Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Adailton Silva (Didi)
Entrevistado por Marcia Ruiz e Luís Gustavo Lima
Paracatu, 02/06/2017
Realização Museu da Pessoa
KRP_HV03_Adailton Silva (Didi) PARTE 1
Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Didi, em primeiro lugar eu queria agradecer em nome do Museu da Pessoa e da Kinross por você ceder seu tempo e abrir sua casa maravilhosa pra gente. E eu gostaria que você dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Eu sou Adailton Silva, eu nasci em Paracatu, mineiro da gema. Nasci em 55, aqui em Paracatu.
P/1 – Que dia e mês?
R – Foi dia seis de maio.
P/1 – Foi recente então.
R – Recente, recente, outro dia (risos).
P/1 – Qual é o nome dos seus pais e qual era a atividade deles?
R – Meu pai era tabelião, Honório José da Silva e Lúcia da Costa Silva, que era de casa, doméstica, das lides domésticas, que ainda está viva, está aqui comigo ainda, completa cem anos esse ano, um privilégio. Todos de Paracatu, todos nascidos aqui em Paracatu, lá no bairro do Santana.
P/1 – E seus avós, você chegou a conhecê-los ou não?
R – Não, não, não. Mas tenho notícias porque mamãe está viva, então ela é um repositório de memórias que eu tenho aqui dentro de casa, né? Minha avó, minha bisavó por parte de mãe chamava Antônia das Lanças Mercês, que é uma família, esse sobrenome eu sei que um dia eu vi, em Sabará, uma rua, Rua das Lanças Mercês. E é uma negra com sobrenome das Lanças Mercês. Já pesquisei e não consegui saber ainda a ligação disso. E o pai era barqueiro, Benedito Barqueiro, uma coisa assim, o tataravô. Por parte do pai, eu conheci a avó Adelina, uma velhinha de ouro que, das coisas sui generis que eu lembro dela é que ela não sabia ler e deram pra ela uma bíblia de presente, ela ficou manuseando aquela bíblia e quando foi um belo dia ela estava lendo. E morreu já idosa sabendo inúmeros salmos de cor muito mais do que a gente que estava na escola e que sabia ler. Isso foi um dos mistérios que me remete muito à lembrança dela, de Adelina Silva, vovó Adelina.
P/1 – E você teve irmãos?
R – Irmãos? O Lucas e a Antonia. O Lucas já falecido que era um amante das artes, além de um excelente cantor, coralista, era um baixo profundo maravilhoso. Imagina que em 1950, Lucas recebia mensalmente a revista Time americana, lia e falava inglês, um negro aqui no interior, e ele tinha grande fluência em inglês que aprendeu com os pastores missionários americanos da Igreja Presbiteriana, com quem ele convivia e ele aprendeu a falar inglês fluentemente com essas pessoas. A minha irmã é viva ainda, está aqui e mora aqui.
P/1 – Ela também tem um dom musical ou não?
R – Ela cantava em coral, cantou muitos anos em coral, na igreja, comigo regendo inclusive. Muitos, muitos anos eu regi coral e ela cantava. Agora nesse pormenor há um aspecto interessante a se dizer que eu sou muito bem resolvido quanto a isso, toda vida fui, eu sou filho adotivo.
P/1 – Olha.
R – Eu sou filho adotivo, eu fui adotado com três, quatro meses de idade, por aí, um pouco mais que isso. E tenho grandes laços de afetividade com a minha família, que é lá do Santana, mora no Santana, são todos meus amigos. O Dario Alegria, aquele jogador, é meu primo primeiro, e todos os irmãos deles, tenho bom relacionamento. E a vertente musical é muito maior daquele lado lá ainda porque o pai dele, Luís Dario, era um sanfoneiro renomado aqui. Então assim, eu acho que não tinha onde escapar muito. Meu pai também cantava em coral, tocava violão, cantava com mamãe, os dois, eu lembro dos dois cantando, fazendo dueto, sentados no fogão, na casinha simples, eles cantando. Eu não tinha muito onde sair fora da música por causa dessa ancestralidade musical, quer de um lado, quer de outro.
P/1 – E você tomou ciência de ter sido adotado quando? Quando pequeno, como é que se deu esse processo de adoção, você sabe?
