P - Boa tarde. Seja bem-vindo ao Museu da Pessoa. Para começar que gostaria que você falasse o nome completo, cidade e a data do seu nascimento.
R - Meu nome é Guido Tadeu Bachelli. Tenho vários nomes, mas... Nasci em São Paulo, dia 9 de fevereiro de 61.
P - Certo. Guido, por que você tem vários nomes, conta isso para gente?
R - Por que na minha vida cada tempo é marcado por uma pessoa que está em mim. Eu tenho a mesma personalidade, mas ela vai se agigantando e não cabe mais no nome, que é um rótulo. Então eu necessito de um outro rótulo, que é preciso usar, né? Então, e aí eu vou agregando os nomes que me soam legais, ou seja, eu sou, eu faço a escolha daquilo ao qual vou ser chamado.
P - E para fazer essa escolha você se baseia em algum detalhe específico?
R - Em algo que eu acho que todos os pais deveriam se preocupar antes de colocar o nome, ou as pessoas: no que vai representar de fato. Porque o nome é algo que indica o conteúdo, e um dos conflitos maiores de quem recebe um nome que nem fez a sua escolha, é muito difícil, assim, a pessoa lidar com o nome que ela rejeita, e ela tem que lidar com isso para o resto da vida, né? É uma indicação Ad Eternum, ad eternos, sei lá... E é bem, e muito importante. Hoje, acho que sempre foi, as pessoas só entram para a história através dos seus nomes, de como elas são chamadas ou foram chamadas, né? E os lugares também têm nomes, e as coisas têm nomes. O nome é fundamental, assim. E eu escolho mesmo, acho legal.
P - E qual é o seu nome atual?
R - Atual é Daragon Aldebaran Pessoas. Pessoas eu acho que vai finalizar essa minha etapa, meu ciclo assim. Eu sou fã do Fernando Pessoa, admirador da obra dele e sempre fui, um drops, né, que eu não sou erudito, eu penso só. Então, penso que Pessoas como sobrenome fecha esse ciclo no universo mesmo, né, que gira em torno do que eu sou: Pessoas.
P - Você sabe quantos nomes você já teve? Você lembra?
R - Vários,...
Continuar leituraP - Boa tarde. Seja bem-vindo ao Museu da Pessoa. Para começar que gostaria que você falasse o nome completo, cidade e a data do seu nascimento.
R - Meu nome é Guido Tadeu Bachelli. Tenho vários nomes, mas... Nasci em São Paulo, dia 9 de fevereiro de 61.
P - Certo. Guido, por que você tem vários nomes, conta isso para gente?
R - Por que na minha vida cada tempo é marcado por uma pessoa que está em mim. Eu tenho a mesma personalidade, mas ela vai se agigantando e não cabe mais no nome, que é um rótulo. Então eu necessito de um outro rótulo, que é preciso usar, né? Então, e aí eu vou agregando os nomes que me soam legais, ou seja, eu sou, eu faço a escolha daquilo ao qual vou ser chamado.
P - E para fazer essa escolha você se baseia em algum detalhe específico?
R - Em algo que eu acho que todos os pais deveriam se preocupar antes de colocar o nome, ou as pessoas: no que vai representar de fato. Porque o nome é algo que indica o conteúdo, e um dos conflitos maiores de quem recebe um nome que nem fez a sua escolha, é muito difícil, assim, a pessoa lidar com o nome que ela rejeita, e ela tem que lidar com isso para o resto da vida, né? É uma indicação Ad Eternum, ad eternos, sei lá... E é bem, e muito importante. Hoje, acho que sempre foi, as pessoas só entram para a história através dos seus nomes, de como elas são chamadas ou foram chamadas, né? E os lugares também têm nomes, e as coisas têm nomes. O nome é fundamental, assim. E eu escolho mesmo, acho legal.
P - E qual é o seu nome atual?
R - Atual é Daragon Aldebaran Pessoas. Pessoas eu acho que vai finalizar essa minha etapa, meu ciclo assim. Eu sou fã do Fernando Pessoa, admirador da obra dele e sempre fui, um drops, né, que eu não sou erudito, eu penso só. Então, penso que Pessoas como sobrenome fecha esse ciclo no universo mesmo, né, que gira em torno do que eu sou: Pessoas.
P - Você sabe quantos nomes você já teve? Você lembra?
R - Vários, vários, vário. O nome espiritual é Kaobi Xapanã de Xangô. Kalifa, foi um dos primeiros. Xandeti. Deixa eu ver... Minha memória é ótima Condor.
P - Mas aí as pessoas aprendem e ficam te chamando por esse nome?
R - Boa pergunta. Vanusa, boa pergunta sim. Eu vivi em muitos lugares, conheci muitas pessoas, muitas, muitas, muitas, intensamente ou não, que são os encontros e os desencontros, né, de uma estadia aqui. Elas passam a me chamar, aquelas que eu agrego como pessoas íntimas. Lá fora, é o Güido ou Guido, ou Ildo ou Nildo, ou Tildo, ou Fildo, isso sempre me incomodou, desde a infância: “Qqual é o seu nome?” “Guido?” “Guido?”. Então, sabe, você já fala uma coisa bem, né, que a pessoa fala: “Ah” ela não entende mas fala: “Ah, tá bom, tá bom Viu, mas como é seu nome mesmo?” É assim.
P - Certo. E qual o nome de seus pais e avós?
R - Meu avô era Guido Bachelli, minha avó Doracina Queiroz Bachelli, esses são avós paternos. Os avós maternos, acho que por aí começou toda a saga. Minha avó era, quando eu tinha já 20 anos que eu descobri que a minha avó que chamava-se Lourdes, na verdade não chamava-se Lourdes, ela chamava-se Lázara e ela detestava o nome de Lazara, então, ela sempre se intitulou Lurdes. E o meu avô Sebastião, isso por parte de mãe. Mas não convivi com avós nenhum, todos eram falecidos. Meu avô faleceu com 40 e poucos anos de cirrose, minha avó Doracina faleceu, eu tinha 11 anos de idade, de câncer de estômago. Me lembro dos uivos dela, dos uivos de dor, convivência muito pequena. Minha avó materna... meu avô morreu assassinado por um boi, que ele mesmo criou, era muito ruim, a história reza que ele era uma lenda mesmo de pessoa muito má, e a minha avó sobreviveu...
P - Seus avós, esses que você está falando são materno ou paternos?
R - Maternos, isso mesmo. E a minha vão era uma figura. Que eu me lembro dela só em flashes assim, ela com 90 anos, namorando um cara de 32, numa época veio morar comigo no apartamento, eu sempre morei sozinho. E na verdade ela fez amor com todo mundo no bairro, e eu estava dormindo e, de vez em quando, tocava o interfone procurando a Lourdes e ela tinha, sabe uns 80, e eu dizia: “Vó, num dá, né? Vó, me poupe Não.” Muito simples, nunca teve televisão, e essa avó, a avó Lourdes chamada Lázara, nunca teve televisão que eu saiba, usava sempre um lenço no pescoço, maravilhoso, fantástico, de bolinha vermelha, muita maquiagem, muito ruge, muito batom, um perfume bem ordinário, mas que é da minha avó característico então, adoro Não me lembro qual era, mas acho que é Colônia Contouré, se for patrocinador, desculpe mas é o ó do borogodó E cabelo tingido, e muito simples, falava bem arrastado assim, mas de uma pureza que eu nunca encontrei igual. E a minha sagrada avó paterna, que é a Doracina Queiroz, esta sim, essa sim cheirava a Leite de Rosas. É a maior lembrança da minha vida assim. E ela uma mulher de um colo bonito, convivi muito pouco com ela, mas tinha um acolhimento muito grande. Nessa época ficou muito registrado o meu comportamento da infância, eu não convivia com ninguém, eu vivia embaixo da cama quando chegava alguém.
P - E o nome dos seus pais?
R - Meu pai é Ailton Bachelli, um herói, e a Zenaide Bachelli, minha mãe, né, o amor da minha vida, maior paixão da minha vida, que morreu nos meus braços, há exatamente dois anos. Morreu exatamente há dois anos nos meus braços.
P - Qual era a atividade deles?
R - Meu pai, meu pai, um cara pô, eu acho que ele era um anjo. A atividade maior dele era distribuir bênçãos. Mas ele era açougueiro, comerciante, um autodidata, um bailarino fantástico, conheceu, acho que foi amante daquela Marlene, aquelas coisas. Foi motorista dos Matarazzo, foi motorista da Maria Bonomi, ajudou, ajudava, aliás, ele sempre me falava a montar os quadros das Bienais em São Paulo. Então isso, a narrativa dele depois de um vinho e tal, aquilo me fascinava, como ele contava como chegavam os quadros, aí ele tinha que desmontar tudo, como era a Maysa, né, que ele muitas vezes levava a Maysa. Eu tenho uma foto dele que eu acho que essa seria legal estar mandando para vocês, ele com o carro dos Matarazzo, ele tinha o que? 18 ou 19 anos. Ele narrava coisas da Maysa de uma forma muito respeitosa, mas muito bonita. Saídas dela nas boates à noite, às vezes, muitas vezes sem roupa de baixo, só com casaco de pele, e ele de chofer, com uisque já bêbada e: “Me leva nas boates da Rêgo Freitas, da Bento Freitas”, três horas da manhã, ele levava, ficava aguardando. Essa era a nossa Maysa, aí. Essa maravilhosa, maravilhosa, né? Esse era o meu pai que me ensinou a abrir uma vaca, tirar tudo, limpar o ventre, fazer toda a desossa, né, eu tenho todos os cortes, né, isso com 9 anos de idade, a gente já brincava de “Menino do Tambor”, um filme que eu recomendo: “O Tambor”, está esquecido mas é show. Essa é a imagem do meu pai, então eu acho que ele era tudo isso. Pessoas também.
P - E a sua mãe?
R - Minha mãe não enxergava, só enxergava de uma vista 5%, 10%. Ela era uma pessoa que eu percebia. Minha mãe sempre foi uma referência como uma serpente adormecida, para mim, ela sempre foi uma naja, uma surucucu, uma cascavel. Não no sentido pejorativo da palavra, mas como um réptil, assim que em momentos de perigos ficava estático assim, para acumular toda a energia de ação, e no momento certo ela agia e explodia. Ela é responsável pela formação desse que vos fala, com certeza, porque eu saí do ventre dela assim. Meu ícone maior na vida. A pessoa mais simples que eu já conheci, pode me falar qualquer pessoa, qualquer um pode. Pessoa mais simples possível. Nunca falou absolutamente de ninguém, nunca deu palpite, nunca Sobre ninguém
P - E você sabe qual a origem da família de seu pai e de sua mãe?
R - Sim, do meu pai? Meu avô era italiano, e minha avó Doracina ela era órfã, essa era a origem dela, morava no orfanato e, me perdoem as pessoas que talvez tenham vivido e vejam isso, mas essa é a história que me chegou e a história que me chegou é a minha história, minha história real. Tudo o que eu digo é minha história. Não tenho idade para mentira, né? Essa é a minha realidade. Minhas memórias. Essa eu vivo E ela foi adotada pelos Queiroz, mas eu preciso te falar, Vanusa, uma coisa que agora me ocorre: a minha família sempre foi meu pai, minha mãe e minhas irmãs. Nós vivemos sempre num clã.
P - Quantas irmãs você tem?
R - Eu tenho, putz três lindas irmãs, e terríveis.
P - Qual o nome delas?
R - Para variar um costume italiano: Gina, Gilda, Giovana, e eu Guido. Tive um irmão que faleceu com seis meses, chamava-se Giovane. Esse era o primeiro, né? E a história é muito legal, que eu gostaria de entrar um pouco sobre isso.
P - Conta do bairro, da sua infância. Como era a sua convivência de casa.
R - Eu sei que eu nasci na Vila Guarani, no Jabaquara. Agora há pouco tempo eu descobri que... Ah, nasci de parto, o nome da parteira era Maria Aparecida, meu pai estava trabalhando no Tendal, chamava-se Tendal, ele era açougueiro. Eu nasci acho que três horas da tarde, uma coisa assim, e quem ajudou no parto foi a minha tia Shirley, que eu amo muito e que está viva ainda. E essa parteira, não tenho muitas... Minhas memórias quanto à infância, elas são fragmentos.
P - Mas você cresceu em que bairro aqui em São Paulo?
R - Eu cresci em muitos bairros.
P - Você morou em vários lugares?
R - Vários lugares que eu me lembro, até aos nove anos de idade, depois nós fomos numa grande jornada, em direção ao interior: Patrocínio Paulista [São Paulo]. Eu tinha nove anos de idade, onde tudo começou a ser registrado na minha vida. Até então a minha vida era pacata como qualquer criança. Foi quando as portas do mundo se abriram para mim.
P - Você é o irmão mais velho?
R - Não, a mais velha é a Gilda, mora em Rifaina, depois sou eu, depois a Gina na seqüência, e a última que eu ajudei a criar, quando meu pai faleceu há 20 e tantos anos que é a Giovana, era a rapinha do tacho. Eu ajudei a criar, ajudei não, criei a Giovana e casei a Giovana, hoje ela mora com o meu querido cunhado número quatro, que eu admiro muito que é de uma simplicidade. Não tem, olhar para ele para mim é uma pessoa que nunca morou na cidade, é agricultor, pessoa mais pura que eu já conheci agregado à minha família, né? Simplicidade é fundamental.
P - E como foi assim crescer entre três mulheres? Como eram as brincadeiras? Porque tem meio que uma divisão, né, tem brincadeira de homem e brincadeiras de mulheres. Você cresceu entre...
