazer esse percurso. Então é difícil, viu? Mas graças a Deus foi uma época, em 1972, foi logo depois que eu parei com o leite, nós trocamos esse veículo. Já estava mais do que usado, aí pegamos um outro novo. Agora já foi uma maravilha, né? E quando eu tinha 18 anos, que eu já tinha o carro, quando você entrava num carro desse pra conquistar as moças era uma maravilha (risos), era pouca gente que tinha carro nessa época. Era muito bom.
P/2 – E quando a família do senhor veio pra Paracatu, pra cidade? Porque até então você moravam...
R – Isso até eu casar. Até eu casar eu morava lá, quando eu casei, que minha esposa era professora, então ela tinha que ficar aqui na cidade e eu passei a ficar aqui, morar aqui. Moramos dois anos numa casa que eu tinha no bairro Bela Vista, não tinha água, não tinha luz, não tinha asfalto, não tinha nada, moramos lá dois anos. Depois mudamos aqui pra essa rua mesmo, logo ali mais em cima, e moramos mais dois anos, que eu demorei construindo. O meu pai me deu esse lote aqui da casa em 1968, eu iniciei a casa. Naquela época, já tinha financiamento da Caixa Federal, eu fiz o financiamento, demorei dois anos construindo, mas consegui. Foram 15 anos pagando também a casa, consegui pagar. E é onde eu moro até hoje. Mudei aqui pra esse endereço em 1970 e estamos aqui até hoje. É uma vida, né?
P/1 – O senhor falou um pouco do trabalho na roça. E depois de casado, como é que foram os seus trabalhos, suas atividades?
R – Eu fiquei aqui. Com o negócio de eu estar morando aqui, eu fui para o comércio. Minha esposa tinha que ficar aqui. E antes disso aí, na época de férias a gente ia pra roça, pra casa dos meus pais, ficava lá, ajudava ele a trabalhar. Depois que eu parei de puxar leite, em 1972, eu fui pro comércio. Montei um armazém e fiquei bem uns 15 anos no comércio, mas quando eu vi que não era a minha praia, eu gostava era da roça mesmo. Abandonei o comércio, eu vendi e voltei pra roça de novo, pra uma fazenda que meu pai me deu para eu poder explorar. Dessa fazenda, ficamos lá bastante tempo ainda, bem uns 15 anos ou mais. Saí de lá, meu pai faleceu, eu perdi a fazenda, tive que vender a parte que tocou pra mim e perdi com o negócio. Aí voltei, voltei a morar na cidade outra vez, foi nessa época que eu voltei pra fabricar. Aí eu fabricava farinha, montei uma industriazinha de fubá, de canjica, depois vim a fabricar o Rolito da Vaquita, que era um doce, até fez um sucesso. Mas como a cabeça é voltada pra roça, pra fazenda, eu fiquei sem nada mais, só tinha aqui. Aí voltei pra reforma agrária, onde graças a Deus estou lá há 12 anos dando um sucesso muito bom, graças a Deus, foi a salvação da qualidade de vida que você tem, você ter um pedaço de terra e poder trabalhar, né? E aí veio, foi onde apareceu o artesanato na minha vida, é, artesanato na cabaça aqui. Esse foi ótimo, graças a Deus.
P/1 – Antes da gente falar dessa última fase, da cabaça, do artesanato, eu queria primeiro, lá atrás, esse seu armazém. Como é que ele era, o que ele vendia, onde ficava? Conta pra gente.
R – Eu estava no centro, naquela época, na Rua Joaquim Murtinho, antes eu fazia o sistema antigo, pesava tudo. Apesar de no comércio antes que eu tinha, eu implantei aqui em Paracatu gôndola de supermercado, a pessoa chegava, ele mesmo pegava a mercadoria e acertava no caixa. Eu fui o primeiro que montou aqui em Paracatu, na Rua Joaquim Murtinho. Aí, eu voltei. E nesse tempo eu tinha uma área dentro desse meu estabelecimento que vendia tudo no quilo, o arroz, feijão, macarrão, ração, tudo eu vendia no quilo. E o pessoal habitual a chegar e falar: “Vou comprar meio saco porque fica mais barato do que eu comprar de pacote”. E era a mesma mercadoria que eu tinha empacotada, eu ensacava e vendia no quilo, pra impressionar a pessoa achar que está bom. Muitas vezes eu despejava o macarrão do pacote, botava pra vender no quilo porque ele era mais procurado (risos). Então, mas foi bom também, não foi tão ruim, mas a minha cabeça voltava outra vez pro sítio, pra trabalhar na roça. E eu achava que como é você morar lá e viver dali tem uma qualidade melhor de vida. Então a gente fazer o que gosta é uma coisa muito boa, não tenha dúvida.
P/1 – Qual era o nome do armazém?
