Projeto Conte Sua História - SESC
Depoimento de Júlio César José Marcelino
São Paulo, (sem data)
Código: PSC_HV020
Revisado por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Júlio, a gente vai começar a entrevista. Você diz o teu nome completo, onde você nasceu, e a data.
R - Me chamo Júlio César José Marcelino, nasci no dia 17 de fevereiro de 1964, no interior de São Paulo, na cidade de Tanabi. Mas é uma nascida meio rapidinha porque a minha família morava em Fernandópolis, a minha mãe estava grávida e foi querer ter o filho junto da família dela, que não é em Tanabi, mas em uma cidade próxima. Então foi lá que eu nasci, depois voltei com poucos dias de vida, de novo, para a casa dos meus avôs que ficava em Fernandópolis.
P/1 - Seus avós paternos?
R - Meus avós paternos.
P/1 - Me fala um pouco da origem da família dos seus avós. De onde eles eram, o que você lembra?
R - Eu conheci mais os meus avós paternos do que os da parte da família da minha mãe. Pelo o que a minha avó contou, a minha vó é de Caetité, na Bahia e o meu bisavô, que eu cheguei a conhecer, tinha um irmão que trabalhava no interior de São Paulo, que veio para trabalhar em uma fazenda como meeiro. Aí lá em Caetité teve uma seca e a minha avó com a família vieram como retirantes, porque esse irmão avisou ao meu bisavô que aqui estava melhor, então vieram de pau-de-arara, segundo minha avó conta, para essa cidade do interior, que não sei o nome dessa cidade, porque não sei se é Fernandópolis. É aquela região oeste em que tinha plantação de café na época. O meu avô, por outro lado, já tem uma outra história; ele conduzia gado, é mineiro, e, nisso, ele conhece a minha avó e eles casam na região do interior também de São Paulo. Sempre tiveram uma vida difícil, tiveram oito filhos, e entre esses filhos, o meu pai... O meu avô quando eu o conheço, ele era um homem forte, se percebia que era um negro com mistura portuguesa, era um negro peludo, tinha pelo na venta, era um cara forte; só que quando o conheço, e passo a perceber, ele já estava com problemas... Teve um derrame. Porque quando ele casa, começa a ter filhos e larga essa vida - não sei se por mudanças no interior -, passa a trabalhar em uma pedreira, quebrando pedra. Aí, ele tem esse derrame e quando o conheço ou passo a lembrar dele, já lembro dele na cama, a gente o ajudando a levantar, essas coisas, não é? E a minha família fica no interior até a década de 69, por aí. Aí tem uma tia que vem trabalhar em uma empresa aqui que era a Rhodia, em Santo André, depois ela traz a família aos poucos. Em um primeiro momento, nós moramos na casa de um parente na Água Rasa, na Zona Leste, depois conseguimos alugar uma casa no Jardim Dona Sinhá, que é mais no fundão da Zona Leste.
P/1 - Sua tia, ela é tia irmã do seu pai... Ela traz os seus avós e todos os irmãos?
R - Todos os irmãos.
P/1 - Só que seu pai já era casado...
R - Então, o meu pai... Sou fruto de uma aventura dele, que é uma história interessante. A minha mãe, quando ela me tem, acho que está com 16 anos, é nova, meu pai também é novo, tem 17 ou 18. Eles vão morar com meus avós, que já tem os filhos, em uma condição bem paupérrima, e nessa, a minha mãe tem um irmão, que seria no caso o meu tio, que aconselha minha mãe a largar meu pai. Esse meu tio, que é irmão da minha mãe, tinha uma condição melhor porque era militar e combina com a minha mãe de separar do meu pai. A minha mãe fala que vai cortar o cabelo e não volta mais. Eu fico desde os seis meses com a minha avó e meu pai que me criam. Então aí passo a ser criado pelo meu pai, minha avó, e minhas tias. Essa minha tia que vem para São Paulo, minha tia Júlia... Eu ganho o nome de Júlio porque a minha mãe é amiga da tia Júlia, por causa dela. Então aí me dá o nome de Júlio César, porque era para chamar Roberto Carlos. A minha mãe queria dar o nome de Roberto Carlos, mas a minha tia achou: “Ah, Roberto Carlos”, aí ela falou [mãe]: “Ah, como eu gosto muito de você, vou dar o nome de Júlio...”, aí a minha tia: “Ah, como é Júlio... Júlio César”. Eu chamo Júlio César graças a essa tia, que era uma figura muito interessante, uma história muito interessante. Ela sempre gostou de escrever, e, na época, gostava de escrever, inclusive, escreve um caso. Na Globo, antigamente, era caso especial, tinha uma autora que chamava Janete Clair, ela escreve um caso especial e manda para essa mulher e a Globo aceita, só que propõe de ela vender, que aí colocariam o nome de um outro autor, e aí ela não quis vender, depois se arrependeu. Porque se ela tivesse vendido teria continuado, mas não vendeu, e não comprou o caso dela, guardou aquele caderninho durante um bom tempo. Não sei se ela tem esse caderno contando esse caso especial da época que quis vender para a Globo.
P/1 - E esse caso era da família?
R - Não, era uma ficção. Ela gostava de ficção e escreveu isso.
P/1 - Da sua mãe... Você depois convivia com a sua mãe, visitava, tinha contato?
R - Nunca mais vi a minha mãe, não conheço a minha mãe. Conheci bem depois dois tios, que eram irmão dela, mas nunca a vi.
P/1 - E seu pai comenta ou fala alguma coisa das memórias dela?
R - O meu pai nunca comentou nada, e já é falecido, morreu há uns 28 anos.
P/1 - Qual a atividade principal do seu pai?
R - Quando morava no interior, foi auxiliar de tinturaria, e, depois, quando vem para São Paulo, vai trabalhar durante um tempo na Souza Cruz, e em uma empresa de cigarro, transportando cigarro. Depois passa a fazer trabalho de pedreiro, sempre ficou nessa área de trabalho.
P/1 - Quais lembranças você tem mais fortes dele? Como você descreveria seu pai?
R - Meu pai era um cara quieto, se eu lembrar do meu pai assim tenho poucas lembranças porque a gente conviveu alguns momentos. Como ele era um cara fechado, do interior, era analfabeto, aprendeu a escrever o nome bem depois, e era muito quieto, não gostava muito de falar, teve um período em que começou a beber, mas bebia e ficava na dele, bebia bastante. O que lembro do meu pai é que ele gostava dos momentos de felicidades dele, gostava de Nat King Cole, aquelas músicas; depois tinha algumas coisas regionais: Teixeirinha, Tônico e Tinoco, ele tinha um radiozinho que ele colocava e escutava.
P/1 - As lembranças que você tem são da sua Tia Júlia?
R - A Tia Júlia é quem me ensina a ler a escrever, antes de eu entrar na escola. Tem um papel fundamental, foi quem deu o carinho de mãe. E lembro do cheiro dela, porque ela chegava do serviço e me abraçava. Nunca assumiu o papel de mãe, mas sempre foi a mulher que representou a minha mãe. Apesar de que tinha a minha avó, mas era mais seca. A minha vó era aquelas baianas, assim, que te dava comida, banho, botava para dormir e acabou. A minha tia já era a que contava história, trabalhava na Rhodia, lembro que ela trazia aqueles negocinhos de mel para mim e a minha prima.
P/1 - Qual é a tua sensação de ela te abraçar, você sentir o cheiro? Fala um pouco disso.
R - Era a parte carinhosa dela, eu a achava bonita. Ela era uma negra forte, lembro que ela gostava de música, cantava. Nesse tempo em que eu era criança, ela trabalhava na Rhodia e trazia doces, lanches para mim, fazia esses mimos para a criança, gostava dela bastante. Depois, passou a ser uma ótima cozinheira, cozinha muito bem até hoje. Então ela traz essa questão da minha mãe e tinha outra tia também, Maria, era mais durona, e tem uma questão da minha família, que fui conseguir resolver bem depois, adulto, depois que entrei na faculdade, comecei a estudar e a perceber a questão da minha origem de negro, de brasileiro, não é? E é quando você vai buscar de onde vem essa miserabilidade da sua família. Minha família era constituída de mulheres guerreiras, mas sozinhas. E essa minha tia Maria, que depois eu aprendi a amar, porque quando eu era criança, nós não tínhamos uma relação boa... Ela era mãe solteira, com duas filhas, muito bonita também e trabalhava como empregada doméstica, daí ela teve as suas aventuras e teve essas filhas.
P/1 - Moravam com você também?
R - Moravam com a minha avó e eram as minhas primas. E tinha o meu pai, que era solteiro, e tinha o filho. Tinha o meu outro tio que ficava um tempo casado e voltava. Então era uma família mesmo assim: que você tinha o pai, a mãe, os tios que não saíram de casa e ficaram morando com a gente, tinha os sobrinhos, e uns parentes do interior. Era aquela família que vai agregando todo mundo, um veio para São Paulo e depois vieram outros. Nós não conseguimos comprar um imóvel, a gente sempre viveu de aluguel. Sempre teve essa questão de ser o chão da fábrica, de ninguém conseguir fazer uma universidade, ninguém terminar um colégio. É um período difícil, que nós pegamos a ditadura, inflação, recessão econômica, todos os problemas... Meus tios homens não conseguiam arrumar emprego, e, depois, você vai entender porque não arrumaram, não conseguiram ir para a escola porque eram negros. Lembro até hoje, você ia procurar emprego estava lá que precisava ter boa aparência, se você morava na periferia já ficava mais difícil, não é? O único tio que eu tive que poderia ter tido uma ascensão social e econômica fica doido, que é o meu Tio Osvaldo, filho mais novo da minha vó. Ele jogava futebol, era um craque, cheguei a vê-lo jogar. Quando ele estava no interior, foi sondado pelos técnicos da Ponte Preta. Na época, na região Oeste, Campinas, tinha dois times: Guarani e Ponte. Meu tio com 15 anos já jogava no time principal de Fernandópolis, e os olheiros foram lá e tentaram trazer para Campinas, mas a minha avó não deixou porque ele era novo, 15 anos “Não vai, tal, não sei o quê” e aí ele não foi, mas sempre jogou bola, ficou frustrado por não ter ido, não é? E ficou meio desgostoso, veio para São Paulo e foi trabalhar como repositor de loja, no Pão de Açúcar. Jogava bola no final de semana, e quando jogava comia a bola, era um cara que tinha uma explosão rápida, corria muito, driblava bem, ele jogava como lateral direito, eu lembro na época. Me incentivava a jogar bolar, tanto que eu sou santista, torço porque ele também era santista. Sabia a escalação do time do Santos, Pelé e sabia tudo. Era um cara que gostava muito de futebol e eu também. Quando vou jogar bola, jogo de lateral direito, apesar de que não gostava de lateral, gostava de corta zagueiro. Mas era uma questão de que nunca fui craque, ele era bom, eu não, nunca fui. Gostava de jogar, mas não um craque. Na época, você jogava futebol, você pegava um cara que fosse um ponta esquerda bom, estava ferrado, não pegava o cara e eu lembro de ter pego uns caras muitos bons de futebol. Quando comecei a jogar bola, por causa desse meu tio - eu morava na Vila Diva, tinha um campo de futebol em frente, só que quando mudamos para lá - começou a ter uns problemas de piração. Ele sofreu um acidente, aquela mania que as pessoas têm de descer do ônibus e passar na frente, quando ele foi passar, o ônibus bateu e machucou, e ele não cuidou. Depois, passou a ter um desvio mental, foi ficando pirado, sumiu, virou andarilho. E quando ele ficou andarilho, voltou para Fernandópolis, que foi onde ele nasceu e teve a infância dele em que jogava bola. Todo mundo naquela região achava que ele tinha morrido, mas ele volta e nunca mais foi um cara bom. Quando ele era lúcido, jogava futebol nesse campo que ficava em frente de casa. Todo mundo chamava ele de doidinho, tinha momentos de lucidez, e daí quando ele ficava bom ia no campo e arrasava.
