A serventia da memória
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Com um sobrinho vivendo em Madri, Raphael Callou, às voltas em obter a cidadania espanhola, por descendência, não por necessidade, vão sendo recuperados documentos de meus avós maternos.
Observo, nesses documentos, que Vicenta Castro Macias e Ignacio Fernández Rodríguez desembarcaram na Bahia, vindos de Vigo, recém-casados, exatamente num dia como o de hoje: 11 de janeiro de 1907. Foi um privilégio ter Vicenta Castro Macias, vivendo com meus pais, por 32 anos.
Com sua delicadeza, mas sem papas na língua e rapapés, seu gosto pela literatura, pelo cinema, pela música espanhola (Lola Flores, Sarita Montiel, Joselito) e mexicana (Agustín Lara, os mariachis, que muitas décadas depois pude assisti-los na praça Garibaldi, na Cidade do México), e pela conversação, contribuíram para a minha formação cultural, da infância à universidade, e a de meus irmãos e primos. Tipo de formação que Pierre Bourdieu chama de Capital Cultural Personalizado. Esta construção não se vende, não é roubada e não se herda.
Agora é a terceira geração familiar que realiza a formação, não pelo cotidiano real e concreto, hoje líquido e fugaz, mas pelo trabalho da memória. É quando certo cotidiano passado se refaz, num quebra-cabeça imaginário ou real, à medida que os documentos vão sendo encontrados nos arquivos.
Os documentos não falam por si mesmos, aprendi isto com Paul Veyne. É o escavador quem dá sentido a eles, como faz Raphael, ao localizar o embarque e o desembarque dos seus bisavós, agora acompanhado de seus filhos (Ignacio, Hermindo, Waldemira, Durvalina, Nair e Yolanda), para uma permanência de um ano na Galícia espanhola, em 1922.
Para quem diz que a memória é coisa do passado, ei-la viva e pulsante, atravessando gerações. Ouso dizer, que pouco importa o passaporte espanhol, extensivo aos descendentes da terra de Cervantes. Os Fernández e os Castro,...
Continuar leitura
A serventia da memória
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Com um sobrinho vivendo em Madri, Raphael Callou, às voltas em obter a cidadania espanhola, por descendência, não por necessidade, vão sendo recuperados documentos de meus avós maternos.
Observo, nesses documentos, que Vicenta Castro Macias e Ignacio Fernández Rodríguez desembarcaram na Bahia, vindos de Vigo, recém-casados, exatamente num dia como o de hoje: 11 de janeiro de 1907. Foi um privilégio ter Vicenta Castro Macias, vivendo com meus pais, por 32 anos.
Com sua delicadeza, mas sem papas na língua e rapapés, seu gosto pela literatura, pelo cinema, pela música espanhola (Lola Flores, Sarita Montiel, Joselito) e mexicana (Agustín Lara, os mariachis, que muitas décadas depois pude assisti-los na praça Garibaldi, na Cidade do México), e pela conversação, contribuíram para a minha formação cultural, da infância à universidade, e a de meus irmãos e primos. Tipo de formação que Pierre Bourdieu chama de Capital Cultural Personalizado. Esta construção não se vende, não é roubada e não se herda.
Agora é a terceira geração familiar que realiza a formação, não pelo cotidiano real e concreto, hoje líquido e fugaz, mas pelo trabalho da memória. É quando certo cotidiano passado se refaz, num quebra-cabeça imaginário ou real, à medida que os documentos vão sendo encontrados nos arquivos.
Os documentos não falam por si mesmos, aprendi isto com Paul Veyne. É o escavador quem dá sentido a eles, como faz Raphael, ao localizar o embarque e o desembarque dos seus bisavós, agora acompanhado de seus filhos (Ignacio, Hermindo, Waldemira, Durvalina, Nair e Yolanda), para uma permanência de um ano na Galícia espanhola, em 1922.
Para quem diz que a memória é coisa do passado, ei-la viva e pulsante, atravessando gerações. Ouso dizer, que pouco importa o passaporte espanhol, extensivo aos descendentes da terra de Cervantes. Os Fernández e os Castro, do lado de cá do oceano, há muito se reconhecem como galegos, devido à presença marcante de Vicenta Castro Macias na vida de todos nós. Saudades da Galícia!
Praia do Pina, Recife, 11 de janeiro de 2024.
Recolher