P/1 - Para começar, eu gostaria de pedir para o senhor se identificar. O nome, local de nascimento, cidade.
R - Eu sou Acary Souza Bulle Oliveira. Nasci no dia 26 de Janeiro de 1957 em uma pequena cidade do interior de São Paulo chamada Monte Azul Paulista, que fica próxima a Bebedouro.
P/1 - Seus pais moravam lá?
R - Não, meus pais moravam em uma cidade próxima a Monte Azul também chamada Cajubi. Só que Cajubi era muito grande, tinha uma maternidade que não cabia na cidade, e que exatamente se encontrava em Monte Azul Paulista. Daí a minha mãe foi dar a luz nessa pequena cidade chamada Monte Azul Paulista. Graças a Deus, tudo certo.
P/1 - O que seu pai fazia nessa época?
R - Meu pai era coletor federal e tinha três postos de gasolina também em Cajubi.
P/1 - O que ele fazia como coletor federal?
R - Eu acho que coletava impostos. Eu acho que essa era a função.
P/1 - De casa em casa, nos estabelecimentos.
R - Eu acho que sim. Tinha um escritório pequenininho. Em me lembro vagamente desse escritório, mas eu acredito que a função era exatamente essa. Hoje não existe mais esse tipo de atividade, né?
P/1 - Não, acho que está extinta. E a sua mãe?
R - Minha mãe, na época, era professora primária, especificamente, de primeiro ano de escola. Ela adorava fazer a iniciação educacional para as crianças. Inclusive ela fez a minha iniciação também.
P/1 - É mesmo? Ela te ensinou a ler e escrever? Seus irmãos também?
R - Praticamente quase todos ela fez a iniciação, com aquela famosa cartilha 'Caminha Suave' [risos].
P/1 - Quantos irmãos você tem?
R - Nós somos sete, no total. Eu sou o terceiro dessa escala, então, tem dois mais velhos e quatro mais novos do que eu.
P/1 - E como era morar com todo mundo? Como era a casa na sua infância?
R - Era uma casa grande, com um quintal grande também, com animais no quintal. Gato não tinha, mas tinha porco, macaco e muitos cachorros. Bastante...
Continuar leituraP/1 - Para começar, eu gostaria de pedir para o senhor se identificar. O nome, local de nascimento, cidade.
R - Eu sou Acary Souza Bulle Oliveira. Nasci no dia 26 de Janeiro de 1957 em uma pequena cidade do interior de São Paulo chamada Monte Azul Paulista, que fica próxima a Bebedouro.
P/1 - Seus pais moravam lá?
R - Não, meus pais moravam em uma cidade próxima a Monte Azul também chamada Cajubi. Só que Cajubi era muito grande, tinha uma maternidade que não cabia na cidade, e que exatamente se encontrava em Monte Azul Paulista. Daí a minha mãe foi dar a luz nessa pequena cidade chamada Monte Azul Paulista. Graças a Deus, tudo certo.
P/1 - O que seu pai fazia nessa época?
R - Meu pai era coletor federal e tinha três postos de gasolina também em Cajubi.
P/1 - O que ele fazia como coletor federal?
R - Eu acho que coletava impostos. Eu acho que essa era a função.
P/1 - De casa em casa, nos estabelecimentos.
R - Eu acho que sim. Tinha um escritório pequenininho. Em me lembro vagamente desse escritório, mas eu acredito que a função era exatamente essa. Hoje não existe mais esse tipo de atividade, né?
P/1 - Não, acho que está extinta. E a sua mãe?
R - Minha mãe, na época, era professora primária, especificamente, de primeiro ano de escola. Ela adorava fazer a iniciação educacional para as crianças. Inclusive ela fez a minha iniciação também.
P/1 - É mesmo? Ela te ensinou a ler e escrever? Seus irmãos também?
R - Praticamente quase todos ela fez a iniciação, com aquela famosa cartilha 'Caminha Suave' [risos].
P/1 - Quantos irmãos você tem?
R - Nós somos sete, no total. Eu sou o terceiro dessa escala, então, tem dois mais velhos e quatro mais novos do que eu.
P/1 - E como era morar com todo mundo? Como era a casa na sua infância?
R - Era uma casa grande, com um quintal grande também, com animais no quintal. Gato não tinha, mas tinha porco, macaco e muitos cachorros. Bastante árvores frutíferas. Portanto, foi uma infância leve, solta. Não tem essa dificuldade de hoje de levar as crianças para a escola, trazê-las da escola. Um comportamento bastante familiar, afetividade entre os irmãos e os colegas dos irmãos também. Com exceção da última, que tem uma diferença de 12 anos para o sexto irmão, éramos uma escadinha de um ano de diferença. Era uma delícia, até as atividades domésticas de arrumar o quarto [risos].
P/1 - Virava tudo uma bagunça?
R - De arrumar a cozinha a lavar a casa, era tudo dividido. Uma das primeiras atividades que minha mãe passou para nós, foi: "Acordou, arrume a sua cama." Tanto que o meu irmão mais novo tem até hoje ódio mortal de arrumar a sua cama [risos]. Traumatizado. Mas era uma situação gostosa. E até o sexto ano de vida, eu devo ter passado uns três, quatro anos no sítio dos meus avós. Eles tinham um sítio rústico que ficava a uns 100 quilômetros de Cajubi. Não tinha água encanada, não tinha esgoto, nem eletricidade, mas era uma delícia. Era o sítio onde minha avó tinha nascido.
P/1 - Mas você tinha se mudado para lá?
R - Não, eu passava bastante tempo com meus avós.
P/1 - E você gostava?
R - Nossa! Adorávamos. Se nós já tínhamos uma vida livre na cidade, no sítio, então, era duas vezes mais livre. Os pais, naturalmente, pegam mais no pé das crianças. Já os avós são mais soltos, pediam ordem mas tinham maior tolerância com as crianças. Portanto, nós adorávamos esse tempo com eles. Então, minha infância, até os sete anos, foi em Cajubi ou no sítio dos meus avós.
P/2 - Qual é a origem da sua família?
R - Eu sou um brasileiro típico. Acari é um nome indígena, é um tipo de peixe, mas também existem outros significados. É também uma espécie de palmeira existente na região norte do país e uma espécie de símio amazônico. Souza é português, (Bule?) vem da minha avó paterna, alemã, e Oliveira é português também. Portanto, é uma característica do brasileiro. Uma mistura de raças e até do nome, o nome indígena. Meus avós maternos, tipicamente brasileiros. Os meus avós paternos: minha avó alemã e meu avô português, moravam no interior de São Paulo. Meu avô e minha avó, agricultores. Agricultura de subsistência, praticamente. Eles plantavam aquilo que eles consumiam durante o ano. Era arroz, milho, mandioca, amendoim, várias coisas do dia-a-dia. Da minha infância no sítio dos meus avós, eu guardo uma recordação muito gostosa. Primeiro, a família sempre junta, segundo porque era um sítio que não era tão pequeno, eram 120 alqueires, mas existiam pequenos sítios em volta. E a época mais gostosa que eu me lembro era a de junho, julho, agosto, porque a colheita é feita em maio, junho, nesse local. E não existia muito dinheiro circulante na época, anos de 1963/64/65. E as pessoas reuniam-se, nessa época, numa pequena região chamada Laranjeiras, para fazerem as trocas. Então trocava um caminhão de milho por um de arroz, um de arroz por uma mula, uma mula por um revólver, um revólver por uma adaga, e por aí vai. Era tudo na base da troca. E para se fazer as trocas, eles tinham que fazer as festas. Aí coincidia com as festas dos santos. Então eu adoro festa de santos, adoro música caipira, mas dupla caipira, não essas que eles tocam na Globo, aquelas antigas mesmo. Porque eles faziam os casamentos, os batizados. E todo mundo era compadre de todo mundo lá. E quando eles faziam todas essas festividades e punham as melhores roupas... As melhores roupas, você pode imaginar...
P/1 - Era um evento.
R - Era um evento de um mês e meio, dois meses. A temperatura nessa época era muito gostosa também, porque não era quente e nem tão fria. Julho já era mais frio, mas maio e junho não era. Então eu fazia de tudo para estar lá nessa época, nessa situação. Meus irmãos também passavam esse período junto. E lá no sítio, como não tinha água encanada, não tinha televisão - era um radião enorme de pilha -, meus avós acordavam muito cedo, portanto a gente tinha que dormir muito cedo. Oito e meia, nove horas da noite estava todo mundo na cama já. E quando tinha essa festividade era delicioso porque nós ficávamos até uma e meia, duas da madrugada na festividade. Também gostava quando morria alguém. Adorava quando morria alguém, se não fosse da família, lógico. Porque reunia o pessoal todo da região, todo mundo ia de trator.
P/1 - Você gostava de festa.
R - Quando os indivíduos ficavam velando esse morto, tomando café, comendo alguma outra coisa, nós, os moleques, ficávamos lá fora brincando de rico-trico-pé-na-lata, esconde-esconde. E isso ia até duas e meia,três da madrugada, o que era um evento. Não tinha muita oportunidade de dormir tarde. Portanto, quando morria alguém, era ótimo.
P/2 - Essa brincadeira, rico-trico, como era?
R - Rico-trico-pé-na-lata é uma brincadeira em que a gente joga a lata, e tem um pegador que vai pegar a lata enquanto os outros se escondem. Aí ele volta, como se fosse um pique, mas com a lata. Quando ele vê alguém ele fala: "Rico-trico-pé-na-lata, Fulano de Tal atrás da moita" [risos]. Aí tem um salvador da pátria toda. São variações de esconde-esconde, pega-pega.
P/1 - Junta as duas brincadeiras.
R - É, junta as duas. Não existia muita revista. Revista para meninos, não existia. O que existia eram revistas para adolescentes, como Grande Hotel, mas só adolescente podia ler, nós, moleques, não podíamos ler. Estava começando o gibi mais efetivamente. Só que era um pouco caro o gibi, então nós tínhamos que criar brincadeiras. E eram criadas brincadeiras o dia inteiro. Existem as brincadeiras tradicionais, jogar pião, empinar papagaio. Embora as pessoas falassem de papagaio, em nunca fui um indivíduo fã. Mas bolinha de gude, figurinha e pião era o dia inteiro. Tinha até calo na mão, dessas coisas.
P/1 - E você lembra de alguma doença de infância que você teve? Essas doenças de infância comuns.
R - O que eu me lembro é que eu tinha uma hérnia escrotal. Foi a única cirurgia que eu fiz até hoje. Então tinha uma dor importante na região abdominal. E na cidade em que eu morava, Cajubi, devia ter uns oito ou nove mil habitantes, mas apenas um médico. E eu vim fazer medicina por causa desse indivíduo, chamado doutor Godói.
P/1 - O senhor conheceu ele quando?
