Depoimento de Bárbara Veiga
Entrevistada por Carol Margiotte e Nuno Holanda
São Paulo, 21 de novembro de 2018
PCSH_HV709
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 - Bárbara, boa tarde, obrigada por ter vindo aqui hoje. Para começar, seu nome completo.
R - Bárbara Vitória Chagas da Veiga.
P/1 - Seu local e a data do seu nascimento.
R - Rio de Janeiro.
P/1 - A data?
R - Ah, 26/08/83.
P/1 - E você sabe por que você foi batizada com esse nome - Bárbara?
R - Não sei ao certo. Mas pelo que eu entendi, em histórias que eu ouvi, Bárbara Vitória foi porque foi um parto difícil, então foi meio que uma celebração. Durante muito tempo eu não gostava do meu nome, eu achava exagerado - Bárbara Vitória - meio dramático, teatral demais; demorei para aceitar, mas hoje em dia até que eu gosto. Inclusive, se eu quiser ter uma outra profissão, quiser ter uma outra identidade, posso me chamar ou Bárbara, ou Vitória, mas por enquanto é Bárbara mesmo.
P/1 - E seus pais contam - ou contavam - histórias sobre o dia do seu nascimento? Como foi?
R - Meu pai. Meu pai me contou que foi um pouco complicado, mas sem muitos detalhes.
P/1 - E falando nos seus pais, qual é o nome deles?
R - Marcos e Vera.
P/1 - Fale um pouco sobre o Marcos e a Vera, como eles são, o que que eles fazem?
R - A minha mãe é médica, meu pai é arquiteto. E são bem diferentes. São pessoas bem diferentes de mim.
P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Eles tinham uma amiga em comum e ela namorava com meu pai. Ela falou: “Nossa, eu acho que você tinha que conhecer uma amiga minha, que ela tem muito mais a ver com você”. E aí ela promoveu esse encontro, e durante algum tempo deu certo.
P/1 - E depois do casamento, eles foram morar aonde?
R - No Rio; eles se conheceram no Rio e moraram no Rio. Foram casados 16 anos e se separaram.
P/1 - E além de você, eles têm outros filhos?
R - Sim, têm; um irmão mais velho que eu - cinco anos mais velho que eu.
P/1 - Fale o nome dele.
R - Daniel.
P/1 - E vocês conheceram os seus avós?
R - Não, não tive um contato muito próximo com nenhuma das partes. Então, não tive um relacionamento de muita troca com os meus avós.
P/1 - Mas seus pais contavam histórias sobre eles? Como foi a história deles? De onde eles vieram?
R - Não, não muito. Mas eu tenho lembranças, doces lembranças dos meus avós paternos. Tenho lembranças da minha avó, que era muito charmosa, muito... Sempre estava com as unhas impecáveis, sempre com lenço na cabeça, sempre muito vaidosa; e eu me lembro de que até onde conheci o meu avô e tive algum contato com ele, ele tocava piano. Então, eu lembro que ele tinha as mãos bem compridas, os dedos bem compridos, e isso ficou muito marcante. Porque eu acho que a altura que eu tinha na época era bem a altura do piano, então eu lembro daquelas mãos divinas, cheias de movimento, mas é a única memória que eu tenho da família, dos meus avós.
P/1 - Qual o nome deles?
R - Ofélia e Mário.
P/1 - Que é do lado do pai?
R - É. Já o lado materno, não tive nenhum contato.
P/1 - Em que momentos você visitava a casa dos seus avós paternos?
R - Acho que era fim de semana, no período mais fácil. Porque durante a semana, como qualquer criança, estuda e tem alguns compromissos de escola, de utilidades, mas não lembro de ser... Era mais fim de semana ou período de férias escolar.
P/1 - E qual era o bairro onde você passou a sua infância?
R - Eu morei no Meier, morei na Tijuca, morei na Barra, mudei algumas vezes.
P/1 - Mas o que motivava essas mudanças?
R - Eu acho que muito por conta dos meus pais mesmo, da dinâmica, onde eles trabalhavam. Depois, quando eles se separaram, eu saí de casa, fui morar sozinha.
P/1 - Mas você tem uma primeira lembrança de alguma casa específica? A lembrança mais antiga, talvez, da sua infância?
R - Tenho, tenho uma lembrança de uma casa, que era casa mesmo, que tinha uma varanda bem agradável, porque era ao ar livre. Tinha muitas plantas e tinha a sala de música; hoje em dia, um cômodo como sala de música é meio raro, mas era engraçado, porque tinha um papel de parede - parecia que era a Amazônia, sabe? Bem anos 80. E eu gostava de ficar ali, eram os meus cômodos preferidos, mais até do que no meu quarto, a sala de estar, a cozinha, enfim, qualquer outro lugar. Mas eu gostava muito desses dois ambientes, me sentia muito bem, confortável, à vontade.
P/1 - E como era receber a notícia de que vocês iam se mudar? Tinha esse momento de preparo?
R - Não, não, porque eu acho que tudo aconteceu em um período de transição... Já sabia que isso ia acontecer; eu era muito pequena quando eu me mudei a primeira vez. E a segunda vez foi quando os meus pais se separaram. Então já era uma coisa meio premeditada, e depois foi uma decisão minha, de sair e ir morar só.
P/1 - O que você lembra desse período de separação dos seus pais?
R - Ah, de muita dor... Uma perda de identidade. Não é... Quando você tem os seus pais como referência, como qualquer criança, é muito duro ver que... “E agora? Para que lado eu vou? Como é que eu vou fazer? Como é que eu vou lidar com isso?” Foi muito sofrido, muito complicado. Não soube lidar muito bem com isso, mas respirei fundo, fui morar com a minha mãe, que também não foi uma decisão... Quer dizer, foi a única opção que eu tinha, mas não foi muito fácil também, durante alguns anos.
P/1 - Se você se sentir confortável de contar como foi saber que ia ter essa separação, qual foi o passo seguinte que você deu?
R - Meu pai, ele tinha problema com alcoolismo. E essa foi a razão primordial da separação. Ele se tornava uma pessoa extremamente violenta, então, como criança, não tive uma infância muito tranquila, muito fácil, de ter que ver violência doméstica e não uma família com amor e tranquila, e isso desencadeou uma série de coisas; minha mãe acabou entrando em uma religião e isso também dificultou ainda mais, porque foram extremos - meu pai com o vício e minha mãe com a válvula de escape dela, de tentar encontrar conforto onde ela se sentiu melhor acolhida; e, nesse processo, eu me senti muito sozinha. Porque falei: “E agora? Qual é a minha referência, qual é meu apoio também?” Foi um período bem complicado, bem difícil.
P/1 - E você teve ainda contato com o seu pai?
R - Por algum tempo. Depois ele se afastou durante muitos anos. Eu saí de casa com 14 anos, por conta da religião da minha mãe. Como ela se envolveu nesse processo todo, eu acho que ela estava um pouco perdida e não soube lidar e perceber a maternidade, a importância da presença dela na vida dos filhos. Então, por conta disso, eu resolvi tomar esse passo, que também não foi fácil, e segui. Segui, comecei uma jornada independente, contando com ajuda dos pais dos meus amigos, sem eles mesmos saberem, mas o fato de receber aquele acolhimento e estar perto de pessoas que queriam estar comigo, que me aceitavam, me tratavam com carinho e educação, não é?... Para mim foi muito importante os meus... os meus amigos, muitos, eu tenho contato até hoje, são amigos de infância e sou muito grata a isso, porque é difícil, não é? Com 14 anos você saber: “Ah, vou começar a trabalhar, vou começar a ter uma vida, vou começar a tomar decisões que sejam ok”. Até porque não tem muito discernimento sobre o que é certo, errado, bom, ruim - até hoje eu acho que é difícil, não é? A gente entender o que é adequado para o nosso momento de vida, mas acho que... Apesar da dificuldade de aceitar, entender todo esse cenário, eu consegui, com a ajuda de muitas pessoas, encontrar um caminho mais equilibrado.
P/1 - Você se importa se eu voltar um pouco antes dos 14 anos, um pouco mais para a infância?
R - Depende do que você perguntar, mas vamos lá.
P/1 - Eu queria saber do que você brincava. Tinha alguma brincadeira em casa ou na vizinhança?
R - Eu sempre gostei de estar na natureza. Então, o que eu gostava mais de fazer era estar do lado de fora, no exterior: olhar as cores, o vento, sentir meu cabelo balançando. Isso me fazia muito bem, então não tinha objetos muito presentes. Claro que eu devia ter bonecas e coisas assim, mas eu sempre gostei mais de estar perto das árvores e gostava de queimado - era uma brincadeira que eu achava legal, divertida, mas eu sempre me bastei muito, também, quando criança. Eu tive os meus momentos de estar tranquila, sozinha e me divertia assim; aí, alguns anos depois, eu comecei a escrever cartas e essas cartas eram de lugares imaginários, de lugares que eu nunca tinha ido e eu escrevia essas cartas para os meus pais. Eu dizia, claro que de forma muito infantil, o que eu tinha experimentado naquele lugar, daquelas pessoas. E eram países mesmo. Era: “Oi, pai, oi mãe, eu estou aqui na Grécia, acabei de nadar com peixinhos, fiz novos amigos, adorei as cores desse lugar, saudades de vocês, espero que vocês estejam bem, beijo”. E eu me lembro de fechar o envelope, desenhar o selinho do lugar e colocar lá - carta que veio da Grécia, carta que veio da Rússia, carta que veio do Japão, e aí colocava embaixo da porta deles. Claramente uma criança que queria um pouco de atenção em troca, nessa época, e é muito interessante porque essas cartas, acho que elas marcaram muito a minha vida. Tanto que até hoje eu escrevo cartas para os meus amigos, cartas escritas a punho ou na máquina de escrever - ontem mesmo eu escrevi uma - e acho que é uma relação interessante que você acaba desenvolvendo com o tempo, não é? E o tempo que você destina para aquela pessoa, naquele momento, é bem pontual. E, frente a todos esses estímulos que a gente tem nos dias de hoje - telefone pipocando, tudo acontecendo ao mesmo tempo, mil estímulos - então é me pousar, escolher esse momento para escrever uma carta para alguém acho que é a melhor e maior demonstração de carinho. Então, foi o que eu comecei a fazer, também, na infância, com os meus pais - apesar das cartas nunca terem sido respondidas. Anos depois, eu comecei a fazer, de fato, essas viagens e também não tinha como receber respostas, porque eu sempre estava em um lugar diferente e eu não tinha um endereço fixo, e enfim, hoje eu tenho endereço fixo. Algumas pessoas me escrevem, mas não são muitas, porque é difícil mesmo. Entendo que nem todo mundo consegue, sabe, se administrar, então pouco cobro isso.
P/1 - E ainda nessas cartas da infância para os seus pais, você os via lendo, recebendo?
R - Não, não chegava nesse lugar. Para mim era muito mais o processo de compartilhar a experiência, de dizer: “Olha, estou aqui nesse lugar vivendo isso aqui, pensei em vocês, espero que vocês estejam bem”. Era exatamente isso, não ia além do se eles receberam, como eles receberam, porque a carta tem esse mistério, não é? Ela pode ou não pode chegar, por mais que você... Mil eventualidades podem acontecer nesse processo. Outro dia, eu descobri que na Guatemala não tem Correio. Eu falei: “Nossa, como é que as pessoas fazem, não é?” Tem o DHL, tem outras formas de eles enviarem produtos e coisas específicas, mas não tem Correio. Carta não vai, então é muito curioso isso, não é? A relação que a gente estabelece em enviar uma coisa que pode ou não chegar. Isso faz pensar muito, lógico, na Idade Média, em como a carta sempre foi fundamental - meio fundamental de comunicação entre pessoas comuns; até entidades; pessoas, enfim, de alguma comunidade, de algum grupo, de algum governo ao longo dos anos.
P/1 - E como você buscava informações para escrever essa carta?
R - Acho que aí é que vinha a parte mais divertida, porque era criação; não tem uma referência pontual. Anos depois, eu vim a gostar de Tintim, por exemplo, nos quadrinhos. Aquela coisa aventureira e isso, com certeza, me estimulou muito. Mas isso foi depois. Agora, de onde veio o lugar, o clima - sempre quis trazer essa sensação bem real e sensorial do que eu estava vivendo. Então, talvez por gostar de livros que traduzem isso, que te levem para o lugar, quase façam essa... Te transportem mesmo para o novo tempo. Acho que era essa a minha intenção de provocar esses estímulos naquelas pessoas, que eram tão presentes, eram os meus pais, eram as maiores referências naquele momento.
P/1 - E o que a criança Bárbara queria ser quando crescesse?
R - Ai, passou por muitas coisas. Mas eu sempre gostei muito das Artes, sempre fui apaixonada por música, por dança; não sabia exatamente, mas também gostava de História, de Geografia, era... Eu não tinha uma profissão certa, mas eu sempre gostei muito dos estímulos das que tivessem mais poesia, mais cor, mais divagações mesmo, criativas. Mas eu não sabia exatamente... Eu não tinha uma profissão em mente. “Ah, vou ser pintora!” Sabe? Não: “Vou ser fotógrafa, vou ser artista”. Não tinha ideia ainda do que ia ser, mas estava aí nesse campo das Artes. Eu sabia que tinha alguma coisa aí que me chamava a atenção.
P/1 - Como foi a sua entrada na escola? As primeiras lembranças da escola?
