P – Qual o seu nome completo, data e local de nascimento? E o nome do projeto e onde ele fica?
R - Meu nome é Berenice Kikuchi. Eu nasci em São Paulo, em 1951, mês de abril, ariana. O meu projeto é com portadores de anemia falciforme, que resultou na Associação de Anemia Falciforme do Estad...Continuar leitura
P – Qual o seu nome completo, data e local de nascimento? E o nome do projeto e onde ele fica?
R - Meu nome é Berenice Kikuchi. Eu nasci em São Paulo, em 1951, mês de abril, ariana. O meu projeto é com portadores de anemia falciforme, que resultou na Associação de Anemia Falciforme do Estado de São Paulo. O projeto está se expandindo pelo Brasil na forma de políticas públicas. Meu trabalho é fazer com que as políticas públicas aconteçam. Estou entrando mais na linha do controle social porque a gente sabe muito bem como viabilizar a participação, mas não sabe como fazer bem feito o controle social.
Formatei um ambulatório de enfermagem em doença falciforme que é inovador no atendimento aos pacientes, porque no Brasil tudo é centrado na atenção médica. É o primeiro ambulatório de enfermagem em doença falciforme. Registrei no Conselho Regional de Enfermagem porque a idéia é nunca trabalhar com médicos, nunca terá médicos. Nem quando a gente tiver dinheiro (risos). As pessoas perguntam: “Ah, mas não vai ter médico?”. É uma proposta diferente, porque no Brasil nada é centrado no trabalho da enfermagem, embora o mérito da Medicina seja fazer o diagnóstico e o da Enfermagem processar a cura. Então é para isso que a gente vem trabalhando.
P –Como estava sua vida no momento em que você encontrou a Ashoka?
R - Eu tinha terminado de concluir a bolsa de estudos que recebi da Fundação MacArthur, em 1999, e sabia que o meu projeto era bom para a área das políticas públicas, mas não tinha condições de me movimentar para fazer com que ele se expandisse e crescesse.
A Ashoka me deu essa tranqüilidade para continuar mantendo o projeto. A bolsa, que é pessoal, é a grande mantenedora da instituição porque me dá mobilidade para viajar, fazer contatos, expandir esse trabalho para outros estados. O Rio de Janeiro tem a mesma Legislação e o projeto foi discutido lá e também no Rio Grande do Sul e em várias cidades do estado de São Paulo. Há uma cópia do projeto em todos esses lugares. Com a Ashoka tive a tranqüilidade para manter o trabalho com certa segurança econômica, principalmente quando é difícil os projetos serem sustentados por algum financiador, como é o nosso caso.
As pessoas não tinham idéia da gravidade da doença
P – Como você conheceu a Ashoka?
R - A Ashoka foi que me descobriu. Recebi uma correspondência e pensei: “Ora, como será que eles me encontraram?” Era um domingo. Eu estava desanimada, mas me sentei e escrevi uma carta-proposta. Daquelas que você não corrige, você escreve e manda. Eu pensei: “Vou escrever e pronto”. Até me surpreendi quando fui chamada para a entrevista.
P – Você se lembra da notícia da aprovação?
R - Sim. A primeira entrevista foi com a Mônica (de Roure, diretora da Ashoka), em São Paulo. A segunda fase foi com o Bill Drayton, nove horas de entrevista (risos). Além de interessante foi emocionante também. Nos Estados Unidos todo mundo conhece bem a anemia falciforme. E o Bill não imaginava que fosse tão grave. Como nos Estados Unidos há uma política pública de 30 anos sobre a doença, as pessoas conhecem, mas perderam seu significado real. Quem não está no ambiente médico não imagina que seja tão grave. Falamos sobre isso na entrevista, que foi muito boa, mas longa. Ele ficou sabendo tudo, desde o dia em que nasci (risos).
P – Você quer complementar alguma coisa sobre o significado do processo de seleção?
R - Quando terminei a entrevista com a Mônica, ela me disse assim: “Você vai para a segunda entrevista, mas preste atenção. Americano não gosta que se fale ‘nós’ fizemos. Diga que foi a Berenice que foi atrás disso, que foi atrás daquilo”. Na verdade foi isso mesmo e fui com essas instruções para o Rio de Janeiro: “Eu fiz isso, fiz o projeto. Fui lá discutir com o vereador, eu que...” (risos). Outra coisa que me chamou a atenção foi quando Bill perguntou: “O que você imagina que estará fazendo daqui a cinco anos?”. Eu respondi: “Eu me imagino fazendo política internacional. É isso que eu quero fazer, porque a anemia falciforme é desconhecida em todo lugar e eu quero fazer política internacional”.
Decepção com governo petista
Depois de tudo isso, o fato é que, em 2001, fiquei deprimida. E minha depressão foi em decorrência do governo petista [Marta Suplicy, prefeita de São Paulo em 2001-2004], porque eu tinha uma expectativa muito grande sobre o projeto e você percebe as coisas saírem da sua mão e que você vai ficando de lado. Dá uma grande sensação de perda. Eu sempre fui funcionária pública, me especializei, sabia como fazer, como dar encaminhamento às coisas e, de repente, estava fora. Veio outra pessoa que não sabia absolutamente nada sobre anemia falciforme para coordenar a área.