R – Era Armazém do Lourinho. Eu sempre gostei disso, sabe? Meus produtos, quando eu fabricava o fubá chamava Fubá Lourinho. Ah, tem até uma passagem, isso do comércio meu que eu fazia, eu preciso ir pra Paracatu, já vendia muito aqui em Paracatu. Muito não, mas já abastecia o mercado. E eu precisava sair pra vender em outra cidade e escolhi Cristalina (GO). Cristalina era cidadezinha pequena, tinha poucos comerciantes, mas faltava quase tudo, né? Aí eu parti pra Cristalina, cheguei lá pra oferecer meu produto. Ah, mas ninguém queria comprar: “Ah não, eu já tenho, eu já tenho” “Não quero não”. Aí eu voltei a segunda vez, nada. Não conseguia vender, tinha que vender uma quantidade porque é longe o transporte, né, tinha fiscalização na estrada. Aí eu pensei comigo: “Eu já sei o que eu vou fazer!”. Tinha uma amiga minha lá, eu falei: “Maria, vem cá. Você vai fazer um serviço pra mim, se puder ser de graça, bem, se não puder a gente paga, mas vamos arrumar umas quatro mulheres e elas vão no comércio procurar o meu produto. Uma sai e a outra entra, uma sai e a outra entra, alternados”. E assim elas fizeram. Chegavam no centro, até me lembro bem que o primeiro que ela chegou foi em Cristiano. “Ô Cristiano, você tem Fubá Lourinho?” “Não, não tenho isso aqui não” “Eu gosto é dele. Se você não tem eu vou pra outro lugar". Saía. A outra vinha, entrava e procurava Fubá Lourinho também. Ou canjica, ou coisa assim. Elas fizeram isso durante a semana, voltaram e falaram assim: “Ó Lourinho, pode vir que já tá bom de ocê vender”. Olha, mas foi um sucesso, viu? A hora que eu voltei, a terceira vez, a quarta vez, foi lá o dendê. Fiquei muito tempo vendendo lá em Cristalina porque eu usei essa estratégia e funcionou! E realmente o produto era bom, né, elas compravam e começou. Quando eu cheguei o produto, falei: “Mas já procuraram isso aqui?”, e aí eu fui vendendo.
P/2 – A matéria prima pra fazer a farinha e a canjica era o senhor que plantava?
R – Eu plantava, mas comprava dos outros também, que a produção só não dava. Também meu pai tocava lavoura, meus irmãos, então eu comprava deles e de outro também. Não era uma produção, isso foi nos anos 1970, já estava melhorando a produção aqui. Ainda não tinha ainda implantada a lavoura no cerrado, mas já tinha uma certa produção que dava pra gente fazer isso. Foi muito bom.
P/1 – E desses produtos, conta um pouco mais desse doce. Como que foi que vocês pensaram nele, o Rolito da Vaquita. O que é esse doce?
R – O Rolito da Vaquita... Acho que meu filho já estava estudando Jornalismo. Ele chegou aqui um dia, ele estudava em Uberaba (MG). Ele chegou e nós já tinha mudado daqui, morar numa chácara que tinha alugado, alugamos aqui pra acertar as contas. Meu filho mais velho falou: “Ó pai, se o senhor não mudar nós vamos perder a casa. Vamos ver como vamos fazer”. Aí resolvemos mudar. Uma dificuldade danada, pagar aluguel, aqui tinha um aluguel bom, dava pra pagar aluguel da chácara e ainda sobrava dinheiro pra poder resolver o resto das dificuldades financeiras que estavam acontecendo. Mas você tinha que ter outra atividade pra ajudar também, né? Aí eu tinha duas vacas na chácara, aí fazia o leite, não conseguia vender todo leite, eu tinha que fazer doce. E aí fomos inventar o doce. Falei: “Vamos fazer doce seco cortado, dá certo”. Mas daí eu peguei e falei assim: “Olha, vamos fazer o doce, enformar ele”, tinha umas pacoquinhas redondinhas, falei: “Isso é bom pra vender, vamos fazer esse doce também no cano”. Enfiava no cano, deixava ele secar, depois empurrava e ia cortando os pedacinhos, ficava aqueles rolitos mesmo assim, um caninho de meia. Aí meu filho chegou e falou assim: “Uai, o que é isso aí?” “É doce que eu estou fazendo”. Já punha nos potinhos e vendia: “Uai, pai, como é que você pôs esse nome aí? Tá parecendo seu rolito da vaquita”. Falei: “Ah, que bom”. Aí ele mesmo desenhou o rótulo, mandei na gráfica fazer o rotulozinho. Até acho que ele levou essas fotografias que tinha do rolito da vaquita e pegou, rolito da vaquita. Aí venceu a época da chácara, não tinha mais como ficar, aí parei de fabricar o doce. Mas foi uma época boa também.
P/2 – Isso era mais ou menos em que ano, o Rolito da Vaquita?
R – Rolito da Vaquita deve ter sido nos anos 80. É, foi 1980, 1982, por aí. Eu já tinha passado umas fases difíceis, mas, foi bom.