R - Boa pergunta. Muito legal essa pergunta, porque as minhas brincadeiras sempre foram comigo, eu sempre fui fechado. Eu sempre tive contatos com outras dimensões, e como na nossa casa sempre foi de uma cultura muito apurada. Cultura no sentido real de vivê-la, né? A gente aprendeu que cultura é o que você vive não o que você imagina viver. Você pode agregar sensações, momentos, situações, mas cultura, culturalmente falando, e essa é a concepção que eu tenho do que é cultura, é tudo aquilo que você participa, interage. Isso para mim é cultura. No caso das brincadeiras eu dissecava, adorava colecionar ossos, conversava muito com espíritos, e eu não sabia o que era, isso era muito legal, porque era muito bacana, ou formas ou dê o nome que queira dar, isso para mim não importa nada, nomes são nomes só. E eu observava muito. Sempre fui muito fechado no meu mundo e a convivência com as minhas irmãs sempre foi muito suave, não me lembro. Não, não me lembro. Me lembro de um corte. Ó, da minha infância me lembro do corte que eu fiz numa lata velha que eu estava fazendo o enterro do meu ursinho, que tinha cortado a cabeça, aí eu fiz o enterro dele, sozinho, aí eu fiz o túmulo, rezei. Imagina, eu tinha cinco anos de idade, e eu andava com o ursinho no bairro, que legal isso eu lembrar Eu andava com o ursinho e a cabeça estava caindo assim. É um ursinho que eu tenho a réplica dele, está na fazenda, minha irmã, que eu consegui quando eu tinha o ateliê. E eu pedia para as pessoas no meio da rua me ajudar a colar. Olha que loucura que é a vivência, a experiência de uma criança E para mim ele estava morrendo, então eu queria que alguém colasse. Cheguei para o meu pai, putz, cansado, né? Ele falou assim: “Ah, sei lá”, nem lembro o que ele falou. Aí eu percebi já de cara uma reação assim, falei: “Ah, não se importou com a minha dor. Então tá bom” Aí eu saí procurando. Como não tinha, eu terminei de arrancar a cabeça, aí eu pus a cabeça assim, arrumei uma caixinha de sapato, pus ele bonitinho, procurei um campinho que tinha na Vila Guarani, onde a gente jogava bola, onde eu ficava, que bola eu nunca joguei, detesto futebol Aí, pus lá, fiz o enterro, rezei, botei flores, não me lembro. Cheguei em casa, chorei. Aí a minha mãe pergunta: “O que foi?” Falei: “Nada mãe” Essa é interessante, esse momento é bonito lembrar isso. Foi um momento muito importante para mim. Norteou muito nas despedidas.
P - Quantos anos você tinha?
R - Cinco anos de idade, isso cinco anos de idade. Depois, dá um apagão assim, não me lembro Isso foi pós o maior trauma que eu tive na minha vida de infância. Foi quando o meu pai, nessa época o meu pai bebia, minha mãe bebia muito, mas ele trabalhava, sempre trabalhou, sempre, enfim. E eles construíram um barco, uma canoa, um barco, uma canoa, sei lá porque quando você é pequeno tudo é grande, né, era gigantesco, né? Eu lembro de tudo grande, meu pai era gigante. A minha concepção era essa, tudo enorme, e o barco era enorme, e todo o final de semana ele se reunia com os irmãos. E eu lembro da última etapa: tinha que calafetar de piche, mas eles estavam fazendo churrasco e calafetando de piche e o barco era enorme, coisas de meu pai. E depois e vão testar esse barco, e fomos para a Lagoa Guarapiranga, pra Represa. Eu devia ter quatro a cinco anos, isso foi antes. Foi o maior trauma meu, acho que o único trauma maior, o maior choque, desses choques é que nascem as pessoas que mudam os homens. E todo mundo alcoolizado e eu muito pequeno, e não sei o que. Se há 30 anos era perigoso, hoje é mais perigoso ainda. E puseram todo mundo, todo mundo subiu no barco, um monte de amigos dele para testar e foram, e eu fui junto. Meu pai sempre, eu fui junto. Só que o barco foi construído por qualquer pessoa menos por engenheiros navais, né, o barco começou a afundar no meio da represa, todo mundo estava bêbado e eu gritava e ninguém... Meu pai estava bêbado também, e a água foi entrando e aquilo me causou um pavor. E eu não me lembro quem me tirou, não me lembro, e a partir dali eu tenho essa coisa, eu tenho afinidade com a água, mas eu não sei nadar. Não causou trauma nenhum. Eu não tenho trauma de nada. Só tenho trauma de gente chata, só, gente mala e de gente estúpida. Agora, isso me norteou, assim, em relação à água. A água, eu busco nela o fluído, né, mas a minha proximidade com ela é limitada, assim. Não precisei fazer terapia nenhuma quanto a isso, porque ficou muito claro para mim, né, o poder dela, o elemento água. Ele é, se você subestima você dança, ou melhor, se afoga, né?
P - Mas quando você falou assim que na sua casa, que vocês vivenciavam a cultura, você fala assim, vocês tinham festas, vocês faziam danças com música, com comidas, é isso?
R - Nós nunca tivemos uma festa de aniversário.
P - Então explica assim um pouco, que eu não compreendi bem isso de culturas.
R - Meu pai narrava histórias, muita história. Minha mãe tinha histórias maravilhosas da infância. Histórias tristes, alegres...
P - E eles contavam pra você?
R - Sempre Ah, o retrato, se eu pudesse agora erguer um retrato de minha mãe, ela sentada na calçada, no quintal, cortando a casca da melancia, e a gente sempre muito humilde, sempre muito humilde, não pobre, porque pobreza é interior, não é? Mas humilde mesmo. Então não tínhamos brinquedos, eu nunca tinha carrinho, minhas irmãs não tinham boneca, não tivemos isso. Mas éramos felizes pra caramba. Minha mãe fazia as bonecas da casca de melancia, assim. A gente comia a melancia, e ela ia recortando os bonecos, o que, aliás, eu recomendo qualquer um fazer. É uma terapia fantástica E quando ela ia fazendo os bonequinhos da casca, ela ia contando a história de tudo. Então a gente comia a melancia, e ainda se alimentava da cultura dela. Que é a cultura, puta, riquíssima, essa é a nossa formação, para mim é a minha formação. Então, se eu pudesse hoje fazer uma estátua no túmulo dela ela sentada fazendo um boneco de casca de melancia. E o meu pai contando as peripécias dele, ele sempre tinha, era um contador nato de tudo, tudo. As suas contradições que depois vieram à tona no futuro. Mas essa... Mas não festa. Meu pai tinha algumas normas assim, e que eram complicadas: ninguém sem camisa entrava dentro de casa, não admitia isso e não recebíamos ninguém. Porque família de italiano é meio louca, ela pode, na frente da câmera ela pode ser tudo muito simpático, tudo muito bacana, tudo muito, mas é um quebra-pau lascado Tem passagens legais assim, tipo quando reunião a família toda para os almoços de domingo com macarrão e o vinho, o bicho pegava depois de uma certa altura, porque sempre tem a tia que fala assim para a outra: “Você não casou” (risos) “Você não casou na igreja” Aí a minha mãe já tinha tomado umas também, dizia: “Ah não? Tudo bem, e você?” Bom, enfim, isso é tudo real, a família sabe disso, aí virava tudo, quebrava a mesa, jogava macarronada no chão, tacava queijo, saía chorando, batia a porta “Eu não volto mais nessa...” Pode falar “porra”, pode né? Tá bom Porra não é nada. É isso.
P - Você lembra assim de pratos típicos que?
R - Puta, meu, só tem três coisas na minha infância: a Coca-Cola de domingo só, ou Guaraná, não tinha mais nada disso, macarronada e frango. É só isso. Isso mesmo, e a gente era muito feliz. Não tinha doce. Tinha um doce muito legal. Cara, era uma lata desse tamanho que vinha figada, marmelada, goiabada e tinha mais um negócio que eu não lembro o que era. Puta, aquilo era o sonho de qualquer criança poder. E eu lembro da... Minha visão sempre foi muito macro, né, ela vinha para o micro assim e depois ampliava como se fosse a lente de uma câmera. Então eu lembro do abridor, do meu pai fazendo assim na lata, e a lata sempre no final corta o dedo, né, sempre pega e fica um negócio assim, e aí levantava aquela lata e aquela latona assim, era a sobremesa. Não tinha muitas coisas. Aquela bolacha Maizena com maria-mole dentro, era isso. E bolinho de chuva, por isso que eu te falo, Vanusa, a mãe fazendo bolinho de chuva era, nossa E minha avó também muito bolinho. Coisa de gente humilde, né, canela, açúcar e muito papo, muita diversão, muito calor. O que nos uniu foi o amor. O amor nos bastou em família, foi a coisa mais honesta, que penso, que meu pai e minha mãe poderiam nos dar. Minha mãe trabalhou na zona durante um tempo, porque um avô, pai dela havia mandado, mandava, aliás. Ela, dentre outras histórias tantas, ela comia do lixo lá na zona, zona do meretrício, em Santos. E assim vão tantas histórias, dessa riqueza, né? Eles passaram mesmo e deixaram, embora uma vida curta, muito breve, como toda vida interessante deve ser curta, breve e intensa. Eles tinham muito para nos ensinar e nos ensinaram muito mas...
P - Eles compartilhavam tudo com vocês?
R - Tudo. Tudo. Nós não tínhamos pudores. Isso mesmo, pudores, de uma forma muito natural.
P - Como eles se conheceram? Como a vida deles se cruzou?
R - A história, a história é fantástica. É fantástica mesmo, e assim, um choque Porque toda a história da vida do meu pai e da minha mãe, eu só vim a conhecer depois do falecimento do meu pai, quando ela veio morar comigo. Me lembro, meu pai morreu atropelado em Conceição das Alagoas [Minas Gerais]. Eu trabalhava na PRODESP [Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo]. Trabalhei 11 anos na PRODESP, na minha formação eu era operador de computadores, fiz grandes amigos. E já morava sozinho, e quando o pai faleceu. Meu pai lutou a vida toda, tinha uma casa, nós vendemos a casa para pagar o enterro, e assim foi. Sempre foi assim muito prático na vida. Aí eu trouxe a mãe para vir morar comigo. Desculpa, a pergunta? Porque quando você entra na memória é um labirinto, né, desculpa.
P - Como eles se conheceram?
R - É, então aí ela contou em detalhes coisas, e aí ela fez a revelação da família, coisas que a gente não sabia, porque nesse ponto foi a grande dor da minha mãe, até no leito de morte a grande dor. E eu fui o portador desse segredo. A minha mãe conta que ela conheceu meu pai, ela tinha 13 anos de idade, meu pai acho que tinha 18 ou 19, e eles ficaram juntos. E a minha mãe sempre foi, embora não enxergasse muito bem, mas sempre foi... Não era bonita, não era nada, ela era pra mim, muito mais que isso. Mas era danada, danada, filha de Lourdes ou Lázara, era danada E ela sempre deixou claro isso, ativa para a vida. Eles viviam juntos e chegou o tal do Carnaval, em Barretos [São Paulo]. Aí ela chegou e disse: “Ailton, eu vou com a minha irmã”, que é a tia mais porra louca que eu tive, a tia Ida que partiu também, porra louca também, aquela lá deixava a Dercy Gonçalves no chinelo. Aquela era... Com ela que eu aprendi coisas interessantes também. Aí ela pegou e disse: “Eu vou para o Carnaval”. Aí ele disse “Não, tu não vai, eu vou trabalhar e quando eu voltar...” Aí ela disse: “Não, eu vou, vou com a minha irmã” “Não, tu não vai” “Eu vou” Ele falou: “Se você for, não volte”. Ela foi e não voltou, foi embora, pulou o Carnaval. Aí passaram-se os quatro dias e quatro noites. Aí passaram-se muitos anos, cinco anos, eles não se viram mais. Um dia, e isso Gilda, eu quero deixar aqui bem registrado para você, minha irmã mais velho, que isso eu sei que foi a tua vida toda, foi o peso da tua vida, o que norteou a tua vida, mas hoje você é avó e tem essa família linda e mesmo distanciados você sabe que nós somos a nossa família. Nós somos a única família, nós: eu, nossas irmãs, e o pai e a mãe E meu pai chegou, isso ela não sabe, a Gilda não contei ainda, tá? Aí a minha mãe estava lavando roupa, parou uma... Eu tenho essa foto do pai numa caminhonete, eu acho que era 54, eu não entendo de carro... Bateu lá palma, tinha uma menininha brincando assim na porta, aí a minha mãe saiu. Isso a minha mãe me contou, então eu hoje sou testemunha disso, oral. Ele disse: “Zenaide”, né? Ela assustou porque fazia uns cinco anos que não se viam, depois daquele quebra-pau, né? Ele falou assim: “Você tem 15 minutos para pegar a tua trouxa, pegue essa menina aqui e vamos comigo, viver o resto da vida comigo” Ela não pensou dois minutos. Em três minutos ela estava dentro da caminhonete, e viveram juntos 26 anos praticamente. Nunca mais ela nunca teve outro homem, mais nada. Essa menina chamava-se Maria da Graça. Putz, isso é antigo, hein meu Gilda, você se chamava Maria da Graça, você não sabia, ficou sabendo agora. Aí meu pai registrou ela como Gilda Aparecida Bachelli, porque a menina não tinha nem registro nada. E viveram felizes
P - E ela era filha do seu pai também?
R - Não filha da minha mãe. Isso. Minha mãe já estava morando com uma outra pessoa, teve a Gilda, que provavelmente foi o resultado de uma bela noite de Carnaval, né? Com certeza, isso ela nunca me disse porque, enfim.
P - Não precisava, né?