R - Eu me lembro dele, acho que eu tinha uns três para quatro anos. E a figura que eu tenho dele é muito interessante. É uma pessoa de avental grande, do lado, sempre em pé, nunca sentado e sempre escutando. Escutava, escutava, aí, de repente, um minuto de palavra, e pronto. Aí, meus pais falaram-lhe dessa situação. Ele pediu-me para deitar. Me lembro muito bem dessa situação, na cama. Ele colocou a mão e disse: "Isso aqui é uma hérnia", dessa frase eu, médico, me lembro bem, "e tem que ser operada. Aqui em Cajubi não dá para ser operado. Ele terá que ser operado em uma cidade maior, por exemplo, Bebedouro." Aí eu fui ser operado em Bebedouro. Me lembro bem do pós-operatório bastante doloroso. Eu estava com quatro anos, na época. Como marcam as coisas, não? É impressionante. É engraçado porque esse hospital era um pouco estranho para mim. Não sei se era fantasia, mas depois eu nunca mais voltei nesse hospital. Tinha um saguão muito grande, uma sacada e no meio do hospital tinha um coqueiro saindo pelo telhado. Eu acredito que era alguma ilusão, porque eu não imagino um coqueiro saindo pelo telhado [risos]. E tinha amigdalite de repetição. Meu pai fazia profilaxia familiar completa com um remédio chamado Colubiazol, que vocês devem conhecer. Ele pegava uma espátula com algodão ou gaze e na ponta passava o remédio nos filhos, primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto... Ou seja, se não tivesse amigdalite, ele ia passando amigdalite para todo mundo [risos].
P/1 - Ele passava a mesma espátula em todo mundo? [risos]
R - - Todos, em seqüência. Com amigdalite ou não [risos]. O restante, foi uma infância muito feliz, saudável, pé no chão mesmo, frutas demais, tanto em casa quanto no sítio. E todos os tipos de frutas existentes, dessas que a gente paga um absurdo aqui, e lá, tudo de graça. Lavar a fruta era uma raridade da raridade. Você pegar a fruta e lavá-la, isso era brincadeira. Você pegava e já traçava. Na escola, quando eu estava já na terceira série, houve um mutirão para fazer exame parasitológico, para ver se o pessoal tinha verminose. Eu sei que os meus amigos, já mais finos, tinham casas mais finas, aquele negócio todo, com aquele mundo de verme intestinal. Quando veio o resultado: "Só duas pessoas não têm verminose nessa classe." Eu e o meu irmão, que era da mesma classe. Interessante.
P/1 - O resto, todo mundo tinha.
R - O resto, todo mundo, uma coletânea de bichas.
P/1 - Você gostava de ir à escola?
R - Adorava. Eu entrei na escola com sete anos. Tinha um irmão um ano mais novo do que eu que fez de tudo para poder ir à escola, só que só podia entrar com sete anos. Eu fui alfabetizado na escola, só que eu chegava em casa e passava a tarefa para ele. Assim: "olha, hoje eu aprendi isto." Quando a minha mãe viu, ele estava alfabetizado também. Ele praticamente alfabetizou-se. Ele copiava aquilo que eu fazia durante a escola, e de manhã ele ficava repetindo. Aí, na metade do ano, minha mãe o colocou como ouvinte na mesma classe que eu estava, porque ela era professora. Chegando no final do ano, eu fui alfabetizado tranqüilamente, estava matriculado, e, como ele era ouvinte, não dava para passar de ano assim sem mais sem menos. Então, houve a necessidade de uma prova especial, e foi muito interessante porque ele não falava certas letras de uma forma adequada. O 'L' e o 'R', ele não falava de forma correta. Então era: "O cachorro coeu, coeu, coeu e não pegou o dato." E 'G' ele trocava por 'D' também. E a minha mãe disse: "Olha, você está muito bem, está escrevendo direitinho, mas você fala mal, e vai ter uma prova de leitura. Você, lendo desse jeito, não vai passar de ano." Ele tinha terror de eu ir para o segundo ano e ele não ir junto.
P/1 - Ele queria ficar com você, né?
R - Na verdade, nós éramos a tampa e o balaio. Éramos ligados, diretamente. Da noite para o dia, que seria o dia da prova, de manhã, ele apareceu lendo de uma forma completa, completa. Ele passou com nota máxima para o segundo ano, e nós acompanhamos igualzinho, até a quarta série. Aí, da quarta para o primeiro ginasial, que seria hoje a quinta série, tinha o tal exame de admissão. E no exame de admissão não teve jeito de ele continuar, por causa da idade. Tinha que ter uma idade mínima para fazer o primeiro ginasial. Foi quando ocorreu a separação. Ele ficou o restante atrás, nessa situação.
P/2 - Que escola que era?
R - Era em Olímpia. Nós fizemos o primário e ginásio numa escola pública excelente de Olímpia, e uma parte do colegial. Os dois últimos anos do colegial foram feitos em uma escola pública aqui em São Paulo, no bairro do Socorro. E essas escolas deram uma base excelente. Tanto que todos nós fizemos nível superior, e praticamente todos com escola pública. Sem dúvida, eu tenho essas escolas com um carinho bastante especial porque elas propiciaram a entrada na minha paixão atual, que é a Escola Paulista de Medicina.
P/1 - O senhor tinha alguma preferência por alguma matéria?
R - Desde pequenininho, eu falava que ia fazer Medicina. Desde de pequeno, na verdade.
P/1 - Não era o desejo do seu pai, da sua mãe?
R - Não, não. Eu não ia ser médico, eu ia ser o doutor Godói, aquele indivíduo que ficava ao lado da cama, aquela entidade. Talvez, em pequeno não falasse que ia fazer Medicina. Eu nunca tive problema com nenhuma matéria em especial, e as minhas paixões eram Matemática e Física. Não gostava muito de Português, das regras do Português. Aquela história de análise sintática... Aquilo me incomodava um pouco, mas era natural e necessário aprender, então não tinha problema. Mas eu era de exatas. Praticamente todos em casa têm uma facilidade enorme com exatas. A minha irmã foi fazer magistério, Matemática, meu outro irmão mais velho, Administração e Economia. Eu adorava Matemática, embora tenha ido para o lado de Medicina. Outros dois irmãos, Agronomia, mas com a parte exata junto. E outra irmã fez Engenharia, exatas também. A raspa do tacho, que é a sétima, 12 anos depois do antigo caçula, essa odiava Matemática. Ódio mortal à Matemática [risos]. Por outro lado, ela adorava Português. Como ela detestava Matemática e adorava Português, hoje ela é advogada. Cruzes! [risos] Pelo menos tem alguém em casa que pode dar orientação nessa área. Meu pai queria que alguém fizesse advocacia. Mas ninguém quis fazer, a não ser a última. Ela foi fazer, mas por livre e espontânea vontade.
P/1 - Quando você foi se formar, ele tinha esse desejo?
R - Tinha.
P/1 - Quando alguém estava para entrar na faculdade, ele achava que...
R - Ele sempre falava: "Tem que fazer advocacia. É a carreira do futuro", aquelas histórias todas. Mas ninguém, só ela.
P/1 - E aí, na época do vestibular você fez cursinho? Como foi?
R - Na época do vestibular foi o seguinte: o terceiro ano colegial foi um terceiro ano pesado porque eu fazia colegial à noite, fazia cursinho de manhã e trabalhava à tarde.
P/1 - À tarde no restaurante?
R - No restaurante.
P/1 - O Garrafão?
R - Não, já aqui em São Paulo. Quando nós mudamo-nos de Olímpia para São Paulo, nós fechamos o restaurante em Olímpia e foi aberto outro restaurante aqui em São Paulo, na Alameda Santos, chamado A Boteca. Então foi a continuidade do ramo de alimentos. Essa Boteca vendia frango frito, aquele frango frito especial, na Alameda Santos.
P/1 - Em que época foi isso?
R - Isso foi em 74 e uma parte de 75.
P/1 - E O Garrafão?
R - O Garrafão, em Olímpia, foi fechado em 1973, quando nós viemos para cá. Ao chegar aqui, continuamos nesse ramo. E a Boteca foi interessante. Tudo na vida tem um significado para a gente, tem uma importância para a gente. E o restaurante de Olímpia teve uma importância enorme para mim. Eu estava com 12 para 13 anos, aprendi a responsabilidade. O horário de abertura, o horário de fechar. Não só a responsabilidade, como aprendi a tolerância também. Ou seja, estava fechando o restaurante à noite, meu pai teve um problema de saúde, na época, ele teve uma trombose venosa profunda...
P/1 - Uma TVP?
R - Uma TVP. E o restaurante ficava no mesmo prédio em que morávamos: a parte superior era nossa moradia, a parte de baixo, que seria o térreo, era o nosso restaurante, e o subsolo era uma boate. Portanto, nós tínhamos que tomar conta da boate, tínhamos que tomar conta do restaurante - era à la carte -, tinha uma porção de refeições que deveriam ser servidas e feitas e nós trabalhávamos muito. E meu pai teve esse problema da perna, não tinha como fechar o restaurante. A minha mãe estava grávida da última filha, então juntou toda essa situação. O trabalho foi descomunal, na época. Em relação a hora de fechar, morando em uma cidade pequena, você não pode fazer desfeitas para as pessoas. Quando eu estava fechando o restaurante, uma e meia da manhã, aparecia um certo indivíduo da cidade, importante ou não, e perguntava: "Já está fechando o restaurante?" "Não, não. Tudo bem. A gente só está vendo se a porta está funcionando de uma forma adequada." [risos] "É porque eu queria tomar meio Drury's." Era um uísque muito barato, na época, purinho. E isso ia duas e meia da manhã, três e meia, quatro horas. De repente ele falava: "Então, tchau, tudo bem." Se você fosse computar a luz, o cansaço, tudo, era só perda. Mas aí eu aprendi a tolerância. E a tolerância é importantíssima no seu dia-a-dia. É importantíssima no trânsito, é importantíssima na sua família, importantíssima com as crianças que você tem. Você tem que ser tolerante. Eu aprendi um pouco de tolerância com meus avós também. Mas você não aprende tolerância só copiando os outros indivíduos. Você tem que aprender sofrendo também, com essa situação. Então, essa época do restaurante foi ótima para mim. Foi ótima porque você começa a trabalhar com pessoas distintas, pessoas diferentes, com gostos e exigências diferentes. E aí nós viemos para São Paulo. Em São Paulo, trabalhando na Alameda Santos, o público muda um pouco.
P/1 - Vocês vieram para São Paulo porque sua mãe conseguiu uma transferência para São Paulo?
R - Sim. Ela era professora primária, e nós tínhamos que sair da cidade pequena porque não tinha faculdade e todos queriam fazer curso superior. A minha irmã mais velha já tinha saído de Olímpia, estava em Ribeirão Preto. O meu irmão mais velho estava saindo de Olímpia, estava vindo para São Paulo. Aí, meus pais resolveram dar uma ajeitada na família. "Chega! A gente fecha tudo o que a gente tem e vamos fazer uma vida nova para possibilitar estudo para todo mundo." Ela tentou transferência inicialmente para Ribeirão Preto, só que não tinha vaga. A única vaga foi em São Paulo, em Santo Amaro, Vila Ré. Ela não sabia onde era Santo Amaro, muito menos onde era a Vila Ré. Quando eu fui conhecer a tal Vila Ré, foi um susto. Longe pra caramba, praticamente sem acesso.
P/2 - Em que época?
R - 1973. E nós não tínhamos automóvel. Portanto, era tudo feito com ônibus. E a minha mãe se encontrava no último ano da faculdade que ela fazia em Ribeirão Preto. A vida dela foi muito complicada nesse ano porque nós tínhamos o restaurante que abrimos em São Paulo, A Boteca. Tomávamos conta eu e meu pai desse restaurante. Ela tinha que tomar conta da casa, uma casa nova, da família dela. Ela dava aula na Vila Ré, de manhã.