R - Na escola... Ah, eu lembro de que... A escola, ela traz uma coisa da descoberta, não é? Quem sou eu? E isso vai, por todas as etapas, de todas as escolas. Porque você vai crescendo, você vai... “Ah, sou criança, pré-adolescente, adolescente, um jovem adulto”. Então, acho que a escola pauta as relações e como você vai se desenvolvendo ao longo do tempo. Para mim, foi muito assim... Das bandas que eu escutava, meu estilo de roupa, de cabelo, que foi mudando muito. Então, as lembranças que eu tenho da infância mesmo era de querer saber, conhecer, experimentar, sei lá, como menina descobrir o que é a maquiagem, descobrir o que é se produzir um pouco, minimamente, porque uma criança... Não tinha ainda aquela coisa de muita produção, mas já havia uma curiosidade, um interesse, até, enfim, primeiro namorado... Nossa, sentir o corpo mudando e aí comentar com as amigas: “Ah, você também sentiu isso? Você também gosta desse menino? Você…”. É um período de muitas descobertas, muitas trocas, não tem uma coisa pontual. Mas acho que foi um grande processo, como é para toda criança que vai se formando. Então, para mim, foram períodos de muita observação, sabe? De perceber diferentes tribos e ver aonde eu me encaixava, aonde eu me sentia mais confortável entre essas tribos.
P/1 - Fale um pouco sobre esses estilos que você comentou.
R - Ah, eu já fui roqueira grunge; já tive banda - cover de Pearl Jam - gostava, em uma época, de heavy metal, então já tive uma época metaleira - aí era batom preto, unha preta, coturno, é engraçado ver essas mudanças... Depois foi indo para MPB, jazz. Então, a música também sempre foi muito importante para mim, para definir aonde eu me sentia melhor naqueles nichos ali. Passei por essas etapas. Isso também é interessante porque foi pautando a forma como eu ia me vestindo quando eu saía, ou mesmo indo para o colégio; lembro de um calor dos infernos, 40 graus, Rio de Janeiro, com coturno, camisa de flanela, que não podia nem entrar na escola - tinha uniforme, então eu trazia escondida, aí colocava para ter aquele estilo, tal. Então, é engraçado ver como é que isso foi me transformando ao longo do tempo, e hoje em dia, eu vejo várias versões de mim mesma naquelas outras Bárbaras que foram passando pela minha vida.
P/1 - E nessa entrada da adolescência, nessa época da adolescência, sua mãe conversava com você sobre mudanças do corpo?
R - Não, não conversava.
P/1 - Como é que foi essa entrada para a adolescência?
R - Ai, foi bem difícil, bem complicada, porque era basicamente o que eu conversava com meus amigos da escola, então não tinha contato - muito diferente hoje em dia nas escolas; algumas têm livros que falam sobre Educação Sexual, hoje a gente está vivendo um dilema até sobre isso, não é? Do que que pode, não pode, enfim. Acho que é super importante falar sobre isso, mas na minha época foi uma aventura, sabe? Que campo é esse que eu desconheço e não tenho ainda informação? Era muito natural ficar com as amigas e com as pessoas da escola, meio que tateando, entendendo esse terreno, mas foi complicado. Porque eu não tinha acesso à informação como a gente tem hoje. E as escolas, eu acho que ainda não estavam preparadas para isso, não é? Para falar de uma menina ou um menino, sei lá, que entra na puberdade e, enfim, muda o corpo, muda a cabeça, muda a forma de ver as coisas, gerar um processo de meio perdido, assim, como eu falei antes: “Qual é a minha tribo?” Sabe? “Onde é que eu me encaixo?” E, na verdade, você fica um pouco... Sem muitos parâmetros. Mas, aos poucos, acho que foi encaixando, só que levou alguns anos para eu me sentir ok, sabe? Ok nesse corpo, assim.
P/1 - E, por exemplo, a primeira menstruação, como que foi?
R - Ai, foi bem conturbada. Porque minha mãe, apesar de médica, ela nunca falou sobre isso comigo e eu fiquei sabendo o que era menstruação no próprio consultório médico dela, com uma cliente que estava lá. Eu falei: “Nossa, aconteceu alguma coisa”, não sei. E ela: “Não, vai ficar tudo bem, tal, toda menina passa por isso”. Eu achei que estava, tipo, machuquei, ferrou… O que eu fiz? Me senti super culpada e foi um processo difícil, meio traumático. Mas passei por essa descoberta, não tinha ideia do que era ficar menstruada; não estava preparada para isso, também.
P/1 - E eu queria que você falasse um pouco sobre a decisão, aos 14 anos, de sair de casa. Teve algum fato que foi fundamental para você tomar essa decisão ou isso foi sendo construído? Como foi esse momento dessa escolha?
R - Eu tinha 14 anos e minha mãe entrou para uma religião, na separação com meu pai, quando eu tinha dez anos; dos dez aos 14 eu morei com ela e, frente a essa religião, justamente dominadora e cheia de regras. E ela, um dia, falou: “Olha, o pastor disse que você tem que ir à igreja, se você não for não vou deixar aquele dinheirinho do seu almoço”. Porque ela não cozinhava, não sabia cozinhar. E eu falei: “Olha, eu não vou para a igreja. Desculpe, seu pastor está errado. Eu não quero ir, não é o meu lugar”. E eu fui embora. Tinha uma casa de praia da família e que era uma casa, enfim, poucas pessoas iam, meio vazia, e foi lá que eu fiquei. E foi lá que eu cresci e consegui meu primeiro trabalho. Comecei a pensar: “Como é que eu vou me sustentar com a minha idade, com as responsabilidades que eu tenho?” E assim foi a minha saída de casa. Ela, em nenhum momento, tentou impedir, conversar, sentar, dialogar. Foi, pelo contrário... Foi um tom de ameaça e sarcasmo, e foi uma ruptura brutal para uma menina de 14 anos. Acho que hoje, com esse afastamento, eu consegui ver um pouco melhor. Mas assim... Que houve esse desfecho e essa mudança.
P/1 - O que você levou na mala?
R - Pois é, com 14 anos eu acho que eu não tinha muita coisa, não é? Tinha algumas mudas de roupa, mas eu tinha um som; sempre gostei de música... Tinha os meus CDs, eu sempre me lembro que o meu primeiro CD demorou três semanas para chegar, então tinha aquele CD ali...
P/1 - ...que foi qual, o primeiro?
R - Foi o Temple of the Dog, que era uma banda grunge e que eu tenho - acho que é o único CD que tenho até hoje, esse não dá, não tem mídia digital que vá substituir, porque tem valor afetivo grande. E é isso. O meu som, meus CDs, algumas roupas e adeus. Eu me lembro de que eu peguei uma van com tudo isso, uma malinha, meu som, e pronto. Fui e nunca mais voltei para essa casa.
P/1 - E chegando na casa que você foi de mudança, o que você fez?
R - Caí em prantos. Estava totalmente perdida, não sabia com quem contar com coisas básicas, sabe? Como é que eu vou comer? Começando por aí; lavar minha roupa, me sustentar. Na escola tinha muita vergonha de falar sobre minha situação familiar para os meus amigos, então muitos poucos sabiam da versão real e acompanharam isso... Mas foi um momento um pouco desesperador, de como é que eu vou achar uma solução para isso, sabe? Preciso resolver. E eu acho que foi vindo aos poucos. Na época, eu ainda tinha uma tia viva que me deu um pequeno suporte. Porque ela já havia adotado o meu irmão, porque ele também saiu do sistema em que estava a minha família, então ela ajudava já. Adotou meu irmão e ela não tinha como me ajudar muito, mas ela deu, no início, um suporte. Chegou um momento em que eu não tinha roupa - adolescente, está mudando, você está... E ainda tem a questão da escola - ah, mochila tal, roupa tal. Eu não tinha isso e foi muito difícil, porque eu queria estar acompanhando um pouco esse fluxo. E hoje em dia tem Youtuber, acho que ia ser um pouco mais complicado, mas antes era uma coisa de... “Poxa…”. De me sentir bem e bonita, não é? Naquela transição de vida. Essa tia me ajudou eu comecei a trabalhar - eu fazia trabalho de figuração - depois fui trabalhando no comércio, fui me virando como eu pude, enquanto adolescente, para me sustentar.
P/1 - E como ficava a sua relação com seu irmão?
R - Não muito boa, porque ele é uma pessoa muito traumatizada. Ele sofreu muita violência em casa, por conta do meu pai. E a minha mãe não tinha muita força, muito pulso para agir contra isso. Então, até hoje eu acho... Não sei, porque eu não tenho contato com ele... Ele vive muito desse passado, dessa marca, enquanto eu quis fazer um movimento totalmente contrário, eu quero estar bem, em paz, livre dessa dor. Então, eu não sei dizer como ele está, mas, na época, eu lembro que era bem complicado, porque ele não sabia lidar com as emoções muito bem e recebeu o respaldo porque foi adotado por uma tia. Mas, depois disso...
P/1 - E você comentou que teve também o apoio de alguns pais de amigos. Em que momentos que você os acessa? Como é que era esse contato com eles? Ou se tiver algum caso específico de algum pai ou de uma mãe que você queira contar aqui?
R - Os pais da minha amiga de infância, Stephany, eles foram incríveis. Apesar de eles não saberem o que acontecia dentro da minha casa, que é uma atrocidade mesmo, de eu ver a minha mãe sendo abusada, meu irmão sendo espancado com uma arma, enfim, coisas bem duras, mas eu sempre fui recebida com muito carinho. Coisas simples, sabe? Um almoço gostoso, com arroz e feijão, conversar sobre coisas aleatórias mas dar atenção, sabe? Ter aquele momento de sentar e conversar, olhar nos olhos, e isso para mim foi muito importante porque eu não me sentia sozinha no meio daquele turbilhão de coisas que estavam acontecendo. E eu não tinha, também, a maturidade para discernir o que estava acontecendo, por que estava acontecendo. Só sabia que era ruim e que eu não me sentia... E que eu precisava sair, que eu precisava estar sempre fora de casa para eu estar bem. Não me sentia bem na minha casa, exceto esses dois cômodos de que eu gostava. Mas meu quarto era do lado do quarto dos meus pais, então ouvia coisas horríveis. Não era muito feliz, assim.
P/1 - Em algum momento você pensou em desistir?
R - Desistir de quê?
P/1 - De morar sozinha, por ter saído da casa da sua mãe?
R - Não, não, eu acho que foi a melhor coisa que eu podia ter feito. Porque, apesar da dificuldade, essa liberdade me deu oportunidade de escolher o que era melhor para mim. Uma imposição religiosa, qualquer tipo de imposição, é uma repressão, então não pode ser saudável para ninguém. Para mim não ia ser, sem dúvida. Acho que foi a melhor escolha que eu pude ter tomado.
P/1 - E como é ficar sozinha?
R - Acho que a gente nasce e morre sozinho, então lidar com a solidão é um processo natural, faz parte da vida. Talvez nem sempre a gente se dê conta disso, porque morando em uma cidade, a gente tem várias opções, vários estímulos; a gente pode ir ao cinema, a gente pode ligar para alguém, a gente pode fazer conexões em grupos online, comunidades, fazer parte de coisas, mas, na verdade, internamente, estamos sozinhos. Hoje em dia eu vejo assim: na adolescência, eu tentava sempre estar com esses grupos de amigos, mas quando eu voltava para casa, era meu lugar sozinha. E acho que passou por variações de ter momentos tranquilos, de aceitação da minha história, da minha condição daquele momento e momentos de dor mesmo, de me sentir muito rejeitada, abandonada. Porque apesar de eu ter morado com os meus pais, eu nunca me senti acolhida. Então eu acho que ter saído foi melhor, e lidar com a solidão sempre foi uma coisa presente na minha vida - e é até hoje, só que de um outro jeito.
P/1 - Sim. E como foi depois do fim da escola? Ter completado todas as séries?
R - Eu não sabia, exatamente, o que eu ia fazer. Fiz parte de um coro, fiz teatro, experimentei várias coisas nesse sentido das Artes, mas acabei, ao terminar a escola, estudando Jornalismo. Mas, na verdade, eu sempre quis estudar Cinema. Era o meu sonho, só que eu acabei estudando Jornalismo e o Jornalismo era muito perto do Cinema, então eu sempre passava, olhava assim as salas de aula; as janelas eram de vidro, então dava para ver alguns filmes passados. De alguma forma, eu acabei por esse caminho. Mas, naquela época, era uma coisa impossível. Não sei, porque vim de uma família que não apoiava muito as Artes e não estimulava muito isso. Mas não adianta, quando você é apaixonado por alguma coisa, você gosta de alguma coisa, você mergulha nela. E foi isso que eu acabei fazendo. Mas sair da escola foi bem tranquilo, apesar das milhões de possibilidades e perguntas - eu acho um absurdo você ter que escolher o que fazer com essa idade já, mas, enfim, esse é o sistema do país, então foi o caminho que eu acabei escolhendo.
P/1 - Mas teve alguma coisa decisiva que te fez pensar no Jornalismo? Por que o Jornalismo?
R - Quando eu tinha 14 anos, um amigo meu sempre falava: Ah, você vai ser advogada, porque você sempre gosta das coisas certas e organizadas; e você é muito a favor da justiça, das coisas, das pessoas”. Então, acho que... Na época, eu falei: “Nossa, nunca”, sabe? “Que loucura! Advogada, que coisa careta!” Mas o Jornalismo veio um pouco com essa vontade de lutar pela verdade das coisas. E trazer um mundo mais justo, mais horizontal, mais verdadeiro. Apesar de a gente lidar com todo tipo de jornalismo, o que eu sempre acreditei, na minha época dos estudos, era isso: “Como é que eu posso traduzir um sentimento, uma verdade, para as pessoas refletirem sobre isso, e a gente, de forma coletiva, achar um caminho corretivo das coisas?” Então, eu sempre batalhei pela verdade e pela transparência das coisas, dos fatos, nas relações, em todos os aspectos. Essa forma de ver o mundo sempre mexeu muito comigo e eu achei que ia ser no Jornalismo que eu ia encontrar um meio de traduzir esses sentimentos e engajar mais pessoas junto nisso, encontrar mais pessoas, trocar mais.