P/1 – E vamos então falar da entrada do artesanato na sua vida. O senhor contou que conseguiu a terra do assentamento.
R – Isso. Fui plantar cabaça e plantei cabaça, assim, casual. Plantei umas lá e produziu umas cabaças muito boas e aí eu já era feirante, fazia feira aqui. Comecei a trazer as cabaças pra vender na feira, com muita vergonha porque vender cabaça, né? E muita gente me chateava: “O que o senhor quer, vender cabaça? Ninguém vai comprar isso não”. Olha, pegou direitinho. Aí apareceu uns cursos e eu patrocinei alguns cursos quando eles falaram, Senai [Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial], fazer curso de cabaça. Aí eu oferecia as cabaças: “Eu dou as cabaças, vamos fazer”. E fui fazer também. Eu, 15 usa e meu neto, fizemos o curso umas duas vezes. E aí começamos a achar bom. E deu certo. E aí eu fui fazer feira, faço em Belo Horizonte (MG), que essa da revista foi em Belo Horizonte que eu participei. Em Brasília... Na Agro Brasília, por exemplo, eu já participei de todas as edições, a décima primeira agora, eu fui em todas. Belo Horizonte também já fui, AgriMinas, parece que é a décima agora, fui em todas também, todas com sucesso. A cabaça foi uma coisa que puxou mesmo, foi o carro-chefe, sabe, das feiras. E até hoje eu faço alguns trabalhos ainda de cabaça. E tenho a produção, não é tamanho grande não porque a terra cansa, dá muita praga, e eu tenho que usar às vezes terra de outros pra mudar, variar de terra. Mas está dando certo.
P/1 – E quais são os cuidados, que precisa pra plantar a cabaça?
R – A cabaça, a cultura, é normal, é uma abóbora, você tem que cuidar, preparar a terra direitinho, adubação. Hoje já precisa de combate às pragas porque dá praga também e até inibe muito a produção, até a qualidade da cabaça, se não for uma terra boa, bem adubada, ela não vai dar um produto bom. As paradas ficam fracas e tal, então você tem que ter um trabalho bem feito, bem cultivado, pra ter uma boa produção e uma boa aceitação. Porque o comprador também é exigente, as artesãs e artesãos em cabaça conhecem mesmo, pegam na cabaça e já sabem: “Essa não serve”, já vai descartando. E se é boa: “Opa, essa aqui é boa”.
P/1 – E como é que faz pra ver? Ele pega a cabaça e o que ele...
R – Se pudesse parar um pouquinho eu ia pegar uma pra mostrar.
P/1 – Tá, pode ir pegar.
R – Vou mostrar pra vocês aqui (vai pegar cabaça).
PAUSA
P/2 – E existem nomes de cabaças, alguns tipos? Porque se tiver o senhor já explica pra gente.
R – Os tipos. Eu tenho um tipo, ficou lá na roça, eu não trouxe aqui. Aqui é o seguinte (pausa). Aqui é o seguinte, ó, esse aqui é uma cabaça boa, ó (bate na cabaça). Você vê que é uma cabaça pesada e está com as paredes bem resistentes. Isso aqui é um modelo, não é variedade, é um modelo. Há infinidades de modelos, tanto pode ser grande assim, há pequena, pode dar maior, menor. E assim também, ó, que eu tenho uma lá na roça, que ela dá duas cabeças, ela dá essa aqui e uma outra. Então é bem interessante. Mas infelizmente eu não tenho aqui. Então não é questão de variedade, é questão de modelo, cada uma tem um modelo, do jeito que ela dá a primeira vez ela vai dar até o fim. Se eu plantar essa aqui, vai produzir essa cabaça, ela não vai dar diferente. Mas pode cruzar também. Se plantar ela perto de um outro tipo ela vai modificar um pouco, mas só a questão do cruzamento. E dá maior também, bem maior. Eu chego a dizer até 40 litros, que é uma cabaça bem maior.
P/1 – Como faz para ela ficar assim? Você tira ela, tal, colheu...
R – É da natureza mesmo. Dá isso aí.
PAUSA
P/1 – O senhor estava contando então. Tirou ela do pé, o que faz para ela ficar assim?
R – Aí ela vai ficar assim. Você só colhe ela depois que ela está seca, antes ela era uma abóbora, quando está verde você pode comer também. E depois que seca a gente fala que a cabaça antes é uma abóbora, depois que seca é uma cabaça, a hora que você parte ela no meio vira cuia. Então tem essas diferenças. Agora a questão da semente não, o que você plantar ela vai dar igual àquela, você não tem como modificar. Esse pescoço dela é dela mesmo, é da natureza, tá? Isso aqui você não consegue modificar, não.
P/2 – Demora quanto tempo pra crescer um?
R – Ah sim...
P/1 – Crescer e secar, né?