P/1 - Essa casa, ela ganhou dos pais?
R - Não, nós alugamos, em Santo Amaro.
P/1 - Para ficar mais perto da Vila Ré.
R - Para ficar mais próximo. Nós conseguimos matrícula em uma escola pública no Socorro, e ela fazia faculdade à noite em Ribeirão Preto. Portanto, ela saía de casa umas cinco e meia da manhã.
P/1 - A sua mãe?
R - Chegava na escola às sete horas para dar aula. Saía da escola ao meio-dia. Chegava em casa uma e meia, arrumava o almoço. Minha irmã mais nova tinha menos de um ano de idade nessa época. Minha mãe pegava o ônibus às quatro horas na rodoviária de São Paulo e ia para Ribeirão Preto todos os dias. Chegava na faculdade, das oito às onze e meia, e pegava um ônibus de volta. Então, ela dormia no ônibus. Chegava em casa, tomava banho e ia para a Vila Ré dar aula. Um ano desse jeito. Foi quando ela fez Pedagogia, concluiu o curso superior. Para ela, era muito importante essa situação. E nós aprendemos também, com ela, que a dedicação é fundamental. Se você quer alguma coisa, você tem que se dedicar. E não pode sofrer com aquilo, você tem que ter prazer. E não me lembro de ela se queixar que estava fazendo um sacrifício enorme. Não. Você tem que fazer as coisas. Meu pai sempre foi voltado à parte mais popular, do contato com outros indivíduos. Então eu fui aprendendo muito a tolerância com ele. Muito o dia-a-dia com ele. E isso facilitou a minha vida como médico também. Quando a gente faz Medicina, a gente não tem muita ideia do que vai ter pela frente. A gente tem uma suspeita na cabeça, de que você vai ajudar pessoas, que você vai salvar pessoas, que você vai sempre estar apto, sempre disposto a ajudar. Mas quando começa a sua vida profissional, realmente, verifica-se que ela é um pouco árdua. Muito mais árdua do que isto. E você tem que se dedicar às pessoas. E com essas situação de restaurante porta aberta, eu aprendi que a Medicina é uma verdadeira porta aberta. Você tem que estar com as pessoas o tempo todo. Você tem que dar duas orelhas para as pessoas. É como se fosse o balcão de um restaurante. A mesma coisa. Você tem que dar as duas orelhas, você tem que estar com as orelhas sempre abertas para essas pessoas. Se você faz isto, mesmo nos dias de hoje, mesmo com tudo isso que as pessoas falam, você tem sucesso, bastante sucesso. Mas você tem que estar apto e disposto a se entregar completamente. Então você vai aprendendo. Nada é jogado fora. Para mim, não funcionou como emprego, nessa parte, não funcionou como um momento só, funcionou como uma iniciação à parte profissional também.
P/1 - E você estudava e trabalhava no restaurante com seu pai?
R - Isso. A tarde toda, saía de lá às seis horas e ia para a escola à noite. Neste ano, eu prestei vestibular.
P/1 - Era terceiro colegial já?
R - Terceiro colegial. Prestei vestibular único, que era o Cecem, porque não tinha grana nem para fazer a inscrição para outros. E mesmo que tivesse a grana, se entrasse nas privadas, não teria condição de tocar para frente. Família muito grande, então você tem que ganhar um pouco e dividir com todo mundo. Nesse ano eu peguei Cecem e peguei Jundiaí. Mas deveria morar em Jundiaí, e não dava porque deveria ajudar em casa também. O outro ano foi o ano mais tranqüilo da minha vida. Nesse outro ano, que foi o ano de 74, eu fazia cursinho de dia e estudava. Só fazia cursinho e estudava. E dava aulas particulares para ganhar o sustento do dia-a-dia.
P/1 - Seus pais pagavam o cursinho?
R - Eu mesmo pagava.
P/1 - Com as aulas?
R - Com as aulas particulares. Dava aula à tarde. Mas a aula particular era interessante porque eu estudava muito. Conforme as pessoas iam fazendo os exercícios, eu já estava na minha, estudando. Nesse momento, eu peguei o gosto pela parte didática. Na escola, sempre tive uma satisfação bastante grande de seguir nessa parte didática. Ou seja, nada você joga fora. Você vai aproveitando essas coisas todas. Quando eu terminei a faculdade, que eu fui fazer residência na Escola Paulista de Medicina.
P/1 - Quando você entrou na Paulista de Medicina foi aquela festa, né? Porque é um feito.
R - Foi. Antes disso, dessa parte didática, eu fui para uma pós-graduação, já pensando na parte didática. Eu já acreditava que seria um caminho bastante interessante. É uma forma de você passar aquele conhecimento que você teve para outras pessoas. É uma multiplicação muito rápida. Essa é uma outra necessidade do ser humano também: ele tem que multiplicar aquilo que ele sabe. E essa parte didática foi muito interessante, por exemplo, seguindo os passos da minha mãe. O ano de 74, para mim, foi muito tranqüilo porque foi de estudo, estudo, estudo. E o vestibular foi feito com tranqüilidade, não foi feito com ansiedade porque eu sabia que o resultado seria muito bom. Fiz cursinho Objetivo e existiam aqueles simulados. E eu estava indo muito bem nos simulados. E os indivíduos que se encontravam melhores em classificação lá no Objetivo, o cursinho pagou a inscrição para as faculdades privadas. E o primeiro exame feito foi para a Fundação ABC. Eles pagaram, eu fui à Fundação do ABC e peguei 11º lugar lá. O segundo que eles pagaram foi na Santa Casa: peguei entre os 60 primeiros. Depois foi a Osec: peguei entre os 30 primeiros também. Depois, o último exame que eu fiz foi do Cecem. Era o Cecem que fazia a classificação, e eu havia colocado primeiro como opção Pinheiros, que seria A01, Paulista coloquei A02, segunda opção, e Ribeirão Preto como A03. E eu achava que fosse pegar a A01 porque eu estava indo muito bem em todos os exames, todos os simulados, mas em uma das provas eu fiz uma bobagem, que seria a prova de Português e de Inglês. Inglês era terrível porque em cidade pequena do interior não tinha curso de Inglês. Mal e mal tinha curso de datilografia. Em São Paulo, não tive oportunidade de fazer curso de Inglês. Foi muito bom o colégio que eu tive aqui em São Paulo, mas as aulas de Inglês eram muito fracas. Portanto, a minha informação de Inglês era muito rudimentar. Então eu fui mais ou menos. Mas como o peso não era muito alto, eu não perdi muito tempo para esse negócio também. Aí eu peguei A02, mas eu não sabia nem onde ficava a Escola Paulista de Medicina. Nunca tinha vindo à Escola Paulista de Medicina. E no cursinho, imagina, um interiorano - interior, 'leite quente, dor de dente... O máximo era a USP, Pinheiros, e a Escola Paulista de Medicina eu não sabia nem que era federal. Só soube que ela era federal na época da inscrição, quando fui fazê-la, e o indivíduo que estava fiscalizando as fichas, falou para mim assim: "Olha, você está colocando uma opção aqui um pouco estranha. Você está colocando Pinheiros em primeiro, Ribeirão em segundo e Paulista em terceiro, mas a Paulista é em São Paulo e é federal." "É federal a Paulista?" "É." "Ah, então coloca A01, A02 e A03."
P/1 - Foi ele que deu o toque? [risos] Se você não sabe...
R - Eu ia para Ribeirão Preto. Quando ele falou... No dia 26 de janeiro, dia do meu aniversário, saiu na Folha de S. Paulo a classificação: A02, Escola Paulista de Medicina. Aí, na segunda-feira eu vim à escola para saber onde era a tal da Escola Paulista de Medicina. Peguei um ônibus em Santo Amaro, desci na Pedro de Toledo. A Escola era bem pequena. Hoje ela é enorme, mas na época ela era pequena. Aí, dentro do pátio da própria Escola, eu perguntei para um indivíduo, que para mim tinha uma cara confiável: "Por favor, onde fica a Escola Paulista de Medicina?" Porque não tinha uma placa escrito Escola Paulista de Medicina. O indivíduo falou assim: "Você é calouro?" "Sou." "Que bom!" Páááá, um baita ovo na minha cabeça. [risos] Foi o primeiro trote. O tontaço aqui: "Onde fica a Escola Paulista de Medicina?" [risos] A Escola foi um achado para mim, de todos esses momentos, a Escola foi um momento muito especial. Faculdade, universidade, você atingir um sonho que você teve por muito tempo. Então, aquela situação de você conseguir ser médico, ser o doutor Godói. Eu estava muito próximo. E para a família, foi muito interessante também. Porque não é com sacrifício, não é com tristeza, não é com dificuldade porque nós não considerávamos que isso seria um sacrifício, mas de repente as coisas estavam chegando próximas. E em seguida, meus irmãos também foram entrando nas faculdades todas e, com isto, possibilitando um sonho maior e melhor para meus pais. É interessante porque meu pai vem de uma família muito grande também: são nove irmãos, mas quase todos eles fazendeiros. Todos de mão fechada, segurando o patrimônio. E o meu pai, não fazendeiro, mão aberta, liberando o patrimônio. O maior patrimônio dele era aquilo que a gente pudesse fazer. Principalmente, com liberdade, liberdade de escolha. Era muito gostosa essa forma de ele ver as coisas. Sem cobrança. "Se você não entrar, o que vai acontecer?" Não existia esse tipo de cobrança. "Se você não entrar, vai ter que trabalhar..." Sabe aquelas sanções? Isso não existia. Portanto, hoje a Escola Paulista de Medicina... entrei nela com 19 anos, portanto tenho 23 anos dentro dela já.
P/1 - Como foi esse período da faculdade?