R - Não. E foi futuramente a posterior, depois, o grande. Ah por isso eu queria deixar registrado assim, não sei para onde eu olho, vou olhar para vocês que eu prefiro, melhor. Os pais devem ser verdadeiros. Meu, a verdade não dói nada O peso que a minha mãe carregou, de não poder ter contado para a Gilda que ela não era filha do meu pai. Meu pai morreu, e minha mãe chorava comigo nos ombros, passava, falava: “Mãe, mas é uma questão de foro íntimo, você pode falar”. Mas aí já tinha feito toda a merda. Minha irmã foi embora cedo de casa porque toda a família tem uma prima ou primo que fala: “Você não é filho do teu pai e da tua mãe, você não é Tem alguma coisa errada”. E meu pai sempre foi uma figura assim muito, muito, não autoritário mas impunha respeito. Nós fomos criados nos moldes antigos, eles só tinham. Ele não precisava gritar, nunca bateu em ninguém, nunca encostou a mão, mas ele mordia a língua assim. Fazia assim e tá bom. Se ele fazia assim. Hoje imagina pai faz isso, né, tem molecada. Bom, enfim, ele só fazia isso e nós todos já sabíamos o que era, ou então ele respirava. E a Gilda casou muito cedo em função disso, e renegou a família, foi tocar a vida dela em função disso, nós temos uma distância um pouco grande, né? Na época ainda fazia uma distância muito grande, e eu nunca entendia, hoje eu entendo com a maturidade, o que ela fez. Tivemos a oportunidade de conversar um pouco sobre isso, mas da boca da minha mãe não saiu isso, minha mãe nunca falou para ela. Eu falei para ela, nós conversamos sobre, depois, bem depois que a mãe já tinha partido, né? E ela carrega a sua dor de ter agido dessa forma, que eu sei, de não ter podido desfrutar da presença maravilhosa. E hoje ela chama meu pai de pai mesmo, que é o pai dela mesmo, meu pai Ailton, o pai. E hoje ela só lamenta, realmente, a maior dor dela é não ter convivido com ele, na sua, no começo da sua vida mesmo, 18 anos. Mas eu sei que ele segurou a peteca junto dela, foi uma grande pessoa, como ele era mesmo. Não era um pai sacana que a gente vê por aí, tem pais sacanas, viu? Não, ele era puro. Essa aí é a história.
P - Mas você disse que aos nove anos, você e sua família partiram para o interior.
R - Aí foi a grande saga mesmo, foi difícil. Foi uma grande saga. Não difícil, nada foi difícil. Foi, a vida é assim, ela precisa ser vivida, né? De longe, ao avistarmos o que vivemos a gente pode fazer alguma, alguma analogia sobre si: “Ah foi assim ou assado” Mas no momento você não tem tempo para isso, mas foi muito complicado. Meu pai tinha uma característica incrível. Nós moramos em 12 cidades do interior, 12. Imagina Num intervalo de sete ou oito anos, nove anos é muito tempo, muitas pessoas. E a saga que eu digo foi que ele tinha uma Perua furgão, Kombi, ele colocou o jogo de sofá da sala, vendeu a casa para um cara que nunca pagou aqui no Jabaquara – se você tiver me vendo: “Pô meu, eu não quero receber não, mas você não pagou, deu um cano no meu pai, falsificou as notas promissórias”. Mas tá bom, valeu, como diz a Ana Carolina: “Meu dinheiro roubaram, mas eu trabalho e um outro eu vou ganhar”. É isso aí E pôs a minha avó Doracina, que já estava doente e eu não sabia, e fomos sentados em uma poltrona, quatro, três poltronas dentro de uma Kombi, sem janela, saí de São Paulo, eu nunca tínhamos saído da Capital, para chegar em Patrocínio Paulista [São Paulo], depois de Franca [São Paulo]. E meu pai cismou, para variar, um “maluco beleza” de levar sete caixas de pintinhos, porque era o sonho de sair da Capital e morar no interior e criar galinha. Mas ele levou os pintinhos, mas não levou a água, não levou comida para variar. Minha mãe fez uma macarronada, um negócio, e nós fomos sentados nas poltronas assim. Atrás tudo fechado, minha avó ia na frente, cabem três pessoas numa Perua antiga, e um monte de pintinho, mas era muito pintinho, mas muito. Imagina uma caixa assim. E eles iam morrendo no caminho porque não tinha água, era abafado, e é interminável a viagem. A viagem foi interminável, mas, por isso que eu falo, nós éramos crianças, e era uma aventura, quando abria a porta, porque a gente não tinha como ver, não via. A Perua furou o pneu provavelmente 14 vezes, 14 vezes. Deve ter acabado o combustível, tantas vezes que eu não me lembro, porque eu me lembro da gente parar e a gente ficar horas esperando o pai voltar. Demoramos mais ou menos 25 horas para chegar, até Patrocínio Paulista [São Paulo. Um lugar que tinha um rio, até hoje está lá o Rio Sapucaí, que depois eu vim a nadar tanto nele, catar pedras, conversar com elementais. Foi complicado Mas foi a grande, o grande assim, a grande jornada assim na vida nossa. Eu acho que marcou para todos nós.
P - E vocês ficaram morando lá, então, em Patrocínio?
R - Ficamos a partir daí, ficamos sim, ficamos mesmo. A partir de lá foi se edificando todo um novo tempo, um novo tempo. Tanto que a Gilda casou lá, com um rapaz de lá, sempre nas imediações, né. Patrocínio Paulista, Franca. Aí não deu certo o frigorífico, aí o meu pai comprou um restaurante em Franca, no Mercadão, ai eu cuidava, imagina, com dez anos de idade eu era responsável já pelo restaurante do Mercadão, na parte da tarde. Morávamos em Patrocínio, depois Jardinópolis [São Paulo], Batatais [São Paulo], Rifaina [São Paulo], um monte de lugares.
P - Vocês iam mudando?
R - Sim. Mudando, geralmente à noite, que era a tática do meu pai, porque à noite o vizinho não vê que está mudando, só punha o que podia carregar e ia embora.
P - Mas tinha alguma coisa, ele escondia alguma coisa, saía?
R - Se escondia?
P - Sim.
R - Eu não sei. Meu pai tinha uma coisa que eu acho que todo mundo... Você já mudou, de casa? Nunca?
P - Mudei uma vez para a esquina de cima
R - Caraca Você já mudou?
P - Muitas vezes.
R - Muitas vezes? Você sabe que... Você já mudou? É tão interessante está tudo arrumadinho aqui, não está? Aqui é um espaço, né? Quando a gente vai fazer a mudança você desmonta tudo, aí você começa a ver os cacarecos que você tem, você começa a ver que é tudo cacareco, e aí você começa a carregar todo aquele negócio, aí você começa a arrastar tudo, depois você começa a ver coisas que você convivia e não via. “Para que eu quero esse negócio, para que eu quero essa...” Bom, enfim...
P - Então, você estava falando das mudanças, né? Que vocês saiam de casa sempre à noite.
R - Sim, sim, sempre à noite. Talvez por isso, né, porque... Estive pensando agora talvez porque meu pai trabalhasse muito e só o horarinho que ele tinha, aquele horário, né? Talvez isso, ou talvez tivesse devendo aluguel, ou o proprietário da casa não via mudar, talvez, não sei, não sei. Não sei o que levava a fazer, só sei que era assim. E se deve alguma coisa, problema dele. Vai lá receber no céu ou no inferno, porque eu não pago nada.
P - E como foi, onde você começou a estudar? Você começou a estudar aqui em São Paulo?
R - Comecei a estudar aqui.
P - Você lembra assim, dos seus primeiros anos escolares?
R - Eu lembro da escola da minha irmã, que era Doutor Vilalva Júnior, que era feita de madeira, uma coisa assim. Eu tinha festival de música, que eu achava lindo. Tinha uma música que eu adorava, chamava Ana Karenina, que eu vivia cantando, que era o primeiro meu contato com músicas, eu era bem pequeno mesmo, mas eu assisti ela no Festival, a Gilda, muito inteligente, ela é diretora de escola, sempre seguiu a carreira pedagógica, e as filhas delas também são professoras, e ela tem paixão por ser professora. Tenho muito pouca, não, tenho pouca, não sei. Não sei te dizer dessa parte de escola, assim.
P - Você lembra da escola da sua irmã.
R - É.
P - Você ainda não estudava.
R - Por que a minha irmã me ensinou a ler e a escrever, com cinco anos de idade.
P - Em casa?
R - Em casa. Nós aprendíamos em casa também. Quando eu entrei na escola, no primeiro ano, tinha que ter sete anos de idade para se fazer o primeiro ano, não poderia entra antes. Eu entrei no primeiro ano e já sabia ler e escrever. O primeiro livro meu foi Hermann Hesse: “O lobo da Estepe”. Eu li com nove anos de idade, né? Hoje eu conheço pessoas de 40 anos, e não leram Hermann Hesse ainda, ele marcou uma geração. “O Lobo da Estepe” é um negócio, momentos felizes, “Sidarta”, enfim, foi um dos primeiros livros. E, quer dizer, eu sentava... Isso é complicado, hoje me foge, é inconcebível a idéia de uma criança que já sabe ler e escrever no meio da turminha, que ainda está: “A E I”, entende? Mas nunca me senti melhor, de jeito nenhum, só ficava deslocado que eu achava que não era o meu lugar, né, porque eu falava: “Eu tô incomodando”. Porque eu não sabia. A metodologia à vista da minha irmã, foi fantástica. Ela adotou uma metodologia que eu acho que é, pedagogicamente falando, a mais correta: a criança aprende por convivência, não é? Aí ela vai fazendo junção. Na minha época ainda era O de ovo, I de igreja, puta, sou velho, né, sou remanescente jurássico.
P - E aí quando vocês iam mudando, seus irmãos também iam mudando de escola, sempre?
R - Sempre, sempre mudando de escola, sempre a velha história: entrar no grupo, entrar e ver a nova turma, e os julgamentos. Das mudanças eu me lembro da maior, a maior. Essa vale a pena registrar, eu acho que vale a pena. Patrocínio Paulista para Jardinópolis, já deveria ter 15 anos, 14? Colegial? 13? Não sei. Como eu te falo, não sei, eu não registro isso. Eu lembro o meu primeiro dia de aula, era primeiro colegial, eu me lembro dos três alunos: o Penha, de Jardinópolis, o Peinha, a Maria, e tinha mais um que eu não me lembro. Pois bem, quando eu entrei, eu vim de um... Eu sempre fui bem gordo quando era pequeno, e eu me lembro que quando você, por exemplo, se você é vesgo, você acha que você é mais vesgo do que você é. Quando você é careca, o careca sempre tem a tendência a achar que ele é mais careca do que ele já é. E assim vai, em tudo. Quando o cara se sente burro, ele se sente mais burro do que ele é realmente. Tudo minha concepção. Não existe verdade definitiva. É o que eu penso e me guio por isso, me norteio, mas como disse Mahatma Ghandi, “Estou sujeito a alterações”, daqui cinco minutos eu posso mudar de idéia, isso fique claro: daqui cinco minutos tudo pode mudar de idéia, mas agora eu penso assim. Quando eu entrei no primeiro dia de aula, a Maria e o Penha gargalhavam muito, rindo da minha cara, e aquilo para mim foi a maior humilhação que eu passei na minha vida, porque eu não sabia o porquê eles riam. Não sabia se porque eu era gordo, se porque eu vinha de fora, se porque eles eram jacu do brejo também, se eles eram, enfim, não sei.. O Penha era típico galã da escola, né, o rapaz que ganha os prêmios de esporte, que as menininhas estão doidas para dar para ele, para dar beijinho, para dar outra coisa também, dar dor de cabeça. E a Maria, era Maria Pô, não tinha um dente na boca, mas era Maria. Interessante que viver é presenciar isso. Eu nunca tive, depois eu fiz amizade com eles, mas isso me chocou profundamente. Nunca falei nada.
P - Isso foi em uma mudança de escola, de cidade?
R - Sim. Mudança de cidade e de escola. Eu mudei de Franca para Jardinópolis, onde está a minha irmã número três, casada e mora lá. Casou lá. Foi ficando, né, eles foram ficando na cidade. E curiosamente o Penha morreu. Nós convivemos muito bem, depois eu tirei de letra, foi muito legal Depois, me serviu de estímulo para outras coisas, para aprender a fazer abertura de outra pessoa. O Penha já faleceu há muito tempo, ele morreu novo, num acidente de moto, se não me engano, e a Maria morreu de câncer de mama, faz acho que mais de 10 anos, eu fiquei sabendo, né?
P - É isso que eu ia te perguntar: como era fazer amigos e mudar de cidade?