R – Desde sempre. Meus pais nunca me esconderam isso. Inclusive eles quiseram levar a minha mãe legítima pra morar com eles, pra ajudá-la, porque ela não tinha muito recurso aquele tempo e eles queriam levar pra morar junto com eles. E assim eu fui criado a vida toda com eles, não tive uma relação de família com meus pais naturais, mas com seu Honório e dona Lúcia que me adotaram, que foram legitimamente meus pais, que eles se dobraram sobre meu berço e fizeram mamadeiras nas madrugadas, então esses que acabaram sendo realmente meus pais. E isso nunca foi segredo, nunca teve melindre. E por isso nenhum choque, nenhum trauma, nenhuma esquisitice na estrutura psicológica minha, nada que me molestasse. Aliás, soma, eu tenho duas famílias, eu tenho mais lucro do que muita gente que só tem uma (risos).
P/1 – E Didi, eu queria que você falasse um pouco da sua infância, a partir do momento que você consegue lembrar. Eu queria que você descrevesse sua casa, onde vocês moravam aqui em Paracatu. Conta um pouquinho pra gente.
R – Ah, isso aí é uma saga. Eu lembro de tudo, eu vou resumir ao máximo porque eu tenho uma boa memória pras coisas que eu gosto (risos). A gente morava no Santana, que foi onde nasceu a cidade, onde começou a cidade. Todas as tradições daquela vida interiorana, singela, simples, a gente viveu tudo ali. E além disso eu morava no Beco da Bitesga, que só depois de adulto eu falei: “Mas que negócio é esse? Bitesga?”, fui descobrir que bitesga significa beco sem saída e, realmente, não tinha saída. No final tinha um matagal que interrompia o beco, só depois que eles abriram, a gente chegava no campo de Santana. E a gente ficava só ali, era uma família. O Santana já era pequeno, a cidade não era tão grande e o beco era um excerto, um apêndice, como se fosse uma peninsulazinha negra ali dentro do Santana, né, naquele universo negro. E ali a gente brincava de roda, cantava, tinha todas as brincadeiras. Toda tarde tinha uma mulher que chama Lídia que cantava, contava histórias pra gente. E depois tinha brincadeiras de roda. Isso tudo foi alimentando esse imaginário meu da música, da escrita, dos contos. Porque não tinha jeito, morando ali, naquele lugar, foi crescendo, subindo em árvore, pescando no córrego no fundo da casa. Uma vida assim, foi um negócio lúdico, uma infância muito abençoada e muito feliz.
P/1 – Eu fiquei imaginando aqui, eu viajei, já estou no beco (risos). Mas assim, como é que era essa relação das famílias com as casas? As portas eram abertas, como era esse cotidiano? Conta um pouquinho pra gente em termos que horas vocês brincavam, como era sentar à mesa? Conta um pouquinho pra gente.
R – Olha, é um negócio muito engraçado porque nós não tínhamos muito essa ideia da célula familiar como uma unicidade, como uma coisa fechada, ela quase não existia. Eu me lembro muito bem disso porque tinha essa Ana, que eu até fiz uma música que eu menciono ela: “Carrego fecho, joga na cabeça, lá vem essa Ana pra logo pegar”, uma coisa assim, que essa mulher tinha um pulso tão firme, ela era uma matriarca ali naquele beco que ela tomava conta de todas as crianças. Qualquer problema que tinha falava: “Eu vou chamar Ana”. E aí menino aquietava, ficava quietinho e se teimasse ela vinha mesmo: “Está de castigo”. E aí a gente ficava sentado lá de castigo, ou de joelho de castigo e ela voltava pra casa dela, cuidava dos seus afazeres e a gente só saía de lá quando ela voltasse pra liberar. E às vezes ela esquecia, mexendo com as coisas dela, fazendo quitanda e a gente ficava lá (risos) horas e horas. E os pais da gente não tiravam não, pra não desobedecerem. Todo mundo tomava conta de todo mundo. Todo menino tomava café e comia biscoito em todas as casas do beco. Era um quilombo. Eu falo que aquilo ali era um micro quilombo, de muita afetividade, muito carinho e muita igualdade. Um tempo de sonho, um tempo de sonho. Se eu pudesse, ao cunhar seria assim: “Um tempo de sonho”.
P/1 – E me diz uma coisa, Didi, quem é que contava essas histórias, era essa senhora que era brava?