R - Foi uma paixão enorme a faculdade. Tem muitas coisas boas ligadas a ela. A primeira foi poder conciliar ao mesmo tempo o estudo e a diversão. A faculdade me deu isso. Eu não tinha tido a oportunidade de participar de atividades esportivas anteriormente, apesar de gostar muito. Eu tive uma atividade esportiva privilegiada pois cresci no sítio, a gente ficava correndo atrás do bezerro, atrás do porco, atrás do cavalo o dia inteiro, caçando, nadando. Então nós não tínhamos dificuldade de correr, andar de bicicleta, andar a cavalo. Eu tinha um preparo físico muito bom, meus irmãos também. Mas, do ponto de vista competitivo, nós nunca fizemos nada, mesmo porque a cidade era muito pequena e as pessoas não se reuniam para isso. A faculdade me permitiu tudo isso, logo de cara. Primeiro o estudo, depois esse tipo de situação. Existia técnico para tudo. Existia técnico para basquete, para vôlei. E, de repente, vi o técnico de basquete, um pirulão enorme chamado Edson Bispo dos Santos, ex-técnico da seleção brasileira... Eu disse: "Ah, vou fazer basquete." Vi o técnico de vôlei: "Eu vou fazer vôlei." Vi o técnico de futebol: "Eu vou fazer futebol." O técnico de atletismo: "Ah, eu vou fazer atletismo." Então, a gente ficava de manhã, à tarde e à noite na faculdade. Estudando uma parte e fazendo atividade esportiva em outra parte. E, ao mesmo tempo, atividade coletiva, social. Embora, nessa parte eu fosse sempre um tontaço enorme. Imagina, eu era do interior, e lá, para mim, não existia homossexualidade, não existia droga, essa história de liberdades democráticas. "Como? Não existe esse negócio de ditadura. Isso não existe. Os caras falam esse negócio." Aí de repente você se depara com uma situação assim: eu estava no segundo ano da faculdade, tinha uma festa do centro acadêmico, e nessa festa eu estava jogando pebolim. Me deu uma sede, eu fui até o bar pegar um refrigerante, e, nisto, um piano estava se mexendo. Falei: "Nossa, que coisa estranha." E atrás desse piano, duas moças, em pelo, como Deus mandou, numa atitude homossexual. Isso, para mim, foi o fim do mundo. Falei: "Não é possível! Existe mesmo isso!" [risos] Então a faculdade deu esse tipo de informação também. O contato com pessoas drogadas, é interessante, fui ter no quarto ano. Então, a faculdade dá esse tipo de abertura, ela mostra que existe um outro mundo também. E, além desse aspecto esportivo, a faculdade deu-me a minha atual esposa, a Fernanda. Da mesma classe, ela adorava também a parte esportiva, nós nos engajamos na Associação Atlética Acadêmica Pereira Barreto, onde fazíamos a organização das competições esportivas, e fazíamos competições praticamente o ano todo, sem pausa. Eu ficava mais ligado à diretoria de esportes, ela era tesoureira. Ela que guardava o dinheiro todo. Até hoje ela é tesoureira de casa também. [risos] Ela que comanda toda essa situação. E nós ficamos amigos muito rapidamente. A Fernanda foi o meu melhor amigo durante a faculdade toda, antes de sermos namorados. Era interessante porque todo mundo achava que nós éramos namorados, e as pessoas respeitavam. Então, não existia um assédio muito grande para o meu lado nem para o lado dela porque cada um tinha um dono já, na cabeça de todo mundo. Mas, na verdade, nós começamos a namorar realmente três anos depois, no quarto ano da Escola. Portanto, em termos de lembranças, tem esse período todo de atividades esportivas, as competições, as vitórias, algumas derrotas. A gente guarda as vitórias. As derrotas a gente deixa para lá. [risos] Deixa para o outro lado.
P/2 - Algum professor marcante?
R - Existem vários professores. Para mim, dois indivíduos marcaram muito. Um deles foi o professor de atletismo, chamado Damião. Nem tanto a faculdade, mas o atletismo. Fazíamos os treinos específicos, quando eu achava que já estava morto, acabado, ele falava: "Acary, você consegue. Mais uma voltinha só." E, dessa voltinha, ia mais uma, mais uma, mais uma. E não terminava mais essa uma. E quando a gente faz Medicina é interessante porque você tem que continuar nessa voltinha a mais, sempre. É aquela história da porta aberta. Então, você não pode fechar nunca a oportunidade de você fazer alguma coisa a mais. Outro professor que marcou-me demais, foi um de gastrocirurgia, chamado Boris Barone, por duas particularidades. Uma delas, o horário de entrada. Ele ficava controlando o nosso horário, tinha que chegar tal horário. A outra é o respeito com o aluno. Ele respeitava você, mesmo, mas você tinha que respeitar as regras. Então era a regra de forma bem balanceada. Ao mesmo tempo, o relacionamento com o paciente. É surpreendente a forma de ele se relacionar com o paciente. Com dois minutos de conversa, o paciente já era amigo dele. Como você faz isso? Você vai aprendendo no dia-a-dia com essas pessoas: conversar coisas que sejam comuns. "De onde o senhor é?" Aí, de repente: "Ah, eu morava em Juazeiro." "Juazeiro, Bahia? Nossa, que interessante! Fica perto de Pirapora..." Já ficou comum, já ficou próximo. É a cultura do indivíduo, é ele aproveitar a cultura que ele tem, mas trazer a cultura em relação ao aspecto social de troca, de troca de energia, dessa química do dia-a-dia. Então ele sabia fazer muito bem essa química. Com dois minutos. Ele é médico da minha família quando tem problemas desse jeito. Meu avô teve um problema sério de saúde, ele teve um câncer de reto e ele tratou do meu avô. Ele tratou, não só como médico, mas como amigo também. E a minha avó é um pouco resistente a médico, mas ele cativou a minha avó no crochê. Ele falando de um tal ponto de crochê que a minha avó conhecia. Com dois minutos de conversa, ela falou o seguinte: "Esse vai ser o médico do seu avô. Ele que vai decidir o que vai acontecer com seu avô, e ponto. Ninguém mais." [risos] Com um ponto de crochê. Portanto, essas duas situações marcaram bastante. Fora outros indivíduos, porque a Escola Paulista de Medicina, hoje, é uma universidade, mas, na época que eu entrei, era uma escola mesmo. Tanto que eu nunca falava "eu vou à faculdade", "eu vou à Paulista". Não. "Eu vou à escola." Para mim era uma escola, era uma situação que fazia parte da minha casa, do meu dia-a-dia. E você conhecia as pessoas todas praticamente. Os funcionários, professores, alunos, porque você tinha obrigação de bater ombro com ombro. Era muito compacta. E ela entrava dentro do seu sangue, ela era muito mais 'família' do que é hoje. Então, para mim, aquilo lá era uma extensão de casa. Eu gastava muito mais tempo dentro da faculdade que dentro da minha própria casa. E até hoje eu tenho essa paixão enorme por ela.
P/2 - Como se deu sua escolha pela neurologia?
R - A escolha pela neurologia foi muito interessante porque, durante o curso médico, eu fiz uma ficha para o CIEE, aí eu fui classificado para fazer uma atuação médica no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, que era obstetrícia. Teve um exame, eu passei e fiz o quarto, quinto e o sexto ano lá. Durante o curso médico, todo mundo achava que eu ia fazer ginecologia obstetrícia porque eu estava trabalhando já, fazendo parto, fazendo cesárea. Durante o curso médico, o curso de obstetrícia que eu tive na escola eu fiz com o pé nas costas, uma facilidade enorme porque eu já tinha uma experiência grande. Mas o que valeu nesse período de três anos, dentre outras coisas, eu aprendi que não iria fazer obstetrícia. Uma das razões era que eu adorava o horário, e em obstetrícia não tem hora para acontecerem as coisas. E mais ainda, eu era perfeccionista...
P/1 - Pra quem adora horário, realmente... [risos]
R - O pré-parto eu fazia como mandava o figurino. Dinâmica...
P/1 - Ficava com o bip ligado o dia inteiro?
R - Bip não existia, na época.
P/1 - Sim, mas podia ser chamado a qualquer hora.
R - Dinâmica uterina, direitinho, a cada dez minutos, feita. Agora, como é que você pode tocar a sua vida profissional sendo obstetra em uma cidade como São Paulo. Eu ia ficar maluco, completamente. A pessoa telefona: "Olha, tem um trabalho de parto aqui." Como é que eu vou tocar a dinâmica? Então, isso aí eu não vou fazer. Pediatria eu já tinha decidido que não ia fazer também. Tem a mãe, a avó, todas aquelas histórias malucas de pais complicados. Então, eu achava...
P/1 - Como assim?
R - Das criancinhas, coitadas. Não tem nada e os pais ficam arranjando doença para os coitadinhos. Eu achava que ia fazer cirurgia porque eu estava fazendo maternidade e tal. Tinha decidido fazer cirurgia. Dentro da cirurgia, provavelmente, ortopedia. Mas o meu estágio dentro da cirurgia foi um pouco traumático. Não tanto do ponto de vista do dia-a-dia, de atividade cirúrgica. Mas no relacionamento dos cirurgiões. "Passa esse bisturi, porra!" Não dá, não tem jeito. Aí eu decidi: "Cirurgia, eu não faço." Aí eu comecei a excluir. "Bom, não quero cirurgia, não quero pediatria, não quero obstetrícia, sobrou clínica médica." Mas clínica médica... Eu não queria fazer alguma coisa que todo mundo fizesse. E qual era aquela atividade que as pessoas tinham ódio mortal? Como se fosse a Matemática na escola, era a neurologia. "Então eu vou fazer neurologia. Desta forma, eu vou competir com poucos, não vou competir com muitos." Já estava imaginando o mercado de trabalho futuro também.
P/2 - Mas por que essa imagem da neurologia?
R - Porque todo mundo acha que é difícil e é simples. É muito lógica, tremendamente lógica. Aí eu parti para a neurologia. E foi uma opção muito boa, adorei essa opção. A neurologia dá muitos campos, aberturas, para todos os lados praticamente. Dentro da neurologia, eu fui fazer depois doenças neuromusculares. É um guarda-chuva enorme as doenças neuromusculares - existem doenças altamente limitantes. Exemplo: distrofia muscular de Duchenne, que é uma doença que afeta crianças do sexo masculino. Uma fraqueza muscular dos dois aos três anos de idade, evolutiva, progressiva. Essa crianças perdem a marcha com 11, 12 anos de idade, e elas falecem ao redor dos 20 anos. É uma doença catastrófica. E os meus colegas falaram: "Mas por que você vai fazer neurologia, numa especialidade que só tem trabalho com doença praticamente incurável, irreversível, intratável?" Porque não existia tratamento para essa situação. Aí eu fui aprender uma coisa muito interessante: embora as doenças muitas vezes sejam incuráveis, elas sempre são tratáveis, desde que você respeite o indivíduo, não valorizando só a doença. Se você começar a respeitar o indivíduo que está com o problema, você está tratando do indivíduo. A curabilidade é um acaso, porque, no dia-a-dia da gente, é a tratabilidade com o que você tem que se preocupar. Sempre é tratável. Aí eu fui aprender com essas doenças incuráveis, irreversíveis, progressivas, que você sempre tem alguma coisa a mais para fazer, não só para o indivíduo como também para o familiar do indivíduo, para os amigos e a sociedade. Então foi muito interessante trabalhar com esse tipo de doença também. E aí o interesse de trabalhar com doenças mais graves ainda, dentre elas uma chamada esclerose lateral amiotrófica, que é uma doença que afeta pessoas ao redor dos 55 anos de idade, um pouco mais homens que mulheres, e que a manifestação clínica é o atrofiamento progressivo dos braços, das pernas, depois fraqueza progressiva na musculatura da deglutição, um envolvimento da musculatura respiratória e óbito depois de três anos e meio a quatro anos depois de iniciado o primeiro sintoma da doença. É uma doença muito grave.
P/1 - Existem algumas pessoas que têm predisposição?