P/1 - E você encontrou?
R - De uma certa forma, sim; fiz muito trabalho de que eu não gostava, trabalhei em uma delegacia onde eu escutava muitas histórias loucas e eram processos de... Um estágio de investigações que eu tinha que fazer e eu não fui muito feliz nesse trabalho. Era de meia-noite às seis da manhã, depois ainda tinha faculdade, tinha outro estágio, enfim, fiz muito estágio chato. Cheguei a trabalhar em um banco, escrevia para o jornal jurídico, e eu: “Gente, o que eu estou fazendo nesse lugar? Que não combina, de nenhuma forma, comigo”. Mas eu precisava trabalhar, precisava encontrar alguma oportunidade. E essa surgiu, eu abracei, não pensei muito, não tinha muita escolha também de fazer só aquilo que eu amasse. E desde os 13 anos, por aí, eu sempre gostei de fotografar. “Precisa fazer fotos, retratos dos colegas.” Eventos que aconteciam na escola. E tinha a câmera como uma forte aliada, em vários momentos; era também uma maneira de colocar o sentimento para fora. Não precisar falar muito, aquilo ali traduzia o que eu queria daquela pessoa ou daquele lugar, daquele evento, enfim, e aí foi na Faculdade de Jornalismo que eu peguei uma câmera emprestada, uma analógica, uma Zenit, uma câmera da Segunda Guerra Mundial, e eu comecei a fotografar nas ruas. E, no estágio chatíssimo que eu fazia em um banco, eu olhava da janela e via o que se chama “rapa”, acontecer. Onde os policiais vinham e confiscavam e agrediam os moradores e trabalhadores de rua. Eu ficava: “Gente, o cara está vendendo caneta, ele vai perder tudo e acabou, vai ter que começar do zero - como é que vai ser isso? Quem são essas pessoas?” E eu fiquei muito impelida a fazer um projeto sobre isso, com essa câmera emprestada. E aí eu fui para as ruas, comecei a conversar com as pessoas do bairro, do centro do Rio de Janeiro, e falei: “Olha, eu estou estudando Jornalismo, mas eu quero fazer um ensaio fotográfico com sua história e queria saber se você me permite acompanhar você por uma semana, saber quem você é”. E aí foi muito complicado, porque como eles não podem ter um ponto fixo para vender as coisas, senão os policiais já... “Ah, está ali, vamos pegar e não vai…” - cada hora essas pessoas estavam em um lugar diferente. Mas foram poucas que falaram: “Ah, não, tenho medo e tal”. Quase todas se tornaram muito próximas até, curiosamente; acho que - não posso dizer amigos, mas foi uma relação de confiança e troca muito bonita em um período em que eu acompanhava essas histórias. Então eu conheci, sei lá, desde uma hippie que, desde a década de 70, viajou o Brasil inteiro, pegava carona com caminhoneiros, e ela vendia essas jóias que você faz na hora, de metal - e era realmente hippie o estilo de vida dela, acho que a pessoa mais hippie que eu conheci na vida. E até um dono de posto de gasolina, que perdeu... Pegou fogo, acabou, ele não tinha seguro e a família ficou sem nada. Ele chegou em um estado assim... “E agora? Como é que eu vou sustentar os meus três filhos?” Então, foram histórias muito fortes, muito impactantes, e aí eu comecei a descobrir que eu gostava de ouvir histórias e gostava de estar perto de pessoas que eram muito fortes, sabe? Porque aquilo me inspirava de uma certa maneira; eu não tinha a presença dos meus pais, tentava achar força de algum jeito, por algum lugar, não é? Eu acho que me alimentava dessas pessoas que superaram grandes desastres na vida delas. Então eu pensava: “Minha história não é tão difícil assim”, sabe? Tem gente que não tem onde dormir, o que comer nessa hora; eu, pelo menos, tenho um teto e estou trabalhando, estou estudando, estou buscando um caminho legal para a minha vida - que eu considerava legal. E, nesse meio tempo, na adolescência, eu comecei a fazer muita trilha, sempre gostei muito de Natureza e nessas trilhas eu comecei a perceber que tinha uma quantidade de lixo enorme, e eu não consegui ignorar aquilo, não é? Eu olhava e falava: “Nossa, pegar um saco plástico, alguma coisa”. E, no início, o saco plástico - plástico, plástico, não é? - que ficava na garrafa de plástico que eu levava, e aí eu comecei a perceber a quantidade de plástico, gigante, que tinha nas trilhas e no mar, muita coisa vinda do oceano, mas também pessoas que faziam acampamentos e deixavam ali. E aí, esse grupo que, enfim, era de duas, três pessoas, de repente virou 60. E foi muito legal ver esse movimento das pessoas tentando proteger as praias da minha cidade. Eu gostei de fazer parte disso, eu achei positivo, achei bom, achei que foi importante contribuir, mas os anos foram passando e fui vendo que limpar as praias da minha cidade não ia resolver o problema, sabe? Não ia resolver a condição da minha cidade, dos mares, e aí, a partir daí, eu falei: “Mas com quem que eu vou me envolver, sabe? Qual o passo maior para eu tentar evoluir nesse sentido?” E aí eu resolvi contatar o Greenpeace. Na época, era a maior referência de ONG ambiental e que, de fato, fazia algo com impacto. E eu comecei a frequentar algumas palestras, uns Seminários, perguntar às pessoas, não tinha internet muito fácil, então eu fui perguntando: “Como é que eu faço para falar com alguém do Greenpeace aqui no Rio de Janeiro?” E depois de muitos meses eu consegui o contato de uma pessoa, liguei para lá e... “Ah, a gente está de férias, liga mês que vem”. Aí eu... “Poxa, de férias? Sabe?” Eu louca para tentar fazer alguma coisa logo, sabe, colocar minha energia, mas, enfim, era um grupo local onde as pessoas se encontravam e discutiam dinâmicas para tentar fazer parte de campanhas ou ações diretas, enfim. Então, era um mês de descanso, mesmo, de férias escolares, por isso que eram férias. E eu ansiosa assim - ok, 20 dias, dez dias, cinco dias, uhul, acabou. Liguei e aí, finalmente, eu consegui marcar e ir nessa primeira reunião. Engajei-me muito seriamente em todas as propostas que eram colocadas, sempre me coloquei de forma muito presente; era parte muito importante da minha vida, ainda que eu fizesse os dois estágios, ralando para caramba, sem saber ao certo o destino que minha vida ia seguir. Eu me envolvi em tudo e, através dessas campanhas, desses trabalhos, eu comecei a ver que era esse o caminho. Ou seja, que eu queria trabalhar com alguma coisa com engajamento socioambiental, que eu queria, de fato, usar minha vida para fazer a diferença. Não tinha opção eu trabalhar com uma coisa que não fazia o menor sentido para mim, e foi bem perto desse período de cair em si, que eu tinha que me envolver com algo desse gênero, que eu recebi uma ligação do escritório do Greenpeace me convidando para fazer parte da primeira expedição, naquele ano, para a Amazônia. Aí eu: “Uau, Amazônia, como assim? Que loucura”. Para mim, a Amazônia é um lugar super distante, imagina, não tinha nem saído do Brasil. Eu já tinha viajado um pouco, alguns outros estados, conhecia, sei lá, Bahia, mas eu nunca tinha imaginado que iria para a Amazônia; era um sonho muito longe. E na hora eu dei uma gaguejadinha... “Então, você topa, Babs, e tal - meu apelido, não é? Já me chamavam assim - e eu: “Lógico, quando?” “Daqui a duas semanas.” Aí eu: “Ok, está bom”. E aí eu me organizei com as poucas coisas que tinha e fui. Foi o início de uma virada brutal na minha vida, na forma de ver as coisas, porque foi a primeira vez que eu tive... Primeiro de tudo, um contato com navio... A viagem por barco e mar que eu tinha feito era, no máximo, duas horas - Búzios - e olhe lá. Aquela lanchinha... Então eu falei: “Nossa, eu vou ser marinheira. Legal, vamos lá. Marinheira para salvar as florestas, oceanos. Ok, acho que eu posso fazer isso”. Ainda fiquei um pouco insegura, claro, porque era um universo totalmente novo para mim, não é? Então eu perguntei: “Olha, eu não tenho experiência com isso e tal, tudo bem?” “Não, a gente acha que você vai aprender e vai se dar bem, fique tranquila”. Cheguei naquele navio, com quarenta tripulantes, mais de vinte nacionalidades diferentes, pessoas de todos os lugares que você possa imaginar e com culturas bem diferentes - com cozinheiro e, enfim, com missões. A gente saiu do sul do Brasil e foi até Santarém, passando por... Acho que eram sete ou oito cidades da costa do Brasil e foi uma descoberta muito profunda; primeiro, o amor pelo meu país, de descobrir essa diversidade enorme de comida, de gente, de pele, de cor, de cheiros e todos os estímulos possíveis, e chegar nesse lugar sagrado que é a Floresta Amazônica e me deparar com uma missão muito difícil que era ir contra uma empresa norte-americana que estava lá instalada devastando a floresta. Na época, ajudei um time de escaladores e a gente subiu, escalou esse prédio da Cargill, que é essa empresa, para colocar um banner gigante: 100% crime. E aí, Nossa... Nossa missão foi uma loucura, porque duas escaladoras americanas torceram o pé, se machucaram, caíram, e eu falei: “E agora?” Olhando para o lado - e agora? Falei: “Bom, vou continuar subindo, não é? Eu continuei subindo, peguei a mochila da menina com banner e tinha vários times - A, B, C, D - eu tentando me comunicar com outro e vi que um já estava sendo escorraçado. E aí, quando cheguei lá em cima, eu estava sozinha; eu olhei para os lados tentando tirar o banner da mochila, tentando fazer contato com outras pessoas, e aí veio um trabalhador e tirou minha mochila, jogou no alto do prédio, me jogou no chão e começou a me bater. Ele falou: “Aqui... Vocês são gringos e vêm para cá, que a nossa forma de vida é essa e vocês não têm o direito de vir aqui e dizer o que é certo, errado fazer, e tal”. E eu em posição... Tentando me proteger, posição fetal, cobrindo a cabeça assim, disse: “Calma, eu sou brasileira, não sou gringa, e essa é uma missão de conscientização e proteção à Amazônia”. E o cara revoltado e eu me dei conta da complexidade daquilo - não são inimigos, sabe? Esses trabalhadores, eles precisam de um meio de vida, eles querem aquilo pontual, daquele momento, para sustentar a família deles. Eles estão pouco se ligando, se lixando, se a Amazônia está morrendo, se não vai ter floresta, a gente não vai ter oxigênio; é uma coisa pontual, que precisa ser resolvida. Então, foi muito louco ver isso de perto - pessoas que precisam de apoio, suporte, vendo aquele meio único de vida, não tinha outra solução. E pouco tempo depois, vieram outros trabalhadores, os colegas ativistas e a polícia. Enfim, foi aquele caos instalado. Fomos todos presos e eu comecei a minha jornada por mar; bom, esse é o caminho que eu vou ter que seguir, entendendo que eu não tenho conforto, que eu não tenho os meus amigos, mas eu tenho uma luta que é essencial, que alguém tem que fazer e eu acho que eu me aplico nesse lugar. Não tenho os meus pais presentes na minha vida, não tenho namorado, então, acho que eu vou me entregar a isso aí, sabe? E dessa vida que começou por mar e que eu me encantei, assim... Eu descobri horizontes e a força da Natureza ali presente, intensa, aprendi a respeitar ainda mais esse lugar misterioso: a Natureza. Ela é potente, não é? E em um segundo, aquele barco podia desaparecer. Então, o respeito pelo mar, ele só se intensificou, ele só aumentou nessa experiência; eu estava muito feliz de estar ali, de ter aquela oportunidade de sentir tudo isso, sabe? Ver tudo com meus olhos. Então, da Amazônia, eu recebi outro convite do capitão, ele perguntou se eu queria continuar para a próxima missão que era em proteção às baleias, no Caribe. Eu falei: “Lógico. Vou ficar aqui para sempre. Me encontrei nesse lugar”. E era muito legal porque eu conhecia muita gente nova o tempo todo. A cada três meses mudava a tripulação e eu queria ficar; a princípio, eram três meses, mas eu, poxa, estava tão bem ali que eu não tinha - voltar para onde, sabe? Para aquele trabalho horrível que eu odiava, no Rio de Janeiro? Não sei, meio viciante mesmo. Uma vida de aventura, sabe? Eu fui para essa campanha em proteção às baleias, foi uma Conferência que acontece todo ano, cada ano é em um país diferente e nessa Comissão Internacional Baleeira se discute a cota de caça de baleias com intuito de pesquisa científica. Só que essa pesquisa científica não é real; todos sabemos que essa carne de baleia é comercializada. Porque uma baleia vale duzentos e cinquenta mil mil dólares e um prato de baleia pode valer quatrocentos dólares. Existe uma indústria de cosméticos que alimenta isso