R - Eu acho que é a perfeição. Penso eu que se os apóstolos conviveram com Cristo numa etapa da sua vida. Eu acho que se, esse é um conceito meu, e evidentemente é um exemplo daquilo que eu penso. Eu penso que conviver com Cristo 24 horas ninguém estaria preparado para escutar os peidos dele, o mau humor dele, que é natural. Ele era um homem encarnado no Verbo Divino. Eu acho que isso preservou as minhas memórias mais incríveis de amizade, os amigos, as pessoas. Porque quando você acompanha a decadência, e ela vem, a decadência vem para todos nós, e para tudo, parece que vão se esvaindo também algumas emoções. Muito simples vocês vão entender. Quando morre alguém querido que vivia longe, e você vai no enterro, às vezes não vai, você sabe que ela partiu, mas para você ela continua lá, ela mora lá em Oiapoque, ela vai ficar lá. E a gente tem essa coisa de preservar isso, talvez para a gente caminhar acreditando que tudo vale a pena ainda, sem perder essa gota de esperança, né? Porque viver é perder, não é ganhar, você vai perdendo pelo caminho. Vai se desfragmentando, porque para você ser inteiro, é preciso que você seja o outro. Quando você parte, quando o outro parte, você parte junto. Então, quando se desfragmenta assim, a história é como uma viagem de turismo, ou uma viagem qualquer, como turistas que somos, né? Se você vê um jardim, ele fica registrado, na paisagem. Já percebeu? Lugares que você visitou e você volta depois de um tempo e eles não são mais a mesma coisa. Então, às vezes você não volta lá, eles continuam lá para sempre. Isso são memórias. Então, é muito legal assim. Os grandes amigos, os mais antigos amigos, o maior e mais preservado amigo que eu tenho, chama-se João Batista Domingues Filho. Ele é Doutorado em Ciências Políticas, e Professor da Universidade de Viçosa, secretário do prefeito de Uberlândia, casado com Sadora, que eu nunca conheci, só por telefone. Mas o meu maior e mais antigo e preservado amigo, desde os nossos 14 anos de idade. Nos falamos às vezes a cada cinco anos. Somos os mesmos, assim. Ele enquanto discutia a teoria marxista, eu arrastava ele para subir em cima dos caminhos do frigorífico de peixe que meu pai tinha em Uberaba, para avistar disco voador. Então, a gente fazia o contraponto sempre. Ele é um Cientista Político, tem livro editado, etc. E a gente sempre se trata no contraponto: o yang e o yin, sempre. E a gente se norteia muito nessa amizade. Essa ficou, essa é de Uberaba, onde o está o meu pai, meu pai está falecido. Está em falecido, perdão, está enterrado o corpo dele, né. Eu sou... O Carlos Bachelli é meu primo em segundo grau, que é o sucessor, não sei se pode dizer assim, do trabalho do Chico Xavier, que faz todo esse trabalho em Uberaba. Um trabalho muito bacana, muito respeitado. E meu pai está enterrado no túmulo da família dos Bachelli que é de Uberaba também, né? É isso, mas os amigos ficaram. Alguns se perderam na névoa do tempo mesmo, mas foi muito legal, assim, e é bacana. Eu sempre, quando chegar em um lugar, quando a gente mudava para um lugar você agrega os valores daquele lugar. Se você vai para o Japão, o mínimo que você pode fazer é comer comida japonesa, senão você vai criar um ranço consigo mesmo e com o que está ao seu redor. Quem tem que se adaptar é quem chega, isso é óbvio Se você vai morar na minha casa, você tem que se adaptar com a minha rotina, por isso 12 vezes casado. Putz
P - E você então foi adolescente no interior de São Paulo? E como era assim, qual lazer que você tinha? Como eram as festas que você ia? Você ia a festas?
R - Eu tive contato total com isso, né? Uma coisa de circos, circos mambembes mesmo, circo teatro, circo Teatro do Biriba, todo mundo conheceu no interior. O que me levou depois a fazer teatro. E tem uma coisa que fica muito registrado, é muito gostoso são as brincadeiras de criança do interior que é pique de esconder, nada além disso, nada de shoppings, nada de lojas, nada de brinquedos eletrônicos, brincar de cabaninha, de nadar pelado nos rios, apanhar para caramba porque nadava pelado, cabulava aula para caramba, mas ao mesmo tempo cuidar de toda a parte cultural das escolas, né? Eu brinco até com o meus sobrinhos, eu falo: “Pô, o tio, olha o negócio é o seguinte”, falo para todos: “Quem tira dez, esse negócio de tirar dez tem alguma coisa errado, porque ninguém tira dez. Se você ficar sendo pressionado que tirar dez você é o bambambam está errado. Cola para caramba”, sou subversivo nisso, “Cola porque todo mundo cola, não vem com essa história. Cola mesmo Se der, é claro Se levar, né? Agora o sete está ótimo” Eu sempre fui aluno sete, para mim está ótimo, né? E a questão da escola, como eu sempre entrava no meio do ano, no final do ano, no começo do ano, eu sempre cuidava da parte para o Grêmio, da parte cultural das escolas. Então tinha desfile, Sete de Setembro, né? Aliás, porra, eu não sei por que inventaram esse desfile de Sete de Setembro, até hoje eu não entendo. Mas tudo bem, vocês estão dando risadas, mas é papo sério mesmo. Puta merda, eu não entendia aquilo, era pra ver cavalo fazendo cocô no meio da rua. A gente fica ensaiando para caramba, a molecada adora ensaiar, porque cabula aula, isso sim é uma delícia Mas a gente não entendia o contexto da coisa: “Vamos comemorar a tal da Independência” Legal, historicamente legal, pros estudiosos legal, mas a gente não entendia, gostava de confraternização das pessoas. Então, eu cuidava de inventar aquelas histórias malucas. Uma vez fazer um carro alegórico representando a fauna brasileira: eu catei os bichos empalhados do meu pai todos, pusemos uma palmeira gigantesca, eu tenho até essa foto com a Professora Gleide. Era legal, legal Não dá para falar muito sobre isso, mas foi muito rico. Tive contatos com grandes autores, tive professores e mestres muito legais. Tive um que me ensinou que pode se pirar a qualquer momento. O Paulão, que não sei se é vivo ainda, professor de inglês, que no meio do ano pirou, a cabeça, surtou completamente. Ele levava um gravadorzinho, punha em cima da mesa e ouvia Beatles e a gente acabava com a sala de aula, né, graças a Deus. A gente detonava tudo E ele passava todo mundo. Paulo, em Jardinópolis, Paulão, pirou a cabeça. Tinha a professora Cida que era a Cidona de Português. Essas são as impressões que eu tenho na escola, tá? A Cidona fazia caridade com a molecada mesmo, dava nota boa para todo mundo. No banheiro do colégio: “Cida você está ligada se você ver isso”, é complicado, mas muito interessante, ela, na verdade ela era professora de Português mas dava aula de Educação Sexual, no colégio todo. A Cida era muito conhecida. Isso ficou, acho que talvez foi o primeiro contato meu com essa coisa de sexualidade humana, porque meu pai, por exemplo, me falou sobre masturbação mas ele não tinha essa lida, né? Porque não sei, não sei, a gente... Não sei, não sei, a gente aprende na escola, tudo. Mas foi nessa época da Cida que você começa a perceber, sabe quando você está se guiando pela vida e não se toca. De repente você fala: “Mas que putaria que é isso? Caramba, tem alguma coisa errada” Mas aí você vai ver que não é errado, faz parte da natureza humana, né, então aí cabe a você ou não, a se nortear em relação a aprender aquilo que está. Algo está errado. O que me parece que ainda continua ausente em muitas famílias, por estarem se omitindo em relação a isso, né, na descoberta dos adolescentes quanto à sexualidade. Claro, estão sexualmente mais cedo fazendo o que se faz naturalmente, não tem nada de mais cedo, né? Cria-se uma... Mas foi um tempo muito bom, um tempo de... se havia drogas, eram as drogas que eu nunca vi nada que pudesse dizer como hoje, né? Hoje para chegar aqui, eu vi três caras já cedinho fumando maconha perto do metrô, de boa, né, de boa, e ainda dando baforadas, assim. Eu moro no Bela Vista. Bela Vista come-se com farinha, então eu imagino que as crianças, e os adolescentes, eles adotaram um, adotam uma performance que não dá para entender. Eles estão dando um grito que a gente não dava, era um grito diferente, eu sinto isso, nas escolas. Hoje, os adolescentes, eles têm o foco mas não têm a intenção. Então fica caracterizado para mim, me confunde a cabeça o ícone do Seu Madruga, que é muito idolatrado hoje até entre os jovens, assim, de classe média, nas camisetas. Eles pegaram, como eles conseguem pegar o mito, né, descaracterizar o mito original, e fazer uma releitura dele e já implementar. Gente, tem DVD do Chaves fumando maconha, é vendido em qualquer lugar. O Chaves não sei se já morreu, o ator, mas enfim. Então isso para mim são sinais, eles estão dando sinais, e a sociedade não vê isso, ou não querem ver. Como a família que não quer ver o filho, sabe mas não quer ver que o filho é viciado.
P - Isso você acha que não acontecia na sua época?
R - Se acontecia passou batido, porque por mim. A minha vida sempre foi uma droga, meu lar acho que sempre me deu essa coisa de viver, né? Nunca precisei de absolutamente nada disso, muito pelo contrário, às vezes que eu utilizei sempre me inibiam em relação à sensibilidade. Então eu sempre fui à flor da pele mesmo. E talvez por não me preocupar com isso, porque o que me traz sofreguidão não me interessa, nunca me interessou. Então, se me trouxe peso, não me interessou. Mas não era comum, sem papo de saudosismo, não é? A gente ouvia falar: “Pôxa”. Eu já trabalhava na PRODESP, aqui, e eu fui chamado urgentemente para fazer uma ficha de uma pessoa que entrou, desconhecida no HC, eu dava plantão, treinamento, no HC, no Pronto Socorro do HC – eu estou falando sobre isso em relação ao que a gente estava falando sobre drogas, e isso é fato, eu estava lá, é fato, fato verídico. Eu estava no treinamento, aquela confusão que é, imagina o que é trabalhar num Pronto Socorro do HC, aí o coordenador do Pronto Socorro falou: “Guido, vamos lá comigo, que chegou um corpo e um paciente, e a gente precisa fazer uma ficha”. Quando chegava, acho que até hoje é assim, você leva uma prancheta como essa, calcula mais ou menos a altura é tanto, tanto e tanto, e tira. Era uma mulher, de meia idade, meia idade e tal, e ela estava tendo uns espasmos, assim, e eu, putz, muito jovem, acho que eu tinha, que eu entrei na PRODESP com 18 anos, eu devia ter uns 19 anos nessa época. E eu olhava aquela pessoa tendo espasmos assim, lá eu vi cada coisa impressionante. E aí eu comecei a olhar, mais ou menos de um metro e cinqüenta, e um metro e sessenta de altura e anotava, cor branca, laralarã. E no final eu falei: “Tá, e a gente põe o quê?” Ele falou: “Põe tentativa de suicídio, né?” Eu pus, lógico, a gente tinha que lançar isso no sistema. Isso é uma passagem legal, interessante, legal mesmo. Aí eu vi. Aí imediatamente já me afastaram, levaram aqueles negócios lá e tal que a gente vê mais em filme pra o choque, né? Quando eu saí eu fui lá para o sistema aí lancei: desconhecido, tal tal tal. Aí imediatamente virou um furdunço assim, virou um reboliço. Aí chegaram várias pessoas e começaram a falar: “Porque não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê, tem que tirar, tem que apagar do sistema” “Mas como? Agora não dá” Liguei pro gerente lá da PRODESP, lá na nossa unidade: “Como é que a gente faz, vamos deletar? Eu já mandei” Sabe aquela coisa? Era mainframe, não tinha nada de rede de micro na época, era tudo interligado, tudo no computador central. Virou um fuá E eu não entendia pizza nenhuma. Fim das contas: vieram com uma ficha para substituir aquela que foi criada, aí vem o nome da pessoa: Maria da Graça, e aí vai, vai... Era Elis Regina e apagaram todos os dados do momento. Ela chegou viva. Ela chegou viva lá, pombas Mas ela já estava provavelmente... Ou aquela coisa de impressão, né, de você que é leigo não sabe também se a pessoa está viva ou não, se ela tem reação ao corpo. Mas, meu, eu vi a Elis Regina ali, nos seus últimos momentos, né? E depois, que subi isso aí eu fiquei assim e tal, aí eu liguei para a Bandeirantes, peguei um telefone lá assim para noticiar porque tinha lá uma indicação, caso acontecesse alguma coisa você ligava para a imprensa. Aí foi a Bandeirantes que inclusive que fez o, acho que foi o velório dela, né? Esse momento foi... A partir daí eu conheci Elis Regina de fato. Aí eu fui procurar saber quem era Elis Regina, puta, aí o resto da minha vida ela me acompanhou.
P - Deixa eu entender uma coisa: isso você já tinha retornado para São Paulo?
R - Foi.
P - Você retornou para cá com quantos anos?
R - 17 anos, sozinho.
P - Sozinho? Sua família continuou lá?
R - Continuou, continuam em Uberaba. Aí já estavam em Uberaba.
P - Você veio para estudar? Pra trabalhar?
R - Eu vim para viver a minha vida, e aí foi. Aí eu comecei toda uma longa jornada também, né? Daí já independente assim. Morei numa pensão. Morava na Rua Direita, trabalhei na... Eu pedi transferência de uma loja chamada Casas Pernambucanas, que meu Deus do céu Meu Jesus, o que é aquilo? Meu Deus, aquilo era... Imagina, eu estava começando a ter consciência: trabalhava num lugar que parecia um campo de nazismo, era nazismo absoluto, era uma coisa assim... Eu não vi nem na FEBEM [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor], que trabalhei, coisas tão toscas e tão bizarras do que eu vi naquilo.
P - Nas Lojas?
R - Nas Lojas, entre funcionários, entre chefias, pessoas extremamente despreparadas pra organizar, pra chefiar pra mandar, assim, coisas terríveis mesmo.
P - Foi o seu primeiro trabalho?