R - Existe uma forma chamada familiar dessa doença, mas 5% dos portadores da esclerose lateral amiotrófica têm essa forma familiar, passando de pai para filho. No início da minha formação médica, já atuando como neurologista, foi uma das poucas doenças que faziam-me perder o rebolado. Com o passar do tempo, eu fui aprendendo demais com os pacientes e com os familiares dos pacientes. Não é antiético dizer isso, mas eu aprendi muito com um indivíduo chamado Mário Pirane e sua família. Ele desenvolveu essa doença com 47, 48 anos de idade. Um indivíduo que era ligadíssimo à vida, com tudo de bom e de melhor da vida, e teve uma evolução relativamente rápida da doença. Mas eu não via nele esmorecimento, eu não via na família dele esmorecimento. E tudo aquilo que tinha de alguma expectativa de que alguma coisa pudesse acontecer para melhorar a qualidade de vida dele, ele se apegava. Mas não se apegava como uma âncora, não. Ele se apegava para manter a vida, que é o dom principal que Deus dá para a gente. Mas sem aquela angústia, aquele medo das coisas que vão acontecer no dia-a-dia. Eu não entendia muito bem ainda essa situação. Eu só fui compreender um pouco esse tipo de situação quando, numa viagem para o Japão, eu fui visitar um amigo que fez um pós-doutorado comigo em Nova Iorque. E nessa viagem ao Japão, eu tive uma recepção que não é típica do indivíduo que mora na cidade de Tóquio. Ou seja, ele foi me esperar no aeroporto, e me levar de volta ao aeroporto. E o aeroporto não é Congonhas, aqui. A distância é como se fosse São Paulo a Viracopos, Campinas. É muito longe. E, para o dia-a-dia deles, isso é a novidade da novidade. Ele ciceroneou-me em Tóquio. Eu fui visitar o hospital dele, esse negócio todo. Ao se despedir, ele utilizou a expressão “Sayonara”. Ele perguntou-me se eu conhecia essa expressão, e eu disse: "Lógico, no Brasil, em São Paulo tem muitos japoneses - só na Liberdade tem quase um milhão de japoneses -, e algumas palavras a gente conhece." Tanto que antes de ir para lá eu estudei um pouquinho algumas coisas, principalmente no trato dia-a-dia, os cumprimentos. "Então, sayonara significa 'até logo', 'até amanhã', 'adeus'." Ele falou: "É quase isto. Sayonara significa simplesmente 'assim tem que ser, como Deus quer'. Se você fizer deste minuto o seu minuto de vida, como Deus quer, você vai ter uma hora de 60 minutos, um dia de 24 horas, uma semana de sete dias, um mês de quatro semanas, um ano de 12 meses, uma vida. Agora, se você fizer deste minuto o próximo minuto, você vai ver que sua vida vai passar entre os dedos." Aí, de repente eu entendi meu paciente. Então ele fazia do minuto dele o melhor minuto da vida dele. Eu acho que é isso que a gente tem que passar para os nossos familiares, no dia-a-dia para as pessoas que nos cercam. Respeitar mais essa dádiva que Deus deu, que é esse momento que a gente está. Por exemplo, a gente está conversando nesse minuto, devemos tirar o melhor dele, fazer desse minuto o melhor possível na nossa vida. Não é fazer bobagem, não é isto, mas se relacionar legal com as pessoas e ver o lado positivo de tudo, o lado bom. Não é aquela síndrome de Poliana, não é isto. Eu aprendi desse jeito com paciente e com pessoas também no dia-a-dia. E isto faz com que a nossa ligação com as pessoas, mesmo elas tendo um sofrimento grande, seja a de minimizar esse sofrimento para essas pessoas e para a gente também. Porque é difícil para um médico tratar de situações incuráveis. Você não pode ser frio, simplesmente esquecer o que aconteceu no seu consultório quando você está na sua casa, ou na praia. Você pode sofrer também por aquela situação. Então precisa fazer de uma forma que seja tratável para você também. E aí você, simplesmente, tem a cura da alma, sua e das pessoas que estão junto de você, que é o que mais importa. O físico a gente só carrega. É o bem-estar do dia-a-dia.
P/2 - Quando a esclerose lateral amiotrófica foi descoberta?
R - Ela foi descrita, pela primeira vez na segunda metade do século XIX, na França, por Charcot. Tanto que ela era conhecida por Doença de Charcot. Aí, verificou-se que não era uma doença específica dos franceses, que existia uma situação comum em outros locais também, e começou-se a ter uma descrição mais pormenorizada dessa doença. Ela passou a ser melhor reconhecida e difundida na década de 60, 70, na América do Norte. Várias pessoas famosas faleceram com esclerose lateral amiotrófica. Nos Estados Unidos, ela é conhecida como doença de Lou Gehrig, que foi um famoso jogador de baseball, jogou no Yankees.
P/1 - Ah, vi esse livro de baseball assim que cheguei...
R - É, porque na faculdade eu também joguei baseball, experimentei baseball, futebol americano.
P/1 - Jogou em todas as pontas? [risos]
R - Todas as pontas, para conhecer um pouco esse outro lado também. Esse Lou Gehrig seria o Pelé do futebol, seria o Michael Jordan do basquete, era o ás da época, e jogava em um time que seria o Corinthians, o Yankees, mais famoso time de baseball americano, até hoje. E ele era conhecido como horse iron man. Ele era um indivíduo muito veloz, muito forte. Ele tinha o recorde de partidas consecutivas do baseball. No baseball, eles fazem em torno de 100 partidas por ano. Ele tinha 13 anos de atividade esportiva, sem nenhuma falta no baseball, sempre jogando. Isso aí é inimaginável. Até hoje o recorde é dele. Ele tinha vários outros recordes também: de corrida entre as bases, de pontos. Ele só não tinha o de home run, que é jogar a bola para fora do estádio. Ele não tinha esse recorde, que era de um outro chamado Babe Ruth. Ele era famosíssimo. E o indivíduo que joga baseball, ele tem o ápice da sua carreira em torno dos seus 35 anos, 34 anos, quando ele tem maturidade para o jogo. E nessa época, ele estava no ápice e começou a desenvolver uma fraqueza na perna. Rapidamente, ele teve que desistir de jogar baseball, o que foi terrível para o fã americano. Em três anos, desde o início do sintoma, ele veio a óbito. A esposa dele, Eleanor Gehrig, fez com que a memória dele não morresse, e criou uma associação chamada Lou Gehrig Association. Nos Estados Unidos, a esclerose lateral amiotrófica também é conhecida como a doença de Lou Gehrig por conta dessa situação.
P/1 - Mas, quando começaram os sinais, já se sabia...
R - Já existia essa doença. Tanto que o médico que o examinou na cidade de Boston disse: "Ele é portador de esclerose lateral amiotrófica, doença evolutiva." E saiu uma nota no jornal...
P/1 - Como tratava?
R - Não tem tratamento, não tem cura.
P/1 - Mas e o tratamento?
R - Na época, ele ficou na casa dele, esperando o dia acontecer.
P/1 - Não tinha nenhum medicamento?
R - Nada, nada, nada.
P/1 - Ia para casa e acabou?
R - E acabou. Era essa a situação.
P/1 - Nenhum tipo de exercício?
R - Preconiza-se fazer fisioterapia, reabilitação, mas a doença evolui a despeito disto. E outros indivíduos famosos que desenvolveram a doença, por exemplo, David Niven, famoso ator de televisão da Grã Bretanha, que desenvolveu a doença e faleceu rapidamente. Mao Tse Tung, grande líder chinês, desenvolveu a doença também e faleceu muito rápido. Só que no Oriente eles seguraram as informações. Hoje, a gente sabe que ele faleceu disto. É uma doença que não é tão comum. Ela afeta um paciente a cada 100 mil habitantes, mais ou menos. Isto, numa população como a nossa. Mas é uma doença que morre demais.
P/2 - Tem incidência sobre algum grupo específico?
R - Tem um local no Pacífico, chamado Ilhas Marianas. Nessa ilha, ou mais ao sul delas, na Ilha de Guam, é 50 a 80 vezes mais freqüente que no resto do mundo.
P/1 - Nossa, bastante.
R - Muito. Acreditava-se que era decorrente de uma excitotoxicidade no sistema nervoso central, por uma espécie de palmeira existente naquela região. As pessoas utilizavam o extrato dessa palmeira para escarificar a pele ou para se alimentar do palmito. E essa substância era excitotóxica para o sistema nervoso central. Dentro das manifestações clínicas, manifestação indistinta da esclerose lateral amiotrófica, com atrofiamento progressivo, com tremores na carne, fasciculações e óbito precoce também. Doença evolutiva. Então essa é a esclerose lateral amiotrófica.
P/2 - Essa é a pesquisa da excitotoxicidade?
R - Sim. Agora, nem todos os pacientes portadores de esclerose lateral amiotrófica tem essa relação com a excitotoxicidade. Você procura a causa e para a maioria das pessoas, não encontra.
P/2 - É alguma substância específica?
R - Não, acredita-se que seja uma doença degenerativa, pela morte no neurônio que está dentro da medula nervosa, neurônio esse que dá motricidade para a gente. Ele morre antes do tempo. Então seria um processo degenerativo. Se é um processo degenerativo das células da memória, da região temporal, temos doença de Alzheirmer. Se é uma morte das células dos núcleos da base, temos doença de Parkinson. Se é uma morte do (couro?) anterior da medula, que é essa célula ligada à região da medula, da esclerose lateral amiotrófica. Então, é como se fosse degenerativa. A célula morre antes do tempo.
P/2 - O sujeito mantém a consciência?
R - Totalmente. Este paciente que eu estava contando...
P/2 - Afeta a fala?
R - Pode afetar completamente. Esse paciente, a doença começou pela perna, depois os braços, teve dificuldade respiratória e precisou fazer uma traqueostomia. Quando fez a traqueostomia, portanto, ele perdeu a capacidade de comunicar-se, porque já não comunicava-se mais com as mãos, a comunicação era oral. A doença foi evolutiva para este paciente, fazendo com que ele perdesse a capacidade até de utilizar os lábios para uma leitura labial, pela fraqueza labial que ele teve. Aí, no final da vida dele, ele tinha uma comunicação quase que exclusiva com movimentação ocular. Através da movimentação ocular, ele fazia o código: qual a letra que ele queria juntar ao abecedário para dizer aquilo que ele estava querendo naquele momento. Na fase final da vida dele, a movimentação ocular também estava ficando comprometida, estava ficando cada vez mais difícil o contato com ele. Completamente consciente, até os últimos dias de vida. Então não afeta a memória, não afeta o raciocínio, na maioria. Não afeta em nada. É motricidade. E é onde eu ficava muito machucado com a doença, porque a pessoa vai se engaiolando. Ela perde a motricidade, ela perde a capacidade de se comunicar, mas ela não perde a capacidade de receber. Você não sabe aquilo que ela recebe e aquilo que ela quer passar para fora.
P/1 - É uma prisão.
R - É uma prisão dentro dele mesmo. É o verdadeiro locked in, ou seja, engaiolado dentro dele mesmo.
P/1 - Não existia nenhum remédio?
R - Tudo que você pode imaginar já foi tentado para tratar. E praticamente nenhuma medicação foi efetiva, exceto mais recentemente com a Rhodia, onde na França sintetizou-se uma substância chamada Riluzol. Essa substância faz com que a excitotoxicidade nessa célula da região da medula seja diminuída. Dessa forma, você preserva um pouco mais os neurônios, as células nervosas da região anterior da medula. A utilização diária do Riluzol faz com que a doença tenha uma evolução um pouco mais lenta. Ganha-se alguns dias.
P/1 - Dias?
R - Dias. Em torno de 200 dias, mais ou menos. Mas existe crítica a isso. Não se sabe se você ganha 200 dias de vida ou de sofrimento, por causa desse engaiolamento todo que eu estava contando. Mas foi uma medicação muito interessante porque ela vem de encontro à teoria da excitotoxicidade, à teoria do envelhecimento da célula. Se conseguir bloquear essa degeneração celular, você resolve o problema da doença. Então, embora seja uma medicação não curativa, ela abriu portas para as pesquisas. A grande importância dessa medicação, ao meu ver, é justamente essa porta aberta para que a pesquisa continue nessa linha. Até aquele momento, era uma doença de múltiplas teorias e causas. Não havia um enfoque definido para uma certa gênese, uma certa causa. Agora há uma pesquisa muito grande nessa área, nessa linha. Então, nós acreditamos que, para um futuro próximo, nós possamos entender melhor esse processo de morte celular e fazer com que a célula sobreviva mais tempo.