R – Secar. Pra você colher, quando você planta até secar, você planta ela em setembro, outubro e vai colher lá pra julho, agosto ela vai estar seca a ponto de colher. Esse tempo todo aí é o prazo que ela gasta pra produzir, aos 90 dias já começa a nascer abobrinhas depois é que ela vai crescendo até secar. É praticamente um ano, né?
P/1 – E o que faz com elas de artesanato?
R – Isso existe centenas de milhares de coisas que se faz com a cabaça (risos). A pessoa pega uma cabaça dessa aqui, tem uma pessoa que imagina aqui o quê? Vou fazer uma boneca. Então ele vai desenhar a carinha dela aqui, colocar um chapéu, uma coisa, as pernas, a roupinha. O outro já fala: “Ah não, vou fazer uma galinha”, já cria aqui uma galinha nela aqui. “Vou fazer um oratório”, vai abrir ela aqui e colocar uma imagem lá dentro, vira um oratório. O que seria a outra coisa? Olha, pode fazer um bicho, é criação de cada artesão. Essa pequena eu estou usando ela mais hoje pra fazer o terço. Você vai enfiar ela numa corda aqui e montar um terço. Isso é bom demais e o tanto de coisa que se faz com uma cabacinha dessa aqui, fazer galinhinha, fazer um pintinho, uma bonequinha que se faz muito. E tem outros formatos também, ela às vezes dá uma cabecinha mais grossa aqui e você faz outras coisas.
P/2 – Existem lendas ou histórias sobre a cabaça? Que envolvem a cabaça aqui em Paracatu?
R – Existem sim.
P/2 – O senhor poderia contar?
R – Ah tá. Isso tem uma lenda aqui que foi até em relação ao Morro do Ouro. Quando, eu não me lembro, já até me falaram qual o ano, mas deve ter mais de 200 anos, por aí. Que o Mestre Campos, se falou em Mestre Campos: “Ah, eu vou trazer a água do Sotero aqui, correndo, no rego”. Aí o pessoal falou: “Você é um louco, rapaz, onde já se viu isso, subir serra com água correndo. Como é que você vai chegar com essa água aqui? Sotero está lá embaixo, como é que você vai chegar aqui?” “Não, chego e ponho ela aqui”. Aí teve até um camarada que disse: “Pra você trazer água do Sotero aqui só se for na cabaça, você vai encher as cabaças lá e trazer” “Não, pois a água que vai trazer a cabaça”. E isso naquela época de escravidão, ele iniciou a obra. E não me lembro, eles falam quantos anos demorou a fazer nessa trajetória do rego do Mestre Campos que chamam aí, tem coisas dele aí que eles entendem na serra. Quando foi um belo dia, depois da obra pronta, ele plantou a cabaça nas beiras do rego e anunciou que ia soltar a água pra chegar em Paracatu, que a água vinha sim. Tinha aqui o tanque do Neves, o fundo do Banco do Brasil, ele construiu o tanque pra armazenar a água. No dia que ele ia soltar pôs gente pra colher a cabaça que tinha plantado na beira do rego e jogou dentro do rego pra água vir tocar. Eles falam que foi um barulhão que fez na época, a hora que ele soltou a água lá veio tocando a cabaçada (risos), fez o barulho e veio parar aqui no tanque. Então ele cumpriu, trazer a água que trouxe as cabaças e não as cabaças trazendo a água (risos).
P/1 – E pra plantar a cabaça precisa de água, ela necessita de água pra crescer?
R – Ah, necessita sim. Se fosse até irrigado era muito bom, mas você planta na época chuvosa, né? Quando chega uma certa época, de outubro, novembro, você já tá com ela plantada tem chuva, então vai até mês de fevereiro, março, aí não precisa mais porque ela já produziu, ela vai secar, aí não precisa de água mais, ela vai morrer. A cabaceira morre e fica a cabaça pra você colher ela lá, já está seca. Mas precisa de água normal, como uma cultura normal como qualquer outra, uma abóbora, né?
P/2 – Queria voltar um pouco. O senhor falou sobre a plantação, cultivo no cerrado. O senhor falou ali pela década de 70 já se cultivava o cerrado, né?
R – Isso.
P/2 – Teve uma transformação nessa produção agrícola aqui nesse período de 70, 80? Como é que foi?