R - Eu sempre trabalhei, desde os nove anos, né, mas com meu pai, sempre trabalhando muito, nunca parei de trabalhar. Mas assim, independente, foi. Porque eu estava nas Pernambucanas de Uberaba, pedi transferência e vim trabalhar como auxiliar de crédito na Rua Direita. Desse tempo, até esse rapaz está até hoje lá: é um mendigo, faz 20 e poucos anos isso, é um mendigo que até hoje eu chamo de “Atender”, acho que ele atende na Rua Direita. Ele punha um bife de fígado em cima da perna, ele passa a unha assim. A técnica é: põe um bife de fígado cru, joga mercúrio cromo e passa vaselina. Então o fígado com o sol ele vai murchando, parece uma ferida. É um senhor que está até hoje lá. E eu, quando eu vim morara para cá, eu ia morar na loja. Na verdade eu era prisioneiro da loja, porque não podia sair da loja, e eu morava no último andar, onde moravam vários funcionários. Então eu limpava o banheiro, limpava tudo lá em cima e vivia trancado, porque de domingo a porta tinha que ficar trancada, então só tinha um buraquinho que eu passava o domingo olhando a Rua Direita, e esse mendigo ficava embaixo do buraquinho, embaixo do buraquinho assim. E então eu via tudo, porque eu ficava ali, não podia fazer nada. Então eu não via chegar a segunda-feira, não tinha televisão. Foi nessa época também que o meu pai me ligava e dizia: ”Filho, vem embora Como é que você está? Meu coração está apertado” Eu dizia, “Não pai, está tudo bem” Mas na verdade eu não estava nada bem, porque eu estava crescendo. Então a comida, por exemplo, era um pacote de bolacha Wafer e um litro de leite. Eu me encantei com o leite de caixinha, no interior não tinha. Então de manhã eu comia meio pacote e meio litro de leite, guardava embaixo da cama, e à noite eu comia o restante. Todos os dias isso, foram meses. Essa foi a minha alimentação. E sempre trancado lá dentro. Aí depois foi que eu prestei a FEBEM... A PRODESP, aí entrei pela PRODESP, né? Aí foi a minha... Esse mendigo está lá até hoje, até hoje. Ele, é impressionante como uma pessoa passa a vida toda enganando as outras pessoas, forjando, né, e vivendo às custas disso. Esse tempo atrás, por eu morar próximo à Rua Direita, né, eu moro na Genebra, e é onde eu quero, se assim permitir todas as forças, desencarnar mesmo, é que as minhas cinzas sejam espalhadas pela Praça da Sé. Isso os meus amigos já sabem. Não quero mais nada, só na Praça da Sé, eu acho o coração que pulsa de São Paulo, a minha paixão, a minha vida é São Paulo. Eu amo isso aqui, essa coisa, a urina das calçadas do centro, o cheiro daquelas pessoas. Eu não obedeço a roteiro, né, você pergunta uma coisa eu vou para outra.
P - Não se preocupe. Aí desde então você nunca mais saiu de São Paulo?
R - Putz, saí quando, putz, eu saí há 14 anos. Quando eu vim para cá, eu entrei na PRODESP e fiquei 12 anos, ou 13 anos, não me lembro, foi... Aí me aconteceram muitas coisas, muitas coisas, muitas coisas, que eu não vou entrar nisso não por que se não vocês vão se cansar.
P - Não se preocupe a gente.
R - Não, é muita coisa.
P - O que você fazia na PRODESP?
R - Eu era operador de sistemas, controlador de qualidade, operador de sistemas.
P - E foi nesse ínterim que voce...
R - Já fiz teatro, né, Macunaíma [Teatro Escola Macunaíma, São Paulo. Depois, eu fiz Célia e Helena, fui a primeira turma de Célia Helena [Teatro Célia Helena], estudei com Cássio Scapin, com a... Tudo molecada, tudo molecada. Depois, no Paiol [Teatro Paiol], com Paulo Goulart, a Nicette Bruno, as boas lembranças do Paiol. E o [Teatro Escola] Macunaíma, do Sílvio Zilber, tinha convênios, né? Então a gente... Aí montei o grupo de teatro, depois montei várias e montamos vários espetáculos assim, de estudante, né, mas foi muito legal. Íamos em rua, praça pública. Sempre trabalhando na PRODESP, porque a PRODESP sempre foi a minha sustentação, né? Daí fiz o Marcelo Tupinambá, que era Faculdade, que eu acho que nem existe mais, se existe deve estar em algum lugar aí, porque o dono era um mecenas, o Hand, um mecenas, lá eu conheci muita gente bacana. Também fiz grandes amigos, professores, né, um deles que é a maluca da Estefânia.
P - Você fez que curso?
R - De Artes Cênicas e História da Arte, né? E foi uma época muito rica porque tenho esse grupo de amigos que se preservou, que são os remanescentes dos grupos de teatro. Já são tudo maluco, tem a Santina que casou com o Paulo, você já viu? Novinhos que se casam e se toleram? São muitos contemporâneos, nos revemos e muita emoção no começo do ano, depois de 25 anos nos vemos de novo. Porque eu fiquei ausente daqui 15 anos, no meu êxodo de novo para o interior. Aí nessa época eu estava casado, e aí eu fui para Jardinópolis. Saí da PRODESP e fui montar um ateliê. Aí eu me tornei restaurador de peças antigas, de imagens sacras, desenvolvi a técnica de feitura de moldes de silicone e montei uma fábrica de peças infantis para aniversário. Sou muito conhecido em Ribeirão, nessa região. No meu ateliê fazíamos festas, até eu achava engraçado, porque fazia a lembrança do nascimento, olha que bacana, fidelidade isso, né? A lembrança do nascimento da criança, depois lembrança do primeiro ano, segundo ano, terceiro ano, quarto ano, quinto ano. Aí depois você não faz mais aniversário de filho, né, quinto ano. Eu já cheguei a fazer lembrança de noivado, de casamento, eu falei: “Putz, caraca, bacana” E de gerações assim, lembranças de 15 anos da garota, e depois lembrança dos filhos do nascimento dela. Depois, lembrança do primeiro, do segundo ano dos filhos, da qual eu fiz.
P - E quando foi o seu casamento?
R - Esse quando foi?
P - O seu primeiro casamento.
R - O meu primeiro casamento, putz, o meu primeiro casamento foi muito legal A minha questão, é uma questão muito bacana mesmo, por que a minha sexualidade foi muito bem resolvida, sempre fui muito bem resolvido, porque eu sempre tive muito acolhimento em casa, né? E o acolhimento ele se dá de várias formas. Às vezes, as pessoas te acolhem, em especial família, mas necessariamente você não precisa, não precisa se falar sobre. E qual é o maior tabu de uma sociedade? Qual o maior tabu? Sempre foi: o sexual. O sexo, né? Porque todo mundo tem uma coisa assim, como dizia Nelson Rodrigues, que eu acho perfeito: “Se todos conhecessem a vida sexual um dos outros, ninguém olhava na cara um do outro também”. Porque isso é uma coisa muito de cada um, é da pessoa mesmo, das pessoas, e quando já tinha... Não tinha nem parado para pensar isso, sobre sexo, com 18 anos.
P - Você não teve a namoradinha, o primeiro beijo, na adolescência?
R - Não. Não. Passou em branco para mim a questão sexual. Fora as brincadeirinhas de primos, de, aquelas bobaginhas, assim de coleguinhas, mas nada, nada, não.
P - E a sua primeira namorada ou namorado, quantos anos?
R - Olha, que eu me lembre, eu tive uma namorada a Rosemeire, em Uberaba, mas assim, na verdade idade foi logo um pouco antes de eu vir embora para cá. Então, não me lembro. A gente se via de vez em quando, até hoje, quando eu vou lá visitar o túmulo do meu pai. Mas a minha vida mesmo só começou quando eu já morava sozinho, quando eu me identifiquei na vida algumas coisas que eu queria. Aí eu refleti umas coisas, peguei o ônibus, fui até – o meu pai já morava onde ele morreu: Conceição das Alagoas – abrimos um vinho, aí eu falei: “Pai, olha, eu preciso te falar uma coisa”. Aí ele falou: “Fala, o que é? Você vem embora para cá?” Falei: “Não, não. Eu estou namorando e eu quero que você conheça o meu namorado. E ele pode vir aqui?” Meu pau era enorme assim, sabe? Era um troglodita doce. Aí ele falou: “Puta merda, você me ferrou agora Você acabou com a minha honra agora, porra” Desse jeito mesmo. Aí eu falei: “Não, ferrei nada. Cara, eu estou te falando porque você é a pessoa única na minha vida que eu necessito de que saiba sobre mim. Mais ninguém precisa saber absolutamente nada de mim. Então nisso a gente vai travar um elo, porque eu te amo, cara, te amo mesmo. Independentemente de qualquer coisa eu te amo E estou te falando isso...” Olha que eu tinha 18 anos assim, “Eu estou te falando isso porque”, parece frase feita, mas eu disse: “Eu não preciso de aceitação, eu quero que você me respeite Eu quero chegar de cabeça erguida aqui, porque aqui é o único lugar que eu piso e sei que é o meu canto” Aí ele falou: “Puta meu, então me dá um tempo assim, me dá um tempo aí, eu preciso pensar sobre isso”. Eu falei: “Então tá bom” Já mudamos de assunto, começamos a tomar um vinho, dar risadas e fui embora, fui para um mosteiro em Patos de Minas. Eu recomendo a todo mundo, viu, vai lá você pensar um pouco sobre isso, Patos de Minas: Mosteiro Franciscano você pode ir, não sei se mulher pode.
P - É uma hospedagem?
R - Hospedagem o tempo que você quiser indefinido. Não precisa se identificar, e você ajuda. E eu fiquei 15 dias lá, ouvindo cantos gregorianos, observando, ajudando na horta, na cozinha, dormindo num quartinho simples Franciscano, com o Frei Luís da época, em Patos de Minhas, maravilhoso Me ajudou
P - Você foi refletir
R - Fui refletir, voltei e quando eu parei para vir embora para cá, meu pai me disse: “Tá, nem falo nada, já sei, você quer ser Franciscano”. Aí, eu falei: “Puta, adivinhou”” Ele falou: “Não, faz o seguinte, pega o ônibus e volta para São Paulo, e vai trabalhar rapaz” Aí eu entendi o que ele quis dizer, né? E foi quando eu falei para ele, 15 dias depois ele me ligou e disse: “Tá bom” Isso ficou gravado: “O caboclo aí joga truco?” Eu falei:: “Joga, joga, acho que joga.” “Gosta de Pescar?” Mas assim seco, sabe? Esse depoimento é muito legal para as pessoas viveram isso, viu? Tem muitas pessoas que não conseguem lidar com isso. Lida de frente com qualquer questão, pô, ela é sua, vale a pena. “Então tá bom Então traz aí, deixa eu conhecer” Aí foi muito legal, a partir daí eu tive mais força na minha vida, de poder enfrentar as dificuldades, não as questões sexuais, mas as dificuldades que a vida nos apresentam. Aí lidamos de igual para igual. Infelizmente meu pai faleceu 15 dias depois, atropelado. Então, foi uma perda, uma ruptura, foi assim um rasgo muito grande. Porque eu o louvo de ter me entregado por completo e ele ter absorvido isso. Porque isso me deu a força que eu sou em sempre me conduzir. Eu tenho os meus pudores, tenho os meus tabus, mas sou uma pessoa que me norteei exatamente por isso, o nome dessa instituição: pessoa. Pessoa é o que ela é. É muito mais do que o físico. Muito mais do que idéias. Pessoas são pessoas. Tem um poema do Fernando Pessoa, que é “O Guardador de Rebanhos”, e eu sugiro quem não leu leia, que é maravilhoso, e ele fala de um trecho dele numa ode, não sei, não sou literário a tal ponto dizer. Bom, enfim, que ele descobriu que montanha, a flor, a rocha, o rio, as nuvens são indivíduos, eles são, não são um conjunto chamado natureza. Natureza não é o todo, cada coisa tem vida própria. Quando você se refere à natureza, a gente tem uma tendência a englobar tudo. Então quando você fala natureza humana. Olha, você coloca tudo dentro de um pacote, como se fossemos todos o mesmo pacote. O conteúdo igual. Não. A natureza humana ela é subdividida em várias etapas comportamentais, né, sejam elas de idéias, de ações. Por isso, a natureza humana ela é tão ampla, tão difusa. Quando o Fernando Pessoa fala exatamente sobre isso, eu sinto dentro de mim, na releitura, como leitor, que quando você fecha um ciclo, você necessariamente precisa abrir outro. Porque é o desabrochar. Você me falou que está fazendo... Puta, eu acho que tô falando tanto... (pausa) Estava pensando agora, numa coisa que eu queria dizer para vocês. Há muito tempo, e diga-se muito tempo, eu não tinha tempo para mim mesmo, pra pensar sobre mim, sobre minha história. E me levou a uma reflexão agora ali fora porque que isso acontece, porque que nós não... Bom, porque acontece isso de... Eu estar falando tudo isso que eu já disse, mexeu muito comigo, né, profundamente. E me leva a pensar que quantas vezes alguém está falando com a gente sobre sua vida, sobre seu passado, seus problemas. E a gente não dá tanta atenção. E o quanto é importante para quem está falando, porque a pessoa está vivendo aquilo. Talvez a gente acaba pecando muito, por não se dedicar um pouco, sabe, a ouvir as pessoas, e pelo menos compartilhar aquilo. Umas das minhas experiências também muito boa, aliás, muito bacana, que marcou minha vida foi ser plantonista do CVV [Centro de Valorização da Vida] durante um tempo. Mas você me perguntou sobre religião, né? Eu sou espiritualista e para mim chegar até aqui, eu percorri uma longa jornada: já fui batizado na Batista, na Metodista, fui coroinha na infância, fui Pai Pequeno de um Ilê de Candomblé durante alguns anos, aqui em São Paulo. E hoje eu sou mentor de uma Ordem, chama-se Ordem da Cruzada da Luz. É uma ordem original, que tem como fundamento o espiritualismo de uma forma muito interessante mesmo. Eu sou médium de incorporação, e durante toda a minha vida eu sempre tive uma companhia. Na verdade, essa coisa de pai, quando você me perguntou, o meu pai carnal foi o Ailton, e eu tenho o meu pai espiritual que me acompanha a vida toda, seja aqui ou em outras vidas, as quais fogem até mesmo da nossa especulação. Enquanto estamos aqui, vamos viver o aqui, para que descobrir o que está do outro lado das estrelas, se a parte que me cabe agora é a banda de cá, desse lado. E isso que queria registrar para vocês, porque... E para as pessoas que me conhecerão, ou me conhecem, e esse ser chama-se “Ramadés do Nilo”. É curioso que sempre me acompanhou desde pequeno, me acompanha, e é um ser de muita luz, assim, muita sabedoria. Meu grande companheiro que sei que esteve comigo desde o berço, e até o último suspiro deste plano ele vai estar. Ele já conversou com muitas pessoas, durante uma fase da minha vida, que é muito recente, eu realizei muitas palestras, né, para muitas pessoas, fazendo atendimentos em relação a exatamente isso que eu estava me reportando no começo agora dessa reflexão, que eu estive lá fora. Na verdade é um esteio, dentro dessa complexidade do que é um ser, né? Encontrei todos os... Isso me toca profundamente, porque é a minha essência pura, é o que mais me interessa. Eu nunca me encantei por absolutamente nada na vida. Eu sempre me encantei pela alma humana, a alma das coisas. E a minha vida se norteou por isso. Quando você me falou sobre escolas, as escolas que passei, eu não tenho registro a não ser a impressão humana, as outras coisas eu não acumulei, como eu não acumulei nada do que eu tive. Eu não sei o que eu tive. Não sei se isso é certo ou errado, mas esse sou eu Essa oportunidade que eu tive na vida de sempre conseguir enxergar, naturalmente, as coisas além do que elas aparentam ser, nas pessoas, nos fatos, me deram uma sensibilidade muito grande quanto à pequenez de tempo que a gente tem nesse plano. O plano que eu digo, isso não é religião, é uma questão de filosofia de vida, é tudo muito breve: os amores, as dores, tudo muito breve. Eu me lembro de palpitações que tive em amores que estavam moribundos, e eles são similares à palpitação que a minha mãe teve com câncer no leito, são iguais Nós somos tão perfeitos que nós temos a sensibilidade de captar quando algo está nascendo, está florescendo e está morrendo. E é quando vem à tona realmente quem somos. O idealizador do Teatro da Crueldade, que é Antonin Artaud, ele me lembra muito bem disso, ele coloca que “O ser humano só é verdadeiro na dor”. No amor ele é dissimulado, na alegria ele dissimula, mas na dor não. Quando dói, dói mesmo. Quando a gente se entristece, a gente se entristece mesmo. Quando você dá um grito de alerta, você dá um grito mesmo, e é remanescente lá do primitivo, o instintivo. Eu sempre compartilhei da idéia de que memórias, por isso dar um depoimento sobre mim mesmo é bem complicado, porque as memórias, na minha concepção, mesmo elas enquadram tudo o que você viveu, tudo o que eu vivi. Por exemplo, eu sonhei um dia em ter qual era o meu desejo maior, parafraseando Macabéa, o meu desejo maior era ser datilógrafo, era ser auxiliar de escritório. Você pode acreditar Eu nunca consegui sentir ou ter a necessidade de ser doutor, por exemplo, não sei se isso era ingenuidade, ou não sei.