R – Era Lídia. Essa Ana cantava, ela cantava os batuques. E muitas das coisas que eu componho vem desse imaginário, essas coisas vão ficando, aqueles ritmos, aquelas coisas. Porque todos os negros, com a influência depois, eu fui vendo no livro do escritor Oliveira Mello que em torno de 1940, 35 a 40, 85% da população paracatuense era negra, com todos os costumes, o vocabulário muito ligado à Bahia, aquela coisa. Quando vai olhar o dicionário de termos vai ver, há uma simbiose, há uma unicidade quase, dos termos, das palavras que se fala, no Santana, com essa coisa do negro. Então ela contava as histórias, cantava, ela cantava as coisas. E aí Lídia contava as histórias, brincava de roda, brincava de pular corda e aquelas coisas todas. E isso era dali de cinco horas até sete horas da noite. Aí ela falava: “Todo mundo dormir” e a gente ia pra casa, lavava os pés porque não tomava banho, não tinha chuveiro, que era bacia e tal, esquenta a água. Porque já tinha tomado banho antes da brincadeira. Aí lavava só os pés, ia todo mundo deitar e vida pra frente até no outro dia cedo começar a correria (risos). Aquelas coisas todas.
P/1 – E como era a sua casa? Era você, esses seus dois irmãos, mas conta como era a casa. Vocês tinham o hábito de sentar à mesa, seu pai voltava pra almoçar com vocês, como era?
R – Voltava, voltava. Papai sempre muito constante. Mamãe sempre em casa cuidando da gente e tudo e ele sempre voltava. Agora não tinha esse negócio muito de por a mesa, de sentar na mesa, isso eu sei que havia nas famílias aqui da parte de cima, da cidade, da Rua do Ávila pra cima, onde o pessoal já tinha tido outras influências, europeias quem sabe, etc., etc., e tinha outros costumes. Mas lá no Santana não, a ênfase ali era assim, havia comida, havia abundância de comida – dentro das proporções daquilo lá – e era de todos. E nunca faltou. Sempre tinha pão de queijo, pé de moleque, curral de milho, essas coisas todas. Tudo o que era desse cotidiano ali do Santana havia fartura. E os pais sempre juntos, meu pai sempre voltava pra almoçar, sempre almoçou em casa. Naquele tempo, uma que não tinha restaurante também (risos), não teria nem onde ir. Mas ele voltava sempre em casa. E era uma festa. Eu lembro assim, os momentos das refeições era uma festa. Tem uma cafeteira que eu menciono, eu fiz uma música, chama “Cheiro pra voar”, que eu rememorei esse cheiro do café que mamãe fazia todo dia de manhã, aí dava aquele cheiro do café e você sabia, o café estava pronto. E todo mundo ia correndo e essa cafeteira está ali no quiosque ainda, ela existe, eu guardo com carinho e a gente encostava com as costas da mão na cafeteira pra ver se estava quente, se estivesse quente tinha café novo. E fazia a fila. Porque morava perto, no Santana. Era a casa dos meus pais, ao lado a casa da minha irmã, mais embaixo a casa do meu irmão e mais embaixo, em frente até o final do beco todos os parentes, todo mundo parente (risos). E os meninos faziam fila, então não tinha esse negócio assim, ah não era a sua família. Todos os sobrinhos faziam fila pra tomar café, transitavam por ali, sabe, é um vai e vem de meninos felizes andando pra todo lado (risos).
P/1 – E como é que era a escola? Qual é a primeira lembrança que você tem da escola e onde você começou seus estudos?