P/1 - Quando essa substância foi descoberta e processada?
R - Faz quatro anos. É bem recente.
P/2 - Você participou da pesquisa?
R - Da forma inicial, não. Agora, em uma certa fase da pesquisa, nós participamos em conjunto, para saber se a medicação tinha efeitos colaterais importantes. Entramos nessa fase final. É uma medicação já comercializada.
P/2 - Você tem pacientes com ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica) no consultório?
R - Temos, mas todos os pacientes eu envio para a Escola Paulista de Medicina porque é uma doença relativamente rara. Se você começa a diluir a orientação terapêutica, você não vai a lugar nenhum. Então, daí a importância de centralizar em um só núcleo e criar associação para isto. É um problema criar uma associação para esse tipo de doença relativamente rara e com o óbito precoce - três, quatro anos. Então, para você conseguir ter uma associação com um número grande de pessoas é difícil. Diferentemente de Parkinson, Alzheimer e esclerose múltipla, quando a sobrevida é grande em relação à ELA.
P/1 - Na Escola Paulista de Medicina, você tem um grupo de pacientes com ELA?
R - Temos um grupo de pacientes portadores.
P/1 - Eles se relacionam entre si, se encontram?
R - Diretamente, não, embora exista um encontro porque a marcação de consultas é feita em um período único. Então nós deixamos a sexta-feira para atendermos esses pacientes. Eles se relacionam. É um problema porque eles se vêem num dia, e como a doença possui rápida a evolução, daqui um mês ele pode não estar mais aqui. Não é uma mudança gradual. É uma mudança muito rápida porque ele atrofia rapidamente, a pessoa perde peso, perde função. Isso assusta os pacientes, e nós também ficamos assustados com essa situação.
P/1 - Fora essa terapêutica, não existe nada? O que mais é possível fazer?
R - Houve um congresso em Munique, em novembro de 1998, e nós estávamos com uma expectativa bastante grande, mas praticamente não se criou nada de novo em relação a essa doença. Do ponto de vista de curabilidade, nada. Do ponto de vista de tratabilidade, com relação à parte medicamentosa, existiam vários trials, tentativas terapêuticas junto com vários outras substâncias, mas comprovou-se que não houve uma melhora efetiva com relação à história natural da doença. Ainda a melhor medicação para isto é o Riluzol, então, a gente continua utilizando. O que tem melhorado um pouco, através da engenharia mesmo, é a tentativa de se encontrar um aparelho que possa melhorar a qualidade de vida dos indivíduos, especialmente na comunicação, quando ele começa a perder a capacidade de comunicação. Respiradores também porque o fator limitante mais sério é a parte respiratória. A pessoa perde a capacidade respiratória, então precisa estar ligado a respirador. O que a gente está procurando é aumentar o grupo e dar facilidades para esse grupo de pessoas, porque nós moramos em uma cidade que é madrasta para a população. Madrasta no sentido de moradia, de escola, de transportes. Essas pessoas, muitas vezes, saem da zona sul. A Escola Paulista de Medicina é do Hospital São Paulo, e eles dão assistência às pessoas da região da Vila Mariana e região sul de São Paulo. E muitos pacientes vêm da região sul de São Paulo. São dois, três ônibus, nessa fase inicial, até chegarem ao hospital, é um sacrifício enorme para eles chegarem. Quando eles não conseguem mais subir em ônibus, eles precisam pedir para alguém trazê-los. Essa pessoa paga caro pelo transporte. Então, a tentativa é dar uma qualidade de vida melhor para essas pessoas. Algumas situações deixam-nos bastante traumatizados também. Uma senhora de 39 anos começa a desenvolver essa doença, ela é procedente do Nordeste, e ela não tem ninguém aqui em São Paulo, só uma filha de 12 anos de idade. E eu vejo essa senhora, faço o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica e pergunto para ela: "Como é a vida?". Ela responde: "Sou eu e minha filha. Eu sou empregada doméstica. Meu dia-a-dia, quem faz sou eu mesmo. Não tenho mais ninguém, somos só nós duas". E de repente, essa menina passa a ser o esteio da família, com 12 anos de idade, torna-se a cuidadora da mãe, a enfermeira da mãe. Você pode imaginar como acontece essa situação de uma hora para a outra. Quando a gente faz a faculdade, é muito rápido esses seis anos, e você não tem tempo de se identificar com esses problemas sociais. Daí a importância do restaurante, da formação do dia-a-dia, o que se fez anteriormente. A tolerância também. Quando você é médico começa a entrar nesse tipo de situação. Se você quiser tratar alguém só no aspecto físico, só no aspecto de causa da doença, de patogenia, você está perdendo uma grande chance de se relacionar de uma forma completa com as pessoas. Você tem que entender mais os aspectos sociais também, não só como médico, mas como assistente social. Entender o aspecto de enfermagem, como cuidador.
P/1 - É mais o todo, certo?
R - É mais o todo dos indivíduos. É isso que procuramos com relação a essas associações, em relação ao atendimento no hospital, de uma forma um integrada. A gente utiliza uma expressão chamada multiprofissional, ou seja, vários profissionais. Só que é uma palavra muito bonita no papel, no dia-a-dia ela se dilui com as dificuldades todas.
P/1 - Tem atendimento de psicólogo...
R - Assistente social, psicólogo, enfermeira, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta. Há necessidade de muitas pessoas se interrelacionando. Você passa a informação, mas se você não der um retorno social para o indivíduo, isso é jogado fora. A sociedade, para nós aqui, ela é muito madrasta.
P/1 - Quantos pacientes você tem em média na Escola Paulista de Medicina?
R - Temos dois casos novos por mês.
P/1 - É bastante, hein?
R - É, porque é um centro de investigação, um centro de pesquisa.
P/1 - Vêm de outros lugares do país para cá?
R - De vários locais.
P/1 - Eles têm uma referência.
R - É uma referência. Eles vêm seguindo a orientação dos médicos de suas regiões.
P/1 - Fora tratar o paciente, vocês também...
R - Entramos em contato com o profissional médico, passamos informação para orientar. Você tem que estar disponível também para passar a informação daquilo que tem acontecido. Hoje está mais fácil porque tem Internet. Até há pouco tempo, as pessoas que moravam e trabalhavam em outras localidades não tinham informação. Era muito mais difícil. Nós temos uma biblioteca fantástica aqui na Escola Paulista de Medicina, mas hoje temos acesso, de uma forma muito mais rápida. O grande problema da Internet é que não tem filtro. Há uma porção de lixo. Até você saber se aquilo realmente interessa ou não, leva tempo. É diferente de uma biblioteca, que já tem um censor, já tem um indivíduo que vai fazendo a filtragem para você. E vai sobrando aquilo que interessa, aquilo que é mais provável que seja verdadeiro, para a gente também.
P/2 - Tem quantos especialistas no Brasil?
R - É difícil falar quantos são especialistas de esclerose amiotrófica. Eu faço neuromuscular e fui fazer neuromuscular porque é uma área que as pessoas atuavam pouco, por causa daquela situação de doenças incuráveis, graves e irreversíveis. No Brasil, existem poucas pessoas trabalhando com neuromuscular. Tanto que foi feito um congresso sobre doenças neuromusculares, e juntando todos os indivíduos, médicos e paramédico, foram 180 indivíduos. Muito pouco. É um número muito pequeno para um país do tamanho do nosso, com essa extensão territorial. Mas nosso país é um país sui generis porque as melhor forma de formação do médico é através da residência médica. Na residência médica, o indivíduo praticamente mora no hospital durante um período de tempo de dois, três anos. Aí você vai ver o número de vagas de residência médica no país. Praticamente, esses indivíduos estão localizados na região Sudeste e Sul do país. Na região Centro-Oeste, pouco, região Norte não tem, não existe. Agora, as pessoas que vêm para cá fazer sua especialização, atrás de residência, como eu, que vim do interior, e meu intuito era voltar para o interior, mas, chegando aqui, conheci a minha esposa paulista, adoro a cidade de São Paulo, adoro shopping, trânsito, automóvel, esse negócio todo. Então, temos um a menos no interior de São Paulo. Vários indivíduos que vêm de outras localidades ficam aqui, pela facilidade do dia-a-dia. Aí você não quer trocar o certo pelo duvidoso. E não há no país uma linha definida para poder trazer essas pessoas de volta para suas localidades, ou para poder levar essas pessoas para outras localidades que têm deficiência. A região Norte praticamente não tem ninguém que trabalha nessa área. Na região do Nordeste, eu conheço um indivíduo morando em Natal.
P/2 - Um indivíduo.
R - É, que trabalha exatamente nessa área. Então, para você ver, é muito pouco, muito complicado. Daí a necessidade de você ter a vontade de passar as informações para a frente. Daí que vem a história de plantar, aí volta a história do sítio. Do plantar, da troca, das festividades. Para poder fazer essas trocas, chegam os congressos.
P/2 - A Abrela [Associação Brasileira de Esclerose Lateral Amiotrófica] tem um pouco essa função também?
R - Sim, fundamentalmente essa função.
P/1 - A Rhodia está dando algum tipo de apoio?
R - Sim, através da Rhodia é que houve a alavancagem para a Fundação Abrela porque eles tinham interesse, na época, em relação ao medicamento Riluzol. Hoje em dia, não tem mais essa angústia de se fazer uma medicação rentável, acredito que essa medicação está ligada à Rhodia sob uma forma de divisor de marcas e retorno social para a sociedade. Eu vejo dessa forma.
P/1 - E o lucro?
R - Não, não...
P/1 - É um medicamento caro?
R - É caro para o paciente.
P/1 - A Escola Paulista dá esse remédio?
R - Não.
P/1 - É o paciente que tem que arcar.
R - Aquela senhora que falei, por exemplo, não tem condição. Vamos supor que todos os indivíduos portadores da doença tomassem a medicação. Mesmo assim, a Rhodia não iria diminuir o débito que ela tem em relação à sintetização da substância porque é muito cara a sintetização, a comercialização. Mas a medicação tem um histórico para a companhia muito bonito. É um histórico do ponto de vista ético-patogênico. Ou seja, a causa dessa doença está aqui mesmo, tanto que a sintetização dessa substância que atua aqui é efetiva, abriu linhas de pesquisa. Então, indiretamente, é uma medicação interessante. A empresa está lucrando, ao meu ver, de uma forma ética, sem a angústia de vender ilusão. Isso é muito importante. Através dessa forma ética, ela fez com que os especialistas do país reunissem-se, pensassem nessa situação e fizessem uma associação. Esse foi o grande ponto em relação à Rhodia e ao Riluzol.
P/2 O Riluzol, de certa forma, abriu um campo de pesquisa?
R - Abriu. Existiam alguns indivíduos que colocavam essa possibilidade como uma possível causa. E essa medicação veio praticamente definir: "Olha, essa é uma causa realmente importante." Até aquele momento, não. E hoje é a causa principal.
P/1 - Quer dizer, o próprio _______ de atuação dela é secundário perto do que ela representa enquanto descoberta? Já está aqui o negócio...
R - Perfeito. É isso mesmo.
P/1 - Bacana isso.
