P1 – Obrigada! Valdete, então, primeiro, além de te dar novamente bom dia, eu queria agradecer a sua disponibilidade pra essa entrevista. Eu não sei o quanto você conhece do Museu, eu vou falar bem rapidamente do Museu: o Museu da Pessoa é um museu de histórias de vida. Então, ele é um museu virtual e, enfim, é composto por histórias de vida que a gente faz, por meio de entrevistas como essa que a gente vai fazer com você. Eu vou ser o entrevistador, vou fazer perguntas desse roteiro e a ideia é que você possa fazer uma retomada, olhar pra sua trajetória, história de vida, relembrar momentos, enfim. Eu vou fazer perguntas, pode parecer estranho no começo, mas desde a sua infância, até o momento presente, certo? E aí também, até, depois, faço o convite pra que você conheça o acervo, o site do Museu, que aí vai ter uma série de histórias de vida, de várias outras pessoas, vários projetos que o Museu realizou, desde mais de 25 anos de história. E esse projeto que você está sendo entrevistada, é em parceria com a Colgate, enfim, que está trabalhando com temas de lógica reversa, relação com resíduos, reaproveitamento de materiais e, em função também de um lançamento de um produto da Colgate, que vai trabalhar com essa lógica de uma embalagem, enfim, que é concebida a partir dessa lógica reversa. Mas, fundamentalmente, o que eu vou te perguntar é sobre a sua história de vida e a sua trajetória dentro da associação. Enfim, a sua trajetória ligada a essa questão, a sua atuação, mesmo, profissional. Enfim, acho que mais do que profissional. Acho que aí se torna também um engajamento de vida, né? Então, é basicamente isso, assim, essa entrevista. Não sei se você tem alguma dúvida, alguma coisa que você queira perguntar antes.
R1 – Bom dia! Obrigada pela oportunidade de estar aqui. Essa embalagem que a Colgate vai fazer vai ser uma embalagem que vai voltar de novo pra cadeia, né? É por isso que ela está fazendo.
P1 – Exato.
R1 – Porque tem embalagens que já não são recicláveis, elas vão embora pro meio ambiente. Essa vai ser revertida, vai voltar pra cadeia.
P1 – Exato. Essa ideia de reaproveitamento pra cadeia. Parece que é um produto que ainda está em desenvolvimento. Não tenho tantos detalhes assim, porque enfim, estou, nesse momento, fazendo essa entrevista pra esse projeto, mas não estou tão a par, a fundo, do projeto. Mas aí eu conheci, tive acesso a um pouco da sua história na associação, enfim e aí a ideia é você também poder falar disso, mas de outras passagens da sua vida. Se tiver alguma pergunta que você não se sinta à vontade pra responder também, tudo bem, não tem problema nenhum. Enfim, a ideia é ser um pouco de uma conversa. Eu vou fazer papel de tentar ajudar a desenrolar esse fio aí das suas memórias, da sua história de vida. Então, Valdete, a gente vai começar, deixa eu ver aqui porque, enfim, normalmente a gente faz essas entrevistas presenciais, aí a gente também tem que se adaptar aos novos tempos aí da pandemia.
R1 – Nossa e como, né? Você viu aí, né, a demora pra eu achar o caminho da roça. Não sei, não estava aparecendo. O microfone não aparecia, eu custei achar, falei: “Meu Deus! Vamos voltar de novo”. Tudo novo, né?
P1 – É, mas mesmo aqui também, tem que ficar abrindo várias telinhas. Tenho que ficar olhando roteiro, tenho que ficar olhando pra personagem, tenho que fazer anotação, tenho que ficar preocupado se não tem ruído de fora, o carro do ovo não está passando bem na hora da entrevista.
R1 – (risos)
P1 – Mas, enfim, a gente se adapta também. Então, Valdete, eu vou dar início à entrevista, propriamente...
Entrei, Maurício, só pedir um pouquinho a voz aqui, só algumas coisinhas que eu vi: Valdete, eu vou pedir pra, ao máximo que possível, você tentar não encostar na mesa, porque está balançando bastante, tá bom?
R1 – Balançando o computador?
É, assim. Aí dá uma coisa que fica feia depois. E outra coisa: eu vou pedir pra você baixar um milímetro a sua tela, só porque a gente está com muito teto acima de você. Aí, está bom. Pode parar. Isso.
R1 – Ih, voltou. Não sei. Olha aí.
Agora ficou perfeito.
P1 – Está bom o quadro.
Bacana, só cuidado com a mesa, senão balança bastante. E outra coisa: na pergunta e na resposta, eu vou pedir pra que vocês deem um pouquinho de intervalo, até por conta dessa coisa da gravação ser no Zoom porque senão, na íntegra, geral, vai ficar comendo um pouco da imagem, porque o Zoom grava quem está falando.
P1 – Ah, sim.
Então, vou pedir pra dar um pouquinho de intervalo entre a pergunta e a resposta, entre a fala de um e do outro, tá bom? Porque senão fica feio no final.
P1 – Tá. Valdete, eu vou fazer também uma coisa: toda vez que eu terminar de fazer alguma pergunta, uma fala, eu vou deixar aqui no mudo, pra também não correr o risco de vazar som daqui no momento da sua resposta. Mas eu vou estar aqui, acompanhando, todo o tempo. Então, pra gente começar, primeiro fazer novamente um agradecimento à sua disponibilidade pra essa entrevista e eu queria que você se apresentasse, falando seu nome, o local e a sua data de nascimento. Nome completo, local e data de nascimento, por favor.
R1 – Meu nome é Valdete Firmina Roza, eu moro em Minas, na região do interior de Minas, João Monlevade. Nasci 1 de julho de 1969. Tenho 51 anos.
P1 – E, Valdete, a cidade que você nasceu foi aí mesmo, em João Monlevade? Ou foi...
R1 – Na época, o hospital aqui em João Monlevade estava cheio. Então, eu nasci no hospital de Nova Era, mas (risos) eu vim pra cá. Quer dizer: eu só fui lá pra nascer e voltei. Quer dizer: eu nasci em Nova Era, mas voltei pra João Monlevade. A vida inteira morei aqui. Há um tempo fiquei dois anos em Belo Horizonte, com minha mãe, quando ela mudou pra lá e voltei pra cá de novo, quando eu casei.
P1 – E quais os nomes dos seus pais, Valdete?
R1 – Meu pai é João Roza, já é falecido e minha mãe é Joaquina Firmina Roza, que tem o apelido de _________ (08:25).
P1 – E o que seus pais faziam? Quais eram as ocupações de cada um deles?
R1 – Meu pai, a vida toda, mexeu com bar, com comércio. Então, ele sempre teve bar, no Centro da cidade. Ele é muito conhecido como João Surdo, porque todos os bares... ele escutava pouco e aí as pessoas, todo mundo conhece. Aqui é engraçado: a gente conhece todo mundo. Mesmo que você não conhece, você conversa. Eu tenho uma experiência de ter morado em Belo Horizonte, eu fico pensando, aqui as pessoas falam assim: “Quem é seu pai?” No interior tem isso, né? “Qual família você é? Você é da família dos Rozas? Quem é seu pai? O João? Conheço demais”. Então, ele tinha um comércio que era conhecidíssimo aqui. É, até hoje o povo fala dele, quando me encontra na rua: “Seu pai era bom demais. Sua mãe. Aquele bar que seu pai tinha lá em frente à Caixa Econômica Federal”. É muito engraçado as pessoas. Eu tenho essa referência de família com os pais que tinham um bar e era muito frequentado, na época. Ainda mais essas comidas mineiras, né, que minha mãe fazia. Hoje são outros bares. Até tem um bar aqui em João Monlevade hoje que tem essas mesmas comidas típicas mineiras, mas na época, a gente era o único bar que tinha canjiquinha de porco e aí a coisa... foi muito famoso na época. Então, eles mexiam com comércio e sempre saíam de um endereço e iam pra outro, com a mesma referência. Não perdiam a qualidade. Depois de um tempo separaram, mas mesmo assim ele continuou com o bar aqui em João Monlevade. Ela foi embora pra Belo Horizonte, ele ficou aqui.
P1 – Então, a sua mãe também trabalhava no bar?
R1 – Sim. Quando eles começaram, eram os dois, depois de um tempo se separaram. Ficaram casados uns vinte anos. Quase vinte anos. E aí separaram. Então, assim, a referência que eu tenho aqui em João Monlevade é dos dois porque, mesmo eles separando, parece que não separou. Todo mundo pergunta da mãe e do pai. Foram muitos anos juntos, né, de trabalho e, como era um comércio, todo mundo conhecia, né? Era muito frequentado, no Centro da cidade. Então, todos dois faziam isso. Quando ela foi pra Belo Horizonte, ela tentou bar de novo, mas não foi a mesma coisa como aqui em João Monlevade. Belo Horizonte é outra história.
P1 – Sim. E você sabe como eles se conheceram?
R1 – Nossa, eu tenho um pouco de... minha memória não é tanto... igual, meu irmão é assim, lembra de tudo, mas ela fala que ela era empregada doméstica, num bairro aqui em João Monlevade, que é muito... um bairro, Aeroporto, onde só tinha médicos e engenheiros e ela era empregada lá e de vez em quando eles... acho que eles se conheceram nessas festinhas que tem no interior e começaram a namorar. Bem tempo, ô. Eu não sei muito da história, eles falam, mas a minha memória é um pouco falha pra lembrar coisas assim, detalhes, mas eu lembro que ela fala que ela era empregada doméstica e eles se encontraram numa festa, começaram a namorar, casaram. (risos) Os primeiros filhos são gêmeos. Eu e meu irmão somos gêmeos. Depois foram os outros meninos, aí o terceiro já não foi gêmeo e tem o quarto, que acabou sendo quatro filhos e três gestações.
P1 – E ambas as famílias eram aí da região de João Monlevade ou vieram de outras partes do Brasil e se encontraram lá?
R1 – Minha mãe era do interior de Dom Silvério, de uma cidade que chama Sem Peixe. É interiorzão, mesmo. Ainda existe, claro. E meu pai era de Dom Silvério, mesmo, da Campanha. Minha vó era ex escrava, ela trabalhava numa fazendona lá, a mãe do meu pai. Ela trabalhava numa fazenda. A fazenda parece que chamava Campanha. Nesse espaço chamava Campanha. Eles moravam lá, na fazenda desse patrão dela. Porque acho que acabou a época da escravidão, mas eles continuaram lá naquela época, morando na fazenda, nessas casas. E eles são de lá, todos os filhos nasceram lá em Campanha, em Dom Silvério.
P1 – E, Valdete, você teve contato com seus avós? Você lembra deles te contarem histórias?
R1 – Minha vó morreu quando eu estava bem pequena, mas algumas coisas o povo fala, porque a família era grande. Eram 18 filhos. O povo tinha muito filho, na época. Apesar que hoje também está tendo, mas não com aquela responsabilidade antiga, né? (risos) Porque antes os pais eram mais rígidos. Então, assim, são 18 filhos e eles falam que, na época, de lá pra cá, teve a época da escravidão, mas eles não saíram da casa do senhor lá. E depois acabou tendo que vir embora, porque como acabou... eles tinham que trabalhar pra comer, sobreviver, eles acabaram vindo pra João Monlevade. E começou a residir aqui. Ela, meu avô. Eu lembro que eles falaram que meu avô veio pra cá com a minha vó e os pais do meu pai criavam porco e ele castrava porco. Eu não lembro deles pequenos, sabe? Mas eles falam que ele castrava porco e todo mundo levava os porcos lá pra castrar. Na época, cidade do interior, as casas eram grandes, tinha quintal e tinha até um chiqueiro. Eu lembro, na casa da minha vó tinha chiqueiro. Final de ano os filhos que moravam... porque a maioria dos filhos, muitos foram pra São Paulo, outros foram pra Goiânia. Era muito filho, né? Cada um foi pra um lado, casou, uns casaram, outros... tenho uma tia que mora em Goiânia, que casou lá, com meu tio lá em Dom Silvério e mudou pra Goiânia e nunca mais voltou pra cá. Em São Paulo foi um monte. Muitos tios meus foram praí. Eles todos são falecidos. Hoje, dos 18 filhos, tem uma tia minha, só, viva, que tem 87 anos. Eles viviam muito. As tias viviam muito. Os tios, não. Os tios bebiam, fumavam. Agora, as tias eram daquela época antiga, então elas viviam muito. A minha tia, agora, que morreu esse ano, tinha 102 anos. A outra ia fazer 103. Morreu de repente, não tinha nada. Fazia docinho. Estava preparando a festa dos 103 anos. E essa outra que morreu agora, 102. E essa mais nova, a filha mais nova, 89 anos. Ela é a única que tem agora. Eu lembro que eles falavam dessa época que eles vieram pra cá, que criavam porco, meu vô castrava porco. É uma coisa assim que eu lembro, mais ou menos. Eles vieram da roça, mas continuaram o mesmo jeito que viviam lá, né? De criar porco, horta, galinha, essas coisas todas. Mas o que eu tenho de mais referência é que ele castrava porco. Todo mundo o chamava pra castrar os porcos deles. Ele também morreu novo. Minha vó morreu mais velha, um pouquinho. Mas ele morreu bem novo.
P1 – E, Valdete, você lembra, enfim, quais eram os principais costumes da sua família ou quais eram os momentos que sua família se reunia?
R1 – No Natal.
P1 – Como eram esses momentos?
R1 – Natal era, gente, até hoje a gente lembra como era. Era muito bom, porque todos os tios que eram de fora desciam pra cá, pra João Monlevade, iam tudo pra casa da minha tia. Não sei como cabia todo mundo lá, mas estava todo mundo lá. (risos) Eu morava no fundo da casa da minha vó, dava pra outra rua. E minha tia também morava lá. A minha tia, que era irmã do meu pai, também teve gêmeos, igual minha mãe. Ela também, quando minha mãe teve os gêmeos, ela ficou doida: “Nossa, que lindo gêmeos!” Aí ela ficou grávida e teve gêmeos também. Ela morava pertinho da minha casa, na mesma rua da minha vó e eu morava no fundo da casa da minha vó. Quando chegava o Natal, o povo de São Paulo descia todo, todos os filhos vinham e faziam aquelas ceias, sabe? Vinha aqueles doces de figo, doce de leite. Todas as tias eram prendadésimas. Inclusive tem umas que moram lá. Uma das filhas da minha tia mora em Carapicuíba. Elas cozinham que é uma maravilha! É uma delícia a comida, gente, eu lembro até hoje. A gente nunca mais conseguiu se reunir, depois que minha vó morreu. A gente conseguiu, reunia, mas não era a mesma coisa, né? A gente tinha aquela coisa: final do ano todo mundo já ficava na expectativa, chegava um, chegava outro, os tios desciam tudo pra cá e a gente fazia aquele Natal. Só passava o Natal junto, sempre o Natal era junto, ali, da família. Juntava todo mundo, todas as tias faziam comida. Nossa, era muita coisa! Muita comida. Eu não sei como a gente... hoje em dia o povo reúne, mas acho mais como protocolo. Lá era uma coisa de satisfação em encontrar a família, primos. Até hoje a gente tem afinidade com alguns primos, mesmo estando longe, a gente foi criado praticamente, todo final de ano, encontrava. Os tios desse... a gente fazia as comidas típicas: tinha doce de figo, de todas as qualidades, fazia frango, peru, matava porco no final do ano. Engordava o porco o ano todo, coitado do porco, matavam no final do ano, (risos) pra fazer a ceia de Natal. Todo mundo fazia isso. Era muito engraçado. Hoje a gente lembra com muita satisfação. Às vezes, quando a gente se encontra... a hora que passar a pandemia, que passar mesmo, porque eu acho que ano que vem nós vamos ter esse problema de novo, essa covid, mas já estamos marcando com os primos, porque os tios morreram todos, sobraram só os sobrinhos e aí nós estamos marcando um encontro de primos, pra gente encontrar lá, porque a minha tinha que tem 89 anos mora no mesmo lugar, do lado da casa da minha vó. Eles venderam a casa da minha vó. A minha casa onde eu morava também foi vendida, mas a minha tia continua no mesmo lugar. Então, quando o povo vem de São Paulo, todo mundo fica ali, porque a referência é a tia Terezinha. Fica todo mundo lá. Nós estamos tudo já na expectativa de fazer esse encontro, depois que acabar essa história. Nós já estamos falando: “Gente, nós vamos fazer um encontrão de primo aqui, vai descer todo mundo”, pra ver se a gente consegue. Aí é legal, uma: a gente começa a lembrar como eram as brigas, as conversas. Nós tiramos, num encontro que a gente fez uma vez aí, até, umas fotos de primos. A geração da geração. Foi bem engraçado, a gente falou: “Essa geração é tal, essa família é tal”. Aí nós colocamos no Facebook, de geração pra geração, até chegar os pequenininhos, que estavam lá nessa festa que a gente fez. Nós estamos querendo fazer uma grandona, pra ver se a gente chama o povo ou então ir pra Carapicuíba, porque o povo de Carapicuíba também está todo lá. Tem um monte de gente, uma família enorme lá.
P1 – Essa pandemia tem que passar logo, viu, pra poder retomar esses encontros. E, Valdete, você lembra como era a casa onde você passou sua infância?
R1 – Lembro.
P1 – Como ela era? Você consegue descrever?