R – Olha, a lembrança que eu tenho é das melhores. Eu estudei, eu tenho em algum canto aí aquela foto clássica com a mãozinha assim, com o globo à direita (risos), escrito assim: “Escola Saulo de Tarso”, que era uma escola que foi criada pelos missionários americanos porque nós, de origem cristã, evangélica, [fomos] criados na igreja presbiteriana desde os meus pais, é um lema da igreja presbiteriana desde dos primórdios assim “Onde uma igreja, uma escola”. Porque de que adiantava ensinar a bíblia pra pessoas que não sabiam ler, né? Era uma abordagem inteligente dos missionários, muito inteligente. E com isso eles passavam cultura pra gente porque eles eram homens cultos, pessoas nobres, americanos que vinham pra cá e que fundaram o presbiterianismo aqui, homens inteligentíssimos. E a gente convivendo com essas pessoas. E da escola Saulo de Tarso eu brinco que os meninos davam trabalho demais, a gente pintava, fazia mil proezas nessa escola. Eu falo que foi um erro da sigla de nomeação da escola porque é escola Saulo de Tarso. E Saulo é Paulo antes da conversão, antes da mudança de vida (risos), por isso que os meninos pintavam demais, tivesse posto Paulo de Tarso a escola não tinha dado tanto problema (risos). A escola não teria dado tanto problema, os meninos não teriam pintado tanto. Mas aquilo era um sonho. Você imagina que todos os dias antes de nós irmos pra sala de aula, tinha uma preleção bíblica, sempre com tremendos oradores. E aí, imagina, nós éramos apresentados a pessoas com extrema capacidade de oratório, extremo conhecimento intelectual porque muitos deles eram mestres, doutores lá nos Estados Unidos que vieram pra cá como missionário, deixaram tudo e vieram pra cá, e nós convivíamos com essas pessoas. Eles nos levavam à leitura de livros importantes. Antes da aula, tinha 30 minutos dessa preleção, sempre com conteúdo moral, ético e bíblico e música. Eles eram músicos excelentes. Eu me lembro de vários, eles tocavam sanfona, tocavam piano, os filhos, as esposas exímias organistas. Então assim, a gente cresceu ou chegando nesse período antes das aulas ouvindo Mozart, Mendelssohn, Bach sendo tocado por essas mulheres ao piano, ao órgão, acordeom, hinos sendo cantados, coisas lindas e tudo. Veja, a formação dessa escola e depois nós íamos pras aulas com excelentes professores, extremamente dedicadas, sérias. Aprendíamos português, história, matemática, já eram matérias separadas, imagina, cultura que eles trouxeram lá dos Estados Unidos. Salas com poucos alunos, tudo muito lindo e organizado. Essa é a saudosa lembrança que eu tenho da minha escola. Tanto que eu até escrevo das outras, depois eu lembro do conservatório por causa do violão, da música, dessa coisa. Mas as outras escolas do intervalo eu passei por elas (risos). Essa infância eu fui na escola, eu frequentei a Saulo de Tarso (risos). E depois eu fui para o Conservatório porque no meu imaginário, as duas que ficaram, que eu amei muito, as duas fases que eu amei muito de escola e de estudar.
P/1 – E nessa Saulo de Tarso você ficou até que ano, mais ou menos?
R – Até o terceiro ano. Do prezinho, jardim, até o terceiro, quatro ano, não me lembro bem. Você imagina, entrava com sete anos, né? É que eu continuo achando que é uma beleza. Eu vejo meu netinho vai na escola com três anos de idade e a única coisa além de algumas coisas que ele aprende, obviamente, é pegar muito vírus de gripe. A gente entrava com sete anos, já não tinha esse problema mais (risos) e ficavam as boas lembranças e aprendi muita coisa.
P/1 – Você colocou pra gente muito dessa coisa da música, sempre permeou a sua vida, ou dentro da própria igreja, ou dentro da escola ou mesmo dentro da família ou dentro do mini quilombo, que eu acho bonito essa visão que você fez. Como é que se deu o interesse de você ir pra música, escolher como profissão, ou como estudo, universitário. Como isso se formou na sua cabeça?