Estava mal e pensei: “Vou para os Estados Unidos ficar um tempo”. Eu tinha um amigo que estava trabalhando no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) que me incentivou: “Berê, vem para cá, fica na minha casa e vamos tentar fazer alguma coisa; pelo menos alguns contatos aqui”. Fui para lá e foi muito engraçado. Ele me disse: “Você vai fazer uma palestra no BID. Sobre o que você vai falar?” Eu respondi: “Vou falar sobre uma política internacional para anemia falciforme”.
P – Você relembrou do processo de seleção?
R - Exato. A divulgação toda saiu assim: Berenice Kikuchi, fellow da Ashoka, está aqui para discutir uma política de saúde para a América Latina. E aí ele ligou para a Organização Pan-Americana de Saúde e falou: “Como é para uma área de saúde, vamos ver se eles também se interessam pelo assunto”. A Cristina Torres, que é da área de políticas públicas da Organização Pan-Americana de Saúde, gostou. Ela me conhecia de nome e me chamou: “Vem conversar comigo”. Contei a ela tudo sobre o projeto e disse exatamente assim: “Eu vou fazer. Eu quero uma política para a América Latina”. Eu toda metida. Lá é o setor que pensa e propõe políticas para a América Latina e não tinha nada sobre anemia falciforme. A Cristina me perguntou quanto tempo eu ia ficar nos Estados Unidos. Quando eu disse que pretendia ficar por dois meses, me convidou: “Nesses dois meses vem trabalhar comigo. Vamos fazer um levantamento, uma revisão bibliográfica do que existe sobre a doença, do que foi produzido na América Latina”. Fiquei lá os dois meses e foi uma experiência muito interessante.
Houve resistência a considerar a questão racial: “A partir daí comecei a ficar negra”
P – Depois da seleção começou o período de três anos como fellowship. Como foram esses três anos?
R - Desde que eu me formei enfermeira, a minha opção foi trabalhar na periferia. Fui para Guaianazes e me sentia como planejadora daquela área. Eu casei com um japonês e tudo era muito zen até que eu me reconheci como negra. Vou explicar: começou com o processo da introdução do quesito cor nos formulários da Prefeitura de São Paulo. Como eu era diretora administrativa do Distrito Guaianazes, uma funcionária me procurou para falar sobre a implantação do assunto na Secretaria de Saúde e que precisava de meu suporte administrativo para a realização de um seminário.
Havia uma resistência dos sanitaristas em considerar a cor da pele como uma variável importante em termos epidemiológicos. Começamos a discutir o que significaria a inclusão do quesito cor nos formulários de saúde. Formamos um grupo de discussão sobre o que é ser negro e percebi que havia mesmo uma resistência, mas que não se restringia à população negra como uma questão social. Havia uma questão racial. A partir daí é que digo que comecei a ficar negra, porque até então eu não me via assim, eu era uma pessoa sem cor.
P – Tudo isso antes do primeiro ano lá na Ashoka ou durante o primeiro ano?
R - É quando eu começo a ruptura com tudo. Nesse período eu, inclusive, rompo com meu casamento. Foi um período muito sofrido e surpreendente para todo mundo porque era considerado um casamento ideal, inclusive por meus filhos. Foi nessa época também que conheci uma criança com anemia falciforme e acabei encontrando um grupo de pessoas com esse problema no Hospital das Clínicas. Não havia nada, nem um folheto que explicasse o que significava a doença. Era comum ouvir: “Eu acho até que a minha doença tem cura, mas é o médico que não acerta”. Quando comecei a entrar nessa discussão do que é ser negro e entender todo o contexto é que percebi que este é um mundo extremamente difícil. Muito diferente do mundo dos japoneses, que é mais solidário e fechado entre si.
A dificuldade de um projeto para negros
Eu sempre falo que um projeto focado em pessoas negras é muito difícil. Muitas pessoas dizem: “Mas você não deve ter como foco que é uma questão de negros”. Mas eu quero focar que é uma questão de negros porque as pessoas têm que perceber isso.
Pode ser até um problema da população em geral, mas o fato é que atinge basicamente os negros e esse é o complicador do meu projeto. Há certa resistência em investir em projetos dirigidos aos negros. Tudo bem que a maioria dos projetos sociais beneficia a população negra, até porque é a base da pirâmide. Mas ninguém diz que é um projeto para negros. E quando você destaca que é uma doença que acomete a população negra, a gente sente que os possíveis financiadores não sabem como lidar com isso.
P – Como é que você encaminhou os recursos nesses três anos?
R - Não tive recursos. Eu tenho muitos parceiros. Parceria com a Unicamp, se eu precisar fazer exame eu mando para lá; parceria com o Instituto Adolfo Lutz, com o Sesc, que produz todo o meu material. O dinheiro que tive foi da bolsa e é assim que tenho mantido o projeto. A casa onde nós estamos era a casa do meu pai, que virou um ambulatório também, mas é um espaço pequeno.