R1 – Eu não sei... tem um rapaz que está morando lá, que mora próximo aqui à minha casa. Ele comprou a casa. Meu pai vendeu a casa há muitos anos. Na verdade, o que meu pai tinha em mente? Ele comprou um lote atrás da casa da minha vó e, na frente da casa, ele fez um prédio. O sonho dele era fazer quatro apartamentos, um pra cada filho. Só que aí ele teve que vender aquilo lá. Um dos bares não deu muito certo, ele teve que começar de novo, aí vendeu a casa, nós ficamos sem. Aí o menino estava falando que a casinha que a gente mora está do mesmo jeito: era piso de cimento liso, nós fizemos um quarto, só tinha o meu quarto, o quarto de mãe, nós fizemos um quarto pros meninos nos fundos, abrimos lá e fizemos a cozinha, uma área de tanque. Eu sei, assim, que era tudo, assim, foi fazendo, até terminar o prédio. O sonho era o prédio, depois. Construímos o prédio e vendemos. Até hoje eu passo lá e eu fico: “Gente do céu, vou ter que comprar uma casa nessa rua”. Dá muitas saudade da rua, porque a gente brincava de pique, ficava até de noite conversando com as meninas na rua e não era igual hoje. Era muito divertido. Hoje eu sou a única que fiquei aqui em João Monlevade. Eu encontro muito com as pessoas que eram da minha infância, que moravam na rua. Às vezes a pessoa me cumprimenta, não lembro quem é e aí a pessoa começa a me falar. Eu fui numa festa uma vez e o menino ficou conversando comigo e eu não lembrava o menino de jeito nenhum. Já não é nem menino mais, um homem mais velho, aí ele falou: “Você não lembra de mim, não? Eu ia lá na casa da minha tia, que era em frente à sua casa. Nós brincávamos de pique-esconde todo dia”. Aí eu falei: “Não lembro, não”. Não lembro mesmo, minha memória é ruim. A gente brincava muito ali, cresceu todo mundo junto naquela rua, sabe? E uma casa simples, que não tinha muita coisa, mas sempre lembro que comida nunca faltou. Meu pai era muito... a gente cuidava dessas coisas. Os pais antigos eram muito rígidos com a gente, né? Dá bobeira pra ver que tomava um __________ (24:34). A casa era bem simples, mas na frente da casa nós começamos a construiu o prédio. O prédio está lá até hoje. O menino até falou comigo, o rapaz, ele chama Igor, ele casou com a menina do dono que comprou lá. Ele está construindo na parte de baixo. É que o nosso pai construiu uma bruta construção. (risos) Não conseguiu quebrar a parede lá, (risos) ele queria mudar o trem. Eu falei: “Mas antigamente o povo gastava ferragem pra fazer uma coisa, uma construção sólida, né? Não tinha erro. Não fazia qualquer coisa, um barracãozinho, fazia uns trens mesmo! E ele lutou muito pra construir. E acabou não ficando com a casa. Até hoje lá... agora é o Centro da cidade lá, então lá está muito valioso, mas eu tenho muita saudade daquela época que eu morava lá. Atravessava a rua pra comprar um pão. Não que aqui seja ruim, porque também moro praticamente próximo do Centro, mas a gente tem a lembrança de atravessar a rua, a avenida, ia lá e comprava um pão. Ia no supermercado e comprava as coisas. Era tudo muito pertinho. E o bar de pai, muitas vezes mãe não dava conta de fazer comida onde morava, a gente ia lá comer no bar. “Vou fazer almoço no bar hoje”. Na hora do almoço a gente ia, tomava banho pra ir pra escola, ia pro bar, almoçava e descia pra escola. Então, foi muito boa aquela época. Tranquilo demais.
P1 – E você está falando um pouco do bairro que, pelo que você está me descrevendo, era um bairro mais central, né, da cidade. Ou se tornou mais central, ao passar do tempo. Eu queria saber como era João Monlevade, o que você lembra da cidade na sua infância e as transformações que foram acontecendo.
R1 – Na infância tinha muitas lojinhas, muita farmácia. Eu lembro que... hoje, agora as coisas estão bem mais digitalizadas, um monte de coisa, um monte de loja nova, mas os donos dos lugares eram todos daqui mesmo, da cidade, então a farmácia... a gente não tinha muito que ir ao médico, o farmacêutico receitava as coisas pra nós. É geralmente um irmão ________ (27:01) era farmacêutico também, tinha uma farmácia lá embaixo, aí o dono da loja de tecidos... ele está lá até hoje, engraçado. Tem muitos que estão no mesmo lugar, outros cresceram, mudaram de casa. Onde era o nosso bar, a dona que era dona do nosso comércio, que nós pagávamos aluguel, vendeu e lá transformou em um supermercado. Depois do supermercado, o cara fez um prédio embaixo, o mercado em cima e montou um prédio. Foi mudando. Onde tinha o outro bar, um prédio também, fez um hotel chiquerrésimo. (risos) Nossa, o melhor hotel que tem aqui em Monlevade. Era um bar nosso também, só que era aluguel, nós também saímos de lá. Na época antiga tinha armazém. Hoje eu compro, lá onde que eu trabalho, carne no açougue que o filho do açougueiro eu conheço o pai dele, que era dono do açougue onde ele está. É o filho mais novo dele. Eu falei: “Nossa, Toninho, cadê seu pai, cadê sua mãe?” “Está tudo lá. Pai já faleceu, mãe está em Belo Horizonte”. Tudo acaba que os filhos vão e voltam. E acabam indo pelo caminho que era do pai, às vezes, muitas vezes. Ou o _________ (28:38), o filho dele tem uma farmácia, igual ele tinha. Muitas coisas mudaram por causa dos prédios que eles colocaram. Muita gente construiu. O espaço aqui é pequeno, mas estão construindo muito prédio. Até hoje o pessoal de São Paulo, quando vêm e voltam, eles veem a diferença: “Esse prédio não estava aí, não. Essa casa foi derrubada”. A maioria das pessoas vendem as casas, porque desvalorizou demais o Centro e aí, como o espaço é pouco, eles constroem pra cima, né? Aí você vê aqueles predinhos. Então, muito prédio agora. Antes eram mais casas, armazéns, farmácia, supermercado era uma vendinha pequena do dono lá. Mas hoje a diferença é bem essa. Mas era muito tranquilo, a gente andava na cidade. O povo não tinha medo de nada. Eu lembro quando eu saía da escola de noite, quando eu estudava sempre à noite, eu e mais meu colega vinha embora, tinha um medo. Medo de quê? A gente cagava de medo. Subia, subia correndo nosso bairro. Ele morava pra cima da minha casa. Ele me deixava no meu portão e subia correndo, com medo. Ele morava lá no alto, subia o morro. Mas era um medo diferente. Não é essa precisão de hoje, agonia. Era muito mais tranquilo.
P1 – E, Valdete, pelo que você está dizendo, a sua família teve mais de uma mercearia, mais de um bar, em diferentes momentos e não era um único bar que sua família administrava. Como é que era?
R1 – Então, o primeiro bar foi o que deu mais dinheiro. Esse bar era em frente à Caixa Econômica Federal. O povo da Caixa todo comia lá, todo mundo e era um bar muito frequentado, muito cheio. Não tinha outro bar. Como era época mais antiga, não tinha outro bar que fazia comida boa. Minha mãe era ótima. Aí ele foi o primeiro. Aí a dona perdeu o espaço. Aí nós tivemos que sair de lá. Aí que a gente foi mudando de endereço, sabe? E aí que acho que foi ruinzinho, porque primeiro acho que o meu pai devia ter tido a oportunidade, devia ser responsável: “Não, eu vou comprar esse espaço” ou não vender, deveria ter dado um jeito de ter criado aquele espaço pra ele. Mas eu acho que ele não pensou, não. Aí nós mudamos de espaço, fomos mudando de espaço. Até pouco antes dele morrer a gente tinha um outro bar, mas sempre no Centro. Eu creio que teve esse, o próximo lá do hotel, depois teve um lá embaixo também. Lá eu acho que eles não construíram nada, não. Lá transformou numa loja. Depois teve outro, próximo a danceteria que tinha lá, foi pra quatro. Depois o último que ele teve, que ele parou depois, que passou mal, teve um infarto, aí ele acabou se abalando. Agora o cara, lá, faz uns churrascos, sabe? Um costelão. Até o povo lembra que pai começou lá no ponto, né? Quando era pai também, dava muito movimento. Mas agora dá mais ainda. Sábado de manhã bomba lá o barzinho do cara, que é no mesmo local, que era o último bar que pai teve. Então, teve uns seis bares. Cinco, seis bares. Foi só mudando, mas nunca saiu disso, de comércio. Por isso que ele é conhecido. Muitos anos mexia com bar.
P1 – E, Valdete, continuando falando um pouco da sua infância, eu queria que você falasse quais eram suas brincadeiras favoritas. Você falou do fato também de ter um irmão gêmeo. Como era essa relação com o irmão gêmeo?
R1 – Era brincadeira. Quando a gente era bem menor, mesmo, que mãe trabalhava no bar, eu lembro que mãe deu umas corridas, porque não podia ficar na rua, mas como é que sua mãe não está em casa e que você não vai pra rua brincar? E, na rua, essa rua da minha vó, eu descia pra casa da rua da minha vó, que era sem saída. O povo todo ia pra lá, todo mundo da rua, a molecada toda ficava brincando, porque não tinha saída na rua, era pique-esconde, queimada, tudo. A mãe falava assim: “Gente, não é pra sair de casa, não”. Todo mundo saía. Na hora que mãe apontava lá na beirada do beco, que chegava, nossa, era uma corredeira! Eu não esqueço disso. “Mãe está chegando”. Papapapapa, corria todo mundo. Aí eu lembro que eu que mais apanhava, porque eu não corria muito, não. Eu corria mais ou menos. E ela: “Nossa, Valdete, foi pra rua, vocês estão brincando na rua?” E eu apanhava um couro. Aí eu lembro que o meu irmão gêmeo se enfiava debaixo da cama, pra não apanhar. E a mãe ia lá e saía puxando-o e dava uns couros nele. “Eu falei pra vocês não irem pra rua, é pra ficar em casa. Vocês estão brincando”. A gente brincava, ia pra rua brincar, esquecia da hora. A hora que via estava de noite já e a mãe estava chegando do serviço. A mãe ficava brava demais. Dava uns couros em nós, era uma correria. Aí nós brincávamos nesse beco, sabe? Era uma rua sem saída: pique-esconde, queimada, bicicleta dos outros, pra cair pra lá e pra cá. A gente ficava o dia inteiro. Mãe não estava em casa, mesmo, nós ficávamos lá. Hoje o povo não deixa os meninos, não pode, tem que levar no psicólogo, não pode deixar sozinho, mas como todo mundo era família ali em volta, se divertia muito. Um corria o olho no outro, lá. E todo mundo, era bom demais. Bem divertido. Agora eu não esqueço dessa corrida nossa na hora que a mãe chegava, era um pega pra capar. Corria todo mundo pra dentro de casa e apanhava demais. “Mas o que você estava fazendo na rua? Eu não falei pra vocês não irem pra rua?” Ele se enfiava debaixo da cama, como que ‘mãe não vai me pegar’. Mãe o pegava e dava uns couros nele. Eu apanhava mais ainda, porque eu era a primeira que apanhava. Não tinha jeito, não. Ninguém morreu, está vendo? O povo, hoje, não pode nem enconstar a mão nos menininhos, que os menininhos morrem, mas ela falava que não era pra fazer e fazia, né? Vamos corrigir e acabou. Mesmo assim fazia de novo, não estava nem aí. Depois esquecia do couro e corria de novo, no outro dia. “Nós temos que entrar antes de mãe chegar, pra mãe não perceber que estamos na rua”. Esquecia da hora e brincava até. Era muito bom. Era muito divertido.
P1 – E a diferença de idade entre vocês, os outros irmãos que nasceram depois, era muito grande?
R1 – Não. Nem tem 49. Era tudo rápido, porque mãe não casou muito nova, não. Ela tinha um trem assim: medo de não ter mais filho, mãe ________ (36:30) rápido. (risos) A diferença maior é do mais novo, que ele tem 41, 43, um trem assim. Pouca diferença. Era tudo escada. E como os dois mais velhos eram da mesma idade, então você imagina: sete, aí o outro tem seis, o outro tem quatro, cinco. Quando cresce tudo junto, nem parece que é idade junta, mas tem pouca diferença de idade. São três, quatro anos, eu acho, porque antigamente o povo tinha os filhos pra... igual a mãe foi cesárea. Antigamente a gente só podia ter três cesáreas. Não sei hoje como que é a história que funciona. Aí diz o médico que só podia fazer três cesáreas. Aí teve três filhos de uma vez, a primeira gestação foi gêmeos, então foram quatro. Aí, já ligou. Três cesáreas. Só podia fazer três, então já tinha tudo, pra sem ficar acima de ter os três, vamos embora, aí nasceu um a mais. Eu vim de carona. Fiquei lá. Eu lembro que eles falavam que eu nasci do tamanho de um franguinho, dois quilos e meio. Agora quem nasceu enorme? Valdo, bonito, todo mundo queria carregar. Eu aquela coisa magrela, raquítica, que parecia um ratinho, ninguém... tinha até medo de carregar, de tão pequena que era, que era muito pequena. Eu falei: “Nossa, Nem roubou todas as energias, todo o peso, todas as vitaminas”. Aí nasceu aquele trem raquítico, que eu peguei carona na gestação. _________ (38:15), não. E eu era bem pequena. Aí, na hora quando meu filho nasceu, minha tia falou: “Nossa, Valdete, esse aí nasceu maior que você. Você era um tiquinho, (risos) que ninguém queria nem carregar, nem dar banho, que era muito pequena. Um tiquinho de gente”. E o povo com medo até de dar banho, que era magrela, pequenininha, dois quilos e meio. E Nem aquele __________ (38:39) de menino, esse sim, fortão, bonito. Eles falam até hoje que eu era muito pequena e que ninguém queria dar banho, porque era pequena, tinha medo de escorregar, de cair, machucar. Era, nossa, pequenininha demais. Ele não, aí todo mundo carregava. Aí a diferença é pouca.
P1 – E, Valdete, você tinha falado um pouco antes, de algumas brincadeiras que vocês, seu irmão, principalmente, gêmeo, brincavam e outras crianças, mas o que você mais gostava de fazer, nessa fase da infância?
R1 – Era isso mesmo: brincar na rua, me divertir. Agora o pique-esconde... tem uma brincadeira chamada queimada, que era bom, que a gente tinha que correr, porque a pessoa tinha que queimar você. Era corrida. E eu era boa pra correr, porque eu era magrela, corria pra danar. E era bom. Essas coisas são boas. Na época, brincadeira de pique-esconde; de corda, pulava corda. Tinha um cordão grandão. Como a rua era toda nossa, né, a gente fazia uma corda bem grande e todo mundo entrava e pulava. A rua era nossa. Até hoje os meninos de lá, os filhos dos meninos que estão lá ainda, são herdeiros, uma meninada, eu falei: “Nossa, que legal! Eu lembro dessa época, não tinha prezinho”. De vez em quando eu vou lá. Com essa pandemia não estou indo, não, porque ela já está mais velha e eu estou trabalhando, é melhor ficar... eu só dou uma ligadinha. No dia do aniversário eu fui, porque _________ (40:37) falou: “Valdete, vem porque ela vai ficar chateada se não for”. Aí eu fui, a vi de máscara e tudo. Estava todo mundo sentadinho lá tomando uma cerveja sem máscara, sem nada, do mesmo jeito. Eu falei: “Gente, vocês esqueceram? Nós estamos em pandemia”. Os meninos: “Não, gente, 89 anos não faz todo dia, não. Está todo mundo aqui tomando os devidos cuidados, não está andando pras baladas, não está fazendo nada errado, não é possível”. Aí a gente foi lá. Aí eu vejo os meninos com a brincadeira legal, tudo lá. Era bom. Essa brincadeira era sadia. Nós brincávamos muito. E meus primos, essa minha tia que morava lá... mãe teve um casal de gêmeos e os dois meninos. Então, ficou quatro. Ela também teve gêmeos a primeira gestação, só que ela teve um menino e uma menina e lá foi diferente, foram duas meninas. Nós éramos quatro. Nós somos da mesma época. Eu fiz 51, a filha dela fez 50 agora. Eles têm quase a mesma idade nossa. Quando nascia um lá, nascia outro cá. As duas casaram igual, na mesma época. Nós somos primos irmãos. Só que eles são clarinhos, porque minha tia casou com um _______ (42:00) bem branco e os meninos nasceram tudo brancos. E nós, não, nós somos negros. Engraçado que as levas de filhos, uns nascem mais escuros; os outros a pele mais clara, mais escura. Meu pai era bem pretinho e minha tia já não era tão negra assim e casou com um homem branco, aí os filhos são todos brancos, mas a gente cresceu juntos nessa infância nossa e os meninos são clarinhos. Até no meu trabalho outro dia uma das meninas falou: “Valdete tem uma prima branca?” Falei: “Tenho”. Aí ela falou: “Nossa, a reputação, Valdete”. (42:47) agora você descobriu que eu tenho gente branca na minha família”. (risos) Eu encho muito o saco deles. Na hora que chega gente branco lá pra fazer os trens, eu falo: “O serviço aqui é pesado, moço, será que o senhor vai dar conta? O senhor é muito clarinho” “Ô, menina, o que é isso?” Quando começou a trabalhar um menino lá, coitado, não estava aguentando o serviço, nossa, branquelo, falou: “Olha, Valdete, como eu fico vermelho na hora que eu estou trabalhando” “É, vamos ver se você dá”. Não aguentou, não. (risos) Saiu, os meninos morreram de rir. “Esse serviço é muito pesado, tem que ser gente de sangue. Negro dá conta, o branco não dá”, eu falava assim pra eles. Era muito engraçado. Aí sabia como é que eu sou, minha prima chegou lá: “Ah, Valdete, eu não acredito que essa menina é sua prima. Muito branca pra ser sua prima. Você é prima de Valdete?” “Primeira, ainda” “Nossa, branquinha, meu Deus!” Encheram meu saco. Até hoje ela fala lá: “A reputação caiu na associação. Agora você tem uma prima...” “Eu sempre tive, gente, ________ (43:55)”. Essas coisas que a Luciane fala. A Luciane é a mais clarinha, branca toda vida e aí eles falam lá na associação, que a gente tem esse negócio de verde, branco. Quem aguenta trabalhar, que não aguenta. Quem fica no serviço, quem não fica. Quem dá conta, né? Tem bem isso, lá. Eu dou mais preferência às pessoas que... eu olho a questão social; se a pessoa tem estudo, se não tem. Eu falo: “Por que você não procura outra coisa? Você tem estudo. Procura outra coisa. Eu conheço um povo aí que talvez você consegue outra coisa melhor”. Aí os meninos ficam falando lá, é muito engraçado. A gente cresceu junto com esse povo, a mistura.
P1 – E, Valdete, nessa fase de infância, tinha alguma coisa que você queria ser quando crescesse? Você tinha um sonho: “Quando eu crescer, eu quero ser tal profissão? Eu quero fazer isso na minha vida?”