R – Tinham umas pessoas que tocavam violão aqui por ser um instrumento mais fácil de carregar e tal, aquela coisa. Não era um instrumento bem quisto, o pessoal: “Ih, não vai dar em nada, já começou a tocar violão”, já via que ia entrar na malandragem (risos). O músico é alguém que é meio malandro mesmo porque enquanto alguns estão trabalhando com coisas a gente está compondo, cantando, isso não deixa de ser uma malandragem, né? (risos). Meu pai ouvia muito muita coisa, então radiola ligada com muitos discos. E meu irmão também. Meu irmão ouvia, imagina, naquele tempo, Frank Sinatra, Nat King Cole, sabe? Essa era a música que a gente ouvia em casa. E um dia eu me deparei com um disco, Abismo de Rosa, capa amarela, de Dilermando Reis. E coloquei aquilo na vitrola pra rodar e aquilo bateu assim no coração de uma vez por todas. E aí eu queria comprar um violão, falei: “Pai, me dá um violão”. Ele falou: “Não dou violão, não. Você vai trabalhar e você compra o seu violão”. Aí eu fui pro cartório trabalhar, ajudá-lo. E aí fui, fui pra escola da datilografia, ele me mandou pra lá. Naquele tempo era datilografia. E era bom porque até hoje eu digito mais rápido do que os meus companheiros de serviço (risos), esse negócio deu certo, datilografia deu certo, e com todos os dedos. E aí eu fui, comecei a trabalhar. Quando recebi o primeiro salário fui comprar o violão. Cheguei na loja, Casa Diogo, a única loja que vendia aqui instrumento musical, cheguei lá e só dava pra pagar metade (risos). Eu voltei triste e falei: “Pai, não dá”. Ele falou: “Não, pode pegar lá o violão que eu pago a outra parte”. E daí foi, comecei a tocar. E tentava tirar aquilo de ouvido, né? E voltando o disco toda hora, voltando a agulha toda hora tentando acertar no lugar e não acertava, tentando tirar aquelas coisas de ouvido, uma tremenda dificuldade. E obviamente não conseguia, tinha coisas que eu não ia conseguir fazer. Mas consegui tocar algumas coisas. E fui trabalhando, trabalhando, juntei um dinheiro pra comprar um violão. E aí fui a Belo Horizonte, na Rua dos Tupis com Espírito Santo, na Musical Strambi. Eu cheguei lá e o moço falou: “Tem um violão espanhol aí pra comprar”. O povo quase me matou aqui no Santana porque era quase o preço de um fusquinha naquele tempo (risos). “Você é louco, irresponsável! Como é que junta dinheiro mais de um ano e em vez de comprar um carro vai comprar um violão”. E aí eu fui, cheguei na loja, peguei o violão, sentei debaixo de uma escada assim, longe do balcão mesmo pra não perturbar e fiquei tocando aquelas coisas que eu sabia no violão, maravilhado porque o violão era um sonho. Nisso entrou um velho de terno, fumando com uma piteira, chapéu de lebre, uma pasta de couro de jacaré, entrou elegante e passou pra dentro do balcão da loja. Eu tremi e falei: “É o dono, vai achar ruim porque eu estou tocando aqui no violão” (risos). Que bobagem, era loja de vender instrumento, mas o matuto aqui da roça (risos), “Vai brigar”. E piorou porque em vez dele ir cuidar dos afazeres ele ficou do outro lado parado, do outro lado do balcão, em frente em mim assim, uma distância de uns dez metros, quieto, lá parado. Abriu uma pasta, eu percebi que ele estava fingindo que estava mexendo em alguma coisa e me observando, observando, observando. Depois de uns dez minutos piorou porque ele falou pra mim: “Menino, vem cá”. Eu levantei todo sem jeito. Ele falou: “Me dá esse violão aqui”. Entreguei o violão pra ele, ele pegou o violão assim, apoiou o violão no balcão e fez uma escala, saiu da última casa e foi lá na outra casa numa velocidade incrível. E pôs o violão na mesa e falou assim: “Eu sou o maestro Nelson Piló. Eu sou professor de violão aqui em Belo Horizonte, aqui na Musical, eu dou aula aqui em cima. Eu estava te observando aqui há uns 15 minutos, que eu estou te observando tocar. Você tem muita coisa errada que você está fazendo, muita coisa errada, mas eu quero dar aula pra você porque você tem a cancha do concertista, você tem o som, você tem a mão do concertista de violão. Eu quero dar aula pra você”. Eu falei: “Mas não tem jeito, eu não moro aqui, eu moro em Paracatu, vou ficar aqui só uma semana”. Ele falou: “É, então não tem jeito”. E deu as costas pra subir uma escadinha assim pra onde ele lecionava. E eu falei: “Maestro, o que dá pra aprender em uma semana?”. Ele falou: “Quase nada, depende de você”. Eu falei: “Eu posso, o senhor me dá aula uma semana?”