P - Guido, por falar nisso assim de profissão, conta um pouco da sua profissão, o que você está fazendo hoje? Como foi que aconteceu para você chegar a isso?
R - Eu trabalhava na PRODESP aqui. Aí eu saí, fui embora pra Jardinópolis, lá eu não sabia o que fazer e sabia ao mesmo tempo, que eu queria estar junto à minha mãe e da minha família que eu tinha ficado pra lá, minhas irmãs. Então eu fui retomar uma etapa da minha vida que tinha ficado para trás. Aí montei um ateliê. Pintei muito, muito, muito, muito mesmo, muitas telas, muitas telas, muitas telas. Sempre sobrevivi do meu trabalho de arte. E para mim a arte flui naturalmente, sem convenções. Então a arte que pagou o meu arroz, meu feijãoenfim, a minha vida que manteve, sempre fluiu naturalmente das necessidades das pessoas. Então se eu quero isso... Eu sempre atendi uma senhorinha que chegava com uma Nossa Senhora da Aparecida desse tamanho de plástico, e falava para mim, assim, isso eu nunca vou esquecer: “Você pode restaurar pra mim?” Muito simples, ela nem sabia o que era uma restauração. Aí eu: ”Pôxa, claro” Aí eu punha assim na minha mesa, chegava um padre de uma Catedral e dizia: “Eu quero uma Nossa Senhora do Perpétuo Socorro de dois metros de altura, da mesma cor, da mesma forma” Como eu vivo tudo intensamente, nessa etapa, foram 14 anos, eu estudei a vida dos Santos, porque quando eu restaurava as peças sacras eu precisava saber quem era aquela lá Santa Bárbara, porque ela estava com aquilo? Por que Santa Catarina? Por que Santa Tereza D´Ávila? Por que ouro ia a tambaqui... Por que Santa Baquita só aparece busto assim? Por que que Perpétua do Socorro? Por que Nossa Senhora do Carmo tem um pingente na mão e um menino Jesus? E por que tem imagem, enfim. Então eu colocava toda essa verdade minha edificada no que eu buscava, em cima daquilo que eu fazia. Então isso sempre foi uma coisa muito positiva, né?
P - Você trabalhava com artes plásticas, e por que você escolheu trabalhar com a restauração de obra sacra?
R - A vida nos conduz. Você pode se formar Veterinária e pode trabalhar de garçonete, ou vice e versa, pode ser até uma Executiva. Pode ser o que for, sei lá... A vida te conduz.
P - Aconteceu?
R - Acontece tudo na vida, desde que você permita, então eu permiti, com certeza. É a busca de uma realização, né?
P - Você tinha alguma afinidade com isso?
R - Claro, faz parte, né, da arte. A arte de um modo geral é tudo, né? Então você desfragmenta ela naquilo que você tem aptidão, né? E dentro disso fiz coreografia para a banda de rock, de abertura de show, cenários, né, para apresentação de espetáculo. Mas tudo, sempre, tudo muito anônimo. A minha realização profissional sempre foi: eu sou de bastidores, eu gosto disso, eu gosto de cozinha numa casa, né, eu acho, nossa me dá tesão isso E romper isso, depois caminhar, seguir uma linha que vai fazendo isso. Vai fazendo um reboliço na tua vida. De repente, você não percebe, profissionalmente você está fazendo uma coisa que você não imaginava que você ia fazer, e a vida te conduziu e você se deixou levar, né? Então uma coisa pré concebida, tudo o que é pré, né, pré conceituada, pré concebida. Então a vida vai te encaminhando. Nós somos um barco. Isso é o que eu poderia traduzir profissionalmente. Quando houve a morte da minha mãe uma ruptura, eu parei tudo, fechei o ateliê, parei tudo. Por quê? Por que eu não conseguia olhar para a minha bancada de pintura, minha mãe ficava até o último tempo assim, ela enxergava muito pouco, ela ficava assim na pecinha, pintando assim, e a gente dava risada, muita risada e ela continuava contando as suas histórias. E me via dentro do ateliê olhando, sem dinheiro, sem nada, não, não... Sempre ajudei todo mundo. Sempre fiz pelas pessoas, eu não tenho nada, a minha bagagem é o que eu sou, é com ela que eu parto. Caixão não tem gaveta, né, já dizia o sábio da televisão brasileira, que caixão não tem gaveta. E a profissão foi se encaminhando assim. Foi se direcionando, né? Uma vez, eu nunca esqueço, que eu me emocionei muito solitariamente, tem uma procissão anual que sai na cidade de Jardinópolis, que é a cidade de Bom Jesus da Lapa, e saem aquelas imagens – isso ainda existe, viu? Nem todo lugar do Brasil tem internet. Tem pessoas que estão “cagando e andando” para Ipod, para Tablet, para monitor LCD, estão “cagando e andando”, literalmente. Têm pessoas que são maravilhosamente felizes sem ter conhecido essa luz elétrica. E eu conheço isso. Uma vez, eu estava parado assim, saí do ateliê, já era tarde, para variar sempre sujo de tinta e a procissão ia passando e eu falei: “Ah, vou lá”. Porque têm coisas que são especiais para mim, que eu as elejo que são especiais. O estar aqui para mim é muito especial hoje. É um momento muito importante, muito especial. É meu, tudo o que é meu é muito especial. Porque eu só estou lá porque eu quero estar. Isso eu sempre fiz. Nesse dia eu estava numa esquininha, e passam, são 14 ou 15 andores, e vêm romeiros de toda a região, é muito famoso mesmo. E a procissão é longa, muita gente. E eu parado encostado no coqueiro assim, olhando, eu... caiu a minha ficha assim, caiu minha idéia assim sozinho: todo andor que passava tinha passado pelo meu bisturi, todas as imagens, todos Eu lembrava de Nossa Senhora das Cabeças quando ela passou e ficou no meu ateliê, e eu fiquei ali fuçando dentro dela e restaurando tudo: tirava o olho, punha, sabe? Tudo Desde a menorzinha Nossa Senhora Aparecida, o São Benedito, eu fiz a cuia que vai, sabe assim? Tipo, dez mil pessoas andando atrás, e você fala: “Putz, caraça Que que é? Meu, é o maior prazer profissional, você saber que você... Teve um fato curioso, eu fiz a réplica do Bom Jesus da Lapa da cidade, que é muito cultuado, muito venerado. E a réplica... A original ficou na minha casa durante muito tempo. Eu fiquei acho que três meses fazendo a réplica, que ainda está lá no mesmo lugarzinho. E esse fato é muito curioso, muito legal. Saiu na imprensa que o Bom Jesus da Lapa tinha sido raptado, sequestrado, sequestraram a imagem de Bom Jesus da Lapa de Jardinópolis, e cortaram o pé e mandaram para o Padre pedindo o resgate.
P - Gente
R - O Bom Jesus da Lapa fui eu que fiz, porque sequestraram o original não, a réplica. O Padre veio falar comigo, aliás, o Padre já foi, que a terra lhe seja leve, ele era muito chato, e falso como muitos que eu conheci, muitas pessoas artificiais, tem uma passagem muito complicada quanto a isso, mas é fato, foi vivido. E ele não pagava o resgate por quê? Porque era uma réplica Mas olha que miolo mole: eles seqüestraram a imagem de bicicleta, que posteriormente eu dei aula dentro da FEBEM [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor] para um dos meninos que seqüestrou, que ele não sabia que era eu que tinha feito. E aí uma vez numa aula a gente conversando, que eu levava uns trabalhos para a gente fazer e tal, aí eu disse: “Então, tem um Bom Jesus da Lapa, e tal”, ele falou: “Pô, senhor, foi o senhor que fez? Eu que fiz aquela fita lá e tal” “Você está brincando, meu? Mas, cérebro de anta, que miolo” “É foi mal, não sei o que” “Por isso que vocês abandonaram, que ninguém queria”, ele é enorme deste tamanho aqui. Depois ele veio para mim restaurar de novo. Aí eu refiz o pé, né? Mas eu só dei essa passagem porque isso me tocou muito profissionalmente, assim, eu vi como era grande o meu trabalho, pra mim. Às vezes a gente se sente muito deprimido no trabalho, porque você fica esperando o reconhecimento de alguém, alguém dito superior, que possa dizer: “Putz, ó, você tá demais, você está demais, Vanusa Putz, meu, o que eu faço aqui no Museu da Pessoa sem você? O que eu vou fazer sem você?” E você fica aguardando aquilo e aquilo não vem, cara, e aí vai te frustrando a tal ponto que você sabe que você tem o melhor para dar de si. Mas quer saber a verdade? Dentro de uma relação, seja ela qual for, por mais que a gente saiba que a gente tem muito a dar, chega uma hora que a gente não tem mais estímulo pra isso. Aí ela vai... É o processo, que eu me referi, de morte, tá morrendo. Naquele momento eu vi que, putz, eu acho que eu tinha chegado pra mim sozinho assim, anonimamente a algo que para mim foi fantástico Então eu gozei mesmo, gozei Nesse momento eu comecei a fazer peças infantis. Aí eu comecei a criar peças infantis, porque eu gosto muito de criança, de animas, plantas, isso pra mim é uma bênção da natureza divina. E aí eu comecei a criar para aniversários infantis, e faço até hoje, aqui eu não tenho mais nada, mas eu posso criar qualquer coisa em qualquer lugar, quer o Shrek dançando pagode? É comigo mesmo, já crio, a gente já reproduz, põe na mesa dos teus filhos um monte de Shrek, tudo lindo, sem pagar royalty, não tem essa de pagar royalty para ninguém não. Então eu fechei o ciclo do religioso, do sacro, né? Sacro, né, vou colocar assim, e me especializei nessa infantil. Aí curti mesmo, porque é uma coisa que eu sempre gostei, né, um monte de filmes, desenho e tal. Até fechar isso e ir dar aula na FEBEM [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor]. Aí eu fui, me tornei um arte educador. Na verdade, eu não me tornei, eu descobri que eu era arte educador. Aí eu fui pesquisar sobre. Tudo o que eu vou fazer eu pesquiso antes, para me informar, cada vez mais o que essa área. Descobri que a arte educação é um engodo. Pode pensar o que for, podem falar o que for, é uma mentira Muito Cacique numa tribo com pouco índio. Os eruditos da pedagogia... Pedagogia é algo, quem fez Pedagogia que é assustador, tem livro pra tudo cara, tudo Para te dizer como você vai fazer, como você vai dar aula. Só que esquecem de um detalhe: estão “cagando e andando” pro professor dentro da sala de aula A lida com a pessoinha que está ali, ou pessoona, né, porque espírito gera... Corpo gera corpo, e espírito é criado por Deus. Essa é a minha concepção de vida. O espírito não engravida. Não tem espírito grávido. O corpo... Então aqueles espíritos, aqueles serezinhos ali, pessoainhas, que são pessoonas, na lida o professor que tá ali, puta, não tem livro, não tem nada porque a relação é ali: “pá pum”. Não adianta nada você estudar, se tornar um erudito em pedagogia, e você chegar ali e tá o teu aluno está com dor de dente, e aí? Cadê? Onde está escrito no livro isso? Você está falando da Capitania Hereditária e ele está com dor de dente. Então, é... Profissão, quando você me perguntou lá, eu esqueci seu nome, você acredita nisso?