P/1 - E você se inspirava nele...
R - Me inspirava nele. Ele jogava bola também nesse campo.
P/1 - Você lembra dele te ensinando a jogar bola? Um pouco da sensação...
R - Meu tio lembrava um pouco o Roberto Carlos, tinha as coxas fortes, e batia muito forte também. Tinha um domínio de bola e a gente ficava brincando, fazendo bolinha, ele jogava para mim, eu jogava para ele. De vez em quando, ficava brincando com ele de futebol e ele contava para mim sobre futebol.
P/1 - Ele viu você marcar algum gol? Você lembra dele assim...
R - Ele me enchia o saco, assim: “Você é muito ruim, corre, corre”, sabe essas coisas de tio? Ficava vendo o jogo ali, mas incentivava. Porque também eu joguei pouco, em frente de casa tinha esse campo, era um campo chamado Cruzeiro, e tinha o Dentinho, Dente, Dentão, depois vinha o infantil, até chegar ao time mesmo, que é profissional/adulto. Eu joguei no Dentinho, no Dente, e quando fui para o Dentão parei de jogar no campo e fui para o salão. Mas aí já tinha uns 15, e parei por aí. Jogava no final de semana com os amigos, mas mudei de casa e perdi o campo. Mas eu lembro de... Esses dias um amigo meu disse que vai fazer uns contos sobre futebol e pediu para eu fazer um, e aí lembrei de uma cena, de um jogo que a gente fez, até escrevi esse conto. Nós jogamos, e eu vi... Que o técnico entrava no vestuário puxando o saco do uniforme, sentava, abria, pegava a camisa, olhava e jogava; e eu ficava na Expectativa porque sempre gostei. Porque é legal jogar de corta zagueiro, porque corta zagueiro você só dá o primeiro combate, se você perde, tem a retaguarda que é o central, e os pontas, e corta zagueiro, não é que é fácil, mas ele faz a cobertura quando o lateral vai, ele cobria, sempre estava fazendo a cobertura. E na minha cabeça, se não era o responsável, o principal, não é? Veio um time de fora, que também era uma meninada, de 10 anos. Aí o técnico está lá, pega a camisa e joga, quando eu pego é a número dois, e eu: “Puta, mas é a número 2, lateral direita”, peguei e coloquei, quando entro no campo, vejo um neguinho... O neguinho está lá já batendo no pé a chuteira, short caído, meião até aqui em cima, todo invocadinho, a gola levantada. Quando olho, ponta esquerda, falei “Caralho, é o neguinho”; e ele jogava muito bola, só lembro que pensei, na minha inocência de 9 para 10 anos, falei: “Vou entrar duro nele para mostrar quem manda”. Lembro que a bola veio e fui correndo, peguei o neguinho, ele caiu, o juiz deu falta e levantou na maior elegância, só arrumou o meião, bateu o pé no chão, e correu, nem ligou para mim, daí os caras vieram, pá, chutaram. De novo jogando ali, caiu o cara, lançou a bola para ele, quando eu fui subir com ele, ele me deu uma cotovelada bem no peito; já cai sem ar no chão, quando olho só vejo ele correndo, entrando para a área e gol. Desgraçado o neguinho, só sei que eu passei o pior jogo da minha vida, porque além de ter levado uma porrada, falei: “Além dele ser bom, é folgado ainda”. Foi assim o jogo todo, o time dos caras ganhou, lógico e eu falei: “Maldição”, mas foi isso. Eu contei a história desse jogo, foi engraçado, quando eu vi o cara... E tinha uma coisa que era muito engraçada que era assim, os meninos, como era uma época que estava tendo uma transição das chuteiras, então você tinha chuteira de cravo, de seis cravos, e você tinha aquelas chuteiras que eram uma porcaria, era um jacaré, não é? A minha era aquela, grande, já metade dos cravos comidos porque tinha ganhado essa chuteira de um outro camarada que tinha comprado uma chuteira nova, e era um campo de terra batida, então você escorregava com aquela chuteira. E o neguinho tinha uma chuteira de seis cravos, lindona, novona, falei: “Puta, é hoje, me lasquei” e foi dito, e feito, não é? Eu tenho essa história de futebol.
P/1 - Só uma curiosidade. O técnico jogava por... E, assim, ele escalava o time, jogava certa aquela camiseta...
R - Ele jogava para quem ele achava que... Eu jogava bem, fazia a minha função. Só que não gostava porque tinha isso, de repente, você pegava um moleque que era craque e você sofria, porque se sai um gol nas suas costas, quem é o culpado? É você, então você tem que se desdobrar, tem que ser um cara que come a bola também. Eu sabia que tinha umas limitações para marcar, e era engraçado, eu estava de 10 para 11 anos, mas já tinha toda essa noção de futebol, gostava muito e essa influência vem desse meu tio Osvaldo.
P/1 - Júlio, e outras brincadeiras, na rua, ou em casa? Onde vocês brincavam?
R - Eu lembro que a gente brincava, tinha umas coisas que eram bem... Tinha a questão de que você fazia um pneuzinho, pegava um cabo de vassoura, fazia um ganchinho assim com um prego e você ia jogando e andando com isso, isso quando você era maiorzinho. Menor ainda, você tinha a brincadeira de cavalinho, um era o cavalo e você ia atrás dele puxando, não é? Você vai ficando mais adulto, e tem outras brincadeiras, que são as brincadeiras de mãe da mula aquela que um fica... E você pula por cima, e fala algumas coisas, canhão sem bala, quem abaixou vira mula; canhão com bala, quem fica em pé é a mula, história tomate pula e bate com a bunda nas costas da pessoa, unha de gavião, essas brincadeiras. Levar burrinho para beber água, aí você pegava o cara pela orelha, se ele conseguisse escapar, você passava a ser a mula. Então quem era o cara que era o mãe da mula, ele que fazia as pegadas, não é?
P/1 - E como decidia quem ia ficar levando...
R - Então, quem errava no começo, era no 2 ou 1, quem ganhava era o que ia sacanear os demais, quem perdia era a mula e a mula ficava torcendo para o cara, que é o chefe dele, pegasse alguém e ficasse em pé ou que não conseguisse estourar tomate, tinha um monte de invenções.
P/1 – Só homem brincava, só menino?
R - Só menino. Era a molecada da rua, as únicas brincadeiras que as meninas participavam era de beijo, abraço e aperto de mão.
P/1 - Teve alguma história nessa brincadeira? Você lembra?
R - Lembro que a menina vinha com o anel e deixava na sua mão, e se estava com você, aí você era beijo, abraço e aperto de mão. Se era salada mista, na boca, tinha algumas coisas que eram assim, não é? Depois na escola, tinha uma outra coisa que era legal, aquele caderninho de pergunta e resposta que as meninas faziam e passavam para os meninos que achavam interessante, você ficava achando que alguém ia mandar para você também. Sempre chegava o caderninho, não era o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro, quase os últimos da sala chegavam.
P/1 - Era um questionário. Que perguntas tinham, por exemplo?
R - Você já beijou? Tem alguém que te interessa, eram coisas assim. Perguntas mesmo que as meninas faziam para os meninos.
P/1 - E você respondia a verdade?
R - Respondia verdade em algumas, outras não.
P/1 - E da escola, Júlio?
P/2 - Você estava comentando que não era dos mais bagunceiros, mas chegava a tomar bronca em casa, nessa relação familiar você...
R - Como a minha família era - como eu coloquei - desestruturada, não era pai e mãe. Era uma desorganização organizada, então, como falei, minha avó: “Já está alimentado? Tomou banho?”. Pronto, já era. Então nunca tive uma rédea curta ali, minha família nunca ficou em cima de mim. Sempre fui um moleque que foi criado na rua, saia de manhã, voltava, me trocava e ia para escola, voltava, tirava a roupa e ia para a rua, na casa dos amigos, na casa dos vizinhos, em casa mesmo era muito difícil ficar. Na minha casa sempre tinha gente adulta, o meu avô ou a minha avó, os meus tios, então não era aquela coisa, eu e meus irmãos... E meus pais iam trabalhar, não tinha isso. E como morávamos em um bairro da periferia, era a mesma coisa com meus amigos, tinha uma cambada de amigos que nos reuníamos em uma turma de meninos e íamos para a rua, e aí apavorar: empinar pipa, pegar fruta, jogar bola, nadar nas lagoas que tinham, arrumava briga com a outra turma. Era moleque de rua, não tive criação dentro de casa. Depois teve um período da questão da televisão, que você quer ver televisão, aí você vai ver na casa de quem [tinha] e a mãe colocava todo mundo para fora. Lembro de uma coisa que marcou, foi a primeira vez em que vi televisão a cores, meu, era maluco, porque o máximo que você tinha era a televisão preta e branca e tinham uns pais que eram meio pirados, compravam uma tela colorida e colocava na frente da televisão, era ridículo, porque ficava azul, vermelho... O que passava ali ficava daquela cor. Passava na época de garoto, e a gente queria assistir o Speed Racer, um desenho que todos queriam ver, de carro e um pai de um amigo nosso, como tinha mais dinheiro, compra, mas a mãe não deixava todo mundo assistir lá. Então o que ela fazia? Abria a janela, ficavam todas as crianças do lado de fora assistindo e o filho dela com os amiguinhos mais próximos vendo dentro de casa. Assistíamos esse desenho e quando acabava, ela fechava a janela. Mas era hiper legal, todo mundo quando dava o horário “Nossa”, corria para assistir, ficava vendo do lado de fora da janela e ainda tinha briga para ver quem ficava no melhor lugar da janela para assistir.
P/1 - E que bairro era esse?
R - Vila Diva, Santa Clara, ali na Zona Leste perto da Mooca, Vila Formosa, aquela região.
P/1 - Você ficou a tua infância toda lá?
R - Não, a minha família mudou muito. Esse lugar que estou falando foi onde fiquei mais tempo, morei no Jardim Vila Sinhá e depois mudamos para o Vila Diva, moramos em algumas casas diferentes, mas esse lugar onde estão a maioria das lembranças tinha um campo de futebol, tinha a escola André Ohl onde estudei ali bastante tempo. Foi o local que mais marcou, onde passei a infância, dos oito até os 15, 16 anos ali. Até hoje tenho amigos que são desse período, com os quais ainda me relaciono, saio para tomar cerveja e trocar ideia.
P/1 - Qual lembrança marcante você tem da escola?
R - Tem várias coisas legais. Nunca fui um ótimo aluno, fazia o que dava para passar de ano, nunca me esforcei muito, mas também nunca repeti muito. Só repeti no meu terceiro colegial, ensino médio, todos os outros fui passando e o terceiro, em que estava com com 18/19, em que a gente está naquela fase de mudança, de exército, ali eu desandei.
P/1 - Você chegava em casa se alimentava, troca roupa e em relação aos estudos, como funcionava?
R - Era difícil, gostava muito de ler, mas estudar era difícil. Como a minha família era pobre, morávamos em dois, três cômodos. Então todo esse pessoal que falei: tio, tia, sobrinhos, primos, parentes que vieram do interior, morava em dois, três cômodos, não tinha espaço dentro de casa, você tinha que ir para a rua. Você chega, come, rua; no dia de televisão era uma disputa ferrada e você nunca ganhava. E interessante, estava falando para o meu filho, quando vim do interior, fui morar na casa da minha tia, na Água Rasa, uma área mais central, e lembro que as crianças não comiam na mesa, era maluco aquilo. A comida dos adultos era na mesa, as crianças comiam em um pratinho no chão, essa minha tia tomava laranjada, nessas garrafas de tubaína antiga e ela não dava para as crianças. Hoje em dia, lembrando, penso: “Não acredito”. Ela tomava, só ela. Imagina, criança vendo refrigerante, todos sentados no chão vendo a tia, não dava: “Que tia sem coração”. A primeira coisa que você faz: compra um refrigerante e dá para a criança, primeiro a criança come, depois você; e era assim, se comprava um frango, a melhor parte era dos adultos, as crianças... Igual cachorro, tanto que cachorro não tinha ração, comia o que sobrava das crianças, e olha lá, se as crianças comessem tudo, o cachorro ficava sem nada. É engraçado isso, hoje em dia tem uma mordomia, mas quando eu era criança não tinha mordomia nenhuma. A vó só olhava, não falava nada, você ficava já com medo, porque vinha peteleco depois. Então essas coisas acho interessante, estava contando para o meu filho, só que meu filho é de boa, mas tem criança que não come “Ai não como isso, aquilo”.