R – Isso foi uma evolução muito grande, sabe? Porque na época, até nós morávamos não era na parte cerrada, era no vão, na cultura, na beira dos rios, onde se fazia a lavoura, né? E o pessoal que morava no cerrado, mais chapada, eles iam lá no vão comprar milho, arroz, feijão e subia no carro de boi, subia a serra pra ir pro cerradão, porque eles não tinham como produzir, produzia às vezes café nos quintais, mas era a única coisa que produzia esse café. E quando foi nos anos 70, 1968, 1969, por aí, já iniciou o cultivo do cerrado, que foi uma evolução muito magnífica. Inclusive até nos prejudicou, quem morava no vão, nas culturas tradicionais, pode falar o nome, né? O ministro da agricultura na época, foi no governo militar ainda, parece, o Alysson Paulinelli, criou uma lenda que falava da peste suína, deu a peste suína no Brasil, que tinha que eliminar todos os porcos que existiam, se você tinha um porco tinha que eliminar ele. Por quê? Ele queria implantar a soja no cerrado e a única maneira que tinha de dar certo era se acabasse com a gordura de porco, né? Porque a soja produzia mais e precisava de entrar. E assim aconteceu. Nós tivemos que matar porco lá no chiqueiro, era obrigado, pra poder produzir soja no cerrado. E começaram a desbravar o cerrado. Inclusive, eu fui a primeira vez pra ver eles tirar o cerrado naquela terra imensa, seca. Mas ninguém vai, isso aqui vai dar o quê, gente? E hoje virou essa maravilha que tem. E há pouco tempo, até eu não gostava muito dele, falado, que tinha feito na época, mas o meu cunhado perguntou pra ele: “Paulinelli, aconteceu isso, ocê teve que mandar matar os porcos, inventar a peste suína pra implantar a soja no Brasil?”. Ele falou assim: “E deu certo, né?”. E pronto, a resposta dele foi essa e deu certo. Quer dizer, não negou. E aí ficou. A soja entrou e o porco está voltando aos poucos pra gordura suína, pra alimentação, que é muito mais saudável. Mas naquela época, teve que acabar pra implantar a soja e desenvolver o cerrado. Que também deu certo porque é muito mais fácil você trabalhar no cerrado do que naquelas terras que a gente tinha na época, e em número maior até.
P/2 – E com relação à irrigação do cerrado?
R – Olha, o cerrado também é muito rico em água, né? Um cerrado plano, com muita vereda, muita coisa, então isso tem uma fatura de água e eles começaram a irrigar também o cerrado. Mas o cerrado também produz sem irrigação, só com natural, da época chuvosa mesmo. Foi muito bom, hoje já inverteu, há muitos anos, uns 20 anos aí já, o pessoal do vão que tinha aquela cultura tradicional voltou pra chapada pra comprar lá pra trazer pra cá, está bem invertido isso aí. Então, um prazo meio longo, mas deu pra inverter.
P/1 – E seu Lourinho, conta pra gente das feiras, que o senhor participa de todas as feiras levando as cabaças. O que significa para o senhor participar disso, se é um momento de troca ou se é um momento de conhecer outras coisas, o que é que te leva?
R – Olha, é tudo isso. É conhecimento, é troca de tecnologia, troca... Ocê vê coisas diferentes. Como acontece, em todas essas feiras que eu já fui e participo, inclusive em Brasília, na Agro Brasília, é importantíssimo, você vê coisa de tudo, a tecnologia de ponta mesmo, tanto da agricultura familiar como agronegócio. Quando eu chego com as minhas cabaças lá eu fico até meio humilhado, foi só plantar cabaça. Aí já chegou um rapaz: “Se plantar isso irrigado vai dar certo?” “Mas claro que vai dar. Se irrigar uma cabaça hoje você vai produzir uma qualidade melhor e vai render muito mais”. Lá até já aparecendo pessoas interessadas no agronegócio da cabaça. E inclusive não está tendo, é difícil você consegue cabaça no mercado. Em Brasília, por exemplo, na Agro Brasília só eu levo cabaça. Eu cheguei a vender lá, esse ano foi mais fraco, não foi igual ao ano passado, mas assim mesmo eu vendi umas mil cabaças. Isso fora o artesanato em cabaça que a gente vende. Belo Horizonte a mesma coisa, a Feira de Agricultura Familiar, não tem agronegócio lá mas é muito boa. E lá vende bem mais, a cabaça lá, se eu não levar cabaça a feira fica meio triste (risos).
P/1 – E conta alguma coisa que o senhor trouxe dessas feiras, que o senhor aprendeu e começou a fazer aqui que deu certo.
R – Esse terço mesmo eu trouxe de lá, que uma freguesa minha comprou as cabacinhas pequenas e depois foi levar o terço que ela montou pra mim ver. E eu: “Por que eu já não estou fazendo isso há mais tempo?”. Cheguei aqui, fiz, deu certo. Já levei nas feiras, tanto em Belo Horizonte como em Brasília e vendeu também. O terço está fazendo um sucesso, muito bom. E tem outros produtos também que a gente faz. Você vê, um artesão faz uma coisa, você olha: “Eu vou fazer isso também”. E diferente. Você tem que estar visitando as feiras, participando das feiras, nem só pra você vender, ir pra ver coisa diferente e acaba a gente fazendo. Por isso que eu falo que a cabaça tem centenas de milhares de coisas pra fazer com a cabaça.
P/1 – E mudando de assunto, e a cadeira?
R – Ah, a cadeira. Cadeira também é produto da madeira que eu plantei no sítio. E também foi, essa eu já aprendi em uma feira que eu fui em Buritis. Vi a cadeira, comprei uma, inclusive eu tenho ela aí, a matriz. Não é coisa que eu inventei dela mesmo, não, foi uma cópia, mas deu certo. Muito bom, a cadeira é fantástica, fantástica mesmo. Todo mundo que olha a cadeira não imagina que ela tem o conforto que ela tem.