também, então eu fiquei muito mexida com isso de... Obviamente, continuei a bordo, tive uma paixão nessa viagem a bordo, e ele ficou. Foi interessante entender como as coisas são fluidas e acontecem. Foi uma decepção, poxa, essa pessoa não vai me acompanhar e aí jogar as cordas, ver a pessoa se distanciar fisicamente e emocionalmente, até ver um pontinho lá longe e lidar com as minhas emoções nesse processo. Foi bem simbólico. E nessa missão em proteção às baleias, eu novamente fui presa. Fiquei presa de uma forma muito brutal, porque eu cheguei a entrar em uma solitária, então eu fiquei dois dias sem ter o que comer, sem ter o que beber, eu urinei em mim mesma porque não tinha banheiro, ouvia os outros presos e não tinha a menor ideia do tipo de delitos que eles tinham cometido. Tentava pedir auxílio, batia na porta e tudo que eu ouvia era a resposta de um homem que abria aquela janelinha mínima, única fresta de luz que vinha lá de fora, dizendo que “você vai ficar aqui para sempre”. E fechava. Então, um terror psicológico. E eu olhava para dentro, porque não tinha para onde olhar, sentia rato, bichos e, enfim, um lugar bem nojento. E eu: “Nossa, eu estou aqui pelas baleias, sabe? Eu estou aqui pela vida que tem na Natureza, a vida que tem lá fora, vida que merece existir, não tem nada que justifique essa atrocidade que está acontecendo no mundo”. Mas que situação deplorável, eu suja, chorando e perdida, sem saber o que ia acontecer, até que veio uma advogada da ONG que vem nos assistir. Me colocaram na solitária porque ficaram chateadas porque a gente fez uma espécie de resistência pacífica em frente a esse hotel em que estava acontecendo essa Conferência, essa Comissão. E aí era na praia, imagina, no Caribe, paradisíaca, então super contrastante, não é? E a gente fez esse círculo e tentou ficar lá o máximo de tempo possível para dar visibilidade na mídia e ao que estava sendo falado. Aí eles foram arrastando, os policiais à paisana e os identificados, os ativistas, até o camburão. Como eu fiz bastante força, fiquei até o final, acho que ele ficou meio bravo, porque foi difícil, precisou quatro pessoas para me movimentar dali, me levar até o camburão. Bom, depois disso, fomos todos à Corte. Eu me senti como se estivesse em pleno século XVIII, porque eram todos com perucas brancas e vestes negras, longas e babados. Eu falei: “Gente, eu estou em um filme, o que é que está acontecendo aqui?” E, claro, naquela situação ainda deplorável, com a camiseta da campanha em proteção aos oceanos, um short cheio de areia, suja, descalça, entrando na Corte e tendo que levantar minha mão e dizer: “Guilty”. “Culpada”. Bom, mediante uma fiança, todos fomos liberados, eu me senti mais protegida, acolhida, mas foi bem complexo, foi capa de alguns jornais, teve uma visibilidade boa para a campanha, mas, infelizmente, hoje em dia, por exemplo, na Antártida, não tem nenhum grupo que vá lá proteger as baleias. Então, os oceanos estão totalmente à mercê dessas explorações, dessas instituições de espécie, em nome de um mercado, de uma indústria. Da Amazônia para o Caribe eu acabei passando pelo mundo todo - foram mais de oitenta países nessas missões, fazendo amigos, me despedindo de pessoas que se tornaram família, que foi super difícil. Eu me lembro de uma conversa que tive com uma das pessoas que trabalhavam lá na comunicação. Eu falei: “Poxa, tão difícil, não é? Dizer tchau. De estar aqui três, quatro meses todo mundo grudado como uma família, passando por situações super difíceis, confinados em um barco, para tentar dar visibilidade a algo que é tão importante, e aí as pessoas vão embora”. Eu me lembro que esse colega me respondeu: “Mas a vida é assim, não é? De “his and byes” - é de “oi e tchau”. E um dia não impede de você encontrar essas pessoas. Mas eu sofria muito no início, porque eu sempre me apegava muito às pessoas, como irmãos mesmo - os irmãos que eu não tive, não é? Depois isso foi mudando, porque eu fui continuando em outras missões, entre embarcada e desembarcada, e acabou que eu revia... Muitas vezes eu revia algumas pessoas. Tinha pessoas que eu não queria rever também, porque o ser humano é complexo e, apesar de ter criado um bom relacionamento e afinidade com grande parte das pessoas, pessoas algumas que tenho contato até hoje, algumas não conectaram muito comigo. Fiz a transição do Greenpeace para a Sea Shepherd, que é uma outra Organização. Quando eu vi a oportunidade de trabalhar na Antártida, eu falei: “Uau”. A mesma sensação que eu tive - “Nossa, Amazônia” - foi a mesma sensação para a Antártida. A referência que eu tinha eram livros, não é? Livros de grandes fotógrafos, de pessoas que eu admirava e tal, e falei: “Vou tentar essa vaga. Nossa, Antártida - sabe? o que é isso?” Aí me inscrevi para esse trabalho, como fotógrafa, já trabalhando como fotógrafa e...
P/1 - ...até então no Greenpeace você não estava como fotógrafa?
R - Nessa época, não. Eu trabalhava com comunicação, era marinheira, pegava na corda, fazia alguma coisa com comunicação, mas não era fotógrafa oficial. Isso foi acontecer depois. E depois de três horas de entrevista de um telefone com a Sea Shepherd, com essa Organização, eles me perguntaram: “Ah, bom, e tudo bem para você que a gente é vegano, vegano restrito mesmo?” Eu falei: “Olha, eu sou vegetariana já há muitos anos, tudo bem”. “Ah, porque você sabe, no navio do Greenpeace não é vegano, a gente tem umas diferenças aqui”. E eu falei: “Não, legal, tudo bem, tudo certo”. E fiz essa transição também, de me tornar vegana, que era uma coisa... O que é o veganismo? Eu não tinha ainda acesso a isso. Sabia o que era, mas não tinha noção de como era viver nesse estilo de vida. Depois dessas três horas de entrevista, mais de, sei lá, três, quatro dias esperando ouvir a resposta, eu consegui trabalho, só que eles iam sair em uma semana de (inint) [01:00:11] na Austrália, e iam começar a fazer a mesma coisa que eu fiz do sul do Brasil até a Amazônia. Iam fazer toda a costa da Austrália, do Norte ao Sul, até chegar na Antártida. Só que eu estava na França, nesse período. Falei “Ok, tenho que conseguir o visto para a Austrália”. Olhei o meu passaporte e, ironicamente, não achei uma página sobrando. Aí falei “Não acredito, e agora?” “Não acredito, consegui o trabalho da minha vida, sabe, para o lugar que eu mais desejava ir…”. Aí olhei que tinha um visto da Indonésia, falei “Esse aqui é que eu vou tirar”. Que ocupava a página toda assim. Aí eu fiz isso, tirei, falei: “Ufa, tem uma página agora, legal”. E falei: “Ok, vou ligar para a embaixada, saber como é que é”. Ela falou: “Olha, aqui na França, só é de três a quatro semanas para você conseguir”. Falei: “Mas eu só tenho uma semana, tem que ser agora”. “Sinto muito, vá para o seu país de origem”. Ai liguei, pesquisei na internet, olhei, vi que o lugar que dava o visto mais rápido no mundo era em Cingapura. Falei “Não vou perder essa oportunidade, eu vou ter que arriscar ir para Cingapura e conseguir esse visto”. E fui, acreditando que ia ter que conseguir, não tinha opção, não tinha não. Aí fui para Cingapura, não tinha a menor ideia, nunca tinha ido para a Ásia na vida, fui para lá. Vi aquele primeiro mundo, uau, (museus incríveis) [01:01:49] e tudo o mais, fiquei no lugar mais simples, mais furreca que tinha na cidade, uma noite, para conseguir esse visto. No dia em que pousei, fui fazer a solicitação do visto para a Austrália, com todos os documentos que tinham me mandado, tudo ali, bem certinho para conseguir meu visto, a carta de convite de trabalho, entreguei, aí olharam lá: “Só um minuto, por favor”. Vi eles olhando o passaporte contra a luz, eu suando frio, minha mão fica logo gelada quando essas coisas acontecem. “Calma, Bárbara, paciência, vai dar tudo certo”. Uma das pessoas que me atendeu, falou “Venha aqui, por favor”. “A senhora tinha um visto aqui, nessa página?” Falei: “Vou falar a verdade, não é?”. “Sim, tinha um visto expirado. Como o senhor pode ver o passaporte está lotado, só tinha esta página, começo o trabalho no momento em que chegar ao país, então não tinha como fazer solicitação de um novo passaporte porque ia demorar muito, cerca de um mês”. E aí, foi uma grande lição de moral, mostrando para o colega: “Olha só, que absurdo, fazendo isso com o passaporte, esse documento não pertence a você; você não tem o direito de tirar e botar nada aqui, tal”. Falei: “Ferrou, perdi tudo, o trabalho, o dinheiro que tinha guardado; perdi tudo, ferrou. Agora vou ter que arrumar um trabalho em Cingapura, sei lá o que vou fazer da vida”. Não conhecia ninguém em Cingapura, não tinha nem a referência, amigo, nada. Depois de meia hora tirando sarro da minha cara, mostrando para todos os colegas o que eu tinha feito, ele falou: “Olha, eu só vou te dar esse visto aqui, mas ele não tem garantia de que você vai entrar no país não, você tem a consequência de chegar lá e negarem. Você fez um absurdo, é crime”. Enfim, detonou. Mas eu tinha o visto - eu tenho esse visto. A ONG já tinha organizado toda a minha ida para a Austrália, então já tinha minha passagem comprada, falei: “Cara, é isso”. Falei: “Gente, já tenho o visto, tudo certo, consegui”. Peguei o avião, ainda suando frio (inint) [01:04:33] para chegar lá do outro lado do mundo. Cheguei, tal. Me chamou assim do lado... Nisso, já tinha passado a imigração, ele: “Senhora, pode abrir a sua bolsa, por favor”. Eu, suando frio: “Sim”. Abri e ele pegou, tinha uma maçã, ele falou assim: “Isso aqui é crime, você não pode entrar com isso”. Aí eu: “Tudo bem”. Ele não me deu multa, nem nada, entrei e os colegas já estavam lá me esperando; e, finalmente, consegui embarcar nesse novo navio, nova ONG, com uma forma de trabalhar totalmente diferente do Greenpeace. Na época, os navios eram todos pretos, eles entendiam que salvar o mar é uma questão urgente, era uma coisa bem militar mesmo. Não tinha álcool no navio. A alimentação era vegana restrita. E eu comecei a descobrir essa nova forma de trabalhar, e foi muito legal, fiz muitas descobertas. Também numa parte do mundo que eu não conhecia, trabalhar com (Paul Watson) [01:05:59], que foi o fundador do Greenpeace na década de 70, um dos quatro jornalistas que fundaram a ONG, o cara que está há mais de quarenta anos fazendo isso, protegendo os oceanos, foi muito louco estar perto daquela figura. E eu sabia que ia aprender muita coisa nessa experiência. Então, embarcada, tentando descobrir o barco, as pessoas - não conhecia ninguém - e foi muito profundo. Descobri também a Austrália, que assim como o Brasil é um país enorme, uma cultura que... Apesar de ter muita afinidade com brasileiro, e são muito abertos, é diferente. O clima muda muito do Norte ao Sul, como aqui. Me abri para um novo lugar e outra forma de trabalhar. E mesmo como fotógrafa, assim como nos outros navios em que eu trabalhei, eu tinha que cuidar também da navegação. Então, para mim, esse foi um ponto muito importante: “Caramba, enquanto tem pessoas dormindo eu estou aqui de vigília para garantir que o navio esteja seguro”. Então, tinha rondas que a gente fazia de hora em hora para checar se o óleo está ok, se tem alguma coisa estranha, fora do lugar, checar o radar, o curso que a gente está indo, marcar na carta náutica a nossa posição... Apesar de toda a tecnologia, esse respaldo. Nós tínhamos que colocar isso no papel e garantir nossa segurança. Eu caminhava, às vezes, de madrugada, fazia essa vigília, aí eu olhava assim: “Nossa, está todo mundo dormindo e...”