R - É o grande ponto dela.
P/1 - E você sempre atuou nessa área.?
R - Eu fiz minha residência em neurologia geral, trabalhando com neurologia geral.
P/1 - Você trabalhou com alguma classe de nootrópicos, como Nootropil?
R - Não. Essas substâncias são bonitinhas só na bula, são ótimas, mas, do ponto de vista de efeitos, são poucos efeitos. São poucas substâncias que são realmente efetivas e resolvem o problema. Então, não trabalhei com essas classes. Eu trabalhei mais na linha de diagnóstico, não tanto na linha de terapêutica. Minha formação é mais no sentido de fazer o diagnóstico. Eu fiz neurologia geral, depois neuromuscular, e dentro dela algumas doenças específicas, que são importantes, como a própria esclerose lateral amiotrófica. Tanto que meu pós-doutorado em Nova Iorque foi sobre essa doença. Mas, em laboratório, com diagnóstico, investigação laboratorial em nervo periférico, de pessoas portadoras de esclerose lateral amiotrófica. Então eu já tinha esse interesse em relação a essa situação clínica.
P/2 - _________________?
R - Porque Lou Gehrig, Nova Iorque (?). Então foi feita essa associação em Nova Iorque. E a Columbia University foi a universidade que ele foi aluno. E a associação começou pela própria universidade, a Columbia, e tornou-se o maior centro americano de estudos de esclerose lateral amiotrófica. E o chairman da faculdade era amigo da Eleanor Gehrig. E assim, a fome com a vontade de comer, dentro da própria universidade. Os pacientes da Grande Nova Iorque iam para a Columbia University. Então eles tem um número de pessoas muito grande.
P/2 - Quais os grandes centros de estudo? Quais as grandes referências?
R - Filadélfia, Nova Iorque, Boston e Massachusetts, nos EUA, Londres, na Inglaterra, França, Alemanha. Ou seja, muitos centros estudando isso. No Japão, esse meu amigo, que fez pós-doutorado comigo, também montou um serviço interessante em Tóquio, trabalhando com esclerose lateral amiotrófica.
P/1 - Quando o senhor falou que não sabe se o medicamento aumenta 200 dias de vida ou de sofrimento, esse sofrimento é porque ele vive mais e pode ter mais efeitos da doença?
R - Sim, um sofrimento para ele e para a família. Porque você sabe que a doença, hoje, está muito melhor do que amanhã.
P/1 - E você receita?
R - Lógico, para quem tem condição. Eu tenho muito cuidado com relação à orientação do paciente e da família do paciente. Eu estava como chefe de plantão, do pronto socorro do Hospital São Paulo, e tinha uma senhora de 75 com acidente vascular cerebral. Precisávamos fazer uma tomografia, mas no hospital nós não tínhamos tomógrafo. Aí eu telefonei para o Hospital São Luiz e disse: "Olha, eu tenho uma paciente assim, preciso fazer uma tomografia e gostaria de deixar reservado um horário para ela porque a visita será feita à tarde. Eu vou ver com os familiares se eles pagam a tomografia para essa paciente." E já deixei o nosso transporte - nós não tínhamos transporte para levar passageiro assim, mas eu consegui com que o serviço de transporte deixasse uma Kombi para levá-la, e um motorista de sobreaviso também para levá-la ao hospital, se assim a família quisesse, pagasse a tomografia. E aí à tarde, às quatro horas, veio o esposo dela.
P/1 - Não tinha tomógrafo?
R - Na época não tinha, agora tem. Aí veio o esposo dela, a visita. Um esposo muito bem arrumado, de terno gravata, sapato lustrado, bonitinho, o que não era o comum. Hoje a população do Hospital São Paulo já tem um perfil um pouco diferente da época. Aí eu expliquei a situação para ele, expliquei que precisaria de uma tomografia para definir se era um derrame por falta ou excesso de sangue, por extravasamento de sangue, por causa da orientação terapêutica, que mudava para essa situação, e que ia custar. E o transporte ficava pelo hospital, não teria custo nenhum, mas a tomografia deveria ser paga. Ele escutou tudo aquilo e saiu do quarto. E eu fui passar informações de uma outra paciente para uma outra família, demorei uns dez minutos. Quando cheguei no corredor, esse senhor estava em prantos. Aí eu fui conversar com ele, mas ele não se consolava. Depois de um certo período de tempo inconsolável, ele chegou e falou para mim: "Doutor, olha para mim. Veja esse terno, essa gravata, esse sapato, tudo que eu sou eu devo a essa senhora que o senhor acabou de dizer para mim que precisa fazer uma tomografia. Esse indivíduo aqui é tão incompetente, é tão incompetente que não tem o dinheiro para fazer esse exame e salvar a vida dela”. Não verdade, não ia salvar a vida dela, mas na cabeça dele, era aquilo: ele estava matando a esposa. Para você ver como que a gente fica, de uma forma ética, de passar a informação, achando que está ajudando o indivíduo, e está criando uma ferida no coração dele. Então eu criei uma ferida para esse indivíduo, que, sem dúvida nenhuma, nem o tempo vai apagar, sem querer.
P/1 - Vocês acabaram fazendo a tomografia?
R - Nós acabamos fazendo a tomografia com o pessoal que estava no pronto socorro, mas a ferida dele nunca será fechada.
P/2 - Escapa completamente ao controle, né?
R - Escapa. É difícil, o valor do medicamento poderia ser gasto em uma porção de outras coisas. Ele pode utilizar em uma viagem, escola... Precisa passar as informações corretas, aquilo que está na literatura. Vários indivíduos falam: "Doutor, é o seguinte: se precisarem de cobaia, onde for, eu quero ir. Pode ser em Nova Iorque, pode ser em Berlim. Eu quero ir." Se é para curabilidade, tudo bem. Agora, se mostra só um retardamento na evolução da doença, então há uma certa resistência na administração dessa medicação. Do ponto de vista médico você tem uma resistência a exigir que o paciente tome a medicação. É diferente de um antibiótico ou um antitérmico.. Como você passa essa informação para o indivíduo. Agora, antes de passar a informação, você tem que ter o perfil adequado do indivíduo e da família do indivíduo, para saber se você está tratando o indivíduo e a família ou se você está criando uma chaga no coração da pessoa. Cria um problema. É muito complicado isto. Fora que nossa população compreende as coisas até um certo ponto. Se você for ver com seus pais, tudo, a compreensão é limitada, muitas vezes. Mesmo para nós. Eu, aluno da Escola Paulista de Medicina, primeiro ano da Escola, começo a ter uma dor lateral. Só que eu estava fazendo muita atividade física, não estava acostumado a fazer, eu interpretei aquilo como hepatite. A minha urina estava um pouco mais carregada, então eu interpretei como hepatite, na época. Eu não conhecia como funcionava a Escola Paulista de Medicina, mas minha mãe era funcionária pública estadual, então ela tinha direito ao Servidor Público Estadual e nós fomos lá. Eu passei por uma fila de triagem, inicialmente, por um residente de primeiro ano, indivíduo que acabou de se formar, porque ele tirou uma história de uma hora e meia, mais ou menos. Uma história comprida. Perguntou se soltava vento por baixo... "Esse cara está fazendo cada pergunta boba..." São aquelas perguntas para saber se o intestino está funcionando bem. "Solta vento?" "Por onde?" "Por baixo." "Lógico!" Que pergunta boba. [risos] Tudo bem, examinou, aí eu fiquei de molho umas duas horas, porque ele estava esperando o supervisor dele. O supervisor veio, viu a história, examinou-me, aí pediu exame de sangue e de urina. Aí veio uma moça, tirou exame de sangue, me deu uma cubinha para fazer exame de urina. "Vai ali no banheiro e me traz isso aqui cheio." Eu fui no banheiro e fiquei lá uma meia hora pensando como é que eu ia trazer aquilo cheio. Eu sou do interior, do sítio. Leite se tira como? No balde. Aí você passa para uma lata de 20 litros e tem um pano que você põe o leite para coar o leite. Então, para mim, para fazer o exame de urina, eu tinha que fazer xixi por cima da cubinha, para coar o xixi. Olha o animal aqui... Foi o primeiro exame de urina que eu fiz, de uma forma completamente inadequada, no primeiro ano de faculdade, sendo universitário. Então ninguém dá uma informação para você que seja completa. Subentende-se que todos tenham essas informações básicas, e eu não tinha essa informação básica. Vai se tocando do seu jeito, das coisas. Eu, como médico, uma época, atuei no hospital em Guarulhos, numa época em que, estava casado, tinha que ganhar um pouco mais de dinheiro para poder pagar as contas todas, minha filha já tinha nascido. E chega um indivíduo cheio de lesões ulceradas infectadas na pele. Lotado. Chego para ele e falo: "O senhor está com um problema na pele. Tem que tomar antibiótico para isso, se não, não vai sarar." "Doutor, não tenho dinheiro nenhum, não tenho nada. Eu vim a pé. Da minha casa até aqui dá uns quatro quilômetros." Aí eu fui no armarinho. Tinha uma pomada de Benzetacil, uma injeção de Benzetacil e permanganato de potássio. "Olha, o senhor vai tomar Benzetacil agora. O senhor vai utilizar esse pozinho, vai diluir em quatro litros de água morna - expliquei para ele -, e o senhor vai passar depois essa pomada na pele." Eu fiquei preocupado com e ele e disse: "O senhor vai retornar daqui a quinze dias. Eu quero rever o senhor. Se por acaso aumentar, o senhor vai voltar antes. Tudo bem?" "Tudo bem." Quinze dias depois ele voltou lá. Ele voltou e estava ótimo, secando quase tudo, direitinho. Fiquei contente e disse: "Bom, isso ai vai secar tudo, vai tudo embora." Quando ele estava na porta ele disse: "Doutor, o seu remédio é ótimo, mas, por favor, pare de receitar aquela água roxa porque beber quatro litros daquela água morna roxa todo dia é um sacrifício."
P/1 - Você quase enfartou.
R - Quase enfartei, lógico. Aí você vai falar que eu tenho letra ruim... Não, eu tenho letra boa. Eu costumo explicar a situação. A população entende o que ela quer entender. Esse é o grande segredo do dia-a-dia da gente, das coisas. Então, aqueles quatro litros de água morna são terríveis de se beber todo dia. E sarou, viu? [risos]
P/2 - Passou a receitar.
R - Sarou. [risos]
P/1 - E qual você acha que seria o grande desafio da sua área de atuação?
R - O grande desafio é entender como a célula morre. Se você entender como a célula morre, você resolverá vários problemas. Então, o código de morte celular ninguém sabe ainda. Porque ela vive e porque ela morre. Esse é o grande desafio. Então, antes de você pensar em uma doença específica, antes de você pensar em macro, você tem que pensar na célula. Esse é o grande segredo. E do ponto de vista humano, eu acho que o grande desafio hoje é a alma do indivíduo. Veja só o momento que a gente tem vivido. Como justificar essa euforia com relação a um segmento da Igreja hoje, por exemplo, com relação ao padre Marcelo? O que as pessoas estão procurando? Não é festa, só. O que elas procuram é que alguém compreenda elas. E o grande problema, que eu acho, da civilização atual, é que existem poucas pessoas compreendendo os indivíduos. Esse é o grande problema existente. E se as pessoas são incompreendidas dentro da sua casa, dentro do seu trabalho, isso vai gerando uma agressividade tão grande, um desconhecimento, uma verdadeira Torre de Babel, com a mesma linguagem. Você passa a não compreender mais as pessoas, a não respeitar mais as pessoas. Então, a meu ver, do ponto de vista médico, do ponto de vista físico, matemático, é a célula. Agora, do ponto de vista de homem, de ser, é a alma, a compreensão da alma e a tolerância para os diferentes. Eu acho isso um grande desafio. Nós estamos indo para o século XXI, e eu acho que o homem não cresceu, ele não melhorou, mesmo tendo tudo, tudo, tudo de informação - nós estamos atrelados ao bip, ao celular, à Internet, aos números, aos CPFs e a gente não cresceu.