P/1 – E como é que foi esse experimentar, ver a matriz, ou desmontar pra montar igual, medir?
R – Como eu não tenho habilidade de marceneiro, eu arrumei um parceiro pra fazer. Aí mostrei pra ele, ele falou: “Eu topo fazer sim”. E começamos a fazer. Hoje a gente já tem uma demanda aí de umas 200, 300 cadeiras anos que a gente faz, que dá pra vender tudo. Estamos com um projeto de chegar de 500 a mil cadeiras ainda esse ano. É madeira que eu mesmo plantei, é eucalipto com 12 anos, eu tenho muita madeira pra ser confeccionada nessas cadeiras.
P/1 – E uma coisa que a gente falou antes de começar a entrevista, mas que ela está um pouco em toda a sua história são as outras coisas que têm na cidade: as festas. Eu queria que você contasse um pouco quais são essas festas, as festas que têm na roça, que têm na cidade, como carnaval, ou a folia.
R – Ah sim. A folia, por exemplo, foi tradição, há muitos anos, sabe, que nós temos ela. Meu pai foi folião muito tempo, meu irmão. Eu nunca fui de folia, não, mas já dei pouso de folia, festa, pagode que a gente fala, pagode a noite inteira. E rezar também a parte que você tem que rezar, mas tem os pagodes, tem as festas pra você fazer, tanto você vai no vizinho, como o vizinho vem nas suas festas. E depois dessas aí mais importantes que a gente tem passagens lindas é o carnaval. O carnaval sempre nós fomos, desde criança pequena, a gente já levava as crianças, os filhos, os meninos que a gente criava, todo mundo. E a gente ia mesmo, sabe? Fantasiado, sem fantasia, é uma maravilha, sabe?
P/1 – E fantasiava de quê?
R – Ah, fantasiava de tudo (risos). Eu tenho fantasia até de mulher (risos). Botava brinco, cabelo, peruca e tal, vestia um vestido. A minha esposa fantasiava também. Precisa de ver como é que foi assim os 50 anos de carnaval que valeu a pena.
P/1 – E o que tinha nesses carnavais? Eram bailes ou era fora, na cidade?
R – Uns 80% era baile só de clube, sabe? Só baile mesmo, você não tinha carnaval de rua, você ia pros clubes e lá você ficava a noite inteira. Teve uma noite que eu bebi muito, entrei pro banheiro e apaguei (risos). E aí o pessoal ficava incomodado: “Cadê Lourinho?” Todo mundo procurando. Aí um amigo descobriu que eu estava no banheiro dormindo (risos). Mas tinha enchido a cara, aí não tinha jeito.
P/1 – É carnaval, tudo bem.
R – É carnaval, tudo bem. Maravilha, viu? Baile a gente ia sempre, sempre tinha um baile bom e a gente ia. Baile da Colheita, vários bailes que a gente ia mesmo. Sempre gostamos da parte de diversão também, não era só trabalhar, mas trabalhava bem. Minha esposa trabalhou muito, 25 anos na escola, e até hoje trabalha não com escola, mas a gente não parou. Aposentou, mas estamos trabalhando.
P/1 – Eu queria agora que o senhor comentasse, o senhor começou a falar dos filhos. Então quantos filhos o senhor teve.
R – Nós temos três filhos nossos, Zé Geraldo o mais velho, Murilo e Mirele. Zé Geraldo tem uma trajetória não muito boa, mas conseguiu vencer e depois se casou, parou de estudar. Depois, um exemplo meu, ele voltou a estudar, fez Administração, conseguiu terminar. Hoje, é funcionário do Banco do Brasil, graças a Deus está muito bem. Murilo casou a primeira vez, largou da mulher, casou a segunda vez, já tem uma filhinha. Ah, Zé Geraldo tem três filhos também, a Ana Luísa, João Pedro e Gustavo. E Murilo agora tem uma filhinha, que é Maria Teresa, linda, viu? Ele é jornalista, conseguiu estudar, trabalha no Ministério da Saúde, graças a Deus, muito bem cotado lá, viaja muito com ministro. E Mirele, também outra que parou de estudar, aí ela voltou a estudar depois de casada, formou há pouco tempo, fez Pedagogia. É uma professora dedicada, tem dois filhos, dois meninos lindos. E ela parece que acertou o pé no calçado porque é professora dedicada mesmo, ela adora lecionar. Gosta de criança pequena. E criamos mais 15 filhos dos outros, que passaram aqui, que isso foi muito bom também.
P/1 – E o que fez o senhor fazer a família aumentar e cuidar desses outros meninos e meninas?