P/1 - Júlio, mas ai para estudar era difícil porque não tinha espaço. E quando você tinha que estudar como fazia?
R - Na escola ou com amigos. Lembro de duas coisas marcantes que me levaram para esse mundo da leitura, que depois vai me levar para uma questão mais militante, política, não é? Uma foi que, na parte de trás da Vila Diva, tinham uns canos da Petrobras que passavam ali atrás da casa. Lembro que um dia, eu acordava cedo, acordei, abri o portão, fiquei sentado na calçada que estava para os fundos da casa e vi um monte de caixa jogadas lá. Fiquei olhando, desci e comecei a abrir as caixas. Acho que umas famílias que tinham mais posse, no final do ano, fizeram uma limpeza nas casas e jogaram as coisas fora. Eu comecei a mexer e achei um monte de livros e gibis, não é? Aí peguei esses livros e gibis para a minha casa, um monte. Porque olha onde veio a questão do meu pai, você perguntou do meu pai, o meu pai mesmo sendo analfabeto, quando era pequeno íamos na banca de jornal e ele comprava um gibi para mim. Aprendi a ler lendo gibi da Mônica, do Tio Patinhas. Quando vi esse pessoal que jogou fora as caixas, levei tudo para a minha casa e coloquei embaixo da cama um monte de livros para eu ler, então comecei a ler gibi, tinham algumas revistas que falavam sobre coisas místicas, não lembro se era planeta, umas revistas americanas, seleção não sei do que e eu comecei a guardar aquilo e ler. Então sempre tive facilidade na área de humanas: português, redação, agora quando ia para exatas era terrível na escola.
P/1 - Algum professor te marcou?
R - Lembro da Professora Creusa, foi a minha professora da quarta série. Ela me fazia fazer a tabuada até não querer mais. Se você zoava na sala tinha que fazer 50 tabuadas do 1 ao 10, não queria em folha de caderno, queria papel de pão, jornal e tinha que fazer a tabuada. Chegava lá e todo mundo ia para a lousa, todos fazendo exercício e você ficava lá olhando para o alto, não adianta que Deus não vai escrever no teto. Era assim, quem acabava a conta sentava, você ficava ali até resolver. Divisão com dois números na chave “Nossa”, três números na chave.
P/1 - E você ficava olhando para o teto, ela falava o que?
R - Não adianta que Deus não vai escrever no teto. “Júlio, cinco tabuadas do 1 ao 10”, e você ia fazer.
P/1 - E ela te marcou bem ou foi uma memória triste?
R - Essa professora era seca, mas cobrava. Agora lembro de uma professora que foi muito seca, mas gostei muito dela, foi a Neli, na quinta ou sexta série. Ela era professora de História, acho que gostei muito de História por causa dela. Ela não sorria; e, como era ditadura, todo mundo tinha que levantar quando ela chegava na porta da sala, aí ela entrava, dava o sinal e todo mundo sentava. Mas ela explicava tão bem, que eu não precisava estudar para a prova, todo mundo gostava, porque se não prestasse atenção também ia para fora.
P/1 - Você estudou na época da ditadura. Você tem alguma lembrança que você relaciona com essa época?
R - Tenho essa questão de querer saber quais eram os países da cortina de ferro, lembro de perguntar o porquê da gente não podia saber sobre a Antiga União Soviética, eu percebia que os professores tinham mais receio de saber. Com relação à ditadura na vida real, lembro de uma vez em que parou um caminhão do exército, mas foi antes fase da escola, lá em 70 e pouco; meu pai e meus tios estavam vindo do serviço, os caras pararam o caminhão do exército, eles revistavam todo mundo que passava e pediam a carteira de trabalho, e se você não tinha carteira de trabalho, checavam a sua mão para ver se não tinha calo, aí eles te liberaram. Quem não tinha o documento ia subindo para o caminhão. Então tinha essa questão mais pesada, outro marco foi quando conheci um amigo chamado Cascão, eu tinha de 16 para 17 anos, era um cara que já militava no ABC Paulista, tinha família no ABC, então ele estava em contato com a formação da CUT, foi uma ação do PT, na época. Ele trazia essas informações para a gente, trazia outro tipo de música, ele era um pouco mais velho, começou a trazer informações ligadas a política e a discutir questões da ditadura, estava no finzinho, esse cara trazia informações para a gente, tanto de música, de MPB, de acampar. Aí já vai para uma outra experiência de vida, em que começa a sair de casa, viajar, fazer outras loucuras.
P/1 - Onde você conheceu ele?
R - Também na Vila Diva.
P/1 - Ele era parente de alguém?
R - Tinha um irmão dele que morava lá. Onde a gente morava tinham duas ruas que eram rivais, tinha a Rua Dez, onde eu morava, e tinha uma outra rua - que não lembro hoje o nome... Tinha um cortiço lá embaixo e um perto da onde eu morava. Então quando nos encontrávamos, não tinha para ninguém, o pau comia. E lembro que esse amigo transitava nos dois, jogava futebol, era um cara mais velho, ele foi o cara que introduziu a gente na leitura, trazia outros livros, outras músicas, ele trouxe o disco do Samurai, do Djavan, e, nossa, a gente ouviu aquilo, que maluco. Lembro que fomos viajar com a prima dele que tinha um carro, fomos para a praia e ele levou Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé e o disco era Clara Crocodilo. Quando vi aquela falei: “Que porra é essa?” porque o cara cantava tudo, foi uma piração, porque eu tinha uma referência de MPB que esse cara trouxe, Caetano, Chico, Djavan e daí ele me vem com a vanguarda paulistana que Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Premê:, ficava “Nossa, o que é isso?”. E comecei a ouvir, essa foi outra parte legal.
P/1 - Você falou que tinha uns 15 anos, não é?
R - É.
P/1 - E vocês ouviam música nessa época além dessas que ele trouxe?
R - Nesse lugar em que eu morava, tinham outras famílias próximas, e outros amigos e os irmãos mais velhos. Antes de entrar nessa parte da MPB, tinham um outro pessoal que já era uma negrada que gostava de baile black, lembro que ficava vendo os caras com um garfo levantando o cabelo. Já tinha um outro som que era Tim Maia, Hyldon... Um pessoal que já era mais internacional: James Brown, Marvin Gale, era uma outra sonoridade que eu achava hiper legal. Outra parte é que já gostava de samba, lembro que foi uma aventura... Tinha uma escola de samba chamada Cabeções da Vila Prudente, era a escolha do samba enredo e a gente: “Vamos para lá”, saímos de casa, fomos para a Vila Prudente, no meio da favela, da comunidade, mas inexperiente, você pensa que vai lá nove horas e o samba vai começar umas nove, só que não. Chegamos nove horas e quase não tinha ninguém, só o pessoal limpando. Começou a encher lá pelas onze e meia, escolheu o samba enredo e foi o maior pau lá dentro, com tiro e a gente correndo para sair na avenida, nos perdemos dentro da favela, foi uma loucura, mas conseguimos chegar em casa de boa. E acho que foi mais uma aventura da cabeça, do que risco, os caras brigaram entre eles, nós não tínhamos nada a ver com isso. Estávamos lá para ver o samba enredo, então essa coisa da música, coisa da periferia em que você tem o futebol de várzea, as músicas black, todo esse envolvimento com o pessoal que, além de jogar bola, faz o samba na beira do campo. Outra coisa que marcou muito nesse mesmo período foi que a minha vó virou evangélica e me leva para a igreja. Tinha aquela coisa de todo esse mundo rolando e eu tinha que ir para a igreja. Eu falava: “Puta merda”, e em frente à casa que morávamos tinha uma mulher mãe de santo, de uma família toda negra e mãe de santo. Por que eu falo toda negra? Porque a minha família era negra, mas tinham primas brancas, aquela mistura, outros com cara de índio. Eles não, eram negros retintos e moravam numa casa ainda feita de barro, todas as casas do bairro mudando e a deles não. Lembro que quando era festa de Cosme e Damião, eu não podia ir, meus amigos iam e voltavam cheios de doce, carrinho, ah, eu não queria nem saber, a minha avó: “Não vai que é macumba”, que macumba, minha avó cochilava e eu ia pegava doces, carrinho e nunca entendia o porquê de não poder ir. Tinha essa questão de religião porque é macumba, ficava pensando. E a minha avó por outro lado era benzedeira, olha que contradição, ao mesmo tempo em que era benzedeira, era evangélica e critica a outra que era do Candomblé, tinha toda essa questão da periferia mesmo, fui criado nesse meio, todas essas informações eu fui absorvendo. Então, ao mesmo tempo em que a gente tinha poucos recursos financeiros, tínhamos uma vida rica de convivência. Tínhamos os momentos de porrada, corre-corre, da polícia chegar e pegar os traficantes mais velhos do bairro, isso estava tudo ali e a gente vivendo nesse meio, até meus 17/18 anos... Aí quando começo a trabalhar fora do bairro, você começa a ter outra experiência; me envolvo com essa questão política.
P/1 - Só ia perguntar uma coisa dessa riqueza cultural toda. Você disse da black music... O que você curtia mais dessa parte de música ou você transitava em todas?
R - Eu ouvia tudo, desde o Nat King Cole, da parte sertaneja do meu pai, da minha família, além da parte evangélica porque lembro de ter cantado no coral da igreja, então cantei no coral até a minha voz mudar, entrei como tenor e quando minha voz mudou para baixo, e saio dessa parte da igreja, deixo essa parte religiosa, que não me identificava mais... Ia mais pela relação que tinha com os meninos, as meninas. Você começa a olhar as meninas, namorar, e a igreja é um lugar interessante, mas era mais por isso, depois larguei, mas teve uma influência desses cânticos religiosos, esses dias estava até brincando e cantando um desses que era... Você tinha os corinhos, os hinos, a parte do coral, e teve uma época em que eu até achei que ia visitar outras igrejas para cantar com a mocidade daquela igreja, então tinha tudo isso, a black music estava ali no mesmo momento. A black music, na periferia ou você ia para os salões...
P/1 - Você ia?
R - Como eu era menor, e não tinha grana, os mais velhos não levavam, uma vez ou outra, ia com um amigo, que o irmão levava, mas o pessoal não gostava muito de ir, porque começa tarde, não tem matinê, matinê é carnaval, é para criança, a gente queria ir para aos bailes a noite, depois das dez, o pessoal ia e só voltava no dia seguinte, a moçada mais velha, então a gente não ia. Ficava naquela de curtir quando eles estavam ouvindo. Toda aquela preparação para ir para o baile que os mais velhos faziam, a gente ficava ali, vendo aquilo... Os caras vestiam o sapato, aquelas calças, a gente ficava só olhando, as minas também: “Sai daqui”, as crianças querendo ver e ouvindo os sons, os sons a gente ouvia bastante, porque sábado era o dia que a moçada de folga se preparava para sair no sábado à noite.
P/1 – Foi aí que você começou a ver militância? Você conheceu esse amigo... Como você começou a participar? No que também?