P - Mariana.
R - Mariana. Mariana, me perdoa, viu? E o seu mesmo? Adilson. Mariana e Adilson, olha como eu gravei Vanusam porque eu fiz um comentário sobre o nome da Vanusa, e ela fez um comentário sobre o nome dela e sobre a sua impressão do nome, e me registrou, você viu que legal Mariana, né, e Adilson, né? Legal E aí fui, descobri que eu era arte educador. Tá. Arte educador, que legal O que educa através da arte, que show Vamos ver o que é arte educação, putz, putz, a literatura da arte educação, que loucura Uma realidade completamente afora da questão ao qual eu estava me dedicando. A arte educação é voltada para as pessoas de um convívio, entre aspas, normal. Não há para adolescentes cumprindo medidas sócioeducativas, não existe Então, tinha duas formas, eu tenho coragem de dizer isso porque eu sempre disse isso às diretoras que eu trabalhei das unidades da FEBEM [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor], que sabem disso, em especial a minha querida da Unidade de Rio Pardo, de Ribeirão Preto, que agora eu estou... Que tem pessoas maravilhosas trabalhando, a Cacilda, que é coordenadora pedagógica, maravilhosa Me fugiu o nome agora da diretora que é a minha referência, assim, foi sempre a minha referência, e que foi afastada por toda a máquina que existe lá dentro, assustadoramente, uma máquina assustadora. Não é a máquina dos adolescentes, é a outra máquina. Então, aí você vê. Tanto que quando entrou o Instituto Mamulengo, meu coordenador de artes plásticas disse assim: “Guido, o mote das férias, dos cursos de férias, vai ser reciclagem” Disse: “Tá, reciclagem, puta cara, genial Eu nunca vi algo tão genial. Reciclagem Reciclagem do quê? De papel, de lata?” Numa discussão de reunião. Isso já estava na minha profissão, qual, nem lembro mais, né? “Reciclagem? Ensinar os adolescentes internos a reciclar o lixo? Cara, eles comem lixo, quer maior reciclagem do que essa?” (pausa) Aí eu mudei o tema, eu disse: “Eu vou fazer um projeto então. Vamos falar, em vez da reciclagem do lixo, vamos acrescentar uma outra palavra, né? Reciclagem do lixo humano: vamos tentar reciclar pessoas” É fora do contexto, cara Você quer fazer o que uma árvore de Natal de garrafa pet, pô Ninguém gosta de árvore de Natal de garrafa pet. Vai me dizer alguém que adora, mentira Mas adora fotografar, cara, pra falar que está fazendo arte terapia, mas ninguém discute nada questões referentes a coisas mais importantes: são pessoas, entendeu isso? Entende o que eu estou dizendo? Essa é a minha trajetória profissional. O meu projeto ainda existe, embora eu não esteja lá mais, chama “Metamorfases”, que é um projeto que foi se alongando em discussão dentro da cela – que eles não gostam que chamam de cela mas é cela Nós discutíamos sobre questões: “Como vamos nos reciclar?” Com o adolescente... Tinha um adolescente que me marcou muito, ele era muito... O primeiro dia meu de aula, eu tenho... Isso tudo é ligado à profissão, tá? Eu fui jogado numa unidade de Sertãozinho, que fica no meio duma mata, lá os seguranças comem lagarto-tiú. Vocês sabem o que é lagarto-tiú? Lagarto-tiú parece um jacaré, é um lagarto grande, que tem muito no interior de São Paulo. E eles faziam iscas com anzol para pescar o lagarto-tiú, pegava da muralha assim, fazia um churrasco lá dentro, desse lagarto-tiú, eu não vi, mas isso é lenda lá, é fato, que rolava também churrasquinhos e outras coisas. Mas era um local totalmente inóspito e o primeiro dia de aula noturna, no meio do nada, eu viajava 60 quilômetros de carro no meio do nada, lá no meio de uma mata assim, a unidade Sertãozinho. E é considerado lá, é chamado de Jardim da Infância, porque são os mais suaves, né, os mais novinhos. Mas, que interessante. E eu me lembro do primeiro dia, vou falar como profissão arte educador. A minha coordenadora disse tudo o que eu precisava ouvir, menos o que eu tinha que fazer. Porque é mais ou menos assim que funciona na FEBEM [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor] para quem dá aula. Deve ser em outros lugares também, não sei, mas eu vou falar da minha experiência da FEBEM, que é a minha última experiência. Me jogaram dentro de uma cela, que não tinha mesa, porque não tem mesa, e eu com um monte... Uma aula preparada, né, pra falar sobre Renascimento, sobre... Aí todos em volta de mim assim, me cheirando de cima em baixo assim, primeiro dia de noite. Eu esqueci o nome dele, aqueles que ficam no pátio, esqueci o nome. É, pois bem, o agente. O agente me trancou dentro com eles no refeitório, passou o cadeado deste tamanho, faz blrunn, me trancou e foi embora. Eles me rodeavam e bufavam na minha nuca, e me olhavam de cima em baixo. E tinha o Bruno, ele é negro, altão assim, já reincidente, depois eu vim dar aula para ele lá no Caldeirão do Diabo, que é dos reincidentes dos reincidentes, né, que eu adorava dar aula lá. Ele chegou e disse: “Então, senhor”, esse foi o meu primeiro dia como profissional, de arte educador. “Então senhor, o negócio é o seguinte: o senhor pinta o diabo” Já era bem de noite assim, esse som. E todos sem nada, porque eles não podem fazer nada. Como é que você trancafia uma pessoa e não dá nada para ela fazer? Ou ela enlouquece, ou ela enlouquece quem está com ela Claro, é da natureza da pessoa, de nós. Nós nos enlouquecemos. E tinha mais ou menos 15 ou 20, e eles todos me rodeando, me rodeando, fazendo algumas perguntas que eles têm uma gíria também muito pesada, né? Sempre perguntam, rola pergunta íntima, eles são donos da situação no pátio, dentro da cela, ou da sala de aula. Eu dizia que cela da onde eu vinha, lá dentro era outra coisa. Cela, eu conhecia tantas pessoas que vivem presas mais do que eles, presas em suas idéias que já estão mofadas e continuam tocando a vida lá fora igual zumbis. Eles adoravam, entravam em delírio, né, “Aaaahhhh” Comigo. E a minha experiência exata e registrada é que eu disse assim, “Puta” eu suava frio e falava assim: “Meu Deus...” Eu tinha aquela concepção é tudo bandido aqui, assassino mesmo, ferrou, eles vão me matar aqui, eles vão me espancar mesmo. Eu disse assim: “Tá bom então, então vamos fazer o seguinte”, e todos em volta de mim “Então eu vou fazer o seguinte: eu vou contar uma história para vocês, tudo bem?” “Bah, não sei o que, eu quero é saber das minas, o senhor tem um rap?” “É o seguinte, rapaziada, vamos lá, estou chegando, eu vou contar uma coisa sobre o diabo, tudo bem?” “É isso mesmo, isso mesmo” E pum E é curioso, viu, quando você trabalha numa instituição assim, você acaba agregando, não só valores, como você toma parte, parece aquela Síndrome de Estocolmo. É uma coisa muito doida, muito doida O governo deveria estar muito em cima disso, quem trabalha, você fica enraizado, é uma outra cultura, é outro mundo, é outro mundo Se fala de outros valores, eles te olham de igual para igual. Se você, no primeiro dia de aula, isso eu vou deixar... Olha, para quem for trabalhar com pessoas que vivem em reclusão, olha nos olhos de fato, precisa olhar nos olhos. Eu até ensinava pra eles a técnica de olhar nos olhos de um tímido, que a maioria é tudo tímido. A técnica é simples, se você tem problema de timidez, supera isso, olha para a pessoa aqui ó. Você não precisa olhar direto nos olhos dela. Olha aqui, que ela vai ter a impressão que está olhando dentro dos olhos dela, e não está. Eles adoravam essa aula, adoravam essa aula. Essa é a aula inicial, e disse assim: “Tá bom. Então vamos falar sobre o diabo, ou sobre o capeta”. Aí eu entrei dentro da questão: diabolos, o ícone, o mito e fui desmistificando todo ele, e disse: “Tá bom, então vamos pintar o diabo a partir dessa aula, só que é assim, tá valendo, menos diabo vermelho, tudo bem?” Cada um criou o seu diabo, menos da cor vermelha. Então teve diabo colorido, azul, verde, vermelho, amarelo. Quando eu entrei na FEBEM [Fundação Estadual do Bem Estar do Menor] eles pintavam, o que eles mais adoravam era pintar um diabo, ou desenhar, sempre em todo o lugar: um diabo com a cabeça de Cristo e uma espada assim. Quando eu saí da FEBEM, eles pintavam florais, eles pintavam cor de rosa, que é a cor proibida. Preto também, é proibido, mas rosa é proibido. Eu dizia: “Para”
P - É proibido, eles não querem pintar ou?
R - A cor rosa. O preto por uma questão normativa de segurança. Com cartolina preta, por exemplo, um menino fica, em cinco minutos ele constrói uma arma preta, um material preto, de sabão, então sabão. De noite, você não sabe o que é, né? Eles não pegaram, aqueles filha da puta, pegaram, apareceram um dia a minha turma toda tatuada. Aí a Diretora Eleonora, adoro Eleonora, cara. Puta, eles se tatuaram, aí eu chamei a rapaziada: “Vocês estão querendo me ferrar mesmo. Vocês estão querendo foder comigo. Como vocês fizeram isso?” “O senhor, foi mal” “Não, o negócio é o seguinte, eu só quero saber o seguinte: não é nem quem foi, como foi feito? Que isso é um trabalho artístico, né, eu preciso saber”.
P - Tatuar a pele?
R - Tatuaram a pele.
P - Tatuagem de verdade?
R - Eles tiraram a tinta, um pouquinho da tinta daquele xadrez. Eles são terríveis, terríveis assim de criativos. Pegaram a vassoura de piaçava, aquele fiapo da vassoura de piaçava, da tia da limpeza. Com a vassoura de piaçava e a tinta xadrez fizeram tatuagens. Agora vai todo mundo para a “tranca” de novo, né? Outra coisa que fala-se que não tem, mas tem, né, sabe que tem. Quem sabe, sabe que tem, né? Eu já dei aula em “tranca”, eu já dei aula para garoto que está internado, que come bosta, e esfrega assim na cara e fica assim. Não há uma preocupação quanto a isso. Têm pessoas assim, muito importantes, muito assim... Importantes não, pessoas que são, que tem uma luta muito grande para cuidar destas crianças, destes adolescentes, mas, infelizmente, o Estado não cuida dos que têm problemas mentais, eles estão misturados juntos e sofrem muito por isso. São jogados mesmo. Só que eu sempre aprendi como profissional a não misturar as coisas. Então: “Rapaziada, já que estamos aqui, e vamos viver esse momento, como pessoas”. “Ah, senhor, hoje eu estou muito chapado”. Chapado, para quem não sabe, nós ficamos chapados e não sabemos a denominação: chapados é quando você está de saco cheio mesmo. Sabe quando, Adilson, você fala assim, você acorda e fala: “Puta merda, será que eu vou pra a faculdade ou vou para o Museu da Pessoa, ou vou dormir, ou não vou fazer nada”. É “chapação” que chama. E aliás, eu gostaria muito e pretendo, não sei se vou ter tempo de escrever sobre isso, porque é uma catarse dentro. Eu não sei se alguém já fez esse estudo, mas para os educadores é importante, que trabalham com situações de risco como essa, com pessoas que cumprem medidas sócioeducativas. Eu penso que, eu não participei de uma rebelião, lá houve muitas rebeliões, rebeliões muito complicadas assim, de casos registrados mesmo de você é arte educador, eles adoram você, cara, mas na hora da “chapação” a primeira cabeça que rola é a sua. Eles cortam e jogam futebol no pátio. Sem problemas. Eu tive depoimentos de garotos, alunos meus que disse: “Senhor, a gente...” Eu levei tarô pra gente jogar, mostrei os arcanos, como é que é. Eu fazia isso mesmo. “Vamos ouvir funk, vamos ouvir rap, mas ouvir também clássicos, Montserrat Caballé, vamos ouvir Enigma, vamos conhecer Supertramp. Vamos ouvir isso” Como que você faz para lidar com adolescentes que estão com o hormônio à flor da pele, tesão absoluto, trancado. Você tem filho?
P - Não.