. Era sempre em dupla, não ficava sozinha, mas mesmo assim uma responsabilidade profunda garantir que estivesse todo mundo seguro, e bem. A gente fazendo a rota certa. E ao chegar à Antártida, foi uma mistura de sentimentos, deslumbramento, de estar na parte mais inóspita do mundo e ver toda aquela Natureza selvagem pipocando, eu achava que ia ser tudo branco, gelo, eu via variações de branco, de amarelo, mesmo no gelo, filetes de cores, uma pintura natural, e isso me trouxe um deslumbramento; eu nunca tinha visto um iceberg na vida. Mesmo nas tempestades vinha sempre um (albatroz) [01:08:32] ao lado, que se tornou meu pássaro preferido, porque ele só dorme 10% do tempo da vida dele - 90% ele está voando e acompanhando barcos e pessoas, descobrindo mares. E aí, por outro lado, esse combate à matança baleeira, que acontece todo ano entre dezembro e março. Navios baleeiros japoneses saem do seu país e vão para essa parte do mundo para caçar baleias, com intuito de venda, de comércio, apesar de eles usarem essa desculpa de pesquisa científica. Nós estávamos com uma série de TV, que foi bem conhecida nos Estados Unidos e na Austrália, se chama Ilhas Féroe e nessa série a gente mostrava toda a vida a bordo, quem eram os ativistas que colocavam a sua vida, literalmente, entre o arpão e a baleia. A rotina era muito dura, porque era no frio, então muitas coisas você tinha que fazer do lado de fora. O combate, a forma mesmo de atuação, entre uma ONG e outra, é bem diferente; Greenpeace usa mais o apelo midiático, através de banner e mensagens, vai lá mesmo, no meio do barco; então, o contato com essas foi muito difícil, porque eles jogavam... Os japoneses jogavam coisas nos nosso botes, barcos, faziam sobrevoos diários fazendo imagens dessas buscas, tentar primeiro, como uma batalha naval mesmo: “Onde é que estão os baleeiros?” E ter uma noção, através de investigação, de onde a gente vai mais ou menos, mas sem ter muita certeza, até chegar lá, encontrar e colar neles, e não deixar eles fazerem a matança. Foram meses assim, no gelo, fazendo esse trabalho acontecer e ver muitas coisas... Porque muita gente pode achar que o mar é só aquela coisa, mas numa situação dessas muita coisa acontece, não só o tempo - o vento que muda, tem as circunstâncias que acontecem, também. Lembro que, em uma dessas missões, nós recebemos uma chamada da marinha neozelandesa com uma chamada de emergência, dizendo que tinha um veleiro, com três tripulantes, a ponto de afundar. E nós estávamos mais perto, então não tinha como a marinha neozelandesa sair de lá e, sabe, eles receberam a chamada o (inint) [01:11:20] Call, que chama, e nós fomos. Falei: “Uau, a gente estava aqui para salvar baleias, e agora a gente vai tentar salvar esses três jovens, de 25 a 30 anos”. Eles eram jovens que estavam fazendo uma série de TV, aquele Jackass, da versão norueguesa, então: “É, vou para Antártida”, clima de zoeira, mas foram para lá completamente despreparados e foi muito confuso e difícil para todos, porque a gente estava achando que tinha acabado uma missão e, de repente, recebe essa chamada de emergência. Todos ficaram acordados, a gente enfrentou a maior tempestade dos últimos dez anos, decretado pela própria marinha neozelandesa, para encontrar essas pessoas e tentar salvá-las. Tem imagens disso, lugar realmente que você não quer estar, que você está colocando sua vida em risco - de toda a tripulação em risco - para tentar salvar alguém, três jovens. E aí, atravessamos a tempestade, todo mundo com binóculos, eu tinha minha câmera, binóculos; pessoas não dormiram, o navio parecia uma máquina de lavar, tudo caía, tudo chacoalhava, até que chegou um momento em que a gente encontrou a posição, o GPS onde eles tinham marcado o último sinal para a marinha neozelandesa, e infelizmente tudo o que a gente viu foram vestígios, eles não sobreviveram. O barco afundou, os corpos não foram encontrados até hoje, tudo o que restou foram alguns objetos flutuantes, algumas roupas. Eu me lembro muito de uma echarpe preta, flutuando, algumas coisas de emergência que tinha nesse bote. Porque eles saíram do barco deles e foram para esse bote inflável, só que é uma espessura muito fina, certamente foi hipotermia, passou uma onda, enfim. Foi muito brutal ver como tudo é efêmero mesmo, diante dos olhos. E viver isso - tentar salvar pessoas e não conseguir. Então, salvar baleias e conseguir, mas só por alguns meses. Eu coloquei isso como uma responsabilidade na minha vida, não consigo fazer um trabalho que não tenha um sentido muito profundo para o todo. A minha forma de colocar o amor que eu não recebi quando era criança - e isso sempre me preencheu muito - sempre gostei de saber que eu estava fazendo alguma coisa pelo maior, por alguém, pelo todo, pela Natureza. Durante muitos anos foi assim a minha vida embarcada, e depois eu acabei conhecendo uma pessoa, que foi meu companheiro, nós compramos um veleiro de segunda mão, na Malásia, reformamos ele todo. Não tinha a menor ideia do que era, gente, como ia reformar um barco - alumínio, madeira, não tinha a menor afinidade com esses materiais, mas a gente aprendeu e foi nossa casa por quatro anos. Ainda estendi minha vida pessoal, entre missões e trabalhos, embarcada com essas ONG's, minha vida pessoal também, em um barco, que foi a minha casa. Também passei por várias situações, porque a gente decidiu que a nossa rota ia ser do Sudeste asiático até a Europa, passando por uns 14, 15 países - essa rota onde tem o maior índice de piratas. Tem até o filme Captain Phillips, com Tom Hanks, histórias verídicas de pessoas que foram agressivamente abordadas por pessoas desesperadas. Passamos por essa situação. Na costa da Somália fomos abordadas por quatro homens, que não estavam armados, mas estavam com um olhar muito desesperado, eram magérrimos, sujos, com trapos, não era uma roupa decente. Foi uma surpresa muito grande, porque eu estava a 35 milhas da costa, fazendo apneia, e de repente escutei barulho de motor. Eu falei: “O que está acontecendo?” Em um lugar que não tem nada, ninguém. Pegamos nosso bote inflável e começamos a voltar para o nosso veleiro, e nisso o barco vindo junto, com esses homens. Eu falei: “Nossa, e agora?” E eu estava com um maiô, e sabia que: homens muçulmanos, uma mulher de maiô, é como se eu estivesse nua - existe um outro código de se vestir, de ser entendida como uma mulher de respeito na sociedade deles. Então, lembro que tinha uma burca no meu barco, foi a primeira coisa que eu fiz ao chegar: coloquei o barco ao lado, entrei, coloquei a burca de qualquer jeito, e fomos abordados. Eles chegaram, ancoraram e ficaram lado a lado do Papaia, que era o nome do meu veleiro. Daí falei: “Bem, preciso pensar rápido”. E não conseguia falar nada, e meu companheiro da época também não, ficamos nessa situação. Falei: “Já sei, vou pegar o rádio e tentar me comunicar com alguém”. E nisso, todo um processo, parecia que o tempo era outro; não sabia (inint) [01:17:26] que dia é hoje, quem vai poder ajudar. Primeira coisa foi tentar conectar com outros navegadores que estavam fazendo essa rota, mas não sabia em que altura eles estavam, em que país estavam. Peguei o rádio e tentei me comunicar: “Macoco, papaia” e dava a posição do GPS, dizia que estava numa situação de risco, não tinha muito tempo para dar detalhes, então tentei fazer isso, e nada. Olhava ao redor, falei: “O que vou oferecer para essas pessoas?”. Nisso, eu estou olhando do lado de dentro do barco e vendo que meu companheiro estava tentando contato com as pessoas e ele não conseguia. E aí peguei uma cesta tipo de piquenique, que tínhamos no barco, e fui colocando... Porque eu estava vindo... Tinha leite de amêndoas, que eu tinha trazido da Tailândia, um monte de coisas. Fui colocando e aí eu subi com essa cesta e entreguei para esses quatro homens, que tinham aquele olhar... Sabe aquele olhar que parece que vai entrar na sua alma, aquele olhar fixo e perdido, desesperado? E eu não sabia o que fazer, falei: “Bom, é isso que eu posso”. Aí eu lembro que um deles, que parecia ser uma espécie de líder, se colocou à frente, os três atrás, e ele estava com um pé no barco e outro pé sob o meu barco. Ele olhava com autoridade, olhar profundo, aí ele começou a pegar as coisas que tinha dentro da cesta, e eu lembro que uma delas era esse leite de amêndoas. E ele começou a girar como se ele não entendesse o que era aquilo, muito provavelmente ele nunca tenha visto um leite líquido na vida. Talvez por doações, leite em pó, de outros países, tudo deu a entender que ele não sabia o que era. Aí eu falei para ele que era de beber, em gestos, depois de tentar os idiomas que eu consigo falar, não houve uma interação. Falei: “Bom, e agora?” Se esse cara... Esses caras fizerem o que eles pretendem, ferrou, ninguém vai saber onde é que eu estou, não tenho a menor ideia do que vai acontecer. O tempo foi passando e aqueles silêncios eternos foram dominando. Até que chegou um momento em que esse mesmo líder, que estava o tempo todo olhando para mim - e para quem eu estava tentando fazer alguma coisa, falar alguma coisa - ele começou a mergulhar a mão dele na água e mostrar, do jeito dele, depois de várias tentativas de eu entender também, que ele estava com uma infecção na genitália e estava com pus. Então, por isso que ele estava fazendo assim com a água do mar e aí foi quando eu entendi que ele estava com algum problema de saúde. Eu, desesperada de novo no barco, para ver se tinha algum antibiótico na caixa de primeiros socorros... E eu nunca fui uma pessoa de carregar remédios, sou aquela que prefere ficar doente, o corpo vai resolver; mas, por sorte, tinha uma caixinha lá de antibióticos, dei para ele, falei: “Um de manhã, um à noite”. E ele olhou, entendeu, e foram alguns segundos de suspense: “Gente, e agora, não é? Já deu comida, não tem outra resposta”. E, finalmente, eles decidiram ir embora. Levantou a âncora, tirou o pé, o mesmo pé que ele estava pousado no meu barco, afastou e eu fiquei em completo estado de choque até o barco sumir no horizonte - já era fim de tarde - até o sol se pôr eu fiquei parada, de pé, vendo a fragilidade da minha vida. E a quantidade de coisas com que eu não precisava me preocupar mais, porque existir e estar lá intacta e íntegra, sem ter sofrido uma agressão, foi uma sorte. Ao cruzar nessa rota, com meu companheiro, passamos por esse susto, e também uma tempestade de areia, que fez com que a gente não conseguisse ver nada a um palmo. E mesmo contando com recursos de radar, você não consegue contato cem por cento, é importante ter sempre uma pessoa que veja as coisas, o que está acontecendo lá fora. Às vezes tem um barco que não é detectado no radar, então é muito importante, mesmo em tempestade de areia, de mar, do que seja, estar sempre tentando ver o que está acontecendo ao redor. E também foi um susto muito grande: “Como é que a gente vai navegar assim?” Sabe? É muito difícil.
P/1 - O que vem à cabeça nessa hora, quanto tem essas tempestades e você está em alto mar…?
R - Estar em alto mar e lidar com situações adversas e fora do controle, me fez pensar muito na fragilidade da minha existência, onde tudo que está de fora não tem controle, não tem como dizer: “Para de ventar!”. Acho que a força da existência, de estar aqui, de estar vivo, ela se intensificava quando eu lidava com situações difíceis. É como se eu dissesse: “Isso vai se resolver”. Em nenhum momento eu pensei: “Nossa, acabou”. Sabe? Eu nunca desisti, em nenhum momento. Era delicado, porque me dava uma chacoalhada assim humana, de pensar: “E agora?” Alerta, mas acho que me dar conta dessa fragilidade e da condição humana da gente poder, não só no meio da rua, da cidade, mas no mar também, lidar com fenômenos e pessoas que você normalmente não está acostumado a lidar, não tem condições imediatas para isso. Uma coisa que o mar me ensinou foi improvisação, estar sempre explorando meios de lidar com situações adversas de forma rápida e eficaz. Não que tudo sempre tenha dado certo, acho que quebrei muito a cara; mas ter um olhar mais maduro e concentrado para poder lidar com as situações de um jeito correto e equilibrado naquele momento. Então, essa noção de estar aqui, agora, completamente, não vou ligar para alguém para resolver, não tem um encanador, sabe? Essa é uma lição bem forte que ficou desses anos de mar.
P/1 - E qual foi a próxima parada?
R - E aí nós fizemos essa jornada até a Turquia, entre trabalhos. Durou mais ou menos três anos e pouco entre esses trabalhos, eu acabei decidindo me separar, o barco foi vendido e fiquei sem barco. Nessa jornada, ainda continuei navegando com as ONG's, com a (Sea Shepherd) [01:25:48] fazendo outras campanhas. Além da Antártida, também no mar Mediterrâneo, em proteção ao peixe atum, que está em extinção. Fiz vários trabalhos em terra, um deles foi de investigação disfarçada nas ilhas (Féroe) [01:26:02]. Nesse trabalho, eu tinha que fazer amizade com os baleeiros das ilhas (Féroe) [01:26:09] e, com a informação de quando ia acontecer a próxima matança, eu ia avisar a ONG. E eles, por mar, iam fazer intervenção. E foi isso que eu fiz durante dois meses.
P/1 - Como?