R - Nunca fui militante filiado a nenhum partido, até hoje nunca me filiei. Quando falo militante, é que você começa a fazer uma outra leitura do mundo, começa a ter acesso a leituras em que você começa a questionar o sistema, a sociedade. Alguns autores você começa a ler com outros olhos, teve um detalhe importante também que quando foi no ginásio, eu tive uns professores muito legais. Tive um professor chamado Henri, engraçado, os professores que te marcam você lembra o nome, esse Henri era homossexual e dava aulas de literatura, então, trazia a questão do teatro, sobre a ditadura militar. Durante o ano que tivemos aula com ele, ele trabalhou só Machado de Assis, trabalhou os três períodos da obra de Machado, o que deu uma compreensão fantástica, não só da obra do Machado, mas da sociedade em que ele viveu, e o porquê ele descreveu aquilo, a parte psicológica. Acho que isso foi muito bacana, e influenciou, não de uma forma partidária sectária, mas de uma forma social em que você passa a entender melhor a sociedade: a questão da escravatura, da luta de classe, dos interesses que o Machado traz na sua literatura, não diretamente tratando dela, mas é o plano de fundo das suas discussões. Isso foi muito legal porque ele foi um cara ótimo, o professor Henri. Então, já estou no segundo colegial, você começa a conhecer o pessoal, o grêmio da escola, passa a entender como reivindicar.
P/1 - E você participou do grêmio?
R - Um pedaço, um período curto, que foi no segundo semestre do segundo ano. Só que você começa a sair mais, então não vai mais tanto para a escola, começa a ir para uns shows mais longe, e começa a militar em outras áreas da cultura, que é onde eu começo a me embrenhar para esse lado cultural.
P/1 - Conta como foi esse caminho...
R - Então, até já falei, nós éramos muito pobres... Tinha a questão, de que, nesse momento na década de 80, você tinha problemas horríveis de transporte, falta de emprego, lembro de ter meus primos, amigos sem emprego, muitos amigos meus foram presos e mortos, isso já na minha infância... Sabe essa parte do futebol? Tinham aqueles amigos que estavam dois anos acima... Porque teve um período em que o tráfico entrou muito forte porque tinha o campo, era uma comunidade pobre, mas não era uma comunidade favela, não tinha porque ali no alto da Mooca era classe média baixa que mora ali, tinham muitas pessoas que trabalhavam no ABC, muitas empresas no alto da Mooca, e quando teve essa recessão muita gente foi para o desemprego. Tanto que esse campo de futebol tinha disputa, assim, lembro que no final da tarde fazia-se oito times de futebol, de homens, jovens, que não tinham trabalho. Então, à tarde, quando o sol baixava todo mundo ia jogar um futebol e antes de jogar o futebol, fumava uma maconha, tinha essa coisa forte do tráfico, do uso. Eu lembro que a gente jogava futebol e eu ficava assistindo aos jogos também, porque tinha uma hora que vinha um pessoal mais adulto e você tinha que sair, não dava para jogar. E os caras jogavam assim: eram dois gols, sai fora, entra outro time. Ficava revezando e o time que ia ganhando, ia ficando. Então você imagina: era time de futebol de adulto. Então eram onze para cada lado, imagina, você fazer cinco times, ou seis times, a quantidade de homem, jovem, que não tinha desempregado. Então ficava no campo, tudo em volta, dia de semana, à tarde, de vez em quando baixava a polícia e fechava o tempo. Eu lembro que teve um dia que a gente estava conversando de longe, e eu vi, tinha um cara lá que a gente sabia que era um cara metido, não sabia com o que era, mas ele era um folgado, ele era um cara que botava respeito. E a gente olha, a gente viu uma Brasília vindo atrás, ele na frente com a mão para trás, um cara do lado dele também com a mão para trás, estava todo mundo sentado lá e teve um amigo que falou assim: “Aquilo lá parece que é polícia”. A gente olhou, molecada de 14, 15 anos e a gente sai de onde estávamos, perto do gol, andamos até o outro lado da rua, tem a casa do meu amigo, a gente senta no muro e fica ali em cima vendo o futebol. Quando a polícia e esse cara chegam na altura do campo, o cara que estava com a mão para trás estava com uma mini metralhadora e a Brasília tinha mais dois caras dentro, os dois caras também saem armados, era a polícia civil e põe todo mundo de mão encostada na parede do campo. Tinha a avenida, tinham as casas, e o campo ficava atrás, então todo mundo ficou parado lá e as pessoas depois foram revistadas. Tinha a delegacia, não era muito longe, levou todo mundo a pé com a mão na cabeça. Todo mundo que estava jogando bola, menos a gente e as crianças que estavam menores, mas quem estava no campo assistindo, eles pegaram e levaram todos. E desses não voltou um cara, não voltou um monte de cara e entre eles tinha um cara que se chamava Ziquezira. O Ziquezira era o meu ídolo, era um negro alto, magro, elegante e ele jogava bem para caramba, era um puta de um cracão. Ele não voltou, “Por que o Ziquezira não voltou?”, e depois a gente ficou sabendo que ele fazia banco, ele era assaltante de banco e quando puxaram a ficha, tinha já uma chamada e ele foi direto para o Carandiru. Nunca mais vi o Ziquezira. Depois ficamos sabendo que tinha ido uns olheiros lá na detenção e tinham levado ele para o Bangu, no Rio de Janeiro, então isso eu também não sei, se foi verdade, o Zique Zira tinha um irmão que se chamava Nelson, o Nelson também já era diferente, ele era um negão forte, e o Nelson, depois teve um caso com ele também que chocou todo mundo no bairro, que ele era amante de um amigo nosso, eles eram homossexuais, o Nelson. Como que o Nelson? Eu lembro que uma vez, olha que loucura, eu lembrando agora dessa coisa do Nelson, que ele salvou a gente de uma, salvou não, mas a gente já tinha apanhado. Tinha um amigo nosso, dois amigos, que o pai dele trabalhava em uma empresa próxima e a gente foi levar marmita para o pai desse meu amigo à noite, a mãe dele pediu para levar, o pai eu não sei o que aconteceu, a gente foi levar marmita, nós três, três ou quatro pessoas, fomos para lá, dois irmãos mais eu e outro amigo, e estávamos conversando. Chegando perto da empresa, chegou uns caras e falaram: “Por que vocês mexeram com não sei quem?”, a gente falou: “A gente não mexeu com ninguém”, “Mexeu sim”, “Não mexeu”, “Mexeu sim”, a gente só viu porrada comendo. Eu lembro que nesse dia, eu era um moleque, você viu a foto, magrinho, eu encostei no muro, veio um cara e me deu um tapa na orelha que eu não vi mais nada, eu sei que disse: “Vai embora”, correndo, e todo mundo foi embora. Nisso que estava indo embora, dois dos filhos do cara que eu fui levar a marmita, foi descendo a rua apanhando e a gente correu. E quase chegando em casa quem a gente encontra? O Nelson, e a gente contou para ele, ele falou: “Vamos lá”, “Não”, “Vamos lá, cara”, e a gente foi com o Nelson lá. “Quem foi que mexeu com vocês?” e a gente falou: “Foi aquele”. Nossa, ele foi lá e tinha cinco caras, ele foi lá e socou, mas não só bateu, ele também apanhou. Mas ele foi lá e resolveu a questão, a gente ficou assim. E quando a gente soube que o Nelson era homossexual, nossa, foi assim, todo mundo “Uau”, chocante. Foi uma briga de casal escandalosa. Os caras brigaram, acho que o cara não queria mais ele e foi uma... Sabe aquelas brigas de casal? Que escândalo na rua, os dois brigando. E o Nelson também depois sumiu. Depois, passou um tempo, a gente encontrou com o Nelson e ele virou uma travesti, morando aqui no centro. Eu falei: “Nossa, cara”. Eu adoro essas coisas de bairro, que é maluco, não né? Mas teve esse lance, e eram dois irmãos, o Ziquezira, que eu não lembro o nome dele agora, eu sei que o apelido dele era Ziquezira e tinha o Nelson. Então eram dois caras que a gente gostava, o Nelson era violento, esse que depois a gente ficou sabendo que era homossexual, ele era violento, ele era para fechar o tempo, e o outro não, o outro já era mais de boa, calmo, era uma família bem pesadona mesmo, os caras.
P/1 - Os dois surpreenderam, não é?
R - Surpreenderam.
P/1 - Muito bom! Você disse que com essas leituras e com esse professor você foi se interessando, quer dizer, foi ficando com uma visão mais crítica. E como é que você começou a participar, ou do movimento cultural, conta um pouco a trajetória.
R - Então, depois dessa parte da escola, teve um momento também que comecei a trabalhar, já com 19, e fiz N coisas também.
P/1 - Você começou o primeiro emprego ou trabalho com que idade?
R - Acho que foi com 14 anos, com 14 anos eu já trabalhava. Meu primeiro emprego foi em uma fábrica de rodinho, ridículo, não é?
P/1 - O que você fazia?
R - Pregava a haste dos rodinhos, três pregos, era (inint) [01:07:56] esticava no meio e na ponta, foi o primeiro trabalho que eu fiz, era de rodinho, depois trabalhei em uma loja que arrumava máquina de costura, pequenos liquidificadores, ferro de passar roupa; então trabalhei um tempo nisso...
P/1 – E rodinho, você ficou quanto tempo nessa fábrica?
R - Foi curto, fiquei pouco tempo, fiquei acho que uns seis meses. Eu tinha 14 anos, era para ter um biquinho para você arrumar uma graninha, para você...
P/1 - E ficava o dia todo martelando os pregos?
R - ... O dia todo. Ah, não, depois teve meu outro emprego que esse foi mais terrível, com 14, foi trabalhar em uma fábrica de torneira. Então eu furava pistom de torneira; foi uma fabriquinha de fundo de quintal que também era horrível, você se queimava, com 15 anos, voava cavaco na sua mão, você tinha que abaixar o torno, olha que louco, pensando nisso hoje, não é? Você pegava o pistom, colocava na morsa, fechava e abaixava o torno, que fazia a rosca, e você tirava. E ganhava por quantidade de pistom furado, depois tinha a parte mais horrível que você tinha que soprar, ver se não tinha vazamento e colocar a parte da torneira em cima, então a gente fazia essas torneiras...
P/1 - Por que queimava?
R - Porque voava cavaco. Quando você abaixava o torno para a broca entrar no pistom, pistom é um pedaço de metal, e você tinha que furá-lo para fazer a rosca para depois colocar a parte de cima da torneira. Aquilo voava na mão, queimava, às vezes, para você soltar, tinha que soltar a morsa para tirar o pistom, se você não apertasse direito aquilo podia voar. E o cara só avisava você “Cuidado com isso aí, se isso aí voar vai te machucar e eu não quero nem saber, estou te avisando”; esse era o gerente. Então teve isso, fiz mil coisas antes de arrumar emprego mesmo. Depois eu fui vender livro no ciclo do livro, essa época que comecei mais a trabalhar, fui trabalhar registrado em uma financiadora de crédito, depois fui fazer pesquisa de mercado, pesquisa política também, e eleitoral, que nem agora que está tendo eleição aí, fiz pesquisas pela Datafolha, fiz pesquisa para o Ibope, na época. Foi um momento até que interessante, com essas pesquisas você podia viajar, então você ia para outras cidades do interior, tinha amigos que iam para outros estados viajando.
P/1 - E dos seus trabalhos todos, teve alguma história, além dessa da torneira, de algum trabalho que foi mais significativo?