R - Você tem filho? Alguém de vocês têm? Imagina um sobrinho seu, uma sobrinha sua, a gente mesmo, né, trancado com o hormônio tudo produzindo, produzindo. A energia sexual é a energia mais poderosa do corpo, né? E isso tudo tem que ser contido através de trabalhos sociais, educativos, pedagógicos, que sejam. A preocupação é tanta que eu vejo que no final não vira nada, fica tudo uma coisa só. Então eu fazia o possível, o melhor. Fui chamado muitas vezes pela diretora para conversar com as mães. Pintei um quadro a pedido, com o maior prazer, para uma mãe pagar a dívida com os traficantes, para que ela vendesse numa comunidade. Eu fiz, pintei para ela, para que ela pudesse pagar, porque o Amauri quando saísse de lá, estava jurado de morte já. Conheci o Hernandez, que ele era um moleque feio. Eles tiravam o maior sarro dele. Aí eu começo a falar disso, aí eu me transporto na linguagem deles. É impressionante, não tem jeito. E uma vez, e ele era rejeitado no começo por todos. E como eu dei aula ele sempre ele estava lá, todo o dia, ele foi crescendo, ele se tornou um voz, se tornou um líder. O Paulinho, putz, eu não vou falar o sobrenome, mas o Paulinho, conhecido como Kikio, ele era um menino totalmente assim retraído, pequenininho, baixinho, retraído assim, sobrancelha emendada, a mãe dele uma doçura, evangélica. O Paulo ele era o rei da macaquinha. Macaquinha é metralhadora. Ele distribuía metralhadoras por toda a região. E ele era assim, sabe, comigo ele falava assim: “Eu pequei, professor, professor.” Você dava risada do menino. O menino era o comandante, e eu não sabia nada disso, ele só me falou, ele mesmo me falou, depois quase no final de sair. E assim de chorar comigo na aula. Por quê? Porque o arte educador, a arte educação pra mim foi a profissão das profissões que eu tive, né? Não sei se voltaria agora. Faz nove meses só que eu parei. Hoje eu estou como Gerente de Compras de uma empresa de tecnologia, fui convidado, mas faço tudo porque essa é a minha característica: sei fazer café, arrumar um coffee break, faço tudo, tudo, tudo o que você imaginar, cozinho, chuleio, prego botão, pessoas que me conhecem sabe o que eu faço.
P - Guido, e assim qual é a maior lição, a maior experiência assim que você gostaria de deixar registrado? Uma coisa que você aprendeu e que acha que esse é o lema que você deve seguir?
R - Eu gostaria imensamente mesmo de deixar registrado o que eu passei. Passei não por uma multidão, eu passei pelas pessoas que foram mais importantes na minha vida. As pessoas que estavam do meu lado foram as mais importantes, e as que ainda estão. A maior lição é que a vida é muito curta e que perdemos tempo demais com coisas muito pequenas, mas muito pequenas, em função daquilo tudo que a gente não percebe e acabamos trazendo para nós valores que não são nossos. E a gente agrega esses valores como se fosse verdade definitiva. E a vida se torna um emaranhado de coisas que você toma por verdade absoluta, e nem é aquilo que você acredita, ou nunca acreditou. Por osmose você traz aquilo. Conheci pessoas incríveis, pessoas ordinárias, parafraseando o nosso amado poeta: “Não desejei mal a quase ninguém”, mas desejei mal sim. Eu não sou bonzinho, nem mal, nem bom. Sou pessoa E o fechamento de minha vida acaba se dando porque no final desse relato, depois de tudo o que a gente conversou, eu percebi que de uma forma mais veemente, eu passei pela vida. A vida não passou por mim. A vida vai continuar. As pessoas vão continuar. As coisas vão continuar. O sistema, isso é um termo da minha época de adolescente rebelde, o sistema nem se usa mais isso, sistema agora Office, né, sistema. Mas o sistema ainda é o mesmo. Os ídolos são raríssimos, e quando a gente vive e atinge a maturidade, a gente descobre que nós temos muito mais perdas mesmo do que no resto da vida. A bagagem que a gente leva, é aquela que a gente consegue carregar. Ninguém é dono de ninguém. Não existe verdade definitiva. A vida ela por si só vale a pena, desde que seja vivida com intensidade, responsabilidade, e respeito a si próprio. E que não é defeito nenhum não se recordar das coisas. Porque talvez a alma já esteja se preparando para dar a atenção à questões muito mais relevantes. Nem tudo o que foi passado é tão importante, nem formativo, do que você é presente. Penso eu. Tudo o que eu digo é o que eu penso. Coisas que marcaram, coisas que não marcaram. Vale a pena ressaltar uma experiência, e eu quero deixar registrado para a minha família e para os meus amigos, que é uma experiência minha, única, e que não me deu talvez referência nenhuma, em relação a minha sexualidade. Mas, eu me lembro de novo, morando numa cidade nova, Patrocínio Paulista, nove anos de idade, isso eu me lembro muito bem, que nove é o número meu. Eu fui abordado, eu estava em uma estrada com um gravador, gravando sons de passarinhos, uma criança, chuva e eu gostava de ouvir isso, como gosto de música assim. E um carro parou, era um senhor, e ele falou que me levava até a cidade e eu ingenuamente entrei e ele começou a passar a mão na minha perna. Isso é uma coisa que me acompanhou e ficou oculto, e agora maduro veio à tona. E eu uso muito como referencial isso para que se você tem uma criança, quando passa... Bom enfim, a cena foi que ele começou a passar a mão na minha perna, falar algumas coisas e eu não entendi o que era. Até que eu comecei a ficar numa situação limite, porque a cidade não chegava, era uma estrada de terra, eu abri o carro, a porta do carro andando e me atirei num despenhadeiro que tinha assim de terra, e o cara foi embora. E eu me sujei todo. Nunca contei para o meu pai, nunca contei para minha mãe, embora não tivesse acontecido nada, além dessa violência que foi explícita, esse abuso explícito verbal, né, falava coisas que eu não entendia, mesmo porque no começo do relato eu disse sobre a minha sexualidade eu sempre fui muito tranqüilo em relação, sempre foi muito natural então, nada precoce. Então, esse abuso que pessoas pseudo intelectuais, pseudo maduras, pseudo pseudos, são pessoas pseudos. Essas, se tem essa índole, elas estão por aí. Cabe a nós com uma sensibilidade captar essas pessoas e excluí-las, execrá-las do convívio, daqueles que a gente ama e apontá-las mesmo, sabe: “Tu é hipócrita, mesmo” Eu não lido com hipocrisia e falo mesmo: “Você é hipócrita, e se você é hipócrita, área”. Isso que aprendi com os meus queridos mestres alunos da FEBEM: aquilo que incomodam a eles ou eles matam ou eles tocam. É muito simples. Se os valores que estão agregados a você, próximos a você, e eles não contribuem em nada para você, meu, acabou, já era, tchau, tchau Segue o teu caminho. Por isso que eu acho que eu me guiei sempre por vários caminhos, né, mas sempre com uma retidão pessoal. Cheguei aqui com essa lição mesmo. E vamos estar atentos, né? E quem estiver me vendo, me ouvindo, esse é um cara que viveu tudo o que você possa imaginar. Vivi intensamente todos os amores, e ex-amores também são amores. Portanto, amei todos, todos, todas as pessoas que eu amei, todos são amores, estão no hall. E os amigos, né? Quando os amigos partem. Amigos são amigos de fato, e muitos partiram. O ser humano tem uma doença que se chama licantropia. Não sei se o ovo ou a galinha saiu primeiro, mas a licantropia todo ser sofre: de dia o homem e na lua cheia o lobo. Quando você aprende a conviver com os dois, todos somos, né, isso é Hermann Hesse, “O Lobo e o Homem”, quando nós aprendemos a dosar os dois, não precisamos matar nem um nem o outro. O lobo pode conviver pacificamente com o homem, ou em conflitos, mas é necessário a convivência, que um conheça o outro. Aí sim a gente consegue ser, pelo menos, verdadeiro, né? Agora, agradar... É isso aí. Obrigado.
P - Só uma coisa assim, que estou curiosa, porque você tem falado bastante. Estou sentindo que você está assim despedindo o tempo inteiro, sabe? Falando de morte. Tem algum motivo real que esteja te incomodando?
R - Tem claro
P - Está se despedindo da vida?
R - Da vida não Estou registrando a minha passagem. A gente se despede todos os instantes. A concepção que eu tenho, o fruto quando ele amadurece já no tronco, quando ele é colhido da árvore, a partir dali ele começa o processo degenerativo, ele começa a apodrecer, sofrer o seu processo natural até ele ser consumido pelos microorganismos. Quando nós também somos colhidos do ventre nós vamos amadurecendo, e com esse amadurecer a gente está envelhecendo como fruto e está caminhando. Todos nós temos um motivo suficiente para nos despedirmos a todo o instante, porque a passagem é muito sutil, e a linha tênue entre estar vivo na carne e estar vivo em outras esferas, ela é muito tênue, ela é muito frágil. Eu não tenho nenhuma doença, se é isso que você quer saber, ou algo que possa me levar a supor, ou então constatar. Eu sei porque eu sou aquilo que eu acredito. Alguns preferem terminar as obras para registrar a sua passagem. Esse depoimento, para mim, é a maior obra minha de registro, porque o resto só teve validade enquanto eu estava fazendo, não há registro nenhum, uma fotografia, uma nada. E é isso, quem viver verá, como dizia Elis Regina, né? Mas não no sentido também de... A morte é vida. Renascer. Porque uma frase que meus amigos conhecem, cara, é minha, eu tenho um monte de chavão assim que é o “ó do borogodó”, como dizia a minha mãe, mas “Se a vida é só isso, meu, pára o mundo que eu quero descer Porque, meu, é uma sucessão de chatice Todo mundo reclama de tudo, conta para pagar, ou você reclama de dor de barriga, ou você dá risada, toma um porre, que eu aconselho todo mundo a tomar um porre de vez em quando que relaxa. Seja porre cultural, porre alcoólico, né? O Adilson hoje vai tomar uns aí. E pegar mais leve, pegar leve na vida. Lembrei de uma coisa que me fez mudar toda a minha vida, um depoimento da Alcione no programa da Cultura, que parecia a voz do Sargentelli, como é que chamava aquele programa?
P - O Ensaio.
R - O Ensaio, fantástico Perguntaram assim para ela: ”Alcione, você é feliz?” Ela disse assim, isso mudou a minha vida, ela disse assim: “Como eu não poderia ser feliz, deixar de ser feliz, se eles pagam para eu fazer o que eu mais gosto que é cantar” Pô, essa é a razão da felicidade: a paga Só isso E como artista plástico, como artesão, que eu sempre disse para mim, para os meus clientes, que eu sou artesão, que eu gosto. Porque o artista plástico para mim é um boneco de pet gigantesco que fica pintando umas coisinhas. Artesão: fazer arte com tesão. Quando você encontrar um artesão na rua, na vida, compra alguma coisa do cara. Ele quer qualquer coisa, menos isso, meu, que você fale assim: “Nossa, que lindo” Não fala isso, porque às vezes essa pessoa só precisa de um real para comer uma coxinha. Eu sei o que é isso. Não queria falar esse sobre nova etapa do Daragon porque o Daragon é vazio, eu precisei me esvaziar pra poder chegar até aqui, pra poder chegar onde eu estou. Eu me libertei de tudo, a casa que eu tinha eu fechei peguei a chave e enfiei por baixo da porta, peguei o carro e fui até a fazenda, entreguei para a minha irmã e falei: “Tchau”. A minha cachorrinha, a Neguinha, morreu, eu enterrei ela na fazenda, peguei uma mochila e fui acolhido aqui com meu casal grande amigo: Estela e Benito e as crianças, com a qual eu sou padrinho e é isso. Hoje, o meu passatempo predileto é assistir filmes e fazer comida para os meus grandes amigos da rua, os meus maiores amigos são os mendigos da rua, da minha região, do meu quintal Bela Vista. Lá não precisa nem ter tempo, né? Aliás, ali é só você fazer um arroizinho, já descer que sempre tem uma boquinha querendo comer. Sugiro, viu meu, quando você tiver afim de fazer alguma coisa diferente na sua vida, em vez de se drogar, em vez de falar mal dos outros, ficar enfiando o dedo e cheirando, faz uma comida ou pega a metade da sua, sem hipocrisia, bota num saquinho, alguém vai estar te esperando para comer.
P - Guido, pra a gente finalizar: você gostou de dar a entrevista?
R - Queria agradecer muito, porque o acaso não me trouxe aqui, né? O que me trouxe aqui foi essa energia, de verdade Eu estava vendo um livro que tem ali, um caderno de depoimentos das pessoas, e me chamou a atenção os depoimentos de alguns que deixaram assim, que se sentiam únicos, e depois descobriram que outras pessoas que também tinham as mesmas intenções. Muito obrigado mesmo por essa oportunidade. Obrigado mesmo. Obrigado mesmo. Vocês são especiais. Não por esse trabalho só, mas pela própria energia que vem de cada um de vocês. Se guiam no caminho. E Adilson, seja o que for, meu, cada etapa sua você vai ser uma coisa, num tem jeito, relaxa, tranqüilo E se amanhã tiver que parar tudo e abrir uma mercearia, meu, vá abrir uma mercearia, faça dela o diferencial da tua vida. Isso se eu estou certo ou se estou errado, cara, (choro) a minha vida deu toda uma volta e eu cheguei num estágio de lidar com coisas que eu não imaginava que ia lidar, lidar com valores que para mim já são, já perderam assim: a vaidade humana, as pessoas que se matam no trabalho, os workaholics da vida, os executivos da vida. Eu não entendo mais. Eu não entendo o que as pessoas querem, não entendo, não entendo Penso que 90% fingem, só que fingem errado. Eu ouvi de um sábio, muito próximo, um conselho que eu vou dar para todo mundo, cara: “Finja que você é feliz, mas finja mesmo Finja intensamente, porque um dia você vai acreditar nisso, cara, vai se transformar em verdade. Aí acabou”. Parou de ter opiniões. Você é feliz. Eu sou feliz Um beijo, tchau É isso aí. Valeu.
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