R - Eu chegava no bar: “E aí, pô, tudo bem?” Claro que não estava assim bonitinha, de batom, brincos, tentava falar um pouco a linguagem deles e... Bom, eu era uma viajante, tinha toda uma história pronta para isso. Era uma viajante, com mochila nas costas, tinha acabado de me separar - o que era verdade - e estava tentando descobrir aquele paraíso, um dos maiores paraísos, de acordo com a National Geographic. Então falei: “Tenho que ir para as ilhas (Féroe) [01:26:58], Féroe Islands”. E aí eu chegava no bar e falava com esses pescadores, esses baleeiros... Porque nem sempre essa era a principal função deles, muitos eram professores, trabalhavam com outras coisas, pessoas de todos os níveis culturais, então não foi muito difícil para mim acessá-las, porque eu sou curiosa também, então queria saber quem elas eram. A brasileira, no meio dessa ilha que chove o tempo todo: “O que você está fazendo aqui?” Não é? Havia uma curiosidade por esses dois lados - essa foi uma outra forte aventura de lidar com pessoas que defendiam a matança baleeira, mas um outro viés, não para venda da carne, mas para manter uma cultura, tradição, que antigamente era por meio de subsistência, era genuíno, as pessoas precisavam dessa carne para sobreviver, só que nos dias de hoje, as Ilhas Féroe... A economia toda vem da Dinamarca, que é um país rico, que oferece todos os recursos do continente para a ilha, para o grupo de ilhas, então os mercados eram impecáveis, opções de todos os tipos, do mundo inteiro, inclusive com excelentes opções vegetarianas, veganas, ou seja, não fazia o menor sentido aquela tradição continuar só para dizer: “Matamos as baleias”. Só que era isso que acontecia, e é isso que acontece até hoje. Para mim, foi muito difícil lidar com esse aspecto humano, porque eram pessoas interessantes, legais, algumas se tornaram muito próximas, de me convidar para o aniversário do filho, de almoçar em casa; e teve um dia em que eu fui convidado para almoçar um prato tradicional da ilha. Eu carregava uma câmera, que ficava no segundo botão da minha camisa, então todas as minhas camisas tinham um segundo botão fora para eu colocar a câmera escondida. A cada duas horas ia ao banheiro para trocar a bateria, o cartão, e continuar gravando. Porque isso fez parte de uma série de TV chamada (inint) [01:29:25]. E ficava aquele sentimento ambíguo: são pessoas interessantes, legais, estou aqui me envolvendo, vejo que são pessoas inteligentes, esclarecidas, mas que vêm com um discurso totalmente antiquado, não é? Lembro-me de uma menina, da minha idade, que falou: “Eu sinto uma força dos meus ancestrais quando eu vejo (o mar) [01:29:50] ensanguentado, sabe? Eu acho bonito, é vitória, é força; para a gente isso tem um símbolo muito importante, historicamente”. E eu não conseguia alcançar aquilo, então volta e meia, nesses momentos de infiltrada, eu estava na casa de um familiar, ou pessoas que acabei estabelecendo uma amizade. E me diziam “Ah, a gente vai fazer uma matança na praia tal, não sei o quê”. Aí eu, imediatamente... Eu tinha dois telefones - telefone da investigação - eu pagava: “Galera, cinco horas na praia tal vai haver matança, partam para lá”. Então, eu vivi com essa dupla identidade, me chamava Vitória na época; durante esse período, graças a essa missão, não houve nenhuma matança baleeira, mas foi uma ação pontual, o problema não foi resolvido, o que me deixa muito inquieta. Depois disso, em outros trabalhos, em outras campanhas e missões, a ONG começou a fazer uma abordagem diferente, a tentar conversar mais com as pessoas e acho que isso foi positivo. Mas, apesar de ter melhorado, está longe de conseguir acabar completamente com essa tradição que não faz o menor sentido nos dias de hoje. Foi um trabalho extremamente profundo, do ponto de vista humano, de entender como culturas podem pensar de jeitos tão diferentes e apoiar atrocidades como essa. Mas como é que eu seria? O questionamento que ficava: se eu tivesse nascido nessa ilha, se eu tivesse recebido essa educação, ia ter entendido que isso é certo. Existiram muitos momentos de reflexão, de olhar para dentro, sem aquele processo de julgar - como lá na Amazônia - aquele trabalhador a favor da destruição da Amazônia, mas é isso, o cara precisava daquele trabalho. Como é que resolve de um outro olhar, aspecto, ângulo? E aí essa pessoa também... “Adoro ver o mar ensanguentado…”, mas precisa ver o mar ensanguentado hoje? Como a gente pode manter essa cultura de outro jeito? Mas se ela está lá e cresceu acreditando nisso, não tem acesso a outras coisas, ela vai continuar fazendo aquilo achando certo. Por isso, acredito cada vez mais no diálogo e na educação para poder transformar essas formas de lidar, não só com a Natureza mas com as outras pessoas. E que bom que a gente está, pouco a pouco, vivendo um pouco dessa revolução, através da comunicação entre as pessoas, não só para questões ambientais, mas questões de gênero, raciais, o direito à voz, à existência de todas as espécies, respeitar todas as espécies, todas as pessoas e todas as raças. Acho que esse é o caminho mais bonito, o cenário mais interessante que eu gostaria de ver em vida - as pessoas se unindo e trilhando um caminho de verdade, justiça e respeito para todos os seres.
P/1 - Em algum momento, essas pessoas de quem você se aproximava para saber alguma informação souberam que você tinha esse interesse?
R - Algumas pessoas desconfiavam, porque eles sabiam que tinha os navios da ONG por ali. Então eles, volta e meia, perguntavam: “Ah, mas você está com esses caras ai?” Eles até misturavam Greenpeace e (Sea Shepherd) [01:33:47]... “Esses caras do Greenpeace aí, tal?”. Falei: “Não, ah, é, cadê? Ah, que salva baleia, que loucura!”. É um pouco complicado fazer isso. Falei: “Bom, pelo menos aqueles anos de teatro na adolescência me ajudaram em alguma coisa”. Na verdade, não era um jogo, era uma coisa muito séria, mexeu muito com muitas emoções, de ter que também me despedir daquelas pessoas eventualmente, de não ter a minha identidade revelada naquele momento, depois eles viram a série de TV no ar, e obviamente: “Ah, aquela menina, e tal, era espiã”. Pouco tempo depois, cerca de um ano e meio, me chamaram de novo para fazer um trabalho lá, só que como câmera. Falei: “Como é que vou voltar para essas ilhas agora? Se eu encontrar com alguém, não é? Enfim...”. Mas eu resolvi topar o desafio, por conta do trabalho, da missão que eu achei relevante, importante. Fui para esse trabalho, peguei avião de Copenhagen até as Ilhas Féroe olhando para os lados, escolhi janela, falei: “Não, preciso estar na janela de qualquer jeito” - mesmo sabendo que tinha colegas que estariam me esperando no aeroporto, podia acontecer algum problema durante o voo. Me lembro de que havia as cadeiras vagas, falei: “Que ótimo, precisava”. De repente, chegou um homem com um bigode bem peculiar, falei: “Aquele pescador, não acredito”. E era bem ele, porque ele tinha um bigode e não tinha como... Existem pessoas que têm marcas muito específicas, e era bem pontual mesmo. Olhei para ele, ele olhou para mim, deu um sorriso: “Ele me reconheceu, ferrou, vai acontecer alguma coisa neste avião”. Mas acho que no fim das contas ele não me reconheceu, porque eu tinha outro cabelo, outra cor, só quis ser cordial, foi o que entendi da situação. Mas ficou um frio na barriga, espinha, tudo, e no fim das contas não aconteceu nada. Cheguei a cruzar com algumas pessoas que reconheci, mas ficava o tempo todo com óculos escuros, perto da equipe, para evitar qualquer tipo de constrangimento. E até mesmo a dificuldade da minha reação. Porque, como falei, me aproximei de muitas famílias, foi muito duro para mim, o desfecho era para ser outro.
P/1 - Eu tenho uma pergunta super específica, que ainda é quando você estava naquele enfrentamento com os navios baleeiros, está certo falar assim? Queria que você descrevesse como é chegar, ver que tem um navio lá e você ter que ir para o combate; como é a sensação de encontrar esses navios? Tudo bem se eu voltar para isso?
R - Sim. Bom, tem dois momentos: primeiro é preciso ter uma certa frieza e força para lidar com a situação. Encontramos, então é um ponto bom, porque significa que uma baleia vai ser salva - ou mais. Mas, por outro lado, existe a questão do enfrentamento, de saber que você está colocando a sua vida em risco, uma missão dessas não é uma missão qualquer, tem as condições climáticas e humanas. Eu não sabia até que ponto eles poderiam agredir algumas das pessoas - porque já aconteceu muitas vezes de arremessar objetos. Acho que não chegaram ao extremo maior porque tinha uma série de TV sendo gravada para o Discovery Channel, que tem um alcance imenso no mundo inteiro, mas mesmo assim era um enfrentamento. E muitas vezes, ou fazia voos de helicóptero para fazer as imagens aéreas ou ia para o bote para fazer as imagens de cara com o barco. Não era uma coisa fácil você saber que: “Gente, como vocês apoiam uma coisa dessas por dinheiro?”. Então, muitas coisas passavam pela minha cabeça: “Nossa, que loucura, a gente está aqui, precisou vir para essa parte do mundo para impedir que um crime acontecesse”. E muitas vezes a gente consegue, mas muitas vezes não, e é por um tempo pontual. São poucas horas de sono e não tem dia livre, só aqueles meses intensos de entrega. Era uma mistura de vários sentimentos: a alegria de encontrar, que a gente ia conseguir controlar a matança baleeira, impedir que ela acontecesse, manter a nossa posição GPS, muitos navios estavam numa condição melhor, com mais tecnologia, velocidade; ainda tinha que driblar essas questões das ferramentas que a gente tinha ali no momento. E, também, o instante do combate - tinha várias estratégias que a (Sea Shepherd) [01:39:50] utilizava: uma delas era o (prepare following) [01:39:51], fabricar umas cordas grandes, que tinham um metal dentro, a ideia era jogar essas cordas com o metal dentro perto da hélice do barco, e aí impedir que o barco funcionasse. Essa era uma tática, então era assim pura emoção, você sair com um bote, dar voltas nesse navio gigante baleeiro, com um arpão enorme... Porque eles, dentro de uma salinha da ponte de comando deles, só precisava apertar um botão para ser acionado. E a gente tentar fazer uma dessas estratégias para impedir que o barco funcionasse, efetivamente parasse no meio do oceano. Das vezes em que isso aconteceu eles precisaram chamar apoio do Japão para vir resgatá-los, então assim... Coisa séria. Desde isso até jogar, por exemplo, (steak bomb) [01:41:01], que eram umas manteigas fedorentas, dentro de garrafas, que os ativistas arremessavam no convés do barco baleeiro, porque com o cheiro, a carne da baleia já morta se perdia, estava inutilizada. E não tendo nenhuma baleia, o convés ficava escorregadio, o que impedia que eles trabalhassem. Então, essa era uma das táticas que eram utilizadas: até distraí-los mesmo, pegar umas tintas e jogar - porque os navios baleeiros tinham escrito assim: “Research”. “Pesquisa”. O que é uma grande mentira. Então, muitas vezes para distrair, ocupar na verdade, jogava umas tintas onde dizia “pesquisa”, para eles perderem tempo, não conseguirem caçar nenhuma baleia. Todas essas táticas eram feitas muito no cara a cara. Era óbvio que dava uma adrenalina muito grande, sabe? Nosso barco pode cair, alguém pode se machucar, eu com equipamento ainda, com aquela atenção e uma responsabilidade de gerar conteúdo, fazer uma denúncia, ter certeza de que qualquer movimento brusco eu vou estar segura, minha câmera vai estar segura, driblar o frio - já cheguei a pegar -40°. Para uma pessoa que trabalha com câmera não é uma temperatura confortável, nunca achei uma luva que eu pudesse trabalhar a -40° de uma forma confortável, até porque eu preciso tocar na lente, é um pouco complexo. Esses eram os maiores desafios, porque a bordo, embarcada, acho que as pessoas se apoiavam muito, a situação era tão extrema, tão difícil que, claro, pode acontecer de ter alguma desavença, diferença entre pessoas, porque você está em um espaço confinado, cada um pensa numa estratégia de trabalho ou tem mal humor de manhã, o que já aconteceu, de estar embarcada em um determinado navio e um marinheiro me xingar do nada. Falei: “Uau, o que é isso? Eu só falei bom dia para o cara”. Depois descobri que não podia falar com ele de manhã, precisava tomar café, dar umas duas horas, então é um desafio humano também, dessas diferenças, tive que aprender isso também. Então ficava: “Nossa, o que eu fiz?”. Mas depois fui entender que cada um trabalha de um jeito. Já é difícil na cidade, onde você pode escapar. Se tem algum problema, você toma cerveja com o amigo, vai fazer alguma coisa, liga para alguém. No barco não, você tem que lidar com as dificuldades e emoções de uma forma muito prática. E muito imediata. Não tem tempo para dramas e coisas desse tipo.
P/1 - Mas qual o sentimento que prevalecia?
R - A vontade de vencer, de salvar aquelas espécies mágicas que são ancestrais e importantíssimas, existem há muito mais tempo do que a gente e têm todo o direito de estar no lugar delas. Isso é o que mais me motivava: ver aqueles animais livres, no lugar deles, intocados. Então, toda vez que eu via uma baleia, me emocionava de vê-la ali presente. Teve uma vez que eu estava a vinte metros dela, não acreditei. Vi aquele rabo de baleia gigante, na minha frente; de repente, vieram mais duas baleias ao lado. E eu: “Uau, que força”. No entanto, extremamente gentis, parecia um balé, não queriam nada da gente. E eu, por outro lado: “Meninas, (inint) [01:45:23], apareçam aqui, cuidado”. Era isso. O encantamento de ver aquilo de perto, proteger aquelas espécies, e a força para poder conseguir salvar o máximo de vidas possíveis. Aquilo para mim era fundamental, eu tinha que fazer parte disso. Ao longo da vida, fui migrando para outros caminhos e achando que não tinha tanta necessidade de estar embarcada o tempo todo. Trabalhei com outros veículos, outras ONG's também, fui repórter por uma temporada, aí vi que não era bem isso, o que eu queria mesmo era estar atrás das lentes, e continuo trabalhando com questões transformadoras. Viajar ainda é uma paixão, mas a minha base é aqui em São Paulo, a cidade que eu escolhi morar, e apesar de não ter mar, é um lugar em que eu me sinto muito bem, onde comecei a fazer um novo ciclo de amizades e onde descobri uma nova versão minha - quando eu sinto falta do mar, eu vou.
P/1 - Eu tenho só mais uma pergunta específica, antes da gente seguir com a história. Você falou que seu barco chamava Papaia, por quê?
R - Meu barco chamava Papaia porque é minha fruta tropical preferida, e eu queria algo que me fizesse lembrar de onde eu vim - pintei-o todo de laranja. Acho que é um nome curto, bonito, foneticamente harmônico e foi a minha casa - conheci também muitas pessoas, velejadores de todas as partes do mundo. E foi muito interessante também usar o barco, essa ferramenta, não só como instrumento de ativismo, engajamento, mas como um lugar de casa, onde você se sente seguro, só que em outro formato. E aí, foi muito interessante ver famílias que apoiavam outro estilo de vida, crianças que já falavam quatro, cinco idiomas porque já viajaram o mundo, e dar essa oportunidade de explorar os lugares de um jeito diferente. Eu me lembro... Chegando perto de Israel, o que ficou foi o cheiro de Israel. Falei: “Nossa, o cheiro da terra assim chegando”. Isso, para mim, foi muito interessante, de chegar nos lugares e começar: “A arquitetura do Sudão...”. E começar a ter uma experiência diferente do que só pegar um avião e ir de um lugar para o outro, que é o que para mim era o mais rápido, fácil; mas ter cruzado os oceanos e ter chegado nos lugares desse jeito me fez respeitar muito mais os exploradores, navegadores todos do mundo todo. Graças a eles a gente entende o que é Geografia, muitos morreram, então tenho muito respeito pelo mar e pelas pessoas que descobriram tantos lugares pelo mar.
P/1 - Em que momento você percebeu que era hora de voltar para o Brasil?