R1 – Queria fazer Psicologia, você acredita? Não fiz. Queria fazer Psicologia. Acabei, fui pra outros cantos, na época.
P1 – Eu ia perguntar por que Psicologia? O que vinha à sua cabeça quando você pensava em trabalhar como psicóloga?
R1 – Eu queria saber as coisas, sabe? Como que funciona, como é a pessoa. Essa questão da vivência, da doença ou a pessoa que não dá conta. Sei lá. Eu achava que isso ia me trazer uma informação, talvez, de outras... pra entender o mundo, sei lá, uma coisa assim, entender as pessoas. Eu achava que era isso. Mas aí fui mudando pra outros cantos e eu não seria isso, não. Agora, uma coisa que eu fiz, que eu achei que eu dei bobeira: quando eu terminei o segundo grau, eu tinha que fazer Contabilidade. Eu mexo hoje com isso. Então, eu não obedeci a minha intuição. Em vez de eu fazer Contabilidade, eu fiz Secretariado. Eu vou ser secretária quando? Na época tinha esse curso. Eu fugia da Contabilidade e eu fui parar num lugar que eu faço a contabilidade lá. (risos) Corri, corri e não adianta a gente correr muito do trem. Quando você tem que ser uma coisa, você vai ser. É engraçado. Mas aí a Psicologia nunca mais. Nunca pensei em fazer depois, não. Fiz Administração e agora eu ia até fazer Administração de Empresas, mas o curso está muito caro. A menina me chamou pra ir pra lá e eu achei que a gente ia ganhar uma bolsa, chegou lá a história foi outra. Passei no vestibular, mas eu não quis fazer, não. Muito caro. E o combinado nosso era que eu ia ganhar pelo menos meia bolsa. Chegou lá, ela mudou a história, eu peguei e desisti. E eu fiz um curso de Gestão Empreendedora de Negócios de dois anos, que é curso superior também. Um padre lá de Governador Valadares que me ajudou a pagar a faculdade, sabe? Ele até voltou pra Itália. Ele é italiano. Graças a Deus que me ajudou, que aí eu consegui pagar. Eu fiz. Deu certo.
P1 – E aproveitando a deixa do que você está falando, você falou, um pouco, já da sua formação de escola, qual a sua primeira lembrança de escola? Não sei se você consegue se lembrar a primeira vez que você foi à escola, como é que foi?
R1 – Eu não lembro da escola. O meu irmão é super, sabe? Lembra tudo. Eu lembro que eu não era tão boa como meu irmão. (risos) Tanto que uma vez colocou a gente na mesma sala, a gente tinha a mesma idade, só que ele era muito melhor do que eu, mais inteligente e eu era fraca, aí me tirou. Eu arrumei um escândalo na escola, isso eu lembro, que eu chorei até babar. Tiraram meu irmão da minha sala, nossa Senhora! Chorei demais. Não adiantou nada. Fiquei longe da sala dele, mesmo, até acostumar. (risos) Eu não conseguia acompanhar a turma, eu era fraca, sabe, pra esses trens. Ele era super. Até hoje ele é muito inteligente. Ele sempre passava melhor. Então ele foi pra uma sala e eu fui pra outra. Eu fiquei bem putinha da vida, chorei demais, quando o tirou da minha sala. Isso eu lembro. Agora, o primeiro dia de escola, não. Agora, tem umas coisas muito ruins de professores, que eu não gosto, porque a gente sofre na escola, né? Nossa, a gente era muito discriminado. Não sei se cabe falar, mas os meninos pisavam. Hoje fala de bullying, a gente sofria. Eu e meu irmão. Na hora de nós irmos embora, meu irmão era medroso, eu era valentona, xingava e batia nos meninos. Aí nós saíamos juntinhos, de bracinhos dados e os meninos querendo bater em nós, nos chamando de pretos fedorentos, não sei o quê. Era sofrido e ninguém morreu. Assim, era ruim. Hoje eu acho que o povo está mais fraco toda a conta. Nós passamos muita dificuldade na escola: professores muito secos. Nossa, as minhas eram. As dele eu acho que eram melhorzinhas, um pouquinho, porque ele ficou na sala dos meninos mais inteligentes, que também tinham um poder aquisito maior, então lá era uma sala melhor. Era outra sala. Mas na hora de ir embora a gente passava muita peleja. Os meninos da escola brigavam muito com a gente, mexiam muito com a gente, porque a gente era preto, ficavam arrumando confusão, todo dia nós tínhamos que ir embora correndo. A gente queria que a professora liberasse a gente antes, pra não ficar atormentando a gente, mas ninguém ligava pra isso e a gente era bem sozinho. A gente contava pros pais, mas nem ligavam. É engraçado. Eu nem lembro se eu falava com mãe sobre isso. Acho que eles não ligavam pra essas coisas, não. Mãe trabalhava tanto. Mas tinha uns trens assim. Agora, de professora, eu lembro de uma professora, Dona Terezinha, que era brava demais. Mais é essa coisa de ter tirado o meu irmão da minha sala. E como eu aprendi a ler. Os meninos falavam que eu... a professora acha que vocês são retardados? Eu lembro que eu falava: “A, e, i, o, uuuuuuuuuuuu, professora!” Gente, eu não entendia aquilo. _______ (51:25) falar isso dentro de casa: “Vocês estão achando que vocês são retardados? Por que vocês estão aprendendo a ler desse jeito?” (risos) Até hoje eu não esqueço disso, porque todo mundo: “Professora”. Em casa começou: “Acho que Valdete tem problema, porque na sala dela eles ensinam assim”. Eu acho que, como os meninos tinham mais dificuldade, (risos) a professora tinha que achar um meio de ensinar os meninos a ler. Aí eu lembro disso também. Isso eu lembro. Marcado.
P1 – Você e seu irmão gêmeo eram muito próximos, pelo que você fala, porque, enfim, tem história de gêmeos que não são tão próximos ou que são até incentivados a se separarem, a construírem espaços diferentes, mas vocês, pelo que você fala, eram muito próximos e essa situação da escola mostra isso.
R1 – Era, sim, sempre fomos. Na verdade, é essência nossa. Todos nós temos uma afinidade com ele. Tanto os outros dois, como eu, mãe. É engraçado isso, mas é mesmo. Nós fomos muito próximos dele, desde pequeno. E até hoje. Ele é muito preocupado, liga, conversa, pergunta. A gente está sempre ligado. Desde pequeno a gente sempre foi. Parece que tem gêmeos que nasceram juntos, mas são inimigos de outras encarnações. Eu sou espírita, então eu sempre acredito que tem algo a ver com o passado nosso, de outra encarnação. E aí eu acho que a gente veio junto e não foi à toa. Gêmeos não vem à toa. A gente não veio na família à toa. Todo mundo veio pra se melhorar ali, lapidar. Porque os meus dois irmãos mais novos sempre brigaram, desde pequenos. Incrível! Não é que eles se odeiam, mas eles não se suportam, desde pequenos. Agora, com a pandemia, ele teve que vir embora pra cá. Menino do céu! ________ (53:50) os dois encontrarem um jeito de ficar, porque não estavam nem conseguindo. Um saiu de casa do outro. Desde pequeno eles nunca combinaram. Nunca, nunca, nunca. Eu com Nem sempre combinamos bem, a gente sempre combinou com todo mundo. Nós somos próximos, bem próximos. Quando tem que resolver as coisas, nós que resolvemos. Ele liga: “Valdete, o que você acha? O que vamos fazer com a mãe agora?” “A mãe está boa, graças a Deus, bem de saúde”. Nós nos ajudamos, sabe, um com o outro. Ele saiu e nós ficamos juntos. Nós não desmantelamos a família, assim. Nem por uma questão de aparência, não. Somos nós mesmos que cuidamos um do outro, sabe? Super preocupados.
P1 – E, Valdete, você falou um pouco também da questão racial, que você percebeu na escola. Não sei se você consegue, enfim, me dizer como é a conformação da cidade, por exemplo: a população negra que tem na cidade é numerosa, mas nessa escola em particular não tinha tantas outras crianças negras, como que era?
R1 – Não. É uma cidade mais a população negra, sim, porque como tinha muitas fazendas na época da escravidão, então tinha muito negro, só que tinha muito preconceito racial. Além dos negros, tem os donos, os ricos, que sempre foram ricos, que são os donos da cidade, que são brancos, que têm uma posição social maior. Então, há esse disparate. Aqui tem uma empresa, que é a Arcelor Mittal, que gera trabalho pro município todo. Quem é funcionário da Arcelor, opa. Funcionário da Arcelor. Mas eu lembro que um dos meus primos que vinham de São Paulo falava: “Nossa, tem muito negro aqui”. A gente não percebe, porque a gente mora aqui. Mas a população é mais negra do que branca, por causa dessa questão da época da escravidão. Os negros construíram as coisas aqui, a igreja. Tinha muita fazenda de café, essas coisas, então a população é mais negra do que branca, mas a situação financeira... como fala? Os meios aquisitivos estão na mão dos brancos, a maioria. Isso acho que é normal em todo o Brasil, mas aqui é muito evidente a classe social branca, do negro, que sempre é __________ (57:15) na parte inferior. Sempre teve isso. Aqui a gente vê isso bem. Eu já estou falando do trabalho, falando que as pessoas não acreditam que eu que sou negra, tomo conta da associação. (risos) Às vezes chegam lá e ficam me procurando: “Estou procurando a Valdete”. Aí as meninas não deixam procurar. Muitas vezes eu estou lá trabalhando, estou mexendo nos trens. Essa época agora que eu estou mais no escritório, mas eu sempre fiquei na associação mexendo, separando material. Então, eu estava sempre suja, sempre com luva na mão, mexendo com os trens. Então, a pessoa: “Cadê a Valdete? Cadê a pessoa que trabalha no escritório?” As meninas não deixavam a pessoa passar, rodava o balcão todo: “Deixa rodar, Valdete. Estão procurando você, deixa rodar” “É você, uma negra?” “Ué, por que problema?” Então, as pessoas, às vezes, acham que quem gere a Atlimarjom é a Valdete. Quem não me conhece acha que é uma pessoa branca. Você imagina como a população é! Aqui há um preconceito veladíssimo e um na cara. Igual um moço que chegou lá e falou na minha cara: “Nossa, você? Pensei que era uma mulher branca que tomava conta disso” “Não, sou eu mesma. Pode falar o que o senhor está querendo, precisando”. Você imagina há quantos anos... nós estamos com cinquenta. Quarenta anos, quase quarenta anos atrás. __________ (59:05), mais de trinta anos atrás, imagina só! Imagina agora! Eu lembro que fazia umas piadas racistas lá. Então, assim, hoje a coisa não é bem assim, né? Mas toda vida teve racismo, preconceito. As pessoas: “Nossa, fulano de tal é bom demais. Apesar dele ser preto, ele é bom”. Olha isso! Qual que é, moço, que está falando aí? “Não porque...” Não. Até dentro do próprio empreendimento de catador. Eu fico vendo meus meninos lá... os meus meninos, tudo velhos, tem um rapaz lá que é a minha idade, 51 anos, um preconceito enorme com relação a cor dele. Ele é negro de olho claro, o pai dele parece que era branco e a mãe dele era negra e ele tem olho claro. Ele fala que ele não é preto, não. “Eu não sou negro, não. Eu sou moreninho”. Falei: “Moreninho onde, ‘seu’ Geraldo?” Aí ele casou com uma mulher branca, que não o respeita. Branca, que teve filhos com outros homens, que mora com ele, mas não o respeita e está tudo bem. Beleza. Aí ele gosta dela apaixonadamente. Ela tinha duas filhas e aí ele foi morar com ela e assumiu as duas filhas dela, tinham pouca diferença de idade. Uma tinha um ano ou dois anos, não sei; a outra tinha um ano, as duas pequenininhas. Ela teve três filhas com ele: duas brancas, claras, não são brancas, não, duas clarinhas e uma moreninha linda. Aí, dentro da própria casa, eles preferem a moreninha. A cara dele! Linda. Isso tudo é, sei lá, igual esse pessoal do racismo estrutural. É mesmo. O povo vai lá, tem vergonha de ser preto, acha que preto não é ________ (01:01:14). Eu canso de falar com ele: “’Seu’ Geraldo, para com isso” “Porque Isadora é beiçuda” “Não é beiçuda. Ela tem o beiço igual ao do senhor, tu também é beiçudo, então” “O cabelinho dela...” “’Seu’ Geraldo, para com isso, não fala assim da menina, olha o preconceito que o senhor está falando das meninas”. Aí as meninas são clarinhas, começa a perseguir a escurinha e começa e sabe, eles não têm aquela identidade: eu sou negro, eu tenho orgulho de ser negro. Eles têm problemas. Acho que isso vem de ó... de muito tempo, antigo e é difícil de tirar. Eu canso de falar lá, sabe? Canso de encher o saco deles. Peço pra acordar, não fazer isso, não falar desse jeito, não usar esses termos, mas parece que é uma coisa que está incrustrada, mesmo, que não sai. Isso a gente sofreu muito quando era pequeno, demais e todo mundo, quando a gente começa a contar essa história lá na associação, todo mundo conta uma história de quando eles eram pequenos e que acontecia a mesma coisa com eles. Hoje também acontece, só que hoje é crime, não pode. Mas acontece. Tem gente que odeia a cor e persegue, mesmo. Agora, tem pessoas que já veem com outros olhos, tem pessoas que não. É difícil.
P1 – Pensando aqui em como, naquele momento e em outros momentos da vida, é difícil de entender e aí, passado um tempo, você consegue interpretar, com novas informações. O que você estava descrevendo é bem essa ideia do racismo estrutural na prática, né? E de como vai, enfim, passando por gerações, né? Você falou da experiência de escola, infância. O que você lembra da sua juventude? O que você gostava de fazer na juventude? Você começou a sair sozinha? Como é que foi esse período pra você? Adolescência, juventude...
R1 – Saía todo mundo junto. Eu acho tão engraçado, que todo mundo ia lá pra casa e se arrumava pra ir pra rua. Eu fui numa danceteria. Meu pai não deixava sair, mas os meninos, deixou. Homem. Eu, com 13 anos não podia ir, não, mas os meninos tinham 13 e podiam. Bebia, já fumava. Isso foi ruim pro meu mais novo lá, porque ele, rapidão, bebeu até. Agora tem que parar de beber. E eu lembro que eles desciam lá pra casa. Eu demorei pra sair um pouco, porque pai não deixava, não. Não deixava a gente sair, não. Depois que eu fui ficando mais velha, que ele foi mais ou menos. Mesmo assim, ele segurou bastante. 15, 16. Aí, quando a gente estava na época de sair, eu conheci a Vânia, a __________ (01:04:33), tudo lá pra casa, se arrumava lá em casa. (risos) Acho engraçado, todo mundo ficava lá. Eu fazia um macarrão, elas adoravam meu macarrão. Eu fazia macarrão enquanto nós estávamos nos arrumando, eles comiam macarronada, saía pra rua, todo mundo junto. Era aquele grupo, sabe? Era Fabiano, eu, ___________ (01:04:53) não lembro de estar indo conosco, a Edvânia, a gente saía junto. Não lembro de sair na rua, não.
P1 – E pra onde que vocês saíam, nessa época?
R1 – Hoje o povo fala danceteria, mas lá era tipo uma boatezinha. Tinha uma que chamava Taberna 33, era proibido ir lá. Todo mundo falava mal de lá, que dava muito maconheiro, muito isso, muito aquilo, mas eu era doida pra ir lá. A gente ia escondido, ninguém podia saber. Quando chegava lá, todo mundo estava lá, né? Aí a gente sabia, todo mundo sabia que você estava lá. Era muito engraçado. A gente ficava do lado de fora, esperando. Lá era uma taberna, chamava Taberna 33 e era uma... como que fala? Um caramanchão, sabe, de sapé, que abriu no meio da praça e todo mundo ficava em volta, lá. Uma danceteria no meio, assim. Um som. O povo adorava. Dançava até. A gente já sabia, todo mundo numa turminha, sempre as mesmas turmas: era a Vânia; eu; o Fabiano, Nem, meu irmão Vander, que o apelido era Nem; ________ (1:06:19) eu não lembro se ia. Também não lembro de estar saindo com a gente, não. Eu vou arte perguntar pra ele, porque ele é bem __________ (01:06:27): “Lembra disso?” “Lembro. Era assim, assim e assim”. Mas eu não lembro de ___________ (01:06:35). Depois uma prima... tinha uns primos meus de Sem Peixe, porque minha mãe saiu de Sem Peixe, mas uma irmã dela casou lá e ficou e todos os filhos dela passaram pela nossa casa. Quando a gente era pequeno, sempre precisava de alguém olhando a gente, sempre eles moravam lá. Nessa época era a última, a mais nova da minha tia que veio morar com a gente e a outra. As duas. Uma casou com 18 anos e a outra tinha 13 também, 14, só que ela era um moção. Eu, com 13 anos, não tinha nem... era aquele trem magrelo, ai meu Deus, estou demorando pra crescer. Vou ficar _______ (01:07:14) e ela não, aquele moção bonito. Os meninos ficavam doidos com ela. Sempre saía com ela também. Foi uma época boa também. Aí a gente ia tudo pra lá e chegava lá, se arrumava um namorado, saía pra lá, ficava lá com a turma dos meninos. Foi bom. Tranquilo. Eu lembro disso. Só tinha esse lugar pra ir, que não podia ir. Nós íamos escondido. (risos) Ai, ai.
P1 – Aí também foi local de primeiros flertes, namoros, namoricos?