R - Mais significativo? Olha, eu já fiz muito trabalho que foi muito mais para sobreviver, significativo foi bem depois. Essa parte da pesquisa também foi uma parte interessante, porque foi um momento que eu tive contato com entender essa coisa da metodologia da pesquisa, as opiniões, como isso era usado nos comerciais, eu lembro que eu fiz aquela pesquisa, foi em 94, que o Maluf muda o formato dos óculos dele, lembra dessa pesquisa? Eu trabalhei nessa pesquisa, que tinha uma pergunta lá “O que você mudaria no Maluf”, “Ah, ele era muito sério”, que ele tinha uns óculos que tinha um aro grande, ele muda o formato dos óculos, então você começa a perceber toda essa jogada que tem por trás das pesquisas, não é? E esse momento também foi o momento que eu viajei bastante, eu fui para outras cidades do interior, e não foi só pesquisa política, tive as pesquisas de mercado também, que eram um saco, mas você ganhava grana, não é? Era onde você ganhava mais dinheiro, sem contar que você fazia o seu horário e o seu tempo. Então se você fosse um cara bom de pesquisa, você ganhava bem, porque você fazia o seu trabalho em 15 dias, o que os meus amigos ganhavam em um mês trabalhando, batendo cartão, você na pesquisa ganhava em 15 dias, tinha pesquisa que você ganhava em uma semana, dependendo do que você pegava de trabalho, então para ganhar dinheiro era mais fácil. Na pesquisa também, você encontra um pessoal diferente, que é um pessoal que está mais buscando, não sei hoje, mas naquele momento que eu entrei nas pesquisas de mercado e política, você tinha um pessoal que queria ser alternativo, que não queria trabalhar, então você tinha gente que estava estudando Jornalismo e fazia pesquisa para poder bancar os seus estudos, fazia Sociologia, fazia História, então você tinha um bando de gente ali que quando você viajava você encontrava, era um outro universo de pessoas que não se enquadraram dentro do modelão e precisava sobreviver e ia pro campo da pesquisa. Eu tenho um amigo que até hoje faz pesquisa, está com mais de 50 anos e ainda faz pesquisa. Mas ele está em um patamar que ele viaja para outros estados, ele coordena campo, mas continua fazendo.
P/1 - Júlio, e você falou que começou a militar, mas não se filiou ao partido, mas participava de algum movimento, que movimentos que você participou?
R - Olha, teve uma vez que eu fiquei maluco, né? Arrumei uma namorada e deu uma pirada na cabeça dela, sei lá, e eu arrumei... E a gente estava naquela coisa de que queria buscar coisa alternativa, eu lembro que eu entrei em um lugar, não sei onde foi, que eu vi lá “somaterapia” e tinha o endereço. Era um endereço que era aqui no Brás, entre Belém e Brás ali, eu falei: “Vou lá”, fui lá ver o que era, e cheguei lá, era um núcleo anarquista de um cara chamado Jaime Cubero, era ele e um outro anarquista, um desses caras eles eram espanhóis e um deles foi contemporâneo da guerra espanhola que teve lá, eles já eram bem velhinhos na época que os conheci. Aí entrei nessa questão do anarquismo. Nossa, então eu fui ler Proudhon, fui ler os caras anarquistas e conheci o pessoal da somaterapia. Só que quando eu conheci o pessoal da somaterapia, já era uma dissidência da somaterapia. Não sei se você conhece a somaterapia do Roberto Freire, que escreveu aquele livro “Sem tesão não há solução”, e ele desenvolveu um método de terapia muito interessante que poderia ajudar essa minha namorada. Aí gente vai fazer somaterapia, os dois, só que chega lá, eu fico e ela sai. Eu começo a fazer a somaterapia, só que é desse grupo dissidente do grupo que o... Não é que é dissidente, é que o Roberto Freire tinha uma seguinte questão: ele juntou três elementos para somaterapia que eram fundamentais e fazia questão que quem fosse multiplicasse isso, tinha um termo que eu não lembro mais hoje como que era, tinha que também utilizar esses três ritmos, esses três sistemas dele, então ele vai e pega o Reich para trabalhar a questão das couraças, a questão da sexualidade, tudo isso, então ele pega o Reich. Ele traz também o anarquismo, que é para trabalhar essa questão do cooperativismo, não ter essa coisa do líder, do chefe, está muito mais ligado à ideia do cooperativismo, e, então, ele traz um outro cara, que é o moreno, que é um cara que se baseia no método de um cara que é um terapeuta chamado (inint) [01:17:32], que para não trabalhar com a questão do duplo vínculo, também ele tinha uma outra questão que era a capoeira, porque, como ele pesquisou Reich, ele achava que as neuroses ficam na sua couraça, então tinha uma questão muito forte com o corpo, isso de se desinibir.
P/1 - Você se identificou muito com isso?
R - Me identifiquei. Muito.
P/1 - E praticou quanto tempo?
R - Tinha uma questão que era assim, esse cara com quem eu passei a fazer a somaterapia, ele tinha umas questões com esse método do Paulo Freire que ele achava que a capoeira não era necessária; e quando eu começo a conhecer, que eu vou conhecer essa turma, entra um outro cara que acha que a capoeira é necessária e ele traz um mestre de capoeira, que é um cara chamado Almir das Areias que é engraçado, nesse período eu já estava fazendo capoeira com outro amigo que era o Marcos, fazendo assim, eu gostava de capoeira, tinha uma coisa a ver. Ele traz esse mestre que é o Almir das Areias, que era o Anande, um cara conceituado na capoeira baiana, que lutou com Suassuna, e que estava transitando nessa coisa corporal da psicologia também, ele traz esse cara para ser o nosso mestre de capoeira. Com ele eu fico quase dois anos fazendo capoeira. Ele tinha uma questão de capoeira de Angola, tinha toda uma questão muito legal na época. Eu me identifiquei bastante, tanto com o anarquismo da época, que então eu passei a também me orientar mais sobre essa questão anarquista, me identifiquei, e também com a parte da terapia, tanto que depois eu vou trabalhar com esse Décio. O nome dele era Décio, ele monta um espaço lá na Vila Mariana e eu vou trabalhar com ele, eles montam toda uma questão de autossustentabilidade, naquela época nem se falava em autossustentabilidade, não é? Mas ele traz uma agenda que a gente produzia, para vender, para ganhar dinheiro, e, depois, o espaço era autogerido. Tinha toda uma questão que deu certo, essa parte que se estruturou melhor o grupo, a gente conseguiu ganhar um espaço para praticar no Sesc do Carmo, ali no centro. Até ali estava bem, quando a gente passou a autogerir, aí começaram os conflitos e eu percebi uma coisa muito interessante: eu percebi que era uma terapia, mas era uma terapia para quem tinha condição. A terapia era uma coisa para os filhos de uma classe média alta, tinha um conceito legal, mas eu percebi uma questão étnica, eu, como negro, de origem pobre e querendo dar uma de classe média, fui percebendo que eu não tinha condições financeiras, eu tinha que trabalhar.
P/1 - Mas por que você achava que era para esse grupo mais...
R - Porque quem é pobre mesmo, que acho que é legal também a terapia, não tem acesso, não chega.
P/1 - ... Mas por que você acha que você, entre aspas, destoava?
R - Porque quando foi de fato para ir para o que é, o que a gente faz, por exemplo, o que a comunidade negra faz, tem os seus paus, tem as suas brigas, mas está ali trabalhando junto. Eu percebi que quando foi para trabalhar o cooperativo mesmo entre um pessoal que têm outros valores, classe média, que então é trabalhar mesmo, não é só na teoria, você sai da teoria e vai para a prática, porque se eu não limpar o chão, se eu não fizer comida, se eu não for conseguir dinheiro para bancar o espaço, não rola. Eu não vou ter um pai que vai me mandar uma grana para me financiar. Eu não tenho quem me banque. Que é diferente quando você percebe que você tem pessoas que tem, mesmo que eu não trabalhe, mas eu tenho quem me banque, eu tenho uma outra tranquilidade. Eu não tenho quem me banque. Se eu caio doente ou se eu vou preso, ou se acontece alguma coisa, sou eu por mim mesmo. Então eu não posso me dar o luxo de me aventurar com alguém que não entra de cabeça, porque eu sempre fico meio, “Mas eu nunca fiz isso”, “Não, eu não vou fazer isso”, ou então vem com todo um discurso teórico, só que na hora da prática, não vai. E você começa a perceber coisas que eu só vim amadurecendo com o tempo, mas você percebe que você tem uma coisa, que não é oba oba, eu não vou sair da minha casa para morar em um espaço que depois se eu perco esse espaço, vou voltar para onde? Eu não tenho para onde voltar, eu não tenho um pai que fale assim: “Olha, eu tenho um apartamento livre, fica lá”, não é? E você começa a perceber, “Eu não posso me dar o luxo de querer fazer um trabalho terapêutico que é maravilhoso, mas é para quem tem, porque de onde eu venho, meu povo está lá embaixo, morrendo no tráfico, morrendo de trabalhar, como meu avô que se estourou em uma pedreira, então eu acho que a condição é outra. Aí você percebe nitidamente a origem de onde você é, tanto que o cara que era o meu terapeuta, a gente teve uma conversa, a casa que ele comprou, por exemplo, a família dele era da região oeste de São Paulo, que tinha fazenda de café, a mãe dele catou uma grana, deu para ele comprar uma casa à vista, ali do lado do museu Lasar Segall, quer dizer, puta de uma casa. Eu falei: “Cara, talvez o meu bisavô trabalhou para o seu bisavô de meeiro lá na terra dele, ele nunca conseguiu comprar uma terra”, então é outra, “Não, mas não é”, é, cara. Eu não posso me dar o luxo de viajar porque senão eu não vou sair disso, eu vou pirar nisso, porque muitos caras piram, acha que ele pode se dar ao luxo de viver, só que aí ele se esquece, e eu vi muito cara que entrou, achou maravilhoso, só que não banca, por que não banca? Porque não tem condição financeira, nem psicológica, nem social para bancar. Então a terapia é ótima, mas para quem está nessa classe social, quem não está, tem que arrumar uma outra forma de ajudar, aí eu concordo. Tem a capoeira, beleza, é uma coisa que dá para fazer. Tem que pensar na sustentabilidade do indivíduo para poder tirar ele da sua neurose, dos seus traumas, senão você não tira. Aí você vai ver a história do Reich, é isso, o Reich enfrenta o comunista do Partido Comunista que fez a Revolução Russa e ele, quer dizer... Os caras não leram o livro do cara (risos). Que maluco, não é? Porque o Reich foge da Alemanha nazista e vai para discutir a questão do socialismo, acredita no socialismo, mas chega lá o socialismo fala: “Espere aí, mas não é tudo isso não”, porque o cara já chega falando: “Não, cara”, e ele vai... Eu acho que a gente precisava voltar a ler Reich hoje, está muito atual.
P/1 - Júlio, vamos falar então agora como é que você chega no movimento cultural?
R - Vamos. Então, nesse momento da...
P/1 - Eu vou pedir para você fazer todo o caminho, e a gente tem meia hora. E você vê o que você acha importante e principalmente histórias marcantes.
R - ... Ok. Porque eu acho legal que esse momento que eu estou falando da somaterapia, eu levo um amigo meu que é um percussionista, que é o chama Valtinho, mas o apelido dele é Passarinho, e que esse Passarinho namora a irmã da minha primeira companheira, ele é músico, percussionista e o Passarinho toca em uma banda chamada Lua de Neon. Essa banda chamada Lua de Neon é de um companheiro nosso chamado Carlos Coelho, e o Carlos Coelho é um dos fundadores do Movimento Cultural Penha, então eu andando com o Passarinho, conheço o Carlos Coelho e eu começo a frequentar aqui a Penha também. É o momento que eu estou nessa de estar discutindo a questão política, não partidária, mas toda essa discussão sobre o (inint) [01:27:36] social. Eu tenho um projeto nesse momento já com relação a montar uma empresa de ecoturismo, a gente vem daquela época de 92, uma discussão sobre a questão ambiental, meio ambiente, todo esse momento da década de 90, eu entro em contato com o Coelho que tem o Movimento Cultural Penha, só que nesse momento, o Movimento Cultural Penha está muito mais na mão desse Coelho, porque o Movimento Cultural Penha é da década de 85, tem um momento que ele surge com vários artistas aqui da região, produtores de cultura, reivindicando esse espaço aqui, que hoje é um centro cultural, que era uma casa de cultura, que estava sem verba, estava precária. Então eles começam a querer intervir na programação, participar mais desse centro cultural, que era uma casa de cultura, biblioteca, não era nem instituto ainda.
P/1 - Era da administração municipal ou estadual?