R - Bom, depois de sete anos navegando, em tantas missões e coisas tão profundas, conhecendo pessoas maravilhosas, me apaixonando e desapaixonando, casando e me separando, eu morei na França, e lá, com uma exposição itinerante que eu tive lá, com um prêmio que ganhei da National Geographic, me pousei na cidade, e em algum momento eu sentia que faltava alguma coisa, que eu tinha acumulado muita história, experiência, conhecido pessoas incríveis, que eu tinha mudado, era outra pessoa. Senti a necessidade de voltar e trazer um pouco dessa bagagem para o Brasil, claro que veio junto o fato de renovação de visto, medidas que eu poderia ter tomado para estender minha passagem por lá, de um ano e pouco, mas eu achei que era o momento de voltar e colaborar com o meu país. Mas foi uma transição muito difícil também porque quando voltei vi que muitas pessoas já não eram... Não tinham saído do lugar. Parece um pouco de pretensão falar isso, mas não é assim. Para algumas pessoas o formato de uma família é o quê? Casar e ter filhos. E para mim era uma outra forma de viver que era a mais interessante, desafiadora; então, comecei a me questionar muito quanto a esses formatos - formatos de estilo de vida, relacionamento de todos os níveis, e isso foi trazendo para mim um descontentamento, uma crise, um questionamento do que encaixava melhor depois de ter visto aquilo tudo. E foi aí que eu comecei a olhar para o meu caderninho de anotações, que eu fiz ao longo desses anos, e falar: “E agora, o que vou fazer”. Sabe? Muitos dos meus amigos não estavam mais morando lá, tinha muita gente que tinha saído do Brasil, e eu tive que começar do zero. Como eu precisei de um tempo para me readaptar na minha cidade natal, que foi uma coisa muito estranha, porque eu me senti uma estrangeira mesmo no meu próprio país. As coisas mais banais do convívio da sociedade, da forma de se relacionar, da confiança, tudo isso tinha sido reconstruído nos anos fora, e depois teve que ser remoldado na minha vida. E aí eu decidi: “Ok, vou passar esses escritos para o computador e pode ser que saia um livro”. Foi um processo muito difícil, porque, imagina, sete anos de caderninho, tinha um bolinho de anotações de todo tipo, desde batalha com os baleeiros japoneses até perdas e ganhos dos pontos de vista emocional e humano. Transcrevi tudo para o meu computador e comecei a ganhar forma... A vontade de fazer o livro... O livro começou a ganhar forma. Procurei uma agente literária e o livro vai ser lançado no ano que vem.
P/1 - Você pode falar o nome?
R - Sete Anos em Sete Mares.
P/1 - E como é essa sensação de sete anos em um livro?
R - Eu me emocionei muitas vezes, chorei, ri; que bom que eu fiz essas anotações, porque muitos detalhes eu já não lembrava. Assim eu: “Nossa, eu passei por isso, caramba”. Sei lá, me lembrei de uma cena de um cozinheiro norte-americano, super resmungão, que sempre estava de mau humor. E aí eu: “Ei, bom dia, chefe”. Jim - o nome dele era Jim: “Bom dia, Jim…”. Tudo mais. Aí ele olhava para a minha cara, sabe, tipo: “Por que você está tão feliz assim? Lembro-me de que meu chefe falou: “Babs, olha, menos alegria, sabe? Cada um aqui tem uma medida”. Foi muito interessante, porque depois vim a saber que ele tinha um problema de saúde, estava com saudade de casa, já estava de saco cheio do barco, então me fez pensar assim, ao invés de julgar: “Pô, que cara chato, resmungão”. “Pô, o que ele deve estar passando para não estar a fim de falar um bom dia para alguém?” Perceber o lado do outro. Então, se eu não tivesse feito esses detalhes das anotações eu não ia lembrar, ia passar despercebido, revisitar uma história de vida com muitas emoções. Foi muito intrigante, porque isso não faz a minha história melhor nem pior do que de outras pessoas, tenho amigos que construíram outra trajetória e que eu aprendo muito com eles também. Enquanto a gente estiver vivo, disposto e interessado em trocar com outras pessoas, a gente está aprendendo. Enquanto a gente respirar, a gente está aprendendo; enquanto a gente olhar para o lado e tiver compaixão para com o outro e qualquer tipo de vida neste planeta, a gente está aprendendo. Vou lançar esse livro com muita alegria, prazer e satisfação pessoal de poder compartilhar esses detalhes da vida no mar com outras pessoas, quem sabe até inspirar e pensar em projetos novos. Agora é outra fase, fase da terra, de enraizar e espalhar para o mundo um pouco do que eu vi nessas vivências.
P/1 - E eu queria que você falasse um pouco sobre suas fotos. Não sei se você tem alguma que tenha sido especial fotografar, alguma que você tenha algum afeto mais forte. Como é esse seu processo da fotografia? Seria legal se você falasse um pouco.
R - Claro, a fotografia - é como eu tinha falado - começou adolescente, eu registrando cenas, histórias na escola, até eu realmente fazer meu primeiro ensaio fotográfico com pessoas na rua, pessoas que vendiam coisas e eram abordadas agressivamente pelos policiais para poder... E tinham seus itens apreendidos, entendendo que era uma atividade ilegal. Para mim, esse foi o primeiro ponto: “Nossa, preciso usar a imagem como forma de engajamento”. E foi um trabalho bem interessante, porque mexeu muito comigo, me fez acreditar que eu podia seguir essa carreira, fazer um trabalho que gerasse reflexão, as histórias de vida dessas pessoas. E foi a partir daí que eu comecei, aos poucos, a acreditar que poderia ser um caminho possível. Até então, na minha família, não tinha alguém que eu conhecesse que trabalhasse com fotografia, cinema. E aí foi muito interessante. Quando a gente quer uma coisa na vida - e a gente quer mesmo - a gente busca, a coisa vai aparecendo, os sinais vão surgindo e as oportunidades... É claro que não foi meramente sorte, mas o fato de eu estar com os olhos sempre atentos para essas oportunidades e me desafiar; cheguei a estudar fotografia, sempre fui muito curiosa e investigava muito, desde a fotografia até o cinema, o filme. Então, fui colocando para fora, aos poucos, esse interesse até eu buscar uma vaga e conseguir. E a fotografia hoje já faz parte da minha vida há quatorze, quinze anos, profissionalmente. Muito bom poder saber que eu consigo trazer um sentimento através dessas imagens. E as mais marcante foram as dos lugares mais fortes, dos encontros mais bonitos que eu tive, que foi na Amazônia. Eu, nesse retorno ao Brasil, e não me encaixando nessa cidade, tentando descobrir: “Gente, onde é o meu lugar depois de rodar o mundo?”. Falei “Ah, vou para a Amazônia, porque essa é a minha saída”. Lá eu fiquei alguns meses, conheci uma tribo em Paris, coisa mais improvável, através de uma colega que me chamou para um evento de tribos do mundo, e através desse canal de um indígena, em Paris, eu consegui esse canal no Acre. E aí fiz um trabalho fotográfico com essa etnia. E depois fui conhecendo outras, e fui ficar duas semanas, fiquei dois meses. Falei: “Uau, o quanto eu tenho para aprender com esses povos, sabe? Que riqueza, profundidade”. Foram momentos muito profundos de troca também, independente de falar ou não Português e perceber como a comunicação pode ser feita de diversas maneiras, a gentileza pode ser traduzida de várias formas. Lembro de que teve uma vez eu estava com manga comprida, calça comprida, por causa de mosquitos, mas aí um xamã, um pajé me chamou para fazer uma caminhada pela floresta para mostrar as plantas medicinais e eu falei: “Ah, vou descalça”. Eu fui lá sentir a terra um pouco, o frescor, um calor danado, umidade, e eu fui lá atrás do pajé. E ele apontando: “Ah, essa planta aqui é para dor de dente, essa aqui é para dor de barriga”. E eu assim, maravilhada, falei: “Uau, farmácia da floresta”. Conhecimento intrínseco, puro, mais profundo, passado de geração em geração. E quando eu voltei dessa caminhada, super encantada, olhei para os meus pés e falei: “Nossa o que aconteceu?” Eu estava com os pés deste tamanho assim, eu acho que fui picada por todos os insetos e aranhas, tudo que tinha lá na floresta que olhou: “Sangue fresco, carioca…”, resolveu me picar. E eu fiquei três dias sem poder caminhar, muita coceira, muita dor, apoiada em uma voadeira, em um barco, com os pés para fora, porque com a corrente da água gelada dava o mínimo de alívio. Mas foi nesse momento que houve um gesto que eu achei super bonito, que esse mesmo pajé fez um banho lá, com mais de quarenta e duas ervas para poder limpar e trazer um pouco de alívio para esses sintomas que eu estava tendo - até febre eu tive. E foi nessa gentileza, nesse sutil ato, que eu falei: “Nossa, isso é muito bonito”. Nem me conheciam, aquelas pessoas nem me conheciam e, no entanto, tinham tanto para doar, sabe? Tanto para fazer, para entregar, para trocar. Eu deixei metade das minhas roupas lá, voltei com a mochila bem leve, só com equipamento. Então, tenho fotos da Amazônia, que foram bem marcantes, tem imagens também, claro, da Amazônia, que foram muito profundas, tanto do lado humano, quanto do lado da Natureza. Foram descobertas incríveis, desde ver aurora boreal ou austral, até uma baleia saltando na minha frente, ou o rabo de uma baleia só, sabe? Com aquele desenho dizendo: ”Eu estou aqui”. Sutil. E ir embora. Então, eu acho que foram esses momentos marcantes que me trouxeram as melhores imagens e as melhores trocas e aprendizados, eles que vão permear para sempre na minha alma. E não só desses momentos na Natureza, ou embarcada, mas também movimentos políticos e coisas que aconteceram na rua. Eu lembro de que, morando em Paris, havia os movimentos dos “indignés”, os indignados, as pessoas que iam à rua para a luta. E eu me lembro de uma menina que estava com uma nota de um dólar aqui, presa na boca, sabe? E para mim isso também foi bem forte no sentido de mostrar até que ponto a gente vai se vender pelo dinheiro, até que ponto a gente vai perder a nossa identidade, o amor pelo outro ou pelas coisas, por causa de uma indústria, um interesse maior. Então isso também foi muito forte no Sudão do Sul. Quando eu cheguei lá, eu vi aquelas mulheres com aqueles panos, aquelas coisas, um cenário de extrema pobreza e dor, sabe? Seringa no chão, gente desnutrida e, no entanto, aquelas pessoas com um sorriso enorme, sabe? Extremamente amáveis. Lembro-me de que eu conheci uma família de sobreviventes do tsunami no Sri Lanka, que também fiz imagens dessa família, aí desse lugar. No Iêmen, também conheci uma família que foi extremamente amável comigo e, no entanto, moravam em uma montanha isolada, mal tinham o que comer. Mas que traziam lá um prato de comida para mim também, eu ficava super constrangida. E essas experiências me fizeram repensar muito a vida e valorizar mesmo o aqui e agora, respeitando todas as etapas de insegurança, de medo, de descobertas e renascer - porque todo mundo tem suas fases de vida. Então, eu digo que renasci depois de tudo que eu vivi, essas experiências e outras práticas também, como meditação, que eu acho que aí já é outra viagem, uma viagem interna. Eu fiz um retiro de meditação, em nobre silêncio, que também foi muito forte e muito bonito fazer, parar no momento e olhar para dentro, sem os estímulos de fora, até mesmo livros - não só internet, telefone, mas livros e coisas que acontecem ao redor. Então, eu acho que tem várias formas de a gente poder se acessar e acessar o outro com olhar sensível e humano, verdadeiro. E eu acho que essa busca é eterna, ela nunca acaba. Estou aí tentando ver qual vai ser o próximo desafio.
P/1 - Eu não sei se essa minha questão tem um pouco a ver com a meditação que você já falou, mas como você processa tudo isso em você? Porque, ao mesmo tempo que deve ser lindo ver uma baleia, tem uma causa por trás de você estar ali, que é evitar que essa baleia morra. E, ao mesmo tempo, quando você vai viajar, tem tanta pobreza, mas tem essa doação das pessoas em relação a você. Como você processa esse tanto de sentimento? Ou como você processava? Não sei se isso mudou também.
R - Eu acho que processar é uma coisa que precisa de tempo, não é uma coisa que: “Ah, ufa! caiu como uma luva, entendi”. É preciso de tempo para entender os sentimentos, ouvir as pessoas, sentir as coisas. Às vezes me vem uma certa situação na minha cabeça, que aconteceu há cinco anos, mas que só agora eu: “Nossa, agora faz todo sentido aquilo”. Então, eu não sei, exatamente, como isso se processa internamente, acho que com o tempo eu vou sentindo isso, vai se encaixando com as situações da vida. E isso vai me levando para alguns caminhos que começam a fazer mais sentido nessa busca pessoal e profissional, porque caminham juntas mesmo. Eu fiz - e eu procuro fazer, sempre - uma jornada onde eu possa estar encaixada nesses valores éticos, encaixada com essas paixões de poder descobrir coisas novas, de poder descobrir coisas novas, de me relacionar com pessoas novas de diferentes... Etnias indígenas, pessoas das Ilhas Féroes... E, através dessas diversidades, ver assim: “Poxa mas no fundo, no fundo, todos somos um, todos somos iguais, a gente sente dor, os animais sentem dor, a gente sente afeto, os animais também cuidam da suas crias, têm afeto”. Então, eu acho que tem muita coisa interligada nesse processo e eu procuro absorver o que fica de melhor nisso. Acho que sempre tem um, mesmo na dor, na dificuldade, tem um aprendizado, tem uma coisa bacana para eu levar para a vida.
P/1 - E a sua mudança para São Paulo, como se deu?