R – Mais foi a Eleusa que é a culpada (risos). Porque ela tinha mania de acolher as pessoas, né, principalmente criança. E outra coisa também foi o convívio com os filhos, via chegando aqueles meninos e ficava com ela. Trazia da roça também pra escola: “Não, pode ficar aqui em casa, não tem problema, não” “Ah não, mas tem meu irmão” “Não, pode vir também”. E assim vinha outros e outros e ia ficando. Nós chegamos a ter em casa aqui 12 pessoas, com filhos e a gente, mais filhos dos outros. E aí foram ficando. Ficava, saía depois de casado. A maioria deles, só um que fugiu, o primeiro até, fugiu pro Rio, tinha um tio dele lá e ele já era menino de uns 16 anos, resolveu ir pro Rio. Aí foi, mas chegou lá ele comunicou que tinha ido, mas infelizmente quando foi daí uns quatro, cinco anos ele morreu, deu um problema lá e ele morreu. Agora os outros saíram depois de casados. Já temos, esses que já são avós, e são todos dedicados aqui em casa, vêm sempre, então junta com a gente. Hoje, está só eu e ela, essa menina que está aí que nós criamos também, não sei se vocês viram. Ela tem um marido, mas o filho dela foi nós que criamos, pegou no hospital, ela tem problema de saúde, nós cuidamos do menino até 24 anos, agora ele arranjou uma companheira e foi também (risos), voltamos a ficar só de novo. E aí agora tem até uma passagem engraçada, um amigo dele estava estudando aqui e vinha muito aqui, agora ele ficou uns seis meses, ele chegou com os trens dele: “Ah, eu quero ficar aqui” (risos). Parece que em junho ele terminava a faculdade e não tinha lugar de ficar. “Ah não, eu tenho quarto aí, pode ficar aí”. E está aí. Agora ele saiu pro trabalho dele, mas estuda, está terminando a faculdade esse ano pra ir embora, é de Arinos (MG). Não tem parentesco, não tem nada, mas chegou: “Pode vir”. E aí fica, come, dorme, sem ônus nenhum. Graças a Deus nunca fez falta também.
P/1 – E como é poder ter uma família grande assim e poder alimentar todo mundo e poder depois também receber eles aqui, ver que existe essa gratidão?
R – Olha, isso é uma coisa que eu não sei nem explicar como porque é normal. Esse filho meu que trabalha no banco come aqui. Como é aqui perto ele fala: “Ah, vou comer aqui” “Come aí”. Com isso vem a mulher, vem os filhos também, come todo mundo aqui. Aqui em casa, graças a Deus, nunca faltou nada. Não sei como é isso, acontece natural, normal.
P/1 – Aí uma outra pergunta que eu queria fazer ao senhor sobre a cabaça e a artesanato, como é pro senhor ver ela acabada, quer dizer, o senhor pegar uma e fazer alguma peça, um terço e ver como ela ficou transformada?
R – Ah, isso é gratificante. Você pegar uma cabaça e transformar. Tem hora que ocê acha que ocê faz parece que é brincando, né? Quando ocê pensa que não, ocê tá com o trabalho pronto. A minha esposa é mais habilidosa, sabe? Principalmente no acabamento, ela é muito boa no acabamento. Eu às vezes faço os primeiros trabalhos, depois ela termina. Mas de vez em quando da briga: “Ah, mas você podia ter feito isso” “Então vamos fazer isso assim diferente” “Não” “E se fizer assim fica bom” “Não, é assim”. E quando você termina está pronto o trabalho e é gratificante, muito bom, e ocê às vezes pega uma peça aí, faz ela, você vai trabalhando e esquece outras coisas, você vai fazer, encarando aquele serviço ali que é muito bom.
P/1 – E o senhor já bate o olho e diz assim: “Essa aqui vai virar isso aqui”?
R – Isso, exatamente, ocê pegou, ocê já sabe. Isso aqui, ó. Que maravilha, olha, pra você ver. Uma boneca, né? (risos). Eu até não sou bom pra fazer boneca não, mas ela pega isso aqui e faz uma boneca, a roupa, pinta, é lindo, lindo, lindo. Ela já fala comigo: “Já pode preparar essa aí que eu quero fazer isso”. É muito bom.
P/2 – Então, seu Lourinho, gostaria que o senhor contasse um pouco da transformação aqui do centro da cidade. O senhor disse que os pais moravam aqui antigamente, a casa do senhor foi construída na década de 60.
R – Isso.
P/2 – Como é que foi esse momento de mudança da cidade? Como era antigamente e como foi a ser hoje? A casa do senhor aqui, o senhor poderia contar como foi construída a casa, o senhor buscava material.