R1 – É. Namorei pouco. Meu pai não deixava eu sair, não. (risos) E ainda, por fim, quando eu fui, ele liberou pra ir num carnaval... ah, tinha um carnaval maravilhoso aqui, era lá no Caça e Pesca, todo mundo ia. Aí, com 17 anos, eu conheci esse meu marido meu, amado, que eu tenho. Aí não arrumei mais namorado, não. (risos) Eu tive poucos namorados. (risos) As meninas morrem de rir. Porque eu tinha 17 anos, aí meu pai deixou eu ir na festa, pular carnaval. O carnaval do Caça e Pesca era quatro noites. Era um caramanchão lá também. Lá era um clube que era tipo um zoológico, sabe? Não era um zoológico, mas tinha vários bichos e era um clube. E tinha um caramanchão com bar, restaurante e, na parte de cima, tinha os bichos. A gente morria de medo de noite, lá. Os bichos ficavam na parte de cima: leão, via aqueles trens, sabe? Como é que fala? Ficava lá de noite. Eu falava: “Nossa, gente, que horror! Lá no Caça e Pesca os bichos ficam presos”. Tinha uns bichos lá. Agora não tem bicho nenhum lá. Tem uns macacos que vão lá, comer. E tem os lobos, uns trens que vão lá também, ficam ali em volta, caçando comida. Lá tinha cobra, tinha leão, um leão velho lá que eu lembro. E lá era onde minha tia também levava a gente. Essa minha tia que tinha quatro filhos também e a minha tia que tinha um filho só, essa minha tia já morreu, saía com a gente, com todos nós, os oito, minha tia com os dela. A outra tia separou e só tinha um filho. Então, saía Luizinho e mais a turma toda e ia tudo pra Caça e Pesca, fazer piquenique. Na época nós éramos pequenos. Mas depois nós fomos pular carnaval, nunca esqueço. Olha só! Mas aí eu conheci meu marido lá, eu com 17 anos. Não arrumei mais nada, não. Estamos agarrados até hoje. Trinta anos. Só Jesus! (risos) As meninas morrem de rir. Eu o conheci, não arrumei mais nada, não, fiquei só com um, com esse namorado aí. Casei depois, tive um filho. Minha história é curta, sabe, de adolescente. (risos) Poucos namorados. (risos)
P1 – Valdete, você lembra de quando você começou a trabalhar, qual foi seu primeiro trabalho?
R1 – Eu trabalhei numa escola de datilografia, olha só. Antigamente a gente aprendia como datilografava e eu trabalhei lá. Fiz estágio e trabalhei lá, na datilografia. Aprendi a datilografar. Depois, o que eu que fiz? O que eu lembro do primeiro emprego é esse. Tive poucos empregos também, porque depois que eu terminei meu segundo grau, eu fui pra Belo Horizonte, porque mãe tinha ido embora. Quando pai e mãe separaram, eu tinha uns 17, 18 anos. E essa separação foi muito grande na nossa vida, parece assim uma coisa... engraçado que hoje as pessoas separam, mas a gente tem uma outra visão. Inclusive quando o pai casou de novo, eu me lembro que pai falava que... é estranho como a gente vê a separação de pai e mãe, de uma forma muito, não sei, diferente. Todo mundo separa hoje e toca a vida. Separaram e permaneceram no mesmo lugar. Diferente da minha mãe, sabe? Ela não conseguiu sonhar, deixar pra trás o passado e tocar. Ela ficou presa naquilo ali, no momento. E isso foi difícil pra gente. Nessa época eles separaram e nós já não tínhamos mais a casa, ela foi embora, ele ficou aqui, morando num lugar aí, depois ele quis voltar de novo e isso foi bem impactante, eu acho, pra todos nós, foi uma coisa muito... hoje a gente ________ (01:13:05) sempre conversa sobre isso, algumas coisas que aconteceram na época, que ela não conseguiu digerir a separação, de fato. Até hoje ela fala. É como se ela fosse casada ainda. Quando ele morreu, ela achou que ela ia pegar a pensão dele. Sei lá, é uma coisa estranha que ela não consegue desvincular dele, né? Não conseguiu. Separou, mas não separou. Ah, então, eu estava falando de emprego, já fui pro outro lado. Aí, nessa época que eu terminei o segundo grau, eu fui pra Belo Horizonte pra trabalhar, só que aí eu engravidei, (risos) arrumei um filho. Na época esse namorado meu foi pra Itália e ficou lá um ano e meio, quase dois anos. Na mesma época que eu fiquei grávida, ele foi pra Itália trabalhar. Daí, nossa! Eu não tive muita coisa, não. Aí fui pra casa de mãe, não podia trabalhar, aí estava com dezenove, vinte anos, vinte e dois anos nessa época. Na época que eu ganhei o Douglas, com vinte e dois. Aí fui pra lá, não podia trabalhar, como é que ia trabalhar grávida e tal? Eu passei muito mal com a gravidez, minha pressão era muito baixa, aí eu tive que ficar em casa, não trabalhei nesse período. Aí depois Ronaldo mandava, sempre, dinheiro, meu marido, pra cuidar do filho, pagar as despesas, não sei o que, então eu não trabalhava. _________ (01:14:50) danada, mas não trabalhei. Depois que o filho nasceu, ele voltou, aí eu vim morar aqui. Não, aí não vim morar, por enquanto, depois que eu casei, meu marido falou: “Tem que casar, tem o menino, não sei o que”. Tá. Vamos lá, né, criar o filho com o pai, fazer as coisas __________ (01:15:18). Quando eu vim pra cá, passou um tempo, ele abriu um bar aqui mesmo. Quem cuidou do bar? Eu cuidava do bar todo, de tudo, só não dava conta de fazer as comidas direito. Isso ele era melhor na cozinha do que eu e eu cuidava dos negócios. Eu tive um bar e depois, aí veio a oportunidade de, em 2001, a gente ir pra associação. Enfim, vou falar agora, já de uma vez, dela, mas aí eu fui pra lá. Aí que eu fui pra lá. Então, eu trabalhei na adolescência lá nessa datilografia, fiquei com bar vários anos: atendia, comprava, fazia. Falei: “Nossa, corri tanto do bar, achava: ‘Não vou mexer com bar, não’”. Mexi com o bar um tempão, muito tempo. Aí veio a oportunidade de trabalhar com a associação de catadores, não era meu perfil, catação, não sabia nada. A prefeitura de João Monlevade queria montar uma associação, mas ao ver deles, eles tinham que colocar alguém de fora pra gerir. Então, era, na verdade, pra associação ter pessoas da própria catação pra gerir a associação, mas não tinha nenhum catador lá que eles achavam que ia dar, né? Me chamaram pra ir lá, fui, os meninos catadores ficaram meio assim de aceitar, porque eu não era catadora, nem sabia nada, mas aceitaram e fomos trabalhando na construção do galpão primeiro. A prefeitura, primeiro, foi construir o galpão. Formou a associação, tirou os catadores do lixão. O propósito... a prefeitura não fez isso de graça, né? A prefeitura que ia construir o aterro sanitário e tinha que dar destino pros catadores, na época. Tinha 43 famílias que sobreviviam de material reciclado no lixão. E a prefeitura ia fechar o lixão e ia abrir o aterro. Veio uma grana pra construir o aterro e a prefeitura não podia perder essa oportunidade. Mas tinha que dar destino pros meninos que estavam lá, esses 43. Tem uma ata de fundação antiga e nenhum deles mais está lá. Só eu, ________ (01:17:51), não sei se Maria Geralda também estava na época. Sei que poucos lá, eu e mais uma outra lá que somos da antiga. Aí fundou a associação, mas não trabalhou na catação ainda. Nós fomos trabalhar a construção do galpão. Ficamos até 2002 na construção. Nesse período de construção quem não tinha o sustento de fato passou fome, foi caçar outra coisa. Não podia ir pro lixão, teve que procurar emprego. Teve que arrumar uma outra maneira ou então catar nas ruas, porque precisava sustentar a família. Saíram, não ficaram, não. Ficou construindo. Em outubro de 2002 que começou a trabalhar no galpão. Aí que nós começamos com o trabalho lá, reciclar material, aprender como fazer. Eu não sabia nada. Os catadores acharam que eu não ia: “Essa menina não vai ficar aí, não. Não sabe nada”. Mas foi assim: nós conseguimos aprender a separar material. É bom, porque a gente, depois, foi comercializar, sabia o que estava comercializando. E é isso aí. Foi nesse período. Muitos catadores da época não estão lá, mais. E é isso. Eu não fiz muita coisa, assim, fora, não, eu já fui pra lá e aí fui aprendendo lá a minha profissão. Hoje, se for pensar, eu vou sair de lá e vou fazer o quê? Eu estou lá tem 19 anos. É isso. Aí a gente começou lá em 2001, em 2002 inaugurou com poucos catadores, o galpão vazio, não tinha material. Inaugurou e eu não fui pra lá trabalhar e a menina da prefeitura ligou: “___________ (01:20:01) você não vai abrir o galpão, não? Filha, vai trabalhar” “Não tem material” “Vai pra lá, vamos começar a fazer as coisas, tem que ir pra lá. Inaugurou, ué”. (risos) Aí eu fui pra lá. Eu comecei e vamos juntar material, separar material. A gente não sabia nada, foi muita coisa. Fomos aprendendo, mesmo, passo a passo, ali, com os catadores, com o pessoal que veio. A gente foi fazer uma capacitação lá em Itabira. Lá tem uma empresa que é paga pela prefeitura pra fazer o serviço, né? Mas lá é empresa. Aprendemos a separar o material direitinho, que a gente vendia direto pra empresa, né, pra indústria. _______ (01:20:51) nosso material tem uma qualidade muito boa, porque a gente aprendeu a separar, classificar tudinho, mas foi aí, começou em 2001. Em 2002 começaram os trabalhos. O galpão era de madeira, que a prefeitura fez. Demorou pra construir aquelas madeiras. Fez um asfalto na frente. A gente vê umas fotos lá, a gente fica até pensando: “Nossa, como agora está diferente. Agora a gente tem um monte de acervo, né? Cresceu demais”. E o povo vai lá, o povo antigo, fala: “Nossa, o que aconteceu aqui? A prefeitura fez isso?” Eu falo: “Não, a prefeitura não. Os parceiros nossos que foram ajudando, vendo nosso trabalho, nossa luta e foram ajudando e a coisa foi fluindo”. Está bem diferente de quando a gente começou.
P1 – Valdete, eu vou voltar, pra aprofundar um pouco da história da sua atuação na associação, mas eu quero voltar um pouquinho pra algumas partes. Você falou do período que você foi pra Belo Horizonte. Isso foi logo depois de você ter terminado o ensino médio, no meio do processo da separação dos seus pais, sua mãe decidiu se mudar, né? Como é que foi esse período que você foi morar junto com a sua mãe, na capital? Enfim, como foi pra você esse período e, pelo que você fala também, é o período em que você engravida, né? Então, muita coisa, muitas transformações acontecendo nessa fase. Como é que foi esse momento?
R1 – Nossa, foi difícil, porque foi uma época também que eles estavam passando dificuldade, eu não podia trabalhar. Eu passei um pouco de mal, assim. Um período difícil, viu? Porque tem época que é difícil ter dinheiro, né? Trabalha, mas só tinha Vander trabalhando, _______, (01:23:05) mas ganhava pouco também. O outro mais novo. Os dois mais novos estavam lá e o mais velho tinha ido pra São Paulo. Então, a gente recebia ajuda do governo, mas benefício, a gente tinha que pagar aluguel, foi um período bem complicado. E eu não podia trabalhar, ficava muito incomodada de estar na casa de mãe, ainda grávida. Nossa, a mãe me xingou demais. Aí foi assim, um período delicado, porque tinha que ficar lá e fazer as coisas, não passando muito bem. Ah, eu esqueci de falar do nosso... nós tínhamos um filho adotivo nessa época que eu fui pra lá. Na verdade, foi uma coisa, também, que impulsionou mãe a ir pra Belo Horizonte, foi ele, sabe? Mãe foi visitar uma mulher, tinha uma amiga dela que tinha tido filho, no hospital e aí estava na hora dela sair do hospital, a alta dela tinha saído e ela não quis o filho, não. Ela falou pra dar pra mãe: “Vou dar pra ela, ela vai olhá-lo. Eu não quero esse menino, não”. Ela ficou com o menino na mão, sem saber o que fazer. Isso antes dela ir pra Belo Horizonte, antes da separação, antes de tudo. Quando ela foi pra Belo Horizonte, ele já tinha seis anos, sete, cinco, seis anos. E aí ela ficou com aquele menino na mão, no ônibus a menina nem olhou pro menino, não quis o menino, chegou no ponto dela, ela desceu e deixou o menino com a mãe e foi embora. E mãe ficou sem saber o que fazer. O levou pra casa e pai não aceitou, não, porque o menino era branco. (risos) Muito branco. Nós tudo pretinho, com aquele menino branco? Pai ficou com um preconceito danado, não queria, não. Foi uma confusão danada. Mas nós fomos a favor, todos nós. Não devolver, não. Criança não devolve, não. Deu, deu. É bicho, agora? Devolver o menino? Mãe não devolveu, não. Mãe ficou com ele. Depois pai o adorava, depois pai babou, né? Depois ficou apaixonado. No começo, assim, depois o menino ficou lindo. Porque ele era muito pequenininho, ela fez muita coisa pra tirar, sabe? Então, o menino nasceu com muitos problemas, assim. Então, na hora nós não vimos os problemas, não, mas ele teve paralisia cerebral no nascimento e, como antigamente, a gente não fazia o testinho do pezinho, nós não sabíamos. Quando ele teve a primeira convulsão, é que a gente descobriu. Ele sempre tinha convulsão, aí começou a fazer tratamento. Isso ele tinha nove meses, já, já estava andando, mas ele andava mancando. Ele tinha uma perna maior do que a outra. Isso tudo devido a paralisia, mas nós, na época, achamos que não era nada, não, que não tem problema, só que aí o problema dele foi agravando, ele foi tendo mais convulsões, foi parar no médico, tomar remédio, conversando, por isso que mais mãe tinha mais vontade de ir pra Belo Horizonte, pra fazer o tratamento dele, né? Lá em Belo Horizonte tem o Hospital da Baleia, que cuida muito desses meninos. Aparentemente ele não tinha nada, mas ele mancava, tinha uma perna maior do que a outra e tinha convulsão. Tinha que tomar remédio pra convulsão. Gardenal. Começou com Gardenal, depois começou com outro lá mais forte. Cada dia que as convulsões aumentavam, os remédios aumentavam. E aí eu me senti mal de estar lá e não poder ajudar. Mãe tinha que levá-lo no médico, aqui, lá, pra lá e pra cá e eu cheguei lá grávida. Foi muito ruim, viu, colega? Bem, assim, complicado. Mãe ficou bem chateada de eu ter chegado lá, porque era pra eu ter chegado pra ajudar, né? Porque eu estava só esperando eu terminar o ensino médio aqui, pra eu ir embora e lá eu ia estudar e trabalhar, pra ajudar a família, porque nós não tínhamos mais casa, tinha que pagar aluguel, não tinha mais nada. A separação deixou a gente sem nada, também, sabe? Que não tinha nada, nada ficou. E foi difícil. Aí mãe cuidou, cuidava dele, desse Oscar. Oscar era tudo pra nós, nossa Senhora, do jeito dele. E ele é apaixonado com o pai. Ficava abraçando pai na rua, pai morria de vergonha que ele era clarinho, branco toda vida, de cabelo lisinho e falava: “Meu pai, ele é meu pai” e ele ficava todo sem graça, né? Pai negro, com menino branco. Nossa, era doido por pai. Andava a cidade toda com ele e ficava só falando, meu pai e minha mãe: “Eles são meu pai e minha mãe”. Ele era muito inteligente. Ele morreu com sete anos. Mas depois que Douglas, meu filho, nasceu, eu fiquei lá ainda e ela continuou cuidando dele. Só que, além dessa doença, da parte da paralisia cerebral que ele tinha, ele nasceu com uma doença da família, sabe? Degenerativa, que o deixava nervoso, agitado. Ele ficava sem lugar, assim, descontrolado. Isso nós descobrimos depois que ele morreu também, por que o que mãe fez? Começou a olhar pra tudo quanto médico lá em Belo Horizonte. Foi pra Casa da Baleia... os médicos começaram a estudar o caso dele. E ele tinha muita pneumonia, porque os meninos que tomam Gardenal ou qualquer outro remédio que é pra ______ (01:29:34), essas coisas, ficam com a imunidade baixa. Então, sempre eles têm problemas no pulmão, sempre estão com pneumonia. A gente cuidava muito, mas mãe adoeceu, sofreu um derrame, foi parar no hospital ________ (01:29:53) e não pôde ficar, muito, cuidando dele, mas nós fomos cuidando: Nem cuidava, eu cuidava e, nessa época, eu casei e vim embora. Ela ficou meio sozinha, também. Então, passou a gravidez, que era um tumulto, levando Oscar no médico, depois ela sofreu um derrame. À época eu já tinha ganhado filho e já estava indo embora. (risos) Aí, ficou passando muito mal, eu fui lá, eu ia todo final de semana lá, depois que eu mudei pra cá, eu ia muito lá. E meu irmão levou ao médico, eu levei, nós conversamos com o médico: “A febre dele não quer baixar”, mas o médico: “Não tem nada, não, isso é uma febrezinha”, deu remédio. Só que aí, na hora que foi levar, que a febre estava muito alta, aí já não teve mais jeito. Já levamos três vezes no hospital e o médico mandou pra trás. Na terceira vez entrou em coma. Já estava bem adiantado, sabe? Se tivesse olhado desde o começo, desde a primeira vez que a gente foi, talvez não tinha morrido, mas morreu. Ficou em coma uns dias e depois ele morreu. E Douglas tinha o quê? Dois anos. Tem muitos anos, isso. Douglas já está velho. Tem esses percalços: Valdete grávida, Douglas lá, nasceu Douglas, aquela confusão da família, sem dinheiro, imagina! Bem complicado. Eu era pra ter vindo pra ajudar. Eu vim pra dar mais despesa ainda. Eu fiquei bem constrangida nessa época, lá. Passei bem aperto. Eu acho que eu fiquei tão traumática, que eu não arrumei mais filho nenhum na minha vida. (risos) Tive um rapazinho amado, pronto, acabou, porque, nossa, foi duro, porque nós sofremos muitas dificuldades nessa época, sabe? Bem complicado.
P1 – E, Valdete, quando você volta pra João Monlevade, o seu marido também está voltando do período que ele trabalhou na Itália?