R - ... Olha, eu lembro que o Movimento Cultural Penha, quando ele surge - isso depois eu fui pesquisar - é no mandato do Mário Covas, e quem era o secretário de cultura era o Gianfrancesco Guarnieri. Eu não fazia parte nesse momento do movimento da Penha, mas é 84 para 85 que surgem os movimentos de cultura da zona leste, inclusive, o Movimento Cultural da Penha. Depois tem um momento que é um momento crítico, que ele perde um pouco essa militância dele, quando entra a Erundina, porque sempre quando entra um governo mais progressista, quem está na militância vai para o governo e os movimentos ficam esvaziados, isso é outra coisa marcante. Acontece isso também com o Movimento Cultural Penha, mas quem fica segurando o Movimento Cultural Penha nesse momento é o Coelho, ele é o único cara que sobra, não o único, ele é o que fica mais à frente, ele deveria ser um jovem, na época de 35 e em 90 ele já está com a banda dele que é a Lua de Neon. Ele articula todo esse Movimento Cultural Penha e o Movimento Cultural Penha, nesse momento, tem dois projetos, um chamado “Zona Leste, a escola vai ao teatro”, que no primeiro semestre eles trazem a escola para assistir peça aqui neste teatro e no outro que tem aqui perto, depois ele organiza festivais de música, de dança. Então o Movimento Cultural Penha tem essa cara bem ligada à cultura musical e artística, ok? Quando eu entro no movimento, eu trago uma proposta para o Coelho para a gente trabalhar essa questão de, já que ele trabalhava com escola, fazermos uns roteiros ecológicos, em 96, 97, por aí. E a gente tenta fazer uns roteiros, e vai tentando dar certo. De vez em quando eu venho ajudar ele nos festivais ou na parte de som, ou na parte de portaria, iluminação, passo a ajudar ele nessa parte do Coelho
P/1 - E vocês conseguiram fazer o roteiro e desenvolver esse projeto ambiental?
R - A gente chegou a montar a empresa, mas faliu (risos). Não tínhamos capital de giro, tínhamos só o sonho, mas a gente faz alguns roteiros com escola aqui da região, e tem um que é marcante, que a gente vai fazer com uma escola da Penha. Era um roteiro que a gente fez sobre, a gente ia até a nascente do Rio Tietê, então a gente saía daqui, passava no parque ecológico, do parque ecológico a gente ia para a nascente, lá a gente conhecia a nascente, e a gente almoçava em uma antiga casa de (Posil?) que chamam de senzala, lá em Salesópolis, depois a gente passava na barragem e voltava. Era um passeio de dia inteiro, a escola topou e a gente se organizou, o primeiro passeio nosso, fizemos organizado; era eu, o Coelho, uma amiga, Sandra, e um outro amigo nosso que era o Ricardo. Fomos fazer o roteiro, o primeiro roteiro, e depois beleza, voltou, e a escola gostou, foi bacana. A professora queria fazer um outro roteiro com a gente, ela falou assim: “Olha, eu queria também fazer esse roteiro, só que vocês não levaram a gente onde esses alunos foram, não é?”; e mostrou para a gente a foto, a gente olhou a foto, eram dois alunos em cima de uma árvore e tinha uma represa embaixo, “Porra, como é que esses veados chegaram lá?”, a gente não sabia onde era aquilo? Tínhamos que saber, fomos de carro ver onde era. Você parava de um lado da estrada, do outro lado tinha uma cerca de arame farpado, que era como uma outra fazenda, um sítio, lá dentro tinha uma lagoa grande, não era muito grande, mas pela foto parecia enorme e tinha uma arvorezinha. Na hora que a gente estava no almoço com as crianças, servindo a refeição, uns quatro ou cinco deles atravessaram a rua, atravessaram a cerca, foram lá, dois subiram em cima da árvore e outro fotografou, e a gente totalmente “Nossa, imagina se acontece alguma coisa com essas crianças”. Foi uma loucura esse dia de roteiro, mas depois a gente foi pegando a manha. Nós tentamos montar uns roteiros mais para adultos, para Campos do Jordão, para outros roteiros, fizemos algumas coisas, mas depois não deu certo porque não tinha capital de giro...
P/1 - Fizeram alguns pelo menos.
R - ... Fizemos, e a empresa faliu.
P/1 - Nesse momento o Movimento Cultural Penha trazia a questão de território da negritude ou ainda não?
R - Trazia só na figura do Carlos, que ele era um cara que tocava Reggae, ele tinha umas músicas de protesto, tinha uma dele que falava: “Mão para a cabeça, a polícia chegou, quem corre, corre, quem não corre, dançou”, dentro da linguagem do Reggae, então tinha sempre que trazer essa questão da negritude forte na música. Em 2000, quando a igreja do Rosário é fechada, o seu Moreli procura o Movimento Cultural Penha, e aí que eu me dou conta da igreja do Rosário, ela estava abandonada, aí que eu olho para a igreja do Rosário. O Movimento Cultural Penha faz uma campanha para atrair o olhar da comunidade com relação a esse patrimônio e a gente começa a fazer um trabalho mais ligado na questão patrimonial. Mas quem traz isso para o Movimento Cultural Penha sou eu. O Coelho, infelizmente, em 2003 falece, novo, ele tinha um problema de asma e apneia, ele era meio gordinho, teve uma crise de asma e a bombinha não funcionou, tinha acabado de ter uma inalação, foi para casa e caiu sem ar, até chegar a ambulância ele faleceu, o Coelho. Então a gente dá um tempo de dois anos, ele falece em 2003, já no Movimento Cultural Penha. O Movimento Cultural Penha já tinha virado uma ONG em 2002, porque, outra questão política, quando a Marta entra no governo, para fazer parceria com a secretaria você tinha que ser uma instituição e o Movimento Cultural Penha tinha que criar uma diretoria, se restituir como uma O-N-G. A gente vira uma ONG em 2002, em 2003 o Carlos falece, a gente fica sem saber o que fazer com o espólio do movimento, porque ele tinha um estúdio de música, livros, a gente produzia um jornal, todo esse material fica; tinha um espaço que a gente não sabia o que fazer com ele. A gente perde o espaço, tem que transportar todo aquele material para um outro local, e, em 2005, a gente resolve trazer de novo o Movimento Cultural Penha. Quando a gente traz de novo o Movimento Cultural Penha, eu passo a ser o diretor do Movimento Cultural Penha e o Movimento já ganha um outro formato, já estou na Universidade, então já ganha uma coisa mais de educação, porque vem a Patrícia que é educadora, que é historiadora, vem o Edison, aquela parte que era mais musical, que o Coelho corria mais na frente deixa um pouco para trás e vem mais ser agora uma coisa mais ligada à educação. Daí a gente passa a atuar mais efetivamente com a igreja do Rosário, além da igreja do Rosário, a gente passa a fazer trabalhos ligados à questão da negritude, e aí...
P/1 - Então eu vou perguntar, você diz que o Coelho estava mais à frente, principalmente, na época da Erundina porque muita gente foi para o governo, esse movimento era um movimento com participação da comunidade, das pessoas ou era mais de um grupo?
R - Era um movimento mais de um grupo. Você via que era um movimento artístico. Então você tinha poetas, você tinha escritores, você tinha músicos, artistas plásticos, produtores culturais. Era uma comunidade, mas um grupo artístico, mais ligado a essa área da arte...
P/1 - Quantas pessoas, mais ou menos, se agrupavam?
R - ... Eu lembro que por uma ata que eles tentaram montar lá atrás, deveria ter em torno de umas 15 pessoas, depois eles foram diminuindo. Eu lembro que quando eu entrei no Movimento Cultural Penha, era o Coelho e mais cinco pessoas. Quando a gente retoma o Movimento Cultural Penha e vai atuando mais com a comunidade do Rosário, que ainda não tinha a comunidade do Rosário, se chamava comissão de festa, a gente se organizava só para fazer uma festa em junho. Nós, do Movimento Cultural Penha, continuávamos fazendo trabalho com as escolas. Então nesse momento, a gente pega dois projetos importantes. Em 2005 a gente manda um projeto para o Ministério da Cultura para pleitear um ponto de cultura. A gente é contemplado em 2005, com um projeto chamado Memória Viva Tietê, começa a trazer a questão da memória, Memória Viva Tietê. Que surge assim, estava eu e dois amigos lá na Pedroso, em São Miguel, a gente estava lá em cima conversando, a gente olha e você vê que o Tietê daquela região, a maior parte das casas estão de costas ele, o Tietê passa a ser o lugar onde: eu não quero mais o meu sofá, jogo lá dentro, não quero o meu pneu do carro, jogo lá dentro, era um rio que tinha perdido a memória. Então a gente fala assim: “Vamos fazer um trabalho para trazer essa memória do Tietê”. A gente pensa esse projeto. A gente é contemplado em 2005, só que o dinheiro não sai em 2005, a primeira parcela. A gente fica com esse projeto até 2008, quando é dezembro de 2008, sai a primeira parcela, quatro anos depois. Esse é um projeto maravilhoso que a gente não conseguiu fazer porque depois saiu a segunda parcela em 2011 e a gente abre mão disso, porque a gente não aguentava mais, o projeto já tinha mudado. Para ter uma ideia, a gente tinha colocado no projeto em 2005 uma televisão, aquelas televisões cinzas, quando o dinheiro saiu, a televisão já era dessas de telinha, e depois a burocracia que era para tirar a televisão do projeto, você não quer mais a televisão, a gente tinha que mandar uma coisa para Brasília, era uma coisa maluca. Eu lembro que muitos coletivos na época acabaram, porque saiu o projeto, ainda bem que o nosso projeto era dividido em 3 fases, a primeira fase era de pesquisa, e quem ia fazer a pesquisa era quem estava no projeto, depois iam vir as contratações de oficinas, depois ia ter o resultado final, só que detém projetos esse primeiro ou segundo edital do MINC, que os caras já tinham de cara a oficina, contratação de grupos, começaram a fazer e o dinheiro não saiu. Imagina, foi uma loucura.
P/1 - O projeto de vocês, vocês fizeram alguma parte?
R - Nós fizemos algumas partes, em 2009, 2010 a gente andou fazendo coisas, a gente achou que ia ser uma solução para o movimento, que a gente estava voltando depois de dois anos parados e foi uma dor de cabeça. Depois a gente pega um projeto do VAI, que era para trabalhar com a questão das Fanzines e, ao mesmo tempo, atuando com essa questão da juventude, da Festa Do Rosário. Então vem o primeiro material que a gente publica, em 2011, que é sobre uma experiência que a gente fez com a igreja e com umas escolas da região, a gente registra isso e transforma em um livro. Em 2011, a gente assume a Festa Do Rosário, até então tinha uma participação muito forte desse prédio aqui (Centro Cultural Da Penha*), que era a casa de cultura, esse prédio é fechado para fazer uma reforma, o pessoal que está aqui não quer mais tocar, brigam entre eles e a gente se organiza enquanto comunidade do Rosário, e passa a organizar a festa.
P/1 - Todo ano tinha a festa em junho.
R - Isso.
P/1 - Quem organizava antes?
R - A secretária da cultura, representada por esse espaço aqui, que era a casa de cultura, a subprefeitura e a comunidade.
P/1 - Quem era a comunidade?
R - Era o Movimento Cultural Penha, moradores, artistas da região, que vinham para poder, junto com esses órgãos públicos, pensar a festa, só que quando há uma mudança de governo, e entra o Serra, ele coloca nesse espaço uma pessoa que não tinha nada a ver com a questão cultural, foi mais um cargo político, e essa pessoa vê a festa organizada, ela assume que quem organiza essa festa é o equipamento público, a comunidade é só coadjuvante, e tem todo um problema porque entra um vereador, que põe a festa no calendário da cidade, esse vereador passa uma emenda, que essa emenda nunca chega para os eventos da comunidade, mas para os eventos da subprefeitura local junto com o grupo, tanto que eles contratam a SP Turismo, que administra os palcos da cidade, eles contratam uma empresa para fazer a Festa do Rosário. É uma empresa que nem sabem, não tem nenhuma relação com a comunidade, eles fazem o enfeite do Largo do Rosário com aqueles balãozinhos japoneses em uma festa de cultura negra, essa foi uma das coisas mais gritantes, mas tem outras coisas. E depois foi o Kassab, mas se manteve a mesma estrutura da casa, a gente ficou quase oito anos com isso aqui, e a gente vive lutando para fazer. Quando esse pessoal sai para fazer a reforma, esse grupo da casa de cultura e subprefeitura brigam entre eles, e quando eles estão brigados, para não deixar a festa acabar, a comunidade toma conta e a coisa sobe.