. Ele falou: “Dou. Pode vir amanhã”. Eu falei: “Eu não posso ir agora, não? O senhor está indo dar aula”. Ele falou: “Pode” (risos). Eu subi a escada com ele (risos). Eu subi a escada com ele e fiquei conhecendo e aluno por uns três anos do maestro Nelson Piló. Naquela semana a minha tia mandou um recado pra papai aqui: “Manda buscar Didi porque ele vai adoecer. Ele não dormiu um minuto essa semana, só tocando violão e lendo em cima de partitura”. A grande verdade é que eu aprendi a ler música em uma semana com ele, tanta vontade de aprender. E quando eu vim embora daquela semana ele me deu um pacote de partituras. Eu vim embora praqui, me debrucei em cima daquilo e dali um ano, nas férias novamente, eu voltei lá e eu já estava tocando melhor do que os alunos que tinham ficado com ele durante o ano todo. E aí eu fui ficando muito tempo. Tem um choro que ele dedicou a mim, um chorinho, e eu fui ficando um tempo com Piló, até que ele falou: “Se você quiser aprofundar mais vá pro conservatório, começou um curso lá, você pode ir pra lá pra aprofundar mais, crescer mais”. E foi aí quando eu vim pra Paracatu e passei alguns anos, poucos, lá estudando com Luciano. Mas assim, eu fui achado pra esse estudo mais detalhado do violão. E depois acabei, eu nunca deixei o clássico, mas acabei migrando pra música regional, pra essa música de raiz, essa coisa, que também não tinha muito jeito. Eu acostumado à imaginação épica daqueles personagens bíblicos, aquelas histórias épicas. Depois, lendo Guimarães Rosa, Zé Lins do Rêgo e correndo os sertanistas todos e havendo sido criado numa vida de roça, andando a cavalo, levando tocando o gado daqui prali, não tinha que dar outra coisa, né? Em razão dos festivais de música comecei a aliar a questão do violonista ao escritor, compositor, que foi fazendo essa miscigenação e acabou fazendo esse singelo trabalho de música regional, quase provinciana (risos).
P/1 – Vamos voltar um pouquinho.
R – Sim.
P/1 – Nessa sua ida a BH que você ficou uma semana e aprendeu a ler, você volta pra cá e você estava estudando já o segundo grau.
R – Sim.
P/1 – E aí você decide fazer a universidade em BH, universidade de Música em BH. Por que em BH ou tinha que ser em BH? Conta um pouquinho pra gente.
R – Foi por causa da descoberta do Piló, Nelson Piló. Aí eu vim pra cá, fiquei, eu ia lá uma vez por ano, ia e voltava, ia e voltava. E quando fiquei pelos 18 anos resolvi ir de vez pra estudar. A intenção não era voltar e resolvi ir em razão dele, pra ficar lá. E ele acabou me indicando para o conservatório, porque eu nem sabia que havia um estudo de nível superior de violão. E realmente não existia não porque aquela foi, em 1977, a primeira cadeira de violão, Zé Lucena fundou no Conservatório da UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] a primeira cadeira de violão em nível superior, foi a primeira do Brasil, que está até hoje, forma fantásticos violonistas em Minas Gerais.
P/1 – E como foi esse período do conservatório? Conta pra gente onde você morava, como era estudar no conservatório, qual era o tempo de dedicação, conta pra gente.
R – Ah, aquilo ali era... sabe um negócio assim que parece um misto de realidade e de sonho? Alguém que é apaixonado por música entrar num lugar onde tem música na direita, música na esquerda, música pra todo lado, gente que só fala de música, tocando. No recreio alunos tocando. Você entra numa sala está o Ars Nova com o Carlos Alberto Pinto Fonseca ensaiando, cantando. Você chega em um outro lugar tem Maria Berenice Menegali que foi diretora do Conservatório, exímia pianista. Era um lugar de sonho e de um aprendizado fino, de alta qualidade. Eu chegava no conservatório meio-dia pra uma hora e ficava até às seis. Eu levantava de madrugada, escuro, morava com meu irmão na Vila Cloris, um lugar longe, pegava ônibus e aquela coisa, descia. Eu trabalhava no Bemge [Banco do Estado de Minas Gerais], naquela Praça do Pirulito, ali na Afonso Pena, no extinto Bemge. E eu lembro que eu cheguei lá e ia ter um concurso, mas o rapaz falou: “Já tem aí do outro concurso, tem mais de 90 pessoas pra serem chamadas. Esse é um concurso de complementação, você vai ser chamado depois disso daí, daqui uns três, quatro anos”. Eu fiz a prova de datilografia que tinha que datilografar um texto em 15 minutos e eu fiz sete textos. E na outra semana eu recebi um telegrama em casa me chamando pra ir trabalhar no Bemge, foi uma maravilha pra ajudar na subsistência. Que outra coisa muito boa que papai fez por mim é que ele tinha condição de sobra pra me manter lá e nunca me mandava nada. Só uma vez ele me mandou uma nota de cem reais dentro de uma caixa, uma notona vermelha assim, que foi uma festa. Eu ficava pau da vida: “Pô, mas meu pai podia me ajudar e tal, tal”. Nada, ele estava me ensinando que precisava trabalhar, não podia ficar vadiando na música, tinha outras coisas importantes também. E aí eu trabalhava no banco de sete da manhã até meio-dia, saía dali, subia a pé a Afonso Pena, comia uma maçã, não tinha muita grana (risos), comia uma maçã e uma banana por ali e ia correndo, chegava no conservatório e ficava lá até às seis horas. Depois das seis horas, quando terminava a aula eu ia pra Prodata, que imagina que naquele tempo tinha chegado um computador que tinha nada mais, nada menos do que 14 metros de comprimento, o computador primeiro que chegou aqui em Mina Gerais, lá nessa Prodata, um gigante. E ali eu estava estudando programação de computadores, aquelas sentenças matemáticas, transformar aquilo em linguagem PL1, Fortran e Cobol. Transformar aquelas coisas pra fazer uma linguagem de programação, que ainda os grandes programadores ainda usam aquilo. Mas eu nunca fui pra essas exatas, não daria conta daquilo. Aquilo me encheu a paciência dentro de pouco prazo (risos) e eu acabei ficando mesmo com a música lá.