R1 – Isso. Ele voltou. Quando o Douglas estava com quase dois anos, ele voltou. Aí, ele ficava indo e vindo, sabe? Eu vinha pra cá, juntava em Belo Horizonte, ficava aqui uns dias, ficava lá. Nessa época minha tia ainda era viva, a outra tia e ela morava na casa da minha vó. Então, eu ficava na casa da minha vó com o Douglas e vinha pra cá, pra ver a família de Ronaldo, o convívio com todo mundo, família. Só que aí, depois de um tempo mãe falou: “Tem que resolver essa vida aí: casa ou não casa. Vai ficar desse jeito aí, pra lá e pra cá, tem que arrumar as coisas, tem que trabalhar, tem que cuidar da vida”. Aí ele voltou pra essa casa aqui que eu moro e nós começamos. Depois que casou eu tive que ir lá, fiquei lá um tempo, uns dias, quando mãe adoeceu. Mãe adoeceu na mesma época que eu casei. Aí meu irmão ficou cuidando dela e eu ia muito lá. Não tinha como trazer pra cá, porque tinha que pagar, não sei, foi muita confusão. Nessa época a gente não tinha tanto... agora, praticamente, assim, trabalho, já tem meu dinheiro, é outra coisa, mas antes não tinha, era bem complicado. Aí mãe ficou, depois que o Oscar ________ (01:33:38), eu vim pra cá, ele trabalhava com algumas coisas aí: vendia Avon, Hermes, não sei o que, vendia um monte de revista, depois abriu um bar, com o bar fiquei mexendo com isso também. O dinheiro era bem pouco. Bom mesmo foi depois que eu comecei a trabalhar _________ (01:34:00). Bom foi depois que a gente começou a trabalhar e teve uma independência financeira, sabe? Aí melhorou um tiquinho. Mas as coisas foram bem duras.
P1 – E, Valdete, eu queria perguntar como é que foi essa experiência de, enfim, você que já tinha essa experiência de ver seus pais, ali, seu pai principalmente, comandando bares, acompanhar essas várias mudanças que teve, de endereço, de repente você e seu marido abrirem um negócio, montarem também um bar, como foi essa experiência pra vocês, pra você em especial?
R1 – Quando o pai tinha bar eu não trabalhava no bar, quem trabalhava eram meus irmãos. Eu sempre cuidei da casa e os meninos iam pro bar. Experiência com comércio eu não tinha. Meus irmãos, desde cedo, foram pro bar com meu pai, entendeu? E eu ficava em casa, cuidando da roupa, da casa, comida, aprendi a fazer os trens rápido, porque eu precisava de alguém em casa pra cuidar dos meninos. Então, eu não tinha experiência com o bar, não e aí foi uma experiência nova, também, apesar de estar dentro do comércio, há muitos anos, com meu pai trabalhando, foi uma experiência nova, diferente. Mas aí que veio a questão de comando. Tem que ter rigidez com as coisas. Comprava as coisas tudo do bar, então tinha que ver o que não tinha _________ (01:35:50) chegava aqui, o Ronaldo ia me chamar: “A Valdete que sabe o que vai comprar”. Eu queria as melhores coisas pra vender, sabe? Aqui no bairro não tinha cerveja Brahma, nem Skol, pra vender. Só tinha Kaiser. No nosso tinha. (risos) Eu fazia questão de comprar refrigerante Coca cola, essas coisas, sabe, boas pra comprar, pra vender e com preço melhor. A menina até falou uma vez que o meu preço era melhor do que o da vendinha, eu falei: “Mas a vendinha compra no supermercado, eu compro do __________ (01:36:28), o cara que me entrega aqui na porta. É diferente, né?” “É. Não pensei isso, não”. Então, foi bom, uma experiência boa, que aprendeu a comercializar. Acabou que eu fui comercializar também na associação, está tudo no mesmo caminho. Nossa Senhora, eu estou fazendo uma análise, aqui, da vida, colega! (risos) Porque a gente imaginava assim que eu comercializava aqui, vendia, punha preço, comprava e aqui era mais ou menos isso. Meu marido ficava de noite, mas de dia eu comprava, limpava, fazia o salgado. Era bem eu. Eu já vinha pra fazer tudo. E quando eu saí daqui, eu já fui direto lá pra associação. Na hora que começou a trabalhar lá, aí eu parei aqui. Aí ele ficou sozinho, saiu fora. Não quis entrar nem num emprego muito tempo. Eu ficava de dia e ele ficava de noite. E ele trabalhava fora, num emprego aqui também, próximo aqui, em Nova Era. Ia e vinha todo dia. Mas no bar, geralmente, era eu que mexia e quando eu saí do bar e o deixei sozinho, aí ele parou: “Não vou aguentar, não. Não aguento ficar com o bar, não”. Aí fechou. Ficou só três meses, depois que eu saí. ________ (01:37:53) tranquilo. O pessoal associava muito eu a pai, conhecia pai e vinha gente aqui que conhecia pai, que já veio do bar dele, os homens mais velhos daqui. Eu acho que foi bom, foi experiência diferente, pra vida, né? Até pra gente ver o que meus pais passaram, o que eles fizeram. A gente só entende o problema do outro quando você o vive. Aí foram muitas coisas, até a questão da Psicologia, que eu queria estudar. A Psicologia foi a primeira história. Às vezes a gente quer entender um assunto e deu pra gente refletir e crescer muito com relação a tudo que aconteceu. Hoje eu já vejo as coisas com outro olhar.
P1 – E você tinha falado que chegou a planejar fazer Contabilidade, né? E aí você, no bar, já estava trabalhando, tinha uma coisa de gestão, mas não só de gestão, porque também tem aquela coisa de atender as pessoas, né? E como é que chegou esse convite pra trabalhar ou enfim, como apareceu essa oportunidade de trabalhar na associação, porque pelo que você falou, você não tinha contato com esse universo de catadores de lixo da cidade. Como é que foi que surgiu essa oportunidade?
R1 – Tinha um moço que morava aqui. Essa casa que ele comprou tem outra casa embaixo. Nós alugávamos essa casa pra uma pessoa. E esse cara tinha se tornado vereador. Não, outra coisa, não é isso, não. Nós fizemos a campanha do prefeito. O outro prefeito que ganhou, que era um radialista, Ronaldo trabalhou na campanha dele, pra ele ganhar, né? Como fala? Aquela campanha de porta a porta, pra doar Kombi, fez tudo pra ele. Então, depois que eles ganharam a eleição e formaram a nova gestão de João Monlevade, tudo, o prefeito, foi que eles ficaram com essa ideia de montar a associação. Como eu tinha trabalhado também na campanha dele, eles falaram que iam arrumar um emprego, tudo e então esse cara que morava aqui embaixo, que trabalhava na prefeitura, chamou pra trabalhar lá, entendeu? Mas eu não fui funcionária pública. Era pra eu trabalhar na associação. Não ia ser funcionária pública, não. Eu tinha que ajudar lá na gestão da associação, seria a ponte de prefeitura e Atlimarjom, entendeu?
P1 – Hum hum. Nesse momento, então, a associação estava, ainda que não fosse da prefeitura, mas vinculada à prefeitura?
R1 – Sim.
P1 – Você é contratada como comissionada?
R1 – Não. Eu entrei como associada. Sempre fui associada. Só que eles precisavam de uma pessoa pra ser a ponte entre os catadores e a prefeitura. De confiança deles. Entendi mais ou menos isso que foi, só que depois as coisas foram mudando, entendeu? Mas mais ou menos isso. Porque nenhum deles tinha estudo. Não tinha nem o ensino médio. Não sabiam ler. Muitos deles não conseguiriam fazer a terceirização do material reciclado, essas coisas todas que teria que fazer dentro da associação. E chamaram eu e mais uma outra menina que seria a presidente, mas ela saiu, depois de um tempo. Realmente, não ficou, não. Ela também tinha ensino médio. Ela não deu muito de ficar, não e eu acho que mais ou menos isso, que a prefeitura tinha uma outra visão. Hoje, depois que eu comecei a frequentar o movimento – eu faço parte do Movimento Nacional dos Catadores também – é que eu fui vendo que a prefeitura fez errado. Ela tinha que ter capacitado alguém deles, mas eles acharam dificuldade em fazer isso. Acharam mais fácil colocar alguém de confiança deles, pras fazer as coisas acontecerem. Tanto que, quando a gente começou, a gente fazia tudo na prefeitura. A gente não tinha computador. Não tinha nada. E eu fazia tudo. Juntava toda a papelada e ia pra prefeitura e ficava esperando a minha vez, lá, (risos) de ser atendida. E aí eu sentava com a Alexandra. Graças a Deus que eu peguei só gente boa, assim! A Alexandra me ensinou tudo. Ela não está mais aqui em João Monlevade, não, ela foi pra Governador Valadares. Era uma funcionária, assim, que me ensinou tudo, que eu não sabia, sabe? Desse jeito: “Valdete...”, foi me ensinando como fazer as coisas e eu aprendi através dela. Se a gente tem uma pessoa boa pra ensinar, você pega rápido, né? E não esquece, nunca mais. Ela teve essa boa vontade, porque ela queria ver a associação fluir. As pessoas ficavam: “Nossa, gente, Você está doida? Não posso ficar sem renda, não”. Todo mundo ficava sensibilizado com a causa, sabe? Mas tinha que ter alguém pra ser a ponte disso tudo. E ficar lá dentro e vivenciar com eles. Porque, pra ter o respeito deles, você tem que, sabe, não pode estar fora. Não pode ser outro. Ser igual a eles. Pra viver, pra conversar, pra falar. Então, assim, foi melhor, foi uma ponte que a prefeitura achou. Nesse caso do Moreira ter ganhado, que foi a primeira gestão dele, em 2001, a gente foi pra lá e eles chamaram a gente pra trabalhar, entendeu? E foi indo. Os catadores ficaram meio assim, receosos, porque ninguém me conhecia e acharam, um catador falou pra mim que eu não ia durar nem 15 dias lá: “Essa menina não vai durar nada, não, coitada. Ela não sabe mexer com nada”. (risos) Ele saiu, eu estou lá até hoje. Até hoje eu falo isso pros meninos: “O moço falou que eu não ia durar, não, né?” Eu o encontro na rua e falo: “Oi, como é que o senhor está? A associação, hein, o senhor falou que eu não ia durar nada, olha só como durou!” “A idade. Não dá, não, é cansativo”. Saiu, mas eu fiquei lá. Eu falo com ele até hoje. De vez em quando eu encontro com ele. Esqueci o nome dele. Eu sempre encontro com ele na rua. Ele trabalhou lá só um tempo, saiu e acabei ficando. E foi assim.
P1 – E, Valdete, antes da constituição da associação, você tinha contato com esse universo de catadores, mesmo por alguma relação com o negócio que você tinha? Qual era a visibilidade do trabalho deles na cidade?
R1 – Nossa, nenhuma, você acredita? Nunca. Nunca tinha tido contato com catador, nem sabia como era. É engraçado. Nunca, mesmo. Nunca teve coleta seletiva em João Monlevade. Nem sabia o que era isso. Meu pai sempre teve bar. Tinha alguns catadores, poucos, na rua, que eram os chapas. Eu tinha conhecimento de chapa de caminhão, que ia lá no bar tomar cachaça, essas coisas, povo que frequentava bar, entendeu? Eu via. Mas catador eu nunca nem imaginava. Não sabia nada, nada. Nada, mesmo. Nem imaginava como era a vida. A gente começou a trabalhar e eu fui vendo a realidade, como era. A questão dos lixões e tudo o mais, sabe? Não tinha nem ideia. Nem fazia ideia de como era. Tanto que eu imaginava que eu ia chegar lá e ia trabalhar no escritório. E não foi bem assim, porque não tinha escritório. Não existia associação. A associação ia ser formada, fundada. Então, foi todo um trabalho. Eu lembro, quando a gente começou, que a gente foi buscar lenha pra levantar o telhado. Ia buscar lenha pra fazer, formar o telhado lá. Fui trabalhando. Uma hora as coisas vão fluir, vamos ver. Aí, na hora que fundou, tudo, não tinha como ir pro escritório. O escritório era lá embaixo, tinha que mexer. Aí vem as picuinhas, o povo. Tinha uma menina lá que era a presidente, falou assim: “Ué, a Valdete não vai mexer no lixo, não?” Falou assim comigo. Ela foi pra uma reunião, escondida de mim, marcou com a Alexandra, falou com a Alexandra que eu não queria trabalhar, não, que eu estava só no escritório, que eu estava só morcegando e tal. Não era, mas, enfim. Aí ela fez a reunião e falou comigo: “Valdete, a partir de segunda-feira você tem que mexer no lixo também, no material reciclado. Não é lixo, não, é reciclado” “Uai, não mexo, porque tem outras coisas pra fazer” “Mas aí você vai fazer lá e cá. O que você acha? A partir de segunda-feira você vai começar a trabalhar lá”. Aí fizeram uma votação com todo mundo e era pra eu ir pra lá. Eles imaginaram que eu ia chegar segunda-feira e eu não ia. Chega segunda-feira também, eu não vinha, dei uma voltinha e fui pra lá. Eles ficaram assim, olhando, falaram: “Ela veio, achei que ela ia embora, correr”. Acharam que eu ia correr do pau. Enfim, aprendi a separar material, foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida, porque eu sei separar material e eu sei vender o que eu estou vendendo, comercializando. Eu ligo pro cara e falo: “Eu estou com Pead” “Pead é de lixão?” “Não” “Pead é como?” “É assim, assim, assado”. _______ (01:48:58) como o meu material é. Até quando os meninos misturam material, eu falo: “Gente, vocês estão misturando material, olha aí. Não, não pode fazer essas coisas, não. Esse material é de melhor qualidade”. Aprendi, fui pro chão... eu falo chão de fábrica, aprendi a mexer com tudo. Agora eu estou no escritório. Agora tem serviço demais no escritório! Tem dia que eu vou lá fazer a triagem e o escritório fica sem gente pra trabalhar e a coisa fica atrasada. Está atrasada, está atrasada. Agora a gente tem computador, tem internet, tem que colocar tudo. Nós temos um convênio com uma associação de plásticos aí de São Paulo que chama Abihpec e nossa produção toda vai pra eles, eles ajudaram a gente na construção do galpão. A primeira vez que eles vieram aqui, eles iam doar equipamentos pra nós, eu falei: “Meu filho, eu não preciso de equipamento. Vem cá, vou te mostrar o galpão. Está caindo, está caindo, está caindo, está quase caindo aquele ali também, está tudo podre. Tem muitos anos que nós estamos aqui, precisa reformar o galpão, tira foto” “Eu vou tirar uma foto, pra mostrar pro meu chefe. Não sei se vai sair, não. Não sei se vai dar, não” “Tira foto de tudo e mostra pra ele. A minha necessidade é construir o galpão”. Deu certo. Aí construímos o primeiro galpão. Derrubamos o outro, construímos outro, depois que o Adriano veio e fez uma outra parte. Ele é todo assim, igual... em primeiro lugar foi uma pessoa que fez, falta só uns pedacinhos pra fechar agora. Cada parceiro foi fazendo um pedaço, mas as coisas foram fluindo, sabe? Deu certo. Mas foi bom demais ter ido pra lá e aprendido e também conseguir respeito do povo. Eu viajei muito com o movimento, em nome do movimento. Nós criamos uma rede de comercialização também, dos catadores aqui da região, o Sistema Catavales, que vem de João Monlevade, são13 cidades: João Monlevade, Nova Era, Piracicaba, ________ (01:51:19), Ipatinga, Cachoeira Escura, Valadares, Teófilo Otoni, Carlos Chagas e agora nós temos Itambacuri, Paratinga e Iapu. Todos eles fazem parte do processo. Não todos comercializam, mas todos estão ali, no processo, na rede de comercialização que a gente queria, na verdade, comercializar direto com a indústria. Nosso material já foi direto pra indústria. Agora que caiu demais a produção. Está todo mundo vendendo material, um pro outro. Mercados, os grandes _______ (01:51:59) vendem o material. Os grandes zeladores aqui de João Monlevade. Os ricos, mesmo. Não dão material pra nós, mais, não. Os supermercados vendem o material, fecham o papelão e vendem. E aí a gente tem a coleta seletiva e os parceiros, né? A Vale é a parceira nossa, que _______ (01:52:23) material reciclado.
P1 – E, Valdete, eu queria que você explicasse... você falou um pouquinho antes de que, pra entender um pouco dessa demanda, que leva à constituição da associação aí em João Monlevade. Porque você tinha falado que apareceu uma verba pra construção de um aterro sanitário e que isso, de alguma forma, também dá vazão pra organização, pra constituição dessa associação. Então, se você puder explicar um pouco desse processo.