P/1 - E Igreja do Rosário e essa festa existem há muito tempo? É uma tradição?
R - Não, a gente tem relatos que devia ter no começo no começo do século XX, século XIX, a gente retoma a partir de 2002, quando ela completa 200 anos de idade, a gente passa a fazer a festa todo mês de junho, esse ano foi a 17ª festa.
P/1 - E ela virou patrimônio.
R - A igreja já era patrimônio, ela se tornou patrimônio público em 84, quando o CONDEPHAAT vem e a reconhece como um bem patrimonial da cidade.
P/1 - E vocês, enquanto Movimento Cultural Penha, o Coelho e esse grupo artístico de mais ou menos 15 pessoas. Depois da morte do Coelho, quem são vocês que assumem?
R - No primeiro momento foi Júlio, Patrícia, Edson, Denise, João Luís, Francisco Fouco, Carlos Casemiro, o seu Moreli, a Selma.
P/1 - Quem são essas pessoas?
R - Por exemplo, o Carlos Casemiro, o avô dele foi zelador da igreja e foi da Irmandade de São Benedito, que foi a última irmandade que teve na igreja, tem toda uma relação com São Benedito e com o passado da igreja, ele é da família direta dessa irmandade, tem ele e o irmão dele. O Carlos foi rei da nossa festa, ele e a Selma, que é mulher dele. O seu Moreli por outro lado, é um descendente de italiano, branco, aqui da Penha, que nasceu aqui no Largo do Rosário, a família dele tinha casa aqui, então ele vivia brincando aqui na igreja, ele entra no seminário, se torna padre, vai para Aparecida, roda algumas cidades do interior, se apaixona, casa, larga a batina, volta para a Penha, e é psicólogo.
P/1 - Então são moradores.
R - Todos moradores.
P/1 - E esse movimento faz a festa, e depois que a festa acaba, que tamanho tem esse grupo?
R - Quando vira a comunidade do Rosário, hoje, boa parte dela faz parte do Movimento, estão na diretoria, são associados. A gente começou com a festa, e depois a gente criou outras ações culturais para poder fortalecer a comunidade e também dar mais visibilidade ao patrimônio. Foi criado uma celebração afro, que ocorre todo primeiro domingo do mês, depois foi criada uma roda de samba, que ocorre todo último sábado do mês. Agora surgiu as pastoras do Rosário, que são mulheres do Rosário, nós tivemos um outro rei, que foi o Renato Gama, ele vem e também traz essa contribuição musical. O Sérgio Oliveira, que também foi um rei, trouxe a roda de samba. Essas pessoas que são os reis de festa, são moradores da região e acabam contribuindo de alguma forma para aumentar a comunidade. Hoje, além das pastoras, nós criamos um cordão, que é o Cordão da Dona Micaela Vieira, que também é uma mulher negra aqui da Penha, parteira, que é do final do século XIX para o século XX, ela tem o nome de uma praça aqui no bairro, a comunidade foi criando essas ações para se fortalecer. Hoje a gente se reúne a cada 15 dias para poder ver quem vai limpar a igreja, um dia antes tem a celebração, quando vamos nos organizar para fazer o samba, como a gente se organiza para fazer a festa, porque quando a gente faz a festa, vem grupos de irmandades, pastorais afro, de folias de reis, tudo para a nossa festa, e depois nós somos convidados para ir na festa deles, então a gente tem festa o ano todo, tem gente que vai para Minas, para Casa Verde, Brasilândia, Vila Formosa, Santos, agora vai ter a festa de São Benedito no Tietê, então vai um pessoal para lá. O interessante é que a gente não é uma irmandade e nem uma pastoral, a gente é um grupo que virou uma comissão para cuidar de um patrimônio, e hoje a gente acaba fazendo esse papel, porque tem gente dentro do grupo que é católico, gente da umbanda, do candomblé, evangélico, e isso na parte religiosa, e tem um pessoal que é memorialista, tem historiador, músicos, que foram entrando na comunidade, foi assim que ela ganhou essa dimensão, que vai entrando para vários lugares e a gente não sabe onde isso vai dar.
P/1 - Vocês tiveram uma fase de transição, que foi quando o Coelho faleceu, vocês tiveram que organizar todo esse material, e vocês foram tentando projetos mais ligados a educação.
R - Sim, a cultura com essa transversalidade com a educação.
P/1 - E trabalhos com memória. Eu queria saber se você consegue mostrar se isso continuou, como que foi, porque dá para ver essa transição, e hoje se fortalece como o que?
R - O Movimento Cultural Penha, a gente tem trabalhos de um pessoal que é da Comunidade do Rosário, como eu falei, tem partes que são do Movimento e partes que não são. O Movimento Cultural Penha começa a desenvolver essas ações ligadas a memória e a gente começa a participar das discussões que vão tendo no território sobre memória, você tem grupos de memória em Ermelino Matarazzo, em Guaianases, em São Miguel, e a gente também começa a participar, porque a gente está ligado à igreja do Rosário, que é um patrimônio, a gente também quer entender como funciona essa questão dos órgãos que tombam, então a gente começa a participar desses movimentos, e participando desses movimentos, a gente faz parte da organização de alguns seminários que ocorrem aqui nesse prédio. A gente acaba percebendo a necessidade de criar um outro grupo para cuidar, especificamente, dessa questão do patrimônio, não só da Penha, mas da Zona Leste, porque a gente percebe que a discussão não é só da Penha, é de outros territórios da região, isso porque a gente ainda faz um recorte, ficando na Zona Leste, porque poderíamos discutir também outras regiões da cidade. E surge o grupo Ururay, que é o que vai cuidar dessa parte dos patrimônios da Zona Leste, esse grupo já tem uma outra trajetória específica, que vai ser outra pessoa que vai contar.
P/1 - Quem é a pessoa?
R - A Patrícia.
P/1 - E por que chama Ururay?
R - Porque dentro da pesquisa que a gente fez, uma das pessoas que fez parte do começo da discussão trouxe essa informação que aqui existiam seis Marias, que eram as seis Marias de Ururay, que começava ali do começo do Tatuapé e vai até Guarulhos, toda essa região que está aqui na Zona Leste seriam essas seis Marias de Ururay, e a gente dá esse nome, justamente por essa especificidade de trabalhar aqui na Zona Leste.
P/1 - Você pode contar, pelo o que você já falou até agora, desde a origem, porque você pegou o movimento cultural na época do Coelho. Se você pudesse falar, não analisando, mas como aconteceu mesmo, como que aconteceu isso para agora ser desse tamanho.
R - Tinham duas coisas que eu acho que é importante, quando você tem uma instituição, você dedica tempo a ela, ela tem que se auto sustentar para poder custear o seu tempo, então como a gente vai manter uma instituição, desenvolver o trabalho que a gente gosta, a gente tem que ter recursos para poder manter, porque desses que eu falei, o Ururay e a Comunidade do Rosário, o CNPJ deles é o Movimento Cultural Penha, e dentro do movimento a gente sempre trouxe a ideia de que é preciso ser autossustentável, porque senão você não caminha. Como que a gente vai ter um espaço, porque tem despesas, aluguel, telefone, água, internet, bancar quem fique lá para atender o telefone, depois quem vai trabalhar nos projetos, e pensando isso, tanto eu, como a Patrícia, que é outra pessoa importante dentro do movimento hoje, depois que o Coelho sai, hoje quem tem essa participação somos nós dois, porque nós dois viemos de trabalho em instituição, tem um período que eu vou trabalhar em uma ONG chamada CREN, que é Centro de Referência de Educação Nutricional e fica dentro de uma comunidade bem carente aqui de São Miguel Paulista. É lá que eu conheço a Patrícia, que trabalhava em uma outra ONG chamada NUA, e a gente percebe que essas instituições gastam a maior parte da sua verba para manter estrutura, e não para manter as pessoas que dão o nome para a ONG, que estão na ponta, desenvolvem os projetos, que faz a transformação social, e isso é uma discussão que a gente sempre trouxe dentro do nosso grupo, como fazer para poder obter recurso, e, ao mesmo tempo, manter a instituição. A gente opta por parcerias, por ter um espaço físico pequeno e trabalhar com os parceiros, escolas, centros culturais, outras instituições. O corpo físico da instituição é mais para manter um escritório, onde a gente tem os nossos arquivos, os nossos equipamentos, então a gente gasta pouco com a estrutura física e o recurso que a gente ganha, a gente banca as pessoas que trabalham no projeto, inclusive, a gente, e, ao mesmo tempo sempre trabalhamos em outros projetos porque nós percebemos que a gente usa a experiência da instituição como nosso currículo. Hoje eu posso falar que eu sou um produtor cultural, e tenho trabalhos na área de produção, que é o meu portfólio para mostrar, eu tenho trabalhos para dizer que eu contribui na área da memória, tenho livros que a gente escreveu, vídeos no qual eu apareço dando depoimento, quer dizer, é uma metodologia que a gente vem desenvolvendo, de mostrar uma alternativa de trabalho digno, que você também possa exercer uma função que você goste, além de se auto remunerar.
P/1 - Essa postura é para vocês e para mais alguém?
R - Para nós, e para quem vem com a gente, todo mundo que participa dos projetos ou os que estão se aproximando da gente também ganha dos projetos, participa da estrutura, e nós vamos gerando outras parcerias. Olha, que interessante, hoje, o movimento se auto sustenta com trabalho na área da produção, que nem era uma coisa original do movimento, tem muitos coletivos de cultura aqui na região que precisam ser contratados para trabalhar aqui no centro cultural, no SESC, para outros órgãos e não tem, procuram o Movimento Cultural Penha para emitir nota, as notas que a gente vem emitindo, a gente cobra em torno de 10%, só para manter o trabalho operacional, já bancam esse espaço que a gente tem, porque, até então, a gente tirava dinheiro do bolso para bancar o espaço.
P/1 - E hoje, qual formato jurídico tem?
R - Continua sendo uma ONG e continua chamando Movimento Cultural Penha, que é engraçado, porque a gente fala isso e o movimento foi ganhando outras denominações. Lá atrás tinha um movimento de reivindicação, depois passou a ser um movimento de cultura, hoje, dependendo do pessoal, se você falar que é um movimento, alguns governos já associam com movimento dos sem-terra, MST.
M: Eu queria que você falasse um pouco sobre esse guarda-chuva que é o movimento, como foram se juntando essas outras pessoas, esses outros grupos, e criou o corpo que tem hoje.