P/1 – Então, Didi, você estava contando pra gente que você chegou num ambiente mágico, super bonito, que tinha tudo a ver com você. Eu queria que você falasse um pouquinho quem foi o professor que mais te marcou e por que ele te marcou? Ou professora. Porque pelo que você falou você tinha grandes mestres.
R – Sim.
P/1 – Mas eu queria que você falasse de alguém, se teve alguém que te marcou mais ou não.
R – Me marcou muito o José Lucena. Estudei com Maria Raquel e o José Lucena, que eram os dois professores que iniciaram esse curso. Maria Raquel, excelente professora, também séria, muito centrada. E Lucena mais aberto, mas de uma genialidade fantástica. Primeiro, ele impactava muito a gente porque ele tinha uma grande, ainda tem, uma grande dificuldade de visão e ele usa uma lupa – não sei se ele usa ainda, mas usava uma lupazinha amarela, que ele colocava rente no olho assim, pegava a partitura e ia passando as linhas da partitura assim até chegar no final e quando chegava no final ele já sabia, pegava o violão e tocava aquilo, uma memória fotográfica. Antes, tinha tido uma vivência de tocar na noite. Ele tocava piano, depois que migrou pro violão. Mas ele era um gênio e passava isso pra gente. Ele mostrou que, aliás os ensinos que ele dava pra música não eram só pra música, eram pra vida, era uma coisa muito mais extensa. Eu lembro que uma vez, ele pediu que eu trouxesse pra ele no final de semana o Estudo Número 1 de Villa Lobos, que embora seja o Número 1, de fácil não tem nada, é um dos mais difíceis dele, extremamente difícil. E aí eu cheguei com o estudo tocando, a meu ver, perfeito. E estava tocando, pegava e tocava até o final e muito bonito, estava pronto o estudo. Eu cheguei pra tocar pra ele, toquei e quando eu pensei que ele ia me dar ok ele tirou o relógio do bolso e disse o seguinte: “Olha, Didi, agora eu vou marcar aqui, você tocou em três minutos que é o tempo dela mesmo, em torno de dois minutos e pouco, três minutos, agora você vai tocar em 15 minutos. Você vai começar e tocar essa música toda em 15 minutos”. E aí eu meio sem entender: “Como é que é?” “Não, você vai tocar nota a nota. Você vai gastar umas três horas, mas eu vou ficar sentado aqui te esperando. Você vai tocar nota a nota”. E aí eu comecei a fazer aquilo. Quando eu mal terminei o primeiro compasso da música eu já tinha esquecido onde que eu estava, como é que era e tal. Mas ele sabia que eu não ia dar conta, né? E aí ele me ensinou uma coisa muito importante, disse: “Olha, Didi, você tocou com os dedos, com a emoção, não é assim que se toca violão. Eu quero que você toque com inteligência. Quero que você saiba cada nota, conheça cada nota, entenda cada nota. O que você está fazendo, por que você está fazendo, que você trate com carinho cada nota, não tem nenhuma mais importante do que as outras, todas elas são nobres, são importantes”. Ele ensinou isso e a gente acaba ficando meticuloso com todos os aspectos da vida da gente depois que passa pela mão de um mestre desse jeito. Ele me ensinou essas coisas. E tinha o professor Mauro, que era professor de Harmonia lá no conservatório. E eu me lembro que o ônibus atrasou e eu cheguei na aula dele, porque eram várias aulas, tinha canto coral, tinha harmonia, etc., etc. E eu cheguei na aula dele, bati na porta, tinha o vidrinho assim na porta, eu bati, ele veio, ele estava tocando e parou no piano, tinha o piano na sala, ele parou, veio e