R1 – Então, a prefeitura nossa fez um projeto, mandou pro governo do estado, pra construção do aterro sanitário e fechar o lixão porque, na verdade, não pode ter mais lixões, mas muitas cidades ainda têm. E, como tinha 43 famílias lá, que sobreviviam do material e moravam no lixão, tinha que tirar aquelas pessoas de lá, que era uma condicionante pra construção do aterro, entendeu? Não poderia deixar os catadores sem um destino. Você fecha o lixão, os catadores vão viver de quê? Se eles vivem do material reciclado. Por isso que a prefeitura fundou a associação. Era uma das condicionantes pra receber a verba do aterro. Não foi de graça, sabe? Acho que deu pra entender agora, né? Pelo menos uma coisa assim, nesse sentido: “Vocês vão construir o aterro sanitário, mas os catadores não poderiam ficar desguarnecidos, sem renda. Então, vocês têm que formar uma associação dentro do município, além de que vocês têm que implantar a coleta seletiva no município”. Eu acho que o nosso município agiu errado, entre aspas: fundou a associação, mas não implantou a coleta seletiva. Quando o aterro sanitário ficou pronto, não tinha coleta no município. Eles não trabalharam isso, essa dinâmica. E aí ficou defasado. Nós ficamos muito tempo sem uma renda favorável, passando muita dificuldade, todo catador que entrava, saía, não mandou dinheiro, porque não tinha coleta seletiva. Em 2003 a prefeitura fez uma coleta seletiva piloto, plano piloto. O dia que inaugurou o aterro sanitário, eu fui lá e falei: “Nossa, que isso? Caçamba. Vai inaugurar o aterro sanitário sem coleta seletiva”. Estava programado o aterro sanitário pra sobreviver vinte anos. Não vai dar. O aterro sanitário não comporta mais material. Ele não vai conseguir, porque não teve uma coleta planejada, sabe? Ele só fez a associação, pra inglês ver. Mas não. É jabá, como dizem os mineiros. Porque nós construímos e sobrevivemos, entendeu? Isso tem 19 anos. Achou que não ia dar em nada, só que deu. Em 2015 entrou um prefeito que posso falar que ajudou a vida da Atlimarjom. Sentei, ele e o vereador. O vereador queria: “Vamos implantar coleta aqui no município e ver como é que as coisas funcionam, como é que não funcionam, vamos fazer”. Mas não tem dinheiro, não tem dinheiro. Não, a Câmara tem dinheiro e vai devolver pra prefeitura. Na hora que a prefeitura devolver o dinheiro, nós fazemos o negócio. É. Mas como é que é? Vamos conversar com o prefeito. Sentamos com o prefeito de Teófilo Otoni, com o ___________ (01:56:29) e a coisa... uma pessoa ___________ (01:56:32) falou implantar a coleta, nós tínhamos ganhado o caminhão da __________ (01:56:42) o primeiro dia da coleta eu andei até no caminhão. Falei: “Ai, meu Deus, eu não estou acreditando: coleta seletiva. Aleluia! Conseguimos”. Eu fiquei toda feliz e o pessoal nem aí. Acho que porque eu que estava mais ansiosa pra coleta. Esperançosa que as coisas iam mudar. Realmente mudou. Atlimarjom teve outro __________ (01:57:03). Mudou. __________ (01:57:04) coleta. Não tinha coleta seletiva. Chegava material pingado lá. Pingado, como é que sustenta o povo lá, uma associação? Então, foi assim, ótimo. Depois que implantou a coleta, em 2015. Olha, só tem cinco anos que nós estamos com coleta seletiva. Mesmo assim não são todos os bairros, são 23 bairros. Aí, sim. Olha, nós ficamos de 2002 até 2015 na peleja. Entra um governo, sai outro governo, faz uma coleta capenga aqui, capenga ali, pega um caminhão da prefeitura pra fazer, entrou um outro gestor, pôs um caminhão pra fazer coleta, só podia fazer coleta até quatro horas da tarde. Então, assim, foi uma luta, ali, pra conseguir o caminhão, pra coisa fluir, caminhar. Aí, 2015, a coisa fluiu. Agora, 2021, foi mais ainda, porque nós estamos já com a propostinha do final do governo, nós vamos lançar a coleta no resto do município. Aí a coisa vai bombar. E nós vamos poder a coisa __________ (01:58:07) demais, mas agora vai ter coleta no município todo. Aí a coisa vai fluir. Faltam cinquenta bairros, pensa. Tem oitenta bairros. Nós somos 73 bairros. No finalzinho tem 23, só. Então, agora eu acho que a coisa vai fluir. Ano que vem nós já conversamos com a nova gestão _________ (01:58:33), nós falamos pra ele que se ele ganhasse: “Nossa proposta está aqui, da coleta. Nós já temos o caminhão”. Já ganhamos um caminhão novo e aí nós vamos ganhar um caminhão, nós não compramos o caminhão, nós vamos ganhar dinheiro pra comprar o caminhão e vamos lançar a coleta no restante. Então, foi isso: a prefeitura fundou a associação nesse intuito, sabe, de condicionante. A coisa foi fluindo. Só que aí não teve coleta. Nós ficamos bem capengados. Nós ficamos no cano, mesmo, segurando nas barras, pra ver se consegue. E aí que a gente foi conseguindo, aos poucos. E a gente foi tendo capacitação, eu viajava muito com o movimento, das outras estações. Essa questão que você falou aí que os catadores que não conheciam, eu conheci aos poucos os catadores. Conheci catador no Brasil todo: povo de São Paulo, eu conheço povo de Rio Grande do Sul, Paraná, um monte de vezes, a realidade de todos. Aqui mesmo em Minas, em Timóteo, eu conheci um catador lá, na hora que a gente estava no lixão, emocionado, ele falava que ele viveu a vida inteira no lixão com o pai dele. Ele chegava, sentava assim. Levava um susto na hora que eu chegava lá. ________ (01:59:56) tem ainda lixão, ele falava: “Valdete, eu vivi a vida inteira no lixão”. O pai dele era um dos donos lá do lixão. Donos, não. Como é que fala? Ele mandava no lixão. Ele era até pequenininho, vivia lá nos barracões, comendo lixo, tudo. Tinha até uns problemas de saúde, que era do lixo, que ele tinha adquirido. Então, não dá, gente. Ainda tem muita gente lá. Ainda tem muitas pessoas sobrevivendo desse material lá. As prefeituras são muito incompetentes. O ser humano está muito difícil. Está vendo que o povo está ali, sobrevivendo daquilo, vamos embora, vamos montar uma associação, vamos construir. Vamos fazer coleta seletiva, estão jogando material fora, dinheiro. Hoje não tem isso mais, não tem como você achar que isso não dá voto. Eu lembro que os outros falavam assim: “Não dá voto” Como não dá voto? A gente não está precisando de voto, está precisando de mudar uma cidade, limpar o ambiente ________ (2:01:07) da vida, cuidar de gente, pessoa. Eu fico assim... o prefeito de Itaúna... lá a coleta é maravilhosa, o prefeito de Itaúna esteve aqui e falou: “Nossa, Monlevade tem tudo pra coisa fluir, Valdete”. Ele foi lá, comeu bolinho de chuva lá conosco. Nós fazemos comida lá. Nossa comida é maravilhosa. Ele vem aqui só pra comer. A nossa cozinheira é maravilhosa. Nunca vi. Não tem como emagrecer, por causa dela. Ela faz umas coisas maravilhosas. Ele comeu lá. Nós fizemos um bolinho de chuva, ele falou: “Nossa, não esqueço o bolinho de chuva”, sempre que eu encontro com ele. Ele é uma pessoa que tem visão, sabe? Ele fez a coleta seletiva acontecer em Itaúna. Ele falou com nosso gestor, na época: “Aqui tem tudo pra dar certo. Não precisa esperar nada, não tem zona rural, dá tudo certo pra fazer”. Aí _________ (2:02:06) alguns, falta o resto. Vamos conseguir. Ano que vem está no projeto.
P1 – E, Valdete, como é que foi, enfim, esse processo de sobrevivência da associação, até a implementação, começar a implementar a coleta seletiva na cidade e, enfim, se tornar cada vez mais autônoma também, né, da prefeitura? Como é que foram esses anos, enfim, 2001, 2002, até 2015, quando aí a associação começa a ter um outro porte, impulsionado pela coleta seletiva na cidade, com a implementação?
R1 – Nós éramos muito dependentes da prefeitura. A prefeitura doava cesta básica, transporte, pagava água e luz nossa e ela achava que isso aí estava bom. Só que a gente não tirava nem salário mínimo lá. Por isso que era difícil eu conseguir as pessoas pra trabalharem lá. Os catadores ganhavam mais lá fora do lá dentro. Lá dentro eles tinham que dividir o bolo: “Eu ficar aqui pra dividir meu bolo? Não. Quero ir embora”. Trabalhavam um tempo lá e iam embora. Os catadores de rua não ficavam lá. E sempre ficavam as pessoas que eram criadoras e o material, muitas das vezes, não dava pra suprir todo mundo. Então, assim, muito mês, já teve mês da gente ganhar cinquenta reais, cem reais, trezentos reais. Gente, era uma luta!
PAUSA
P1 – Pra gente retomar, você estava falando um pouco desse processo que, enfim, até antes da implantação da coleta seletiva, as dificuldades que a associação tinha pra se manter. Mesmo no período de recurso, as pessoas que eram associadas, os catadores que eram associados, tendo muita dificuldade de ter, ali, a garantia de sustento, enfim, queria que você contasse como foi esse processo, a associação se tornando autônoma e ao mesmo tempo tendo que lidar com essas dificuldades, mas resistindo, sobrevivendo, montando a sua infraestrutura também. Enfim, quero que você continue falando desse processo.
R1 – Quando eu comecei a visitar outros empreendimentos, eu fui vendo as fragilidades que eles têm na relação: quebrou um equipamento, a prefeitura vai arrumar; ________ (2:06:35) nova farda, a prefeitura dá. Eu falei: “Gente, não podemos ficar na mão da prefeitura o resto da vida, não”. E nós, por incrível que pareça, desde que a gente começou, tudo a gente paga, tudo a gente compra com o nosso dinheiro. Então, há um tempo, entrou uma menina novata ___________ (2:06:56) gestões. Entrou uma moça lá que é economista da prefeitura. E ela, funcionária pública nova, tal, a jogaram pra trabalhar com a gente. Ela ficou tão sensibilizada com a condição nossa: “Vocês não ganham nada?” Nós não ganhávamos, mesmo. Nós não ganhávamos nem o salário mínimo. Estava lá tentando, resistindo e aí ela falou assim: “Não, nós vamos fazer o seguinte: vamos tirar uma porcentagem de fundo de caixa, pra vocês se manterem, indiferente de gestão que sai ou entra. Ninguém quis. “Nossa, nós já ganhamos pouco. Vai tirar de nós?” - os meninos falaram – “não tem jeito, não”. Ok. Aí nós fizemos uma pressão pra tirar um valor todo mês, 3%, 5% de capital de giro, pra nos mantermos. Com muita luta, eu tive que conversar muito com os catadores, várias reuniões: “Isso aqui é bom pra vocês. Vamos embora, gente. As coisas têm que ser assim, vocês não podem ficar dependendo de prefeitura” “É, mas quebra um equipamento, como é que vocês vão fazer?” “Estragou, tem dinheiro? Aí tem que tirar do montante todo, não tem dinheiro em caixa”. Com muito custo, eles aceitaram. Nós fizemos isso. Começamos a fazer esse caixa. Uma outra coisa que a gente fez: não pagava Inss. Autônomo. Machucava? Teve uma vez que um menino lá cortou o dedo no vidro. Cortou. Ficou lá. Não foi no médico, no hospital, não foi em lugar nenhum. O trem virou isso, quase perdeu o dedo. Ficou 15 dias internado, ninguém da associação quis pagar esses 15 dias. Eu falei: “Gente, vamos pagar Inss” “Não. A gente já ganhar pouco, já e vai pagar INSS?” Eu falei: “Gente”. Ninguém queria. Chegou um final de ano igual esse aqui, uma menina que trabalhava na prensa falou: “Vou sair desse lugar, esse lugar não dá dinheiro e, além do mais, não paga Inss. Eu quero ________ (2:09:12)”. Foi embora. ___________ (2:09:15). No mês de janeiro eu falei: “Ninguém fica aqui sem pagar Inss. Paga ou sai. Ué, vocês querem o que da vida? Viu que a outra saiu por causa disso? E se vocês machucarem? Tem que aposentar. Daqui a pouco vocês não conseguem empurrar carroça mais não, gente. Para de bobeira”. Comecei a pagar. Muito tarde, mas começaram a pagar. Então, nós temos dinheiro em caixa, pro nosso sustento, pra uma prensa, precisa comprar uma balança, precisa de coisa urgente, nossa comida nós pagamos, porque depois, quando entrou agora, nessa última gestão agora... 2016 que entrou a outra gestão ou 2017? Essa gestão que terminou agora é 2017? 2017, 2018, 2109, 2020. É, 2017. Em 2017 entrou um novo... era esse que está agora, que já tinha sido gestor da Atlimarjom há muito tempo, em 2001, ele voltou com a mulher dele e a nova lei do Mrosc, a lei dos convênios, os catadores não tinham inclusão deles em lugar nenhum ali. Nada dava certo. Então, o que nós fizemos? Ficamos desesperados. Ficamos sem coleta seletiva. Nós fizemos coleta em 2015, em 2017 não teve coleta, três meses sem coleta, porque a prefeitura falou com a gente que não podia ser convênio, mais. Com convênio era assim: a prefeitura não dava dinheiro pra nós, não. Dava cesta básica; cozinha, que nós temos uma cozinha; pagava o nosso vale transporte, nossa água e luz. E __________ (2:11:09) do galpão. Só isso a prefeitura fazia. O resto era nós e a gente fazia a coleta. Com a nova lei, nós não poderíamos ser conveniados mais da prefeitura, tínhamos que ser contratados. Tinha que mudar todo o processo. Mudar o estatuto, mudar tudo. Mudamos tudo. Isso demorou três meses. Três meses sem coleta. “Meninos, voltam pra associação”. Graças a Deus voltaram. E aí nós tínhamos que tirar umas pessoas que não eram associadas, porque não tinha convênio, não tinha nada, como que ia sustentar gente que não era associada? Ficamos com 11 pessoas trabalhando lá. Aí a gente foi vendo que não era o montante de pessoas que fazem o serviço render, sabe? Com poucas pessoas nós estávamos fazendo o serviço. Então, nós mudamos a história. E quando tem problema com a prensa, com documentação, tudo nós temos dinheiro. Até uma menina, outro dia, pegou e falou: “Nossa, vocês são tão independentes! Como é que vocês conseguiram?” Porque nós fomos aprendendo, sabe? Quebrou uma prensa, quem vai arrumar? Nós. Nós mesmos que temos que nos virar. Não tem arame, não. Arame está caro aqui em João Monlevade, oito reais o quilo. Lá em Belo Horizonte é um, vai lá comprar. Então, assim, a gente foi melhorando a situação e, com a visão que a gente tinha de outros empreendimentos, a gente foi vendo que melhor pra associação era ser desvinculada da prefeitura. Entra governo, sai governo e nós não temos nada a ver. Nós somos parceiros do governo que vier, não tem partido, por assim dizer, né? E aí a gente cresceu, entendeu, num sentido. Foi chegando um e dando uma dica, igual essa menina da Economia, melhorou, nós temos um caixa. Beleza. A frente atrapalhou. Teve um mês aí que as duas frentes atrapalharam, gastamos 18 mil assim, naquela peleja pra nós pagarmos. O que eu faço? Eu diluo a coisa, não vou fazendo um trem, não tiro tudo de uma vez, nós vamos conversando: “Preciso comprar isso, aquilo”. A comida a gente ganha, tem muita gente que está dando cesta básica pra gente. A gente faz comida lá. Tem catador que está passando necessidade, ganha muito pouco mesmo: “Senhor Geraldo, arruma uma cesta pra fulano”. Então, a gente vai indo, sabe? Um ajudando o outro, dentro da economia da solidariedade, das pessoas que conhecem o trabalho e dão apoio. Graças a Deus a gente construiu, mas foi muita luta, mesmo. Pra que a gente conseguisse essa autonomia, fomos passo a passo, sabe? A gente quase teve que obrigá-los a fazer. Tem hora que você não pode perguntar muito, não. “Vou fazer”. Igual esse menino saiu, eu o obriguei: “Vai fazer (2:14:10). Vai”. (2:14:14) “Já ganho pouco” “Você ganha pouco e daqui a pouco você não se aposenta nunca mais. Você aguenta puxar carroça até quando?”. Tem uns meninos lá e tem uns velhos aposentados, que já pagavam um tempo atrás em algum lugar, pra trabalhar e voltou a pagar aqui. Agora, na pandemia, ela aposentou. Eu falei: “Gente”. Teve que afastar, porque ela tem sessenta anos e, em meio a pandemia, (risos) se aposentou. Ela tem sessenta anos. Meu povo todo, eu tive muito problema lá, porque todos catadores eram catadores que foram pra catação por uma necessidade, é aposentado, ganha salário mínimo, aí foi pra catação, foi pra lá, era aposentado e catava. O dinheiro não dava, a família é grande, sabe assim? E eles eram velhos, a maioria. Eu tinha muito problema com os catadores velhos, lá. Todos eles eram muito mais velhos, não rendia a produção, não ganhava dinheiro. Aí os novinhos que entravam, falavam: “Não vou trabalhar pra essa velharada, não. Não dá”. E eles não conseguiam ganhar dinheiro. Estava trabalhando pro outro, porque (2:15:34) enquanto o catador ia lá e buscava o materialzinho deles, cansados, não trabalhavam mais. Foi uma medida também que a gente foi trabalhando com o andar da carruagem aí. Muitos foram saindo. O serviço começou a ficar apertado, não estavam dando conta, mais. Aí saíram. Então, foi esse passo a passo, cada dia foi uma coisa. Até eles se conscientizarem que as coisas tinham que ser assim. Hoje é assim: entrou, trabalhou três meses, é associado, tem que pagar Inss. A gente tira Inss do valor do montante. Hoje eles nem sentem, porque eles já tiram mais que um salário, aí já fica mais tranquilo, mas foi bem difícil pra isso inserir na associação, até hoje. Hoje, agora, eles já estão acostumados, mas foi difícil. Tem associação que não paga e não tem dinheiro em caixa. Sai uma pessoa lá agora... eu saio da associação, eu ou um outro presidente qualquer, aí entra uma outra pessoa no meu lugar, eu sou a tesoureira, divide o dinheiro todo que está na caixa. Fizeram isso na associação. Aí a gente fica sem nada, fica dependendo da prefeitura de novo, da ajuda dos outros. É muito complicado. Eu acho que é por isso que é melhor que a gente seja independente. Que aí você não fica pedindo favor. E aí agora você é contratado. Por isso que hoje a gente é contratado da prefeitura. “O dinheiro é ruim, que eles pagam”. Beleza, mas nós somos contratados. Nós somos autônomos agora, nós temos que nos virar. Se acontecer problema no caminhão, é nosso problema. Se acontecer alguma coisa na rua, nós temos que resolver. Então, a prefeitura contrata você pra prestar o serviço. É essa postura que é difícil pros catadores, sair dessa margem de coitado: “Ai...”. Não, não somos coitados. Nós somos prestadores de serviço. Nós estamos aqui pra fazer o serviço bem feito. É isso que eu sempre falo com os meninos lá. No dia que o candidato a prefeito esteve lá, um dos catadores falou isso: “Nós não queremos que o senhor nos veja como coitados, não. Nós não somos coitados, não. Nós somos trabalhadores, merecemos respeito e queremos um contrato decente. Esse contrato não condiz conosco”. Achei bonitinho falar, porque é uma coisa que a gente vai falando, vai falando e acaba que eles reproduzem isso. Achei muito legal. Agora, vamos ver na hora que ele entrar, como vai ser a história.