R - Eu acho que foi um pensamento estratégico que a gente teve lá atrás, nós percebemos que para ter legitimidade, a gente ia ter que ter trabalho e pessoas junto com a gente, não adianta eu falar que eu sou uma instituição ou uma ONG, e só aparece eu. Hoje não tem uma cara, por mais que, às vezes, eu e a Patrícia aparecemos, outras pessoas também estão aparecendo. Nós pensamos isso, primeiro que a gente não daria conta de fazer tudo sozinho, e foram demandas que foram surgindo, a gente partiu muito de um texto que tem uma fala do Teixeira Coelho, e ele coloca isso, que uma ação cultural que tem começo, meio e fim, você sabe como ela começa, mas você não sabe como ela termina. O que a gente tem em mente é isso, que a gente faz uma ação cultural, a gente pensa um projeto, vamos fazer o projeto, mas ao longo do projeto, ele vai se abrindo, vai surgindo outras oportunidades, que você vai buscando recursos para poder fazer, e vai somando, até você terminar aquele projeto. Quando a gente criou o seminário sobre a memória da região, a gente não sabia que ia surgir o Ururay, e surgiu. Quando começamos a participar da comissão da festa do rosário, a gente não sabia que depois ia ter a celebração, ia ter o samba, o cordão, e um belo dia a gente começou a discutir como atrair as pessoas no carnaval, e daí saiu a ideia do cordão, você não fazia ideia que ia fazer parte do cordão, ou seja, do Ururay, já está no cordão, daqui a pouco você está na Irmandade do Rosário, a gente não sabe. Desde o início, isso talvez venha da somaterapia, que é uma coisa que diz que sem tesão não há solução, eu faço as coisas para ter prazer, mas é claro que não tem só prazer, tem trabalho, dor de cabeça, quem trabalha na produção, não vê a hora de acabar logo e ver que deu tudo certo, mas o prazer depois de ver que você fez tudo aqui. Também tem os seus problemas de crise, tivemos uma crise no samba e tivemos que parar com o samba, reformular o projeto, porque o pessoal do samba não estava entendendo o todo do projeto e a gente para.
P/1 - Se você fosse falar, como você disse agora que o pessoal do samba não entendeu, qual é a essência?
R - É outra ideia que está ligada com esse processo que eu tive lá atrás, que é o coletivo, quem trabalha com o social tem que saber o que as pessoas podem dar do melhor de si, onde você pode estar cobrando, onde não pode, como faz para absorver, com quem você conta, com quem não, quando tem as crises, que são quando as pessoas querem ser mais importantes que o coletivo, e você tem que conversar, e, às vezes, a conversa não caminha tranquilamente, tem hora que vai para o confronto, e, no confronto, a gente tem que ver com todo mundo o que é melhor e o coletivo decide, foi isso que aconteceu com o samba, a gente percebeu que nós da comunidade estávamos trabalhando para o samba, e os músicos vinham, tocavam seus instrumentos e iam embora. A gente tem outros artistas dentro do nosso coletivo, a gente tem as pastoras, tem gente que toca melhor que os caras e os caras começaram sentir que eles eram a última bolacha do pacote, as pessoas começaram a se injuriar, quem vinha trabalhar voluntariamente, com prazer parou de vir por causa dessas pessoas, nós estamos todo mundo aqui desde às oito da manhã para organizar, na correria, para curtir, e chegam as pessoas para querer se destacar mais do que os outros, as pessoas acabam percebendo. Como é um processo que não tem um dono, todos são donos, e tem um grupo que vai discutir, sempre tem as pessoas que sentam, as que estão mais tempo, não necessariamente são os mais velhos.
P/1 - Tentando entender mais a organização, tem um núcleo que discute mais frequentemente e toma as decisões?
R - Não, vão surgindo os núcleos de acordo com as atividades, por exemplo, a gente tem um núcleo que pensa a celebração, que nós chamamos de liturgia, tem um grupo que pensa a questão do samba, tem um grupo que pensa o cordão, mas ao mesmo tempo tem as reuniões gerais, e todo mundo sabe, tem os grupos no WhatsApp que se divulga com facilidade o que vai ter, tem aquelas pessoas que se envolvem mais, tem aqueles que vem para curtir, tem aqueles que vem de vez em quando para contribuir, tem de tudo dentro do grupo, mas tem um grupo específico que vai pensar a festa do ano que vem, que não é um grupo fechado, mas é o grupo que tem interesse. Se eu tenho interesse em participar, eu participo, é aberto, mas tem algumas coisas que são específicas daquele grupo, que quem não é, não vem ou se vim não entende.
P/1 - Tem a diretoria, tem uma estrutura.
R - Sim, tem os diretores do Movimento Cultural Penha, alguns são atuantes e alguns são só participantes, tem os associados, que muitos são participantes, outros são só figurantes.
P/1 - Para decidir os rumos, tudo isso que você está falando, as reuniões são abertas ou não?
R - Tem as pessoas que vão organizando, tem aqueles que tem uma visão maior, mais a frente, vem para contribuir, por exemplo, queria fazer o cordão da Micaela, tem que ter o argumento, o porquê, e são duas, três reuniões até decidir, depois tem que ver como vai fazer.
P/1 - Eu fico imaginando, tem o Ururay, alguém do Ururay faz parte da diretoria do movimento, tem a comunidade, alguém de lá faz parte da diretoria, ou não, é tudo aberto?
R - Tem o pessoal do Ururay que faz parte do movimento, mas não da diretoria, porque a diretoria são 4 pessoas, o diretor executivo, administrativo, tesoureiro e o de projetos, os demais são conselheiros e associados, então, necessariamente, o Ururay não tem um representante na diretoria, mas dentro do Ururay tem um representante que pode chamar uma reunião, que pode conversar, que pode trazer um projeto, eu e o Maurício hoje em dia estamos muito próximos, porque hoje a gente está no projeto.
P/1 - Então não existe um organograma, as discussões são...
R - ... Tem o que puxa, e também tem responsabilidades, se eu trago a proposta, eu assumo, se eu estou no projeto, eu assumo, se não assumir é complicado, eu trago as demandas e deixo para o outro fazer, é complicado. Falando do Ururay, tem muita gente que quer entrar, mas entrar quando tiver um seminário, quando tiver um roteiro, um projeto, é dentro desse nível de organização, a gente ainda tem buracos, a gente não conseguiu sistematizar, a gente tem demandas, por exemplo, de fazer uma imersão todo mundo do Ururay, do movimento, para saber traçar para onde nós vamos, metas, quem vai vir assumir os espaços, o que a gente vai virar, se vamos virar uma produtora, para onde caminha, e isso são questões que vamos ter que ver, fazer cursos de gestão, porque é maluco, as coisas vão mudando, de repente você está em um outro processo.
P/1 - Você consegue fazer uma ponte entre a sua infância naquela casa, naquele ambiente e hoje? O que você é hoje no movimento, tudo isso que você conta hoje do movimento ou não.
R - Eu acho que talvez pela minha infância, eu tive uma vida sem muitas normas e regras, é pensado, é calculado, mas é flexível, se precisar mudar, muda, se precisar acabar e começar, a gente faz, talvez isso seja da minha infância. Eu fui livre, tive essa liberdade, por mais que depois foi doido, pela ausência de mãe, de dinheiro, mas eu sempre me cerquei de pessoas carinhosas, sempre tive poucos amigos, amigos que eu trago até hoje, uns a gente brigou, mas se gosta mesmo não conversando Minha família, por mais que tenha brigas, dificuldades, a gente se gosta, e uma coisa muito boa que eu aprendi, foi a perdoar, como eu fico bravo, brigo, mas depois eu perdoo, mas se precisar brigar, eu não tenho problemas, mas depois a gente se perdoa, eu perdoo, eu não falo mais, mas eu perdoo e a minha vida segue.
P/1 - Em relação ao movimento, essa proposta para a comunidade, como você vê tudo isso?
R - Eu vejo uma coisa interessante, eu percebo que muitas das pessoas da comunidade do Rosário, que fazem parte e se dedicam, é porque precisava de alguma coisa para fazer na vida, de estar participando de algo, principalmente, o povo negro. Hoje a nossa comunidade é muito negra, não só o negro, mas o simpatizante da causa negra, também tem os brancos que se identificam, não é um grupo fechado só de negros, apesar de a maioria ser negra, tem negros casados com brancos, é o brasileiro, ele tem essa oportunidade de ser protagonista se ele quiser, e eu acho que isso é o melhor, quando a pessoa se sente protagonista do que ela está fazendo. Eu acho que o Movimento Cultural Penha proporciona que quem queira ser protagonista pode ser, participar, uma das melhores coisas que eu vejo é isso, não é nem querer salvar vida, melhorar a cabeça, tanto que esses dias me ligaram me perguntando se a gente trabalhava com idoso, com criança, e nós não somos... Mas no nosso grupo nós temos idosos, temos crianças, mas não somos uma ONG assistencialista, nós somos uma ONG que a pessoa vem para poder trabalhar os seus demônios e ser feliz, eu acho que essa é a ideia.
P/1 - Para fechar, tem alguma história de alguém, de alguma situação que mostra isso?
R - Tem bastante. Tem um cara muito maluco no nosso grupo, que é o Robson, o Robson é um senhor de 60 anos, fala pouco, tem quase 1,90 m, já foi jogador de futebol, e, um dia, a irmã dele frequentou a igreja e chamou ele para fazer parte, ele acabou sendo o nosso rei de festa. Ele sempre foi um cara que vivia na margem, por mais que ele jogava bola, aqui ele se encontrou. Ele fala que ele é um cara que faz abayomi, que são umas bonecas negras feitas de tecido, conta que quando as crianças estavam no navio negreiro, para elas não chorarem, e para não serem jogadas no mar, as mães rasgavam os vestidos e faziam para elas brincar. Você compra para dar de presente, ele produz isso, e com isso ele foi fazer abayomi no SESC, coisa que ele nunca imaginou, depois que ele foi rei da Festa do Rosário, ele foi rei de Divinópolis em Minas Gerais, ele foi lá, e o pessoal olhou para ele e viu que ele tinha alguma coisa, ele é todo místico, ele é um cara que quando chega na igreja, coloca a bata dele, os colares, e é uma figura que todo mundo fica olhando, tem uma presença. Ele fala que quando ele chega na igreja, ele entra descalço porque ele sente e energia do chão, ele tem umas conversas muito malucas. Hoje, ele é um cara que ganhou uma outra vida aqui dentro do Rosário, ele é respeitado, ele é um representante nosso em outras irmandades, coisa que ele nunca imaginou, hoje ele é esse cara, ele aprendeu a fazer abayomi, ele leva a barraquinha dele, e é aquele homem enorme fazendo bonequinha, e não tem linha, é só através de nós que ele vai construindo.
P/1 - E ele aprendeu aqui?
R - Aprendeu aqui, ele falou que veio, simplesmente veio. Isso é uma coisa, tem várias histórias, essas mulheres que são as pastoras do Rosário ensaiam aqui, foram mulheres que nunca imaginavam pisar em um palco, elas cantaram no SESC Paulista, são avós, que hoje criam os netos, já criaram os filhos, e depois de idosas começaram a cantar, e, hoje, estão se apresentando em palcos que elas nunca imaginaram, olha o que é a vida dessas mulheres, que maluco, foi através da irmandade. Todas são devotas de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário, frequentam terreno de candomblé, são jogadoras de búzios, e misturam tudo isso, curtem samba, funk, tudo o que colocar.
P/1 - Você pode dizer que isso é o movimento?
R - Sim, eu acho que isso também é o movimento.
P/1 - Que movimento?
R - O movimento da vida, que é esse processo de estar aprendendo, conhecendo e vivendo, se você parar, você morre. Essas mulheres, essas pessoas estavam mortas, e perceberam que elas podem estar em movimento, e ganharam vida, acho que esse é o sentido. A gente pode fazer essa leitura do Movimento Cultural Penha, que lá atrás era um movimento reivindicatório, e que ainda continua tendo essa função, mas se a gente for olhar de uma outra forma, é esse movimento, você só vai parar quando deixar de respirar, eu acho que é isso.
P/1 - Muito bom, fechou. Eu quero dizer que talvez, depois que a gente entrevistar as 4 pessoas, pode ser que a gente volte com você, mas até agora, o que você achou de contar essa história para gente?
R - Eu acho sempre interessante quando você faz esse mergulho, porque você traz coisas que estavam esquecidas, coisas que muitas vezes você não lembra, mas estavam lá em um cantinho, talvez cheio de pó, e isso traz lembranças, recordações de gente, de momento e de outras interpretações, que naquele momento que você viveu, você vivenciou de uma forma, mas relembrando e entendendo você vê de outra maneira.
P/1 - Por isso que a memória é construída no presente. Obrigada.
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