Uma conquista importante, no exame em recém-nascidos
P – Em termos de resultados como é que caminhou?
R - O projeto está em todo o Brasil. Em 2001 foi incorporado ao teste do pezinho pelo Ministério da Saúde. Hoje, no teste do pezinho dos recém-nascidos são feitos três exames: fenilcetonúria, hipotireoidismo e anemia falciforme. Mas as pessoas nem sabem o motivo dos exames. Quando pergunto, todos respondem: “É para ver se a criança não vai ter doença mental”. Ou não sabem nada. E quando sabem do diagnóstico de anemia falciforme, não há quem te oriente. Não tem um lugar certo de tratamento.
E aí fica aquela mãe negra e pobre andando atrás de um hematologista, que não tem. Hematologista é um profissional raro. E os hospitais que tratam anemia falciforme são quatro em São Paulo, que já estão saturados. Não tem mais onde pôr gente. É uma doença crônica e essas crianças são internadas várias vezes ao ano. A mãe tem que reconhecer até onde cada órgão está comprometido e tem que brigar com o médico, que geralmente não sabe o que é isso. Essa situação passa pela questão da cidadania.
P – Como foi ano a ano a interação com a Ashoka? Os altos e baixos da relação?
R - Solicitei muito pouco da Ashoka. O projeto da anemia falciforme é tão específico e tem poucas pessoas para discutir o tema que eu sempre me sinto muito sozinha. É preciso achar o caminho das pedras e às vezes nós encontramos. Em uma reunião com fellows que trabalham com temas raciais a troca foi muito interessante. Mas tudo o que nos propusemos ali não conseguimos viabilizar, inclusive a promessa de apoio mútuo.
Os problemas do dia-a-dia
Sabemos o que é trabalhar com uma parcela difícil da população. E só nos encontramos uma vez. E, depois, cada um volta para o seu lugar, cada um começa o seu dia-a-dia e acabamos não nos falando, não conversando. Esqueço de procurar as pessoas, as pessoas também esquecem. E a proposta de ser solidário acaba se esvaindo no seu próprio dia-a-dia. Quando fui para os Estados Unidos, tive todo o suporte de que precisei. Computador, um escritório. Minha interação com a Ashoka foi muito boa. Fui correspondida em tudo o que solicitei. Nas propostas conjuntas é que, às vezes, a gente não consegue viabilizar.
P – De alguma forma essa interação mudou no decorrer do tempo?
R - Eu senti que houve mais interação no segundo ano. O primeiro me pareceu mais distante. No segundo ano, durante os dois cursos, conheci a equipe de São Paulo e foi muito importante, tive mais facilidade para manter contato.
P – E o terceiro ano?
R - No terceiro ano eu fiquei três meses fora e tivemos pouco contato. Foi mais por e-mail mesmo.
P – Você esteve na sede da Ashoka?
R - Eu gostei de ter conhecido a estrutura. Lá eu fiz três apresentações para os voluntários, para os apoiadores. Tem aquela coisa de falar na hora do almoço, que é um hábito nos Estados Unidos. Todo mundo comendo e você falando. Eu não conseguia (risos). Eu disse: “Não vou comer, só vou falar, porque falar e comer ao mesmo tempo eu não consigo”. Nesse terceiro ano fiquei chateada porque não havia ninguém da Ashoka quando fiz as apresentações no BID e na Pan-Americana de Saúde, nos Estados Unidos. Fui falar do meu trabalho, estava lá como fellow, fui recebida como fellow e não foi ninguém da Ashoka. Isso não foi legal.
A tentativa de financiamento nos Estados Unidos
P – Sobre os financiadores que foram apresentados a você nos Estados Unidos, você contatou depois?
R - Eu fui a uma instituição que financia projetos para negros. A pessoa que me atendeu me deixou animada quando disse: “Você já me convenceu, dinheiro não é problema”. Eu respondi: “Nossa, que maravilha”. Não deu em nada também, porque era um projeto de capacitação em anemia falciforme. Mas eles gostaram da idéia e me colocaram em contato com a Universidade do Tennessee. Eu estava na Universidade Howard, que é uma universidade de negros e tem um centro que cuida de anemia falciforme, e disse: “Eu acho que deveria ser com a Howard, porque a Howard tem um centro de anemia”.
A pessoa me respondeu: “Não, tem que ser com a do Tennessee, liga para lá”. E eu fiquei conversando com o responsável pelo financiamento na Universidade do Tennessee o tempo todo, por telefone, pensando que fosse um negro. Mas quando ele veio ao Brasil, ficamos esperando um negro no aeroporto e não desceu negro nenhum (risos). Mas depois saiu o edital da universidade e nosso projeto não deu em nada. Mas ficou a amizade. Ele é um captador de recursos e gostou do projeto – quem sabe mais tarde possa render alguma coisa.Recolher