P1 – Valdete, hoje, quantas pessoas vocês estão, fazem parte da associação? E se eu entendi bem, então, pra além dos recursos que a própria associação gera, as pessoas, hoje, enfim, são contratadas da prefeitura e você tem um salário base da prefeitura? Ou só uma parte...
R1 – Não. Coleta seletiva é paga. A Atlimarjom, a associação é paga pra fazer a coleta seletiva, igual caminhão de lixo não é contratado pro fiscal coletar o úmido? Nós somos contratados pra coletar o reciclado, nos dias da semana que coleta o reciclado. E aí nós temos uma cota de sessenta quilômetros por dia que nós temos que rodar, pra coletar esse material, pra receber um valor X lá, entendeu?
P1 – Entendi. Então, na verdade, a associação é como se fosse hoje uma empresa prestadora de serviço pra prefeitura, que presta esse serviço da coleta seletiva.
R1 – Isso mesmo. A associação é uma prestadora de serviço de coleta seletiva.
P1 – E eu queria perguntar, enfim, agora em vistas, já, de implementação da coleta seletiva em todos os bairros da cidade e uma ponta muito importante nisso é o convencimento das pessoas, da população, pra fazerem esse trabalho de coleta seletiva, fazer ali o descarte correto, fazer já uma seleção prévia desse descarte de todos os resíduos, lixo. Como é que foi esse processo junto a população, a partir do momento que começou a ser feita, implementar a coleta seletiva? Como é que foi essa sensibilização e engajamento da população pra esse trabalho, pra que fosse concretizado esse plano?
R1 – Nós fizemos toda uma planilha de ruas, bairros onde tinha que ser atendido. Antes de implantar a coleta nós fomos, uma semana nós rodamos em todos os bairros. Batemos na porta de cada um: “Dona Maria, eu sou da Atlimarjom, nós estamos aqui pra conversar com a senhora que agora vai ter coleta seletiva no município. O seu bairro foi contemplado com a coleta seletiva. A senhora sabe o que é coleta seletiva? Já sabe ou não sabe? Como separa?” A gente vai falando isso com eles. Entrega o panfleto, conversa com o morador e fala: “Atlimarjom é uma associação de catadores de papel daqui de João Monlevade. Esse material que você vai separar vai gerar renda e trabalho pra ela. Nós não somos funcionários públicos. Estamos aqui pra pedir pra senhora separar o resíduo da senhora, separando resíduo vai gerar mais renda e mais trabalho pra associação”. Aí explica pra ela, se ela não sabe o que é úmido ainda: “A nossa coleta seletiva consiste em úmido e seco. Lixo de banheiro e de cozinha não entra” “Ah, é?” “É” “O que é seco?” (2:22:04) um papelzinho e vou explicando: “Papel, plástico, vidro, tatata. A senhora tem interesse em colaborar com a gente? A senhora não tem? O que a senhora pensa disso?” (2:22:16), sabe? Aí, quando a gente foi fazer rádio, que a gente foi no rádio, também, falar, por fora dos bastidores o radialista falou pra mim assim: “Aqui isso não vai funcionar, não”. Eu falei: “Por quê?” “Aqui, tudo que põe, não vai pra frente” “É mesmo?” Deu super certo, tão certo que entrou 2017 e ele achou que a gente ia ficar em invisibilidade lá na coleta seletiva. As redes sociais bombaram, tá bom, prefeito? Cadê a coleta? Cadê o caminhão? Afinal, onde fica o material? Pensou que simplesmente ia tampar, acabou. Não vai ter mais coleta. Eu acho que ele nem tinha interesse em fazer coleta seletiva. E acabou que a coisa vruuuuuuu, explodiu. (2:23:15) lançaram a coleta em 2015 e fez essa campanha muito bem feita, sabe, porta a porta. Só que depois de três meses sem coleta, nós tivemos que bater nas portas de novo. Ganhamos muito xingo. (risos) A menina que está comigo agora, desde 2015 ela está lá comigo, é engenheira ambiental, ela: “A mulher quase bateu em mim, Valdete. Na hora que eu falei quem eu era, o que eu estava fazendo: ‘Não tem responsabilidade, não? Ficaram três meses sem buscar material’ ‘Porque nós estávamos sem coleta, dona, calma. Eu estou explicando’ ‘Não quero saber, não’”. Bateu a porta na cara dela. Eles tiveram o compromisso de separar, nós não buscamos porque o convênio com a prefeitura tinha acabado e nós não podíamos rodar sem convênio, sem contrato, sem nada. Quem vai pagar a conta? Nós rodamos um mês, pagamos o caminhão um mês, depois não conseguimos mais pagar, não. Era onze mil a coleta. Nós não íamos dar conta. O material não pagava a conta, não. Então, foi isso que a gente fez. Nós fizemos um planejamento de ruas por ruas, juntamos uma turma. Nós temos parceria com a universidade aqui de Ouro Preto, a Ufop, a Uemg, tem muitos, vários, tem o pessoal da prefeitura e, como tem a Uemg e a Ufop, tem um monte de estudante (2:24:44) bater porta, conversar e falar: “Olha, material da Atlimarjom”. Antes de sair de lá a gente conversava sobre isso. A gente fala isso também com a Abihpec, que arruma, disponibiliza uma van pra levar a gente, pra conversar com os moradores. Então, tudo isso é um processo, porque senão não consegue, não, sabe? Só lançar a coleta e tatata, não. Você tem que ir lá e conversar com eles e falar pra onde que vai isso. Pra onde está indo isso, qual é o objetivo, quantas famílias sobrevivem desse material. Hoje a gente está com 16 lá. Ontem estava até olhando, saiu mais um menino agora, que os meninos são meio (2:25:22), vão, trabalham, depois vão embora. E nós estamos com duas afastadas, com a pandemia. São mais velhas, uma é diabética, a outra é bem velha, está com 78 anos, a outra de sessenta voltou e falou: “Ah, não vou ficar em casa mais, não. Não aguento mais”. Já tinha ficado viúva há pouco tempo, ela estava ________ (2:25:45) depressão. Eu falei: “(2:25:48) só a senhora cuidar, usar os trens direitinho: máscara, luva, tudo direitinho, a senhora vai fazer?” “Vou”. Ela usa tudo direitinho, sabe? É toda cuidadosa. E aí ela voltou. As outras duas não voltaram ainda e aí eu estou com 16 lá. Os meninos. Mais meninos, mais jovens, que o povo está sendo desempregado. Então, na pandemia, a gente trocou de pessoas, trocou as pessoas mais velhas pelas mais novas e elas aprenderem a mexer, trabalhar com o material, coisa que nunca imaginava mexer. Hoje eu estou achando bonitinho um que entrou na pandemia. Na hora que começou a pandemia, eu liguei pra ele, falei: “Esse menino vai querer trabalhar. Eu me dei muito bem com ele”. Aí olhei pra ele assim: “Você tem certeza?” “Claro, estou precisando”. Mas ele olhou assim o galpão, achou meio estranho, eu falei: “Não, não vai ficar, não”. Os meninos não deram nem 15 dias pra ele. Está lá tem quase nove meses. (risos) Outro dia estava me explicando o material, como separava. Eu falei: “Ahn? Nossa, já sabe tudo! (2:26:56) rapidinho”. Na hora que chega, assusta, mas depois aprende a separar. E já vai estar falando com propriedade como que é, como que não é. Agora entrou um novato lá, ele que está explicando como faz, mas foi bem desse jeito, passo a passo. Tudo planejado. Por isso que essa nossa coleta que nós estamos agora (2:27:18) está tudo lá também (2:27:20) bairros. Lá tem um mapão nosso e nós estamos vendo que é outra cidade que nós vamos fazer, assim (2:27:27) muita coisa. Nossa coleta é nos bairros nobres. Agora nós vamos implantar nos bairros, mesmo, periferia e aí nós vamos ter um grande problema: catadores vão roubar nosso material. (risos). Aqui no Centro os atravessadores roubam nosso material na hora que está tudo prontinho, na porta. Imagina lá, que tem um monte de catador. Na hora que eles verem que tem material na rua não vão querer ou não vão querer separar. Ou então igual muitos tem bairro lá em cima que (2:28:01) tinha um rapaz que falava assim: “Eu não vou separar, não. Eu não separo pra eu vender, eu vou dar pra eles? Eles já são ricos, já. Eles são funcionários da prefeitura” “Não são, não, moço”. Então, assim, é tanto trabalho de educação ambiental, começar, explicar pra que, qual o objetivo, aí separa. Mas, se não for assim, não separa, não.
P1 – Valdete, eu quero fazer mais duas perguntas sobre, enfim, a associação, uma que é uma perspectiva pessoal e outra que eu vou fazer agora, que é um pouco mais olhando pra categoria. Nesse tempo, são 19 anos já, como é que você percebe essa mudança de olhar nesse trabalho, que você falou que é também de educação ambiental? Como é que você observa, ao longo desse tempo, essa mudança, uma maior visibilidade, um maior reconhecimento público pra essa categoria dos catadores e também em termos de uma maior autonomia, em todos os sentidos, de hoje as pessoas poderem entrar, trabalhar nesse setor e ter uma garantia de um sustento? Você falou de um período de dificuldade, de que era muito difícil conseguir ter o sustento próprio via associação e hoje as pessoas têm, ali, uma renda minimamente garantida. Então, essa visibilidade pública mudar um pouco do olhar pra esse trabalho e em termos, também, de maior empoderamento, maior retorno financeiro. Como você acompanha essa transformação?
R1 – É assim: eu passei por todas, né? É bem, eu acho, um aprendizado, né? Ainda mais que agora que eu estou falando com você e falando da época de antes e de hoje, falando demais, porque acaba que a gente fica pensando: “Nossa, realmente tem um crescimento muito grande de lá pra cá, depois de 2015 que a coleta, realmente, foi implantada, as coisas tiveram um outro olhar. Depois que eu comecei a participar dos eventos, o Movimento Nacional dos Catadores, um outro olhar. Então, foi tudo, essa questão do empoderamento, através do passo a passo também. Então, a gente foi tendo outros olhares com relação a coleta seletiva, aos catadores, ao poder público, a responsabilidade com a coleta, com o resíduo. Fomos aprendendo juntos qual seria o melhor caminho. Foi um aprendizado. Eu vejo isso. Se eu não tivesse participado do Movimento Nacional de Catadores e hoje até eu participo de discussão de gênero e negros também, então a gente vê quanto todos os empreendimentos de catadores é mulher que comanda, é mulher que toma a frente, é mulher que fica na associação, é mulher que está preocupada com a lata que está vazia. Os homens, geralmente, não ficam. (2:31:44) também. Ficam um tempo: “Ah, não, isso aqui é muito pesado”. Vai embora. As mulheres, não. Ficam ali, firmes. Com garra, preocupadas com alimento, com a luta do dia a dia. Uma luta de ser, mesmo. Engraçado que às vezes a gente fica imaginando que não, mas é uma luta diária, de trabalho, de conhecimento também da liberdade, de empoderamento. É por aí. Eu não sei se eu estou conseguindo responder o que você está falando. As perguntas todas que você fez, você fez objetivas. Essa aí você largou, você soltou e aí eu fiquei assim: “Como é que eu falo?” (risos)
P1 – É, eu tive, também, uma dificuldade de formular essa pergunta, porque aí também não é uma pergunta que é tão direta pra você, né? E aí é um pouco de você olhar... é que eu fiquei pensando muito que é uma classe que ainda é muito estigmatizada, mas que, pelo que você fala, até também por ter uma maior capacidade de autonomia financeira e por conta desse reconhecimento social da importância do trabalho. Eu imagino que tem um outro olhar social pra essa categoria, né?
R1 – Sim. Tem. E quando você tem empoderamento e desvincula essa questão do coitadinho, (2:33:27) ganha nome. É isso que eu estou falando, que quando tirou a coleta, que eles viram que não tinha coleta e que a gente era capaz: “Eles são capazes, conseguiram”, isso tudo acho que cria uma visibilidade diferente pro catador. Hoje as pessoas não veem catador como coitadinho. Hoje eles veem o catador... claro que tem ainda muita discriminação, mas as pessoas têm outro olhar com relação a catação, a associação, ao movimento de catadores. O Alex sempre fala lá: “Agora a catação não fica só na catação”. Ele está estudando pra melhorar, pra fazer alguma coisa melhor pro povo, em prol da classe. Estão preocupados em melhorar isso. Antes a prefeitura colocava um técnico pra tomar conta. Não. Agora o catador está se virando, está estudando, melhorando, está procurando os meios. Então, eu acho que a visibilidade pro poder público, pra sociedade, é diferencial. Tem ainda alguns percalços, mas já melhorou muito. A gente está com uma outra visibilidade, no andar da carruagem.
P1 – E a pergunta que eu queria fazer, mais voltada pra você, é pensando que, enfim, você se envolveu nesse movimento, não só na cidade, mas pelo que você falou, em outras partes do país, foi conhecendo essa realidade em diferentes partes e o que representou pra você ter esse envolvimento e se colocar também numa posição e se ver também numa posição de liderança, enquanto mulher negra? Como que, pra você, quando você olha pra esse processo, o que significou, o que representa pra você?
R1 – Nossa, representa demais, muito. Nós estamos sem viagem muito tempo, desde que... eu trabalho com projeto sociais todos, inclusive agora, nesse governo terrível aí, mas quando a gente tinha dinheiro e estava podendo visitar os outros... quando você vai num empreendimento e você vê que tem uma coisa que você não tem, você fica (2:36:16) aquilo pra dentro: “Ué, catador lá está tirando tantos reais a hora, por que eu não posso fazer isso também? Eu vou trabalhar pra melhorar isso”. Então, foi um crescimento muito grande, pessoal, profissional porque, quando você aprende, esse aprendizado que foi dentro do empreendimento, do trabalho, da vivência, ninguém te toma, não. Aí eu vejo a pessoa chegar lá e falar muitas vezes: “Valdete”. Aí começa a conversar: “Você sabe isso? Como é que você sabe isso?”. Falei: “Eu aprendi no caminho alguma coisa”. Então, assim, é um aprendizado pessoal que ninguém tira. É uma coisa que é um melhoramento pessoal da pessoa como ser humano. E aí você consegue outras coisas, consegue melhorar tudo em frente de um empreendimento, como você melhora você na direção e todos os empreendimentos, você pode ter certeza, tem uma mulher que está dirigindo. A maioria são mulheres negras periféricas. A maioria é. No meu caso eu não sou da periferia. Eu sempre nasci aqui. Outro dia eu até falei pros meninos, chegou um menino lá que eu não conhecia: “Você não conhece?” “Gente, eu não nasci lá, eu nasci aqui, eu não sei direito como funciona (2:37:50)”. Todos eles são da periferia, são periféricos. A maioria é. Eu que fui pra lá de intrometida (risos) e fiquei, mas é uma história só. Aprendi muito. E isso que foi bom. Deu certo. Está dando, né?
P1 – Que bom! A gente vai pras perguntas finais, eu queria perguntar, enfim, ainda a gente está nesse contexto de pandemia, a gente falou disso em alguns momentos, mas de que forma a pandemia impactou a sua vida na Atlimarjom, mas pessoalmente também tem muitos impactos aí, mas como é que a pandemia está atravessando a sua vida?
R1 – Nossa, no coração. (risos) Deus me livre! Quando entrou, eu fiquei muito apavorada, desesperada. Tive uma reunião lá na associação, o primeiro impacto meu na associação, porque eu não sabia o que fazer com o pessoal, principalmente os mais velhos. Eu não queria pô-los em risco, mas tinha a sobrevivência. Aí fiz uma reunião e pus isso: “Gente, ___________ (2:39:17) pandemia. O que nós vamos fazer? Quem é grupo de risco vai ter que ficar em casa e quem vai ficar, vai trabalhar? O que vocês vão fazer? Vocês querem ficar, não querem? Vocês que vão decidir. Quem não quiser ficar, vai pôr outra pessoa pra trabalhar. Eu vou ficar, (risos) porque não tem como a gente parar”, mesmo sabendo do risco, porque uma coisa invisível, estava pensando isso outro dia. O sobrinho do meu marido está com covid. Ele ia pra Belo Horizonte, fez o _________ (2:39:51) e deu. Aqui não tem muitos casos. Não tinha. Mas eu acho que eles estão abafando um pouco, por causa das eleições. Agora apareceu um monte de casos, mas a boate abriu, todos os bares estão abertos, o povo não sai do boteco, dos lugares, da boate. Então, é complicado. As igrejas estão abertas. Quando fechou tudo, deu uma paradinha. Aí não deu muito caso, acharam que não ia dar caso. Só que agora tem caso, estão morrendo muitas pessoas. Estão meio assustados. Aí fechou tudo de novo. Os bares não fecharam todos, não. Mas ____________ (2:40:33). Boate fechou. Ia ter o réveillon na boate. Aí os meninos cortaram tudo. Então, assim eu fiquei muito com medo. Me deu medo, do que ia ser de nós. Aí até para gente ver qual a importância de quem é importante de fato, porque agora ajuntou. Claro que as pessoas: “Não posso ver fulano, não posso ver sicrano”, mas quem é importante, de fato, pra você ver? Quem é o seu par? Quem é o... eu acho que essa pandemia está mostrando a verdade. Quem é seu companheiro, de fato, na caminhada dessa vida aí? Porque quem não era caminheiro seu, pulou fora. Quem era, ficou. Questões de trabalho... agora uma coisa que eu nunca vi em 19 anos de associação: foi o melhor ano pra vender material reciclado. Foi o melhor ano de retirada de dinheiro. Como em Belo Horizonte fechou tudo, todos os empreendimentos de catadores, ali fechou todo mundo e o material reciclado sumiu. Aí a gente foi lá nas alturas. Então, todo mundo que tinha material reciclado ganhava dinheiro. Nossa, eu lembro agora no final de novembro, o galpão estava limpo, não tinha nada. Eu falei: “Nossa, como nós vamos fazer dezembro?” Não tinha material reciclado, vendemos tudo. Nós vendemos materiais o ano todo, o ano todo, o ano todo, o ano todo. Eles tiraram mais do que o salário. Eles estavam só disputando: “Esse mês vai ser tanto, o mês que vem vai ser mais, o mês que vem...”. Só aumentando. O mês que vem já aumentaram a cota do mês que vem, que vão ganhar mais ainda. Só vendendo material. Aí tá bom, quando chegou primeiro de dezembro __________ (2:42:36). Então, assim, as pessoas limparam as suas casas, fizeram suas... todo dia chega material. “Isso aqui não serve pra mim, isso aqui final de ano estou limpando, esse tanto de livro, o que eu vou fazer com isso?” Acabou que a gente trabalhou muito e foi o melhor ano em questão financeira, pra Atlimarjom foi bom. Ninguém lá pegou covid, graças a Deus, ninguém teve problema, nós fizemos uma capacitação com uma médica lá que é nossa parceira, duas vezes já. Nós já fomos lá duas vezes. Conversou. Mesmo assim eles são muito teimosos em usar a máscara, mas estão lá. Tem que ficar falando: “Máscara”. ____________ (2:43:21) máscara eles põem aqui. Falo: “Gente, é o queixo, é aqui que está protegendo? Gente, põe a máscara” “Ai, Valdete, eu estou sufocada, não aguento esse trem, não”. Eu falei: “Na hora que vocês pegarem, vocês vão ficar sufocados, mesmo. Você tem duas crianças em casa, põe a máscara”. Aí ela punha. Lembra dos filhos. Então, assim, eu acho que é isso: é um aprendizado. Tudo é aprendizado. E essa pandemia veio pra frear um pouco os nossos instintos, as nossas coisas, que não é bem assim, não, tá? Nós temos que tomar cuidado. Não sei se eu te respondi, mas é isso.