R – É. Isso aqui, quando nós mudamos praqui, a rua não tinha asfalto. E nem energia. Energia nas casas tinha, mas na rua era escuro. O prefeito na época não podia, não tinha verba pra pôr luz na rua. Então, nós juntamos a vizinhança, essa rua aqui e a de trás ali, Manuel Quintino, foi que nós reunimos os moradores pra colocar energia, luz na rua, lâmpada nos postes porque não tinha. E o asfalto também nós pagamos na época pra fazer. Meu pai morava na esquina, aqui tinha, essa rua, Joaquim Botelho, era uma ruazinha estreita. O prefeito desapropriou um pedaço das casas pra poder abrir a rua. Então era assim, coisa, a gente nem acreditava. Quando eu vim praqui, aqui não era centro, centro era lá na Rua Goiás. Nós falávamos: “A gente vem morar cá em cima, é tão longe da cidade”. O comércio era tudo lá embaixo, aí veio subindo. Quando agora acontece, aqui virou centro. Hoje é difícil, se não tirar o carro cedo da garagem não tem onde estacionar, então foi uma mudança muito grande. Foi pena ter tirado algumas casas bonitas que tinha na rua aqui, desmancharam casa antiga, bonita mesmo, pra construir casas novas, edificadas. Mas valeu a pena, foi muito bom esse tempo que a gente mora aqui, a transformação foi muito grande, muito grande mesmo.
P/1 – O senhor falou que ficou dois anos construindo. Onde que arrumava o material, como que trazia pra cá?
R – Ah sim. Isso tem até uma passagem que eu era leiteiro na época, eu puxava leite e chegava aqui, eu chegava e ia pra praia, pra por areia, porque não tinha outro material pra construir a casa, a minha casa é toda tirada a areia na praia. A gente ia lá, coava aquela areia, trazia o ouro também junto, né, (risos) pra poder fazer a casa. Não tinha material. Tijolo era fabricado nas olarias aí, tijolinho. E quando, até eu lembrei bem do doutor Joaquim, como é que ele chama? Joaquim, o juiz...
P/1 – Joaquim Barbosa?
R – Joaquim Barbosa. Joaquim Barbosa era menino e ele foi umas duas vezes trazendo, me ajudou a carregar tijolo, carregar o caminhãozinho. Eu tinha um caminhãozinho, F350, depois que chegava do leite ia buscar tijolo e trazia pra cá e ele me ajudava. Ele era menino e trazia pra me ajudar a carregar tijolo pra casa aqui, pra ajudar os pais dele também, gostava de um dinheirinho, né? E aí a gente... de vez em quando eu falo pro pessoal: “Joaquim Barbosa já trabalhou pra mim” (risos).
P/1 – E agora a gente vai entrar numa parte final de avaliação. Eu queria que o senhor contasse pra gente como é que foi estar aí desse lado contando um pouco da sua história pra gente. O que o senhor achou de participar dessa entrevista, lembrar das histórias, contar e dividir elas com a gente?
R – Isso foi muito bom. Eu gosto disso também. Eu sempre que vou nessas feiras, inclusive agora em Brasília eu dei uma entrevista pra TV Bandeirantes, foi um sucesso. Eu vou até contar essa história porque, não sei se depois pode ir ao ar também, porque lá em Brasília eu estava lá como convidado da Emater [Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural], participando da feira. E eu levei o mel. E lá, o governo do Distrito Federal tinha doado aos apicultores de Brasília umas máquinas para beneficiar o mel. E acontece que nenhum tinha mel, então tiveram que ir na minha banca pegar o mel e mostrar na fábrica lá o que ia fazer com o mel, né? E quando eles terminaram, que foi ao ar do coisa que eles estavam fazendo propaganda, aí apareceu o meu mel na TV Bandeirantes. Ah, mas foi daí umas duas horas tinha acabado meu mel, todo mundo procurando mel (risos). E aí que fez eu vender o mel que eu tive. Logo depois, eu dei entrevista também na TV Bandeirantes que foi muito bom. Em Belo Horizonte também, sempre eu dou entrevista, tanto pra rádio como pra televisão. E eu gosto de participar, sabe? E é uma divulgação também, tanto da cidade como dos meus produtos, né? Parece que a minha cabaça também foi alvo das minhas entrevistas, de mostrar, gostaram sempre de estar mostrando, pra poder divulgar. Então eu acho que esse contato com a imprensa, quando você está falando dos seus produtos é muito bom.
P/1 – Pra gente terminar eu queria que o senhor contasse quais são seus sonhos, o que o senhor ainda quer da vida?
R – Olha, o meu sonho é continuar nessa trajetória minha aí de feiras, de trabalho de artesanato, é estar sempre nesse meio. Até minha esposa não gosta que eu falo, mas se fosse pra mim escolher onde eu terminaria minhas coisas seria numa feira e no sítio, né? Seria meu encerramento de vida, esses dois lugares pra mim seriam maravilhosos. Qualquer lugar desses que eu tiver, pra mim tá ótimo, é sítio e nas feiras, gosto muito. E esse contato com as pessoas, né? Eu acho que vale a pena.
P/1 – Então eu acho que com isso a gente, em nome da Kinross e também do Museu da Pessoa, a gente agradece a sua entrevista, muito obrigada.
R – Obrigada ocê, muito obrigado.
FINAL DA ENTREVISTA
Recolher