R - A mudança para São Paulo foi uma constatação de que o Rio se tornou um lugar legal para eu visitar e visitar as poucas pessoas que ficaram lá, os amigos que ainda estão morando lá, e até mesmo as novas amizades que eu acabei fazendo no meu retorno ao Brasil. Eu gosto de São Paulo por ser uma cidade que está sempre me desafiando internamente com as Artes, com as pessoas de todo tipo, eu gosto muito de poder estar em um lugar onde tantas coisas acontecem segundo a segundo, o tempo todo. Eu nunca me senti coagida ou estressada em um lugar que eu sei que muita gente pode ficar defendendo o tipo de rotina que tem. Tenho uma sorte, eu acho, porque eu consigo lidar com meus horários e tenho uma certa flexibilidade com o meu trabalho, mas é uma cidade que tem me acolhido muito bem, eu me sinto feliz e, claro, quando eu preciso de Natureza eu vou para o Parque da Água Branca, faço as minhas caminhadas, levo o meu caderninho e encontrei pessoas muito interessantes. Eu acho que a cidade também está diretamente ligada às relações que você faz, nos encontros, as pessoas, e eu gosto muito dessa energia vibrante que São Paulo sempre te dá. E aí, você escolhe o que quer fazer com essa energia vibrante. Então, nesse período em que eu estou aqui - um ano e meio que eu me mudei - estou bem feliz e, por enquanto, até não sei quando, é minha casa.
P/1 - Fale um pouco sobre a sua rotina hoje.
R - Minha rotina hoje é uma rotina sem rotina. Porque posso receber uma chamada de um trabalho e, de repente, vou estar lá no monte Roraima; ou vou estar em Lanzarote; ou vou estar em São Paulo... Então, tem muitas possibilidades. O tempo todo. O que eu gosto de fazer, ao acordar, é meditar - eu tento, me esforço para isso, não sou tão disciplinada mas me faz muito bem, então eu tento me lembrar disso. Procuro ter uma alimentação saudável e praticar atividade física, e sempre procurando trabalhos engajados para poder estar junto e fechar parceria com pessoas que estejam alinhadas com isso, para que eu possa crescer junto com esses projetos e propósitos. E eu vejo que aqui também em São Paulo existe muita abertura para isso, em todos os campos, então tenho tentado me conectar com esse nicho e expandir meus conhecimentos em várias áreas. Porque eu gosto da multiplicidade e de aprender coisas novas. Então, minha rotina é estar buscando sempre estímulos e aprendizados.
P/1 - A gente está caminhando para o fim e eu não sei se você tem alguma coisa que você queira falar que eu não perguntei, ou que eu não estimulei que você contasse.
R - Eu acho que a cada passo que venha movimento de transformação, sabe? Meu desejo é poder usar o meu trabalho e essas ferramentas todas de comunicação para deixar o mundo mais sereno. E enquanto eu estiver viva, eu vou tentar fazer isso com tudo que eu puder, com todas as minhas forças, porque se existe uma coisa que eu sou apaixonada é pela vida, sabe? Ainda com ausências, com dificuldades, eu tive muitos encontros afortunados e passando por muitos lugares incríveis, o que me fez, realmente, perceber a importância da vida. Então, quero continuar vibrando assim, aprendendo mais, conhecendo mais e estimulando mais ainda as pessoas que estão ao meu redor, com missões e organizações ou atividades mínimas do dia a dia. Porque acho que ninguém precisa ir para a Antártida, ninguém precisa ir para a Noruega, sabe? Se a gente consegue ter uma vida equilibrada, respeitosa e tentando fazer o mínimo como cidadão consciente, a gente está fazendo a nossa parte. Então, eu estou aqui para compartilhar a minha história, para mostrar que existem caminhos possíveis para a gente traçar a nossa vida e também para registrar esse amor que eu tenho pelos seres e o meu desejo de cada vez mais usar todas as minhas possibilidades intelectuais ou físicas para lutar por um mundo melhor, não importa se eu vou ser marinheira em um navio do (inint) [02:13:17], se eu vou ser fotógrafa da Vaz ou se eu vou morar em um vilarejo no interior da França. O importante é ter uma... É ter valores bem enraizados. Eu desejo continuar acreditando nisso e continuar trocando com pessoas que também queiram fazer essa mudança. Então, o registro é para isso, para sempre lembrar dessa meta de vida.
P/1 - Eu tenho mais três perguntas, mas antes, meninos... Paulo, você não vai fazer nenhuma pergunta?
M1: Ah, ela já contou tudo.
R - Como é que você sabe que é tudo?
P/1 - É que o Paulo sempre pergunta. Está bem?
P/3 - Não, eu estou bem. Eu fiquei curioso: a sua passagem pela França, o que você fez lá?
R - A França. A França sempre foi um país que me chamou muito a atenção, sempre gostei de poesia e literatura, e tem um charme. Eu pensava na França até como um todo mesmo, sabe? Lembrando da escola, estudando revoluções, e tentava imaginar aquilo, até Paris mesmo, aquela coisa da Torre Eiffel e os cafés, as pessoas caminhando, o charme da cidade. E era um desejo antigo morar na França, especificamente Paris. E então, depois que eu me separei - foi uma separação dolorosa, morava em um veleiro com uma pessoa que compartilhava muitas coisas, desde visão de mundo até um espaço bem limitado, então foi um processo difícil superar a separação - eu achei que Paris ia ser o lugar certo para eu estar e superar essa dor. Então eu fui para lá, tinha alguns amigos lá, mas não tinha a menor ideia do que ia acontecer com a minha vida lá. E eu cheguei e fiz algumas tentativas com galerias, seja para fazer exposições e tal, todas elas não deram certo, não são nomes de pessoas muito ilustres, e tudo o mais, até que eu vi um prêmio da National Geographic, resolvi me inscrever e ganhei. E aí, com esse prêmio, eu consegui fazer uma exposição linda no Jardin du Planty, que é um lugar, um espaço, uma área verde maravilhosa e transitam muitos turistas por ali o ano inteiro - e pessoas locais também. E esta exposição acabou me levando para uma outra exposição itinerante, em Mônaco e Coréen, durante o Festival de Cinema. Então, durante o meu período na França, eu fiz umas palestras, contei um pouco da minha história de mar, de algumas exposições, e até mesmo na exposição em Mônaco o príncipe de Mônaco, o príncipe Alberto II foi - foi uma surpresa e uma honra também. E aí eu olhei assim, dali, o Universo - “Obrigada!. Pode ser que o meu casamento não tenha dado certo, mas que bom que as pessoas estão vendo um pouco desse trabalho que eu tenho feito, e interessadas, e respeitando a minha jornada, e querendo compartilhar isso com outras pessoas”. Foi uma passagem muito rica e triste também, porque eu estava superando o luto de uma separação, porque eu achava... Tinha a ideia do amor romântico hollywoodiano, que é um amor para sempre, meio Blue Lagoon, e na verdade, acabou tomando um outro desfecho, que foi bom também, porque graças a isso eu aprendi outras coisas. Mas foi sofrido e a França ajudou a ser um pouco menos doloroso. Foi uma passagem que eu sou muito grata e, com isso, fiz novos amigos e conheci um índio do Acre, que estava lá, muitas coisas inesperadas aconteceram, encontros lindos. E hoje em dia eu volto, mas só para visitar mesmo os amigos.
P/1 - Que foto que foi premiada?
R - Ah, foi uma... Uma foto com uma tripulante de costas, com os pinguins imperadores, em um bloco de gelo que é considerado continente mesmo, que é a Antártida em si. Foi um dia em que a gente tinha acabado de descobrir que os baleeiros japoneses tinham voltado para o Japão, então foi um dia de celebração. E aí todo mundo voou no helicóptero e chegou lá no... Nesse platô gigante, que é oficialmente a Antártida. E foi nesse momento de muita emoção das pessoas verem esse lugar que eu fiz resgate de um, e roubei um minuto, um segundo.
P/1 - Nuno, não?
P/2 - Nossa, eu estou assim impressionado. Não tenho nem...
P/1 - Então eu vou para as minhas três últimas perguntas. A primeira, o cabelo sempre foi curto?
R - Não, eu tive... Este ano eu tive sete tipos de cabelo, sete formatos, e eu sempre quis raspar o cabelo. Mas eu nunca tive coragem, tinha medo de: “Vão me julgar: ou é lésbica ou está saindo de um tratamento de câncer”. Existem esses códigos, que eu acho horrorosos e... Mas eu sempre quis ver... Me ver em formatos diferentes, e por isso mudei muito meu estilo. Acho que o cabelo é uma moldura, tem tanto desse código social, mesmo do charme quando você vai olhar para alguém, ou se você está com vergonha, quer se esconder, (coloca) [02:19:48] o cabelo assim. Então, tem uma relação interessante dessa coisa do cabelo, como ficar mais feminina, mais moderna, o que… O que é ser moderna, o que é ser sensual, então eu me questionei muito até que este ano eu fui fazer uma viagem na montanha, que exigia muito, fisicamente.
P/1 - Onde?
R - No monte Roraima. E eu falei: “Nossa eu acho que essa é a ocasião perfeita para eu raspar a cabeça. Só que eu não tive esse... Não, vou cortar curtinho e tal, ver como é que fica assim. Mas eu já tive vários cortes curtos, vários formatos, até que, na volta dessa viagem, aí eu raspei mesmo. E foi um sentimento muito interessante de me libertar dessa moldura e me perceber uma outra mulher, sabe? Porque raspar a cabeça é ser você mesmo. Olhei por vários dias no espelho: “Quem é você?” É... E foi muito interessante - está sendo - mas agora já cresceu bastante, vou deixar naturalmente crescer e... Quis me libertar de pintar e criar, coisas assim, eu acho que hoje vai sair uma brincadeira de cortes e tal, mas foi meio que para me testar nesse novo formato. Achei até engraçado, outro dia estava pegando um Uber, o motorista do Uber falou assim: “Nossa, que moderna. Gostei, legal isso aí”. Falei: “Nossa, moço, você foi a primeira pessoa que falou isso”. Porque, realmente, assim... às vezes eu vejo um olhar meio “a rebelde”. Eu estive em Porto Alegre, recentemente, e aí, na mesa - eu estava na mesa com algumas pessoas, não conhecia grande parte das pessoas - disseram: “Nossa, você deve ser esquerdista, cabelo raspado, tal”. E também estava em um outro ciclo de conversa, no Rio de Janeiro, e olharam para mim e falaram “ É, porque as lésbicas trabalham duro, não é? Essas aí, elas mandam ver, não é?” E olhando assim para mim, como se eu fosse dar uma resposta positiva a esse comentário extremamente bizarro, de querer justificar o corte de cabelo com a forma de trabalhar ou gênero, opção sexual. Então, tem sido interessante, várias outras histórias para somar.
P/1 - E como você se sentiu contando sua história hoje?
R : Ah, é uma retrospectiva interessante, dá um frio na barriga falar de si, de se expor. Eu já fiz várias entrevistas e cada uma é uma experiência nova, porque vão surgindo coisas novas e lembranças novas. Eu acho que posso contribuir um pouco com a minha história e quem sabe conhecer outras histórias também e me inspirar com todas elas. Então, eu acho super importante estar aqui, pessoas são especiais, são ricas e podem mudar o mundo, acredito muito nessa proposta, por isso que eu resolvi vir aqui e... Ah, estou bem, estou feliz de ter vindo aqui, vocês são ótimos.
P/1 - E para finalizar então, quais são seus sonhos hoje?
R - É, existe um lugar que eu ainda não pisei, que é o Polo Norte. Eu tenho um sonho de fazer um trabalho com os inuítes, que são os indígenas de lá do Polo Norte e entender a forma deles viverem frente a tantas coisas que estão acontecendo. A Rússia, que já colocou... Fincou uma bandeira no fundo, no ponto mais fundo do oceano e no quilômetro covil de gelo, eles vão explorar petróleo. A China, que já tem trem... Um projeto de trem para poder fazer o mesmo projeto. E, enfim, o Canadá. Então, são os países que querem usar a Groenlândia como um ponto de exploração e finanças no futuro. Então, é... Eu tenho um projeto de um fotógrafo, que ele mostra povos que estão a ponto de se extinguir, que eu me inspiro muito no trabalho dele, é o Jimmy Nelson. E eu fiquei pensando: “Nossa tem tanta... Tanta tribo, tanta comunidade, tantos formatos”. Lá na Níbia mesmo tem a tribo San, eles... Quando uma pessoa fica doente, eles se reúnem e fazem o canto da cura, eles não vão correndo para o hospital. Então, cada forma de comunidade, de se relacionar, é bem fascinante, eu acho bem curioso. E como o Polo Norte é um lugar que eu ainda não conheci, eu tenho vontade, tenho um sonho grande de ir para lá; sonho de publicar o livro, mas está chegando perto de se realizar; e continuar trabalhando com projetos que sejam transformadores, que gerem reflexão, que estimulem as pessoas a usarem suas próprias mãos para fazer coisas, não importa se é no seu bairro ou se é no outro lado do mundo, mas o fazer, sabe? Eu acredito na ação, é o que um, é o que um grande artista chinês, que eu admiro muito - Ai Weiwei - fala, sabe? Eu gosto é de agir, eu acredito na ação, então eu sou muito dessa linha de realizar coisas. E eu escrevi duas séries de TV que eu também tenho vontade de emplacar, eu estou investindo nisso, é um sonho também, eu trabalho como diretora e acho que são os que estão lá em cima, como prioridade.
P/1 - Então, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada. Foi uma delícia ouvir você hoje, mesmo. Muito obrigada, Bárbara.
R - Obrigada a vocês pela oportunidade e que a gente possa continuar ouvindo histórias e estimulando as pessoas a fazerem as suas histórias.
[02:26:00]
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