P1 – Não, respondeu. Super respondeu. Eu vou pras perguntas finais, mesmo, são poucas perguntas, prometo. Você já falou também do seu casamento, do nascimento do seu filho, você tem um único filho e ele nasceu naquele período, enfim, acontecendo muita coisa, conturbado, mas eu queria te perguntar o que representou, representa a maternidade na sua vida.
R1 – Uma responsabilidade enorme. Tanto que eu pensei... eu fiquei grávida, na verdade, de bobeira, mas vá lá, não tem nada por acaso. E fiquei naquela: “Se ____________ (2:45:03) não ficar, meu Deus do céu!” Se ele não ficar comigo eu vou ficar com o filho assim mesmo, eu vou criá-lo. Seu filho. Na hora que você vê o filho, que você tem que dar alimento, comida, tudo é você, ô, colega, não é fácil. Fica bem desesperado. Eu fico pensando: é muita responsabilidade você pôr um filho no mundo. Não é só alimento, comida. É você educar a pessoa a ser gente. Passar os seus valores pra essa pessoa é muita responsabilidade. Gente, lá na associação tem um monte de filho, menino. Tem um lá que tem seis, a outra tem cinco, o outro tem dois, o outro tem dois. E vão arrumando, vão arrumando. Eu falo: “Gente, como é que vai fazer pra criar esse tanto de menino?” ____________ (2:45:50). Só que assim, é complicado demais. Eu acho que a maternidade me deu maturidade, pra pensar bem quais são os valores e acabou que eu fiquei, só tenho um filho, 28 anos hoje, que não é um bebê, mais, está fazendo Engenharia Ambiental. (risos) De vez em quando ele me liga, está atrás de mim, mandando mensagem aqui, ele me pergunta um monte de coisa e aí, o que aconteceu com ele? Ele não está morando na minha casa, não, porque não combina com o pai dele de jeito nenhum. Um contraste os dois. Mas ontem ele veio jantar aqui e a maneira como ele conversa, é o mesmo jeito do pai dele. Olha como parece! Parece tanto! Não se dão. Os dois nunca se deram, sabe? E ele não mora aqui, comigo, não. Aí ele começou a fazer Engenharia Ambiental. (risos) E ele nunca gostou muito do meu trabalho, mas eu acho que porque meu trabalho me tirava muito de casa. Eu fui pra lá, ele tinha dez anos. Nove anos. Oito, nove anos. Porque hoje ele tem 28. Já tem 19 que eu estou lá. Aí acho que ‘tirou um pouco minha mãe de casa’. Aí ele foi fazer Engenharia Ambiental e o povo, todo mundo conhece. “O quê? É filho de Valdete? Nossa Senhora!” Ele fica todo sem graça: “Mãe, você acredita que as meninas lá descobriram que eu sou seu filho, agora estão me babando o ovo lá, puxando meu saco, porque nossa, meu Deus...” Então, assim, tem um outro olhar da mãe dele agora ___________ (2:47:38) Atlimarjom achava meio assim, né? E agora não. Agora ele está todo... parece que de vez em quando ele tem uns orgulhinhos lá: Minha mãe trabalha na Atlimarjom, mexe lá com o material”. Ele estava me contando um projeto, na hora que ele me falou eu já sabia do trem, eu fui explicando pra ele: “É isso mesmo que eu estou falando, como você sabe?” Eu falei: “Eu já vi esse vídeo aí que você está falando pra mim” “Manda pra mim, então”. Nossa, meu colega e pra fazer isso? Na hora que ele vai falar, nós começamos a conversar sobre as coisas _____________ (2:48:10). Ele fez uma ___________ (2:48:14) de lixo também lá com a Atlimarjom. Então, acaba que ele está lá dentro, conhecendo a realidade, agora ele está com um outro olhar, um respeito diferenciado, porque antes aquilo ali era como se fosse uma coisa que estivesse disputando com ele, porque a mãe não parava em casa, minha mãe fica no serviço, minha mãe isso, minha mãe aquilo. Agora, não. Então, a maternidade me deu foi responsabilidade, mesmo. Aí, quando ele estava com três anos, eu falei: “Não vou ter mais filho, não. (risos) É muito difícil criar filho. É muita responsabilidade. A gente manter casa, manter filho, manter a vida”. Já pensou um monte? Apesar que às vezes ele fica muito ele e ele é o único sobrinho, único neto e único filho. Pensa na pessoa. Só ele. Meus irmãos não têm filhos. Minha mãe só o tem de neto. Fechou minha fábrica, a família. (risos) Filho único, mais nada. E ele já está com 28 anos. Ontem mesmo ele conversou com mãe pra ir no Natal, porque Natal sempre a gente passa junto com ela. Natal, aniversário, Dia das Mães, tudo nós vamos pra lá. A gente não a deixa, não. Ele: “Estou indo aí, viu, ________ (2:49:43), estou chegando aí” Ela falou: “É? Você vai vir passar o Natal com vovó?” “Vou, ô se vou. Estou doido pra chegar aí”. Ficou única pessoa. Já deu a experiência. Igual como eu falo pras meninas: “Um filho dá pra rir e chorar. Está tudo ótimo”. (risos) Eu senti muita responsabilidade e não quis mais uma responsabilidade. Fiquei só com ele. É muito bom. Acho que tem que ter. Só se você não quiser, mesmo, ter filho, mas é bom. Se não fosse assim, desse jeito, acho que eu não sei se eu ia ter coragem de ter. Apesar que depois que eu casei, que eu vim pra cá, eu estava com propósito de ter mais dois filhos. Mas a vida ficou bem difícil e eu fiquei: “O quê? Estou sustentando um com dificuldade, vou arrumar mais dois, vai dar mais problema. Melhor não”. Aí fiquei (2:50:36).
P1 – E curioso que você falou que, a princípio, ele tinha uma relação distante com seu trabalho, escolhe a área de Engenharia Ambiental e se reaproxima. É muito curioso!
R1 – Acaba que muitas coisas a gente tem que conversar. (2:50:59) prestei atenção, sobre as máquinas, que lá nos Estados Unidos, na Europa lá, Alemanha, tem uma máquina que você coloca pet, latinha, eles têm valores em dinheiro que você pode retirar na hora, na máquina ou você pode tirar, ir acumulando os tickets e depois ir no supermercado e comprar e eu já vi isso. Aí ele veio pra me contar, eu falei: “Eu já tenho isso em algum lugar aqui” “Quero ver, quero ver” “Ah, tá, vou ver onde eu que pus. (risos) Eu tenho certeza que eu recebi esse vídeo de alguém e eu vou olhar”. Aí ele falou que o amigo dele veio dos Estados Unidos agora e está com vontade de fazer isso aqui no Brasil. Eu não sei como é o processo pra fazer isso, mas eu falei com ele que, lá fora, os catadores, até quando precisam de dinheiro pra comprar pão, as coisas, pegam o material e jogam lá. Aí o dinheiro eles já sabem quanto que é, ou eles retiram o dinheiro na hora, as moedas, é um valor lá e já compram o que eles querem, né? “É mesmo?” Eu falei: “É” “Ah, então tá” (risos) “Tirou ali, vamos pro mercado” “Mãe, como é que você sabe disso?” “Ué, eu já não viajei, um monte de trem, não conheço um monte de gente?” (risos) Ai, ai. Aí aproximou, mesmo, porque essa distância dele do pai é complicado demais pra mim. Acabou, eu não me separei, nada, fui ficando, estou lá e os dois estão aí, nessa, os dois grandões, os dois bebês.
P1 – E, Valdete, quais são as coisas, hoje, mais importantes pra você?
R1 – Nossa, a primeira coisa que me veio foi o trabalho, você acredita? (risos) Eu falei: “Meu Deus do céu!” Para eu vir pra cá, fechar aqui e ficar aqui com vocês, eu não sei nem como eu estou conseguindo (2:53:11), porque eu não sei, eu fico o tempo todo só pensando... ontem, na hora que eu saí da associação, saí de lá era umas 18 horas, eu fiquei pensando: “Senhor Geraldo, precisa fazer isso, vai chegar material tal. Amanhã cedo eu não vou estar aqui, não. Presta atenção no que o senhor vai fazer. Limpar essa área aqui direito. Ainda bem que essa parte já está limpa”. Eu fiquei doida. Trabalho, parece que o trabalho é que me move. Engraçado. Precisava de uma outra coisa, né, menino? Vamos ver, vamos procurar outra coisa aí que vai mover a vida da Valdete um dia. (risos) Mas eu acho que só do trabalho, sabe, os meninos trabalharem, receberem dinheiro, já é uma, nossa... eles ficam numa satisfação! Pra mim, quando eles ganhavam pouco, eu não tinha coragem, na hora de fazer o repasse do dinheiro, é deles mesmo, mas a gente senta e fala: “Olha aí, gente, nós somos capazes”. Aí tem um novato lá ________ (2:54:12), nossa, ele: “Valdete, nós somos capazes”. Falei: “Somos. Nós conseguimos! Vendemos dez cargas, está vendo? Agora nós estamos com um projeto de dez de novo, vamos embora?”. Então, acreditar na possibilidade de melhora e eu acho que isso que funciona. Graças a Deus, muita saúde a gente tem. Um dia desses eu estava bem cansada, eu falei: “Não, graças a Deus que eu estou levantando, que eu ando, que eu falo, enxergo”. A gente tem que agradecer que a gente está trabalhando na pandemia, que nós temos dinheiro pra sobreviver, pra ajudar as pessoas, igual nós estamos ajudando. Nossa mãe, agradecer muito. Esqueci a pergunta que você fez, você acredita? Viajei aqui. Acho que respondeu, né? Nossa!
P1 – Respondeu, sim e duas perguntas, mesmo e pode ser bem objetiva: quais são seus sonhos?
R1 – O sonho era a coleta seletiva que (2:55:23) e eu tenho um sonho que eu não sei se eu vou conseguir realizar, mas é um sonho antiquíssimo: comprar uma casa pra minha mãe aqui de novo. (2:55:35) falou: “Ih, Dete, isso é impossível” “Eu não esqueço disso, eu queria trazer minha mãe pra cá de novo, na casa dela, sabe? Lá na rua que a gente morava tem uma casa lá que o cara tem e está fechada”. É um sonho. É muito caro esse sonho, mas eu queria muito comprar uma casa pra ela e trazê-la pra cá de novo. Ela foi pra lá porque ela perdeu a casa. Na separação, meu pai tinha vendido a casa. Isso abalou muito todo mundo, todo mundo ficou meio desestruturado. Esse sonho é um sonho. Esse é um grande sonho(risos): comprar uma casa pra minha mãe aqui, pra ela voltar pra Monlevade, antes que ela morra, antes que ela vá embora. Ela está boa de saúde agora, está bonitinha, precisa ver. Toda quietinha lá. O ano que vem ela faz oitenta anos. Vai fazer oitenta anos o ano que vem. Ontem eu falei com ela. Domingo também liguei. Está falando no celular. Aí eu fico falando com ela assim no vídeo, né? Aí tem hora que ela levanta e sai embora, falando, sai andando. Aí os meninos: “Mãe, a Dete lá ainda, não se despediu direito, não” “Dete, eu vou assistir minha televisão, a novela já começou. Tchau, viu?”. Ela vai fazer oitenta anos ano que vem. Oitenta. Ela está boa. Ela sofreu três derrames, sabe? Mas ela está boa. A cabeça dela que esquece as coisas. E as coisas que ela fazia no bar: salgados, ela não dá conta mais de fazer, que ela não lembra mais como é que faz. Ela lembra das coisas, mas não tem mais aquela habilidade pra fazer, mas fica lá. Aí é bom, final de ano a gente se encontra. Agora (2:57:29) vai vir. Ele ficou desempregado a pandemia toda. Agora ele conseguiu emprego, ele falou que não vai ficar pra lá e pra cá. Vai esperar a vacina sair, pra depois a gente ir lá pra Belo Horizonte vê-la. Aí eu que estou indo lá todos os meses, cuidando, comprando as comidas, olhando os trens, porque os meninos ficaram desempregados também. Então, esse sonho é isso, meu sonho realmente. É um sonho que pode ser que aconteça, pode ser que não, mas quem sabe? E tem a coleta seletiva o ano que vem, fazer um resgate, se Deus quiser. (risos)
P1 – Na torcida pra que ambos se concretizem. E, Valdete, a minha última pergunta é saber o que você achou dessa entrevista, como foi pra você relembrar, contar sua história?
R1 – Foi emocionante demais! Eu adorei! Eu achei que ia ser super chato, pra te falar a verdade. Falei: “Jesus, o que eu estou fazendo? Em vez de trabalhar, eu vou fazer esse trem! Ai, meu Deus do céu! O que eu vou fazer, minha nossa Senhora! O menino vai ficar lá perguntando um monte de trem, eu não vou nem saber responder”. (2:58:47) mineiro, nossa, fala demais, eu falei: “Meu Deus, que trem chato. O que eu vou fazer? Eu tenho que trabalhar”. Acredita? Aí, beleza, depois do desespero, até entrar aí, maravilhosa, adorei, foi muito bom, relembrei velhas coisas boas, ruins, maravilhosas. Muito bom! Eu gostei, viu, Maurício, obrigada! Obrigada, menino! Como é que chama o outro menino que está aí nos refletores?
P1 - O Alisson que me ajudou.
R1 – Quem me ligou. Muito obrigada pela oportunidade! Não sei como vai ficar, se vai ficar legal, se ficar ruim, vocês falam também. Falei muito. Não sei se a coisa deu pra fluir, se você entendeu tudo que aconteceu. Acho que deu, né?
P1 – Deu, deu. Foi ótimo!
R1 – Mas, assim, muito bom, (risos) obrigada pela oportunidade, foi muito bom. Não doeu, não. Deu certo. (risos) A gente fica meio com medo. Aí, na hora que ele falou que ia gravar, eu falei: “Pronto, agora vai gravar”. Aí fiquei assim. Depois eu esqueci que estava gravando, fui falando e a coisa foi embora e graças a Deus foi tudo certo. Muito obrigada! Gostei muito. Foi legal. Engraçado. Tem história. A gente acha que não tem história pra contar. Na hora que ela falou do Museu das Pessoas e tal, eu falei: “Meu Deus do céu! Será que eu vou saber? Que história eu tenho pra contar? Será que eu vou saber falar, né? O que vai acontecer?” Ela falou: “Valdete, o menino vai fazer umas perguntas e tal”. Eu falei: “Ai, meu Deus, e agora? Como é que vai ser?” Mas acho que deu certo. Muito obrigada! Foi muito bom, não doeu nada, sobrevivi. (risos)
P1 – Não, foi ótimo! Enfim, posso dizer que deu muito boa essa entrevista e foi incrível conhecer um pouco da sua história. Acho que a gente fala do Museu e ainda a ideia que se tem, muito, de Museu: “Não, mas Museu, que faz parte de Museu? São aquelas pessoas lá que são importantes, governantes, pessoas ricas” e a ideia do Museu e de contar as histórias, é essa: de que pessoas, enfim, de diferentes lugares, diferentes credos, raças, gêneros, que têm histórias muito ricas, que estão conectadas a histórias muito mais amplas e, na medida que as pessoas têm essa oportunidade de serem ouvidas, de contarem sua história... enfim, foi um prazer enorme poder ter te conhecido. Por um lado, a gente não faz entrevista do jeito que a gente gostaria, de estar aí e, enfim, poder conhecer pessoalmente, presencialmente, mas a internet possibilita pelo menos a gente poder estar nesse momento conectado e, enfim, foi ótimo, gostei muito, prazer enorme ter te conhecido e ter participado desse momento que você contou a sua história. Agradeço muito.
R1 – Obrigada também, pela oportunidade, foi bom demais!
P1 – E, enfim, na medida que a gente for fazer esse processo de processamento, a edição das entrevistas, a gente vai te atualizando também.
R1 – Beleza.
P1 – E, como eu disse, essa entrevista, como as outras que a gente faz, vai pro acervo do Museu depois, vai ter um tempo desse processo de processamento, mas vai também estar nesse acervo, entre muitas outras histórias que a gente tem. Então, é ótimo poder ter uma história como a sua fazendo parte do acervo do Museu da Pessoa.
R1 – Nossa, fiquei famosa, agora. Vou ficar lá no Museu. Aí o pessoal fala: “Museu é coisa antiga. Nossa mãe! É uma pessoa antiga, mesmo. Olha lá! Tem muita história pra contar”. É bom que vão ter outras pessoas que vão ver a história. Não é tão assim... é possível. Eu posso dizer que a gente conseguiu alcançar bastante coisas dentro do trabalho, dentro do processo da vida. É isso aí. Legal demais.
Eu vou encerrar a gravação, tá? Pra que vocês possam conversar, terminar tranquilamente.
R1 – Sim.
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