P/2 - O senhor recebe propagandistas?
R - Recebo e gosto.
P/1 - Como você vê a propaganda médica?
R - O propagandista é um intermediário entre a indústria farmacêutica e o profissional médico. Agora, você não pode fazer uma formação sua, intelectual, em cima do que o propagandista fala. Ele é um intermediário. É como se fosse uma propaganda de TV. Ninguém vai comprar um automóvel só porque você escutou na televisão, mas você tem a obrigação de conhecer aquela firma ou aquele automóvel, porque é um informante. O propagandista é um informante. E geralmente as pessoas que são escolhidas para ser propagandistas têm um perfil definido. São pessoas com trato mais fácil, são mais abertas, pessoas muito interessantes porque são alegres. Esse é o perfil. E você trabalhando com pessoas que são alegres, é muito gostoso, dá um pique. Eu adoro propagandista, mas não para formar-se na parte médica, tal. É muito interessante esse aspecto. Não é para fazer do propagandista um bobo da corte, não é isso. Porque ninguém vai colocar como propagandista um indivíduo que chega lá e saiba tudo de bioquímica. Está perdido na situação. Tanto que eu dou abertura completa aos propagandistas.
P/1 - Você recebe todos?
R - Todos, todos, sem exceção. Agora, não é porque ele vai trazer para mim uma agenda... Isso daí, para mim, funciona muito mal. O que funciona mais é a cara do propagandista, o jeito dele de passar as informações. As caixinhas, as agendas, as canetas, para mim, pega mal. Agora, como ele se apresenta é interessante. A forma de abordar. Eu acho ótimo o propagandista, e completamente necessário. É a forma mais barata e eficiente que o laboratório tem de passar a informação e o produto.
P/1 - Acho que é o tipo de propaganda que funciona.
R - Funciona. Durante o curso médico, eu conhecia todos os produtos de um determinado laboratório por causa do propagandista, e ele nunca me deu uma amostra grátis. Então ele chegava, sempre tinha alguma história para contar, alguma piada para fazer, algum comentário do chefe dele. "Ih, meu chefe me pegou de novo hoje." Sempre um comentário, sempre um casinho. Ele abria a mala: "Precisa de alguma coisa? Eu tenho pá, pá, pá, pá..." Todas as vezes. [risos]
P/1 - Divertido.
R - Divertidíssimo. Ele abria a mala. Muito esperto. Primeiro era a linguagem auditiva, depois a visual. Então ele mostrava na mala dele o que ele tinha. "Então, eu tenho tá, tá, tá, tá, tá." Era uma repetição. Então você decorava tudo aquilo que ele tinha da linha dele. Espertíssimo. Então ele ficou no hospital uns dez anos. Ele era conhecidíssimo. Agora, a história de rodar o propagandista muito é muito ruim, eu acho, porque você tira aquela...
P/2 - ___________.
R - Muitas vezes, as indústrias farmacêuticas rodam os propagandistas. Hoje eles estão no Hospital São Paulo, amanhã no HC, então você não cria aquela afinidade, o vínculo do indivíduo com o produto e o laboratório. Você tem que identificar. Esse é o marketing da identificação. Ao meu ver, seria interessante que ele ficasse um período maior de tempo, e que ele identificasse o produto e o laboratório também. Outra coisa, os propagandistas que adoram o serviço deles, que adoram a empresa que eles representam, você passa a receitar mais medicação, que é a parte ética. Aqueles laboratórios que vão rodando muito rapidamente, você já fica com dois pés atrás.
P/1 - Então existe diferença da propaganda, de laboratório para laboratório.
R - Muita, muita.
P/1 - Essa estratégia acaba sendo diferenciadora e mede a eficácia ou não.
R - Mede a eficácia. Muita diferença. Tem uma forma... Os laboratórios deveriam fazer uma pergunta: "O senhor recebe o seu propagandista? Qual é o nome do seu propagandista?" Sabe esses boletins? Eles nunca fizeram isso. Muitas vezes, os indivíduos não utilizam nem identificação. Deveria existir uma identificação grande, bonitinha, com uma fotografia. É lógico. Trabalhar a fotografia. Não só para identificação, como cartão de ponto, não só isto. Ou seja, o indivíduo nada mais é do que a cara do próprio laboratório. Tanto que eu adoro propagandista, gosto do jeito deles.
P/2 - Avaliando a Rhodia, essa questão que o senhor tinha comentado do Riluzol, da importância enquanto abertura de um novo campo e tal. Na área de neurologia, a Rhodia tem uma tradição, com o Gardenal...
R - A Rhodia tem um nome muito firme. Nome não tem preço, para começar. Então você não pode fazer bobagem. E a Rhodia tem um nome que não tem preço. Então, quando foi lançada essa medicação, e quando nós começamos a desenvolver essa associação, algumas pessoas colocaram em dúvida uma parceria ética entre os profissionais médicos, uma associação e uma empresa, que poderia estar ligada a essa associação, por exemplo, a Rhodia. Perguntaram-me se eu tinha medo dessa associação, e eu falei que 'não, de forma nenhuma'. Porque a Rhodia tem um nome de mais de cem anos. Ela tem o Gardenal, e veja o que significa o Gardenal. E ninguém vai colocar 110, 120 anos fora...
P/2 - No Brasil, são 80 anos.
R - Sabe, quando saiu o Gardenal? Por que chama-se barbitúrico? Porque o dia em que foi sintetizado, pelo Adolf Von Baeyer, era dia de Santa Bárbara.
P/1 - É mesmo?
R - É daí que vem o nome barbitúrico. Foi na Alemanha que ocorreu essa sintetização. Ele foi comemorar a sintetização em uma taverna, os soldados prussianos estavam comemorando o dia de Santa Bárbara. Daí que vem o “barbitúrico”. Mil oitocentos e setenta e alguma coisa.
Então você não pode jogar fora a história, você não pode jogar fora o nome. É o que aconteceu com a Encol. De repente as pessoas jogam fora. Matarazzo. Você não pode. Nome é nome, identidade mesmo. Portanto eu não tinha medo nenhum, não tinha receio nenhum. E a forma como ela tem se posicionado é tremendamente ética, tremendamente ética.
P/2 - O senhor acha que é uma parceria válida?
R - Total.
P/2 - Mas há um certo preconceito...
R - Ah, existe. O pessoal tem medo de ser tutelado. De repente utilizaram uma classe médica, que tem um certo nome nacional, para você lançar alguma coisa, um produto qualquer, por exemplo. É muito ruim isso. Mas até o momento, nunca foi colocado de uma forma intempestiva assim, exigente. De forma nenhuma, sem receio. Mas há alguns produtos que não tem como. Por exemplo, um laboratório tentando forçar-nos a utilizar uma substância para tratar de uma doença chamada esclerose múltipla, de uma forma antiética. Até hoje eu me recuso a prescrever essa medicação. Eu prescrevo do concorrente, que veio depois. Pela forma antiética com que foi colocada essa medicação.
[PAUSA]
P/2 - Doutor Acary, como o senhor, faria um balanço da sua trajetória até agora?
R - Uma vida simples, com sonhos simples, mas todos concretizados.
P/1 - O senhor não perdeu alguma coisa nessa trajetória de vida?
R - De jeito nenhum. Muita sorte, em todos os aspectos.
P/2 - Quais os grandes sonhos?
R - Não tenho grande sonho. O grande sonho é viver bem esse momento. Não existe um grande sonho diferente.
P/1 - O que o senhor achou dessa experiência de ter dado esse depoimento para a gente?
R - É gostoso conversar. Eu adoro conversar. Daí a experiência do restaurante. Adoro conversar porque o tempo passa muito rápido.
Os causos. E isso veio da época do sítio porque não tem televisão. A televisão é um caos total para a família porque você não tem oportunidade de conversar, trocar informações, criar, ser criativo. As coisas vêm marcadas de lá. E na época do sítio, você tinha necessidade de descobrir coisas, criar coisas. E existiam os contadores de causos, os mais interessantes possíveis. A nossa região é ricamente folclórica. Olímpia é conhecida como a capital nacional do folclore. Tanto que eu participei de grupo folclórico, de dança folclórica, lá na cidade. Estudei bastante folclore na época, porque praticamente vivíamos com a história do folclore. E o folclore nada mais é do que um caso, uma história. E você aprende a contar as histórias, a sentir as histórias e gostar das histórias contadas, especialmente quando o indivíduo cria a história. E a região onde eu morava, lá no sítio, por exemplo, que eu ficava com meus avós, existiam umas pessoas que trabalhavam lá que tinham uma facilidade enorme para contar os casos, e utilizar a língua portuguesa com rimas. Coisa que nós temos dificuldade. Se eu pedir para você rimar duas palavras, fica complicado. Você não encontra. E você tem uma formação enorme, estudada. Mas para a gente encontrar duas palavras que sejam possivelmente rimadas, é difícil. Esses indivíduos não. A cultura deles já levava para essa situação. Tinha um indivíduo que chamava Baianinho, que era analfabeto, ele não escrevia nem o nome dele. Ninguém podia com ele no bate-boca. Ninguém podia. E tudo rimado. Tudo, tudo. Um indivíduo formado no rádio. No AM, ondas curtas, o tempo todo. A vaca lá do meu avô conhecia aquelas músicas de cor e salteado. Tudo no rádio. Ele conseguia dar informação de todo local do mundo, tudo que você quisesse.
P/1 - Tudo pelas ondas curtas.
R - Tudo pelas ondas curtas e do radião. E as histórias da noite. À noite nós nos reuníamos no alpendre da casa, em torno das oito horas, até umas quinze para as nove, e os casos iam aparecendo, as histórias iam aparecendo. Existia a época da lida do porco, quando você matava um porco. São dois dias e duas noites lidando com porco, fazendo lingüiça, fazendo aquele negócio todo. Ou a época da goiabada, agora em Fevereiro. Você apanha a goiaba, lava a goiaba, tira o ferrugem da goiaba com faca, depois escolhe a goiaba, tira a semente, molha a goiaba... São dois dias praticamente fazendo goiabada também. E as pessoas ficam conversando, contando suas coisas. Eu conversei muito mais com meu avô, com minha avó, do que com meu pai e minha mãe, porque eles tinham que trabalhar, nós estávamos na cidade, nós tínhamos televisão. No sítio não tinha televisão, então nós éramos obrigados a escutar e a conversar. Deus fez o homem certinho, certinho. Ele foi errando quando colocou a boca. Aí, ele fez uma compensação, colocou duas orelhas. [risos] Aí ficou certo.
P/1 - Compensou.[risos]
R - Compensou.
P/1 - Foi muito boa a entrevista, queria agradecer.
R - Eu que agradeço vocês.
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