abriu a porta. Eu entrei, sentei e a sala tinha uns 20 e poucos alunos, se tanto, e ele pegou e falou: “Olha, você que é o Didi, o Adailton” “Sou eu mesmo, professor, fico muito satisfeito “, porque ele é uma sumidade, aquele professor, eu fiquei muito honroso da deferência dele me citar. Ele falou: “Você que é o Didi?” “Sou eu mesmo”. Ele falou: “Olha, então você vai me fazer um favor: quando você chegar atrasado, pelo amor de Deus, entre sem bater, não bate não, porque você me atrapalhou, eu estava tocando. Então, quando você chegar atrasado você entre, mas sem bater”. Foi minha primeira lição de Harmonia (risos). E depois de um tempo, passado um ano, foi uma alegria tremenda, eu consegui que ele tomasse café comigo, saindo do conservatório fomos num barzinho que tinha, um café que tinha lá perto, eu e professor Mauro. E eu já me achando íntimo dele. Ele era bravo. E aí eu cheguei, tomei o café, nós tomamos o café, eu paguei o café. E nós estamos voltando e eu falei assim: “Eu vou aproveitar esse laço de intimidade, essa relação e vou tirar algum proveito disso”. Mineiro, né? (risos). Aí eu falei: “Professor Mauro, eu queria que o senhor me ensinasse Harmonia”. Ele parou, afastou assim um passo assim de mim, pôs o dedo no meu nariz e virou pra mim e disse assim: “Olha, você está vendo aquela pedra ali, a outra pedra?”, tinha duas pedras lá na rua, duas pedrinhas lá no asfalto. “Você está vendo aquelas duas pedras lá?”. Eu falei: “Tô”. Ele falou: “Então você entenda, uma pedra e outra pedra é Harmonia. Se você não entender que uma pedra e outra pedra é Harmonia você nunca vai aprender Harmonia”. Foi a minha segunda grandissíssima lição de Harmonia. Por quê? Porque eu aprendi que tudo combinado com beleza é certo, não existem regras fixas, rígidas. Claro, tem padrões matemáticos da música e tudo, mas às vezes é melhor quebrá-los porque a beleza brota de uma pedra e outra pedra. Grandes lições, grandes mestres, grande privilégio que eu tive de conviver com esses homens.
P/1 – E como é que foi terminar o curso, o que você foi fazer? Voltou pra Paracatu? O que você fez quando você terminou o curso?
R – Voltei pra cá. Eu estava com uma bolsa de estudos pra ir pros Estados Unidos e precisei voltar pra cá porque meu pai havia aposentado e não tinha ninguém que tinha trabalhado em cartório pra continuar. E aí eu retornei pra Paracatu muito tranquilo porque eu chamei o Lucena e perguntei, eu falei: “Olhe, Lucena, eu não vou poder terminar o curso, pelo menos por agora, vou ter que interromper”, faltando pouquíssimo tempo. Ele me pôs numa sala, fechou a porta por dentro e falou: “Olha, pode ir, você pode ir embora. Você não precisa ficar aqui mais, você já sabe resolver todos os seus problemas, as dificuldades musicais que surgirem pra você, você já dá conta de resolvê-las todas. Você tem dedo. Pode ir embora. A única coisa que eu exijo de você é que você venha aqui pelo menos uma vez por ano pra ver o que você está tocando pra você não ficar isolado do mundo musical”. E eu fiz assim, eu fiz isso, continuei sempre indo a Belo Horizonte encontrando com ele. E aí ele falou: “Mas você vai ter sempre um grande inimigo”, eu pensei: “O que, né?”. Ele falou: “A sua própria facilidade será o seu grande inimigo. Porque com muito pouca coisa você vai agradar 20, 30, 50 pessoas que vão ver você tocar, mas você poderia agradar o mundo se você se dedicasse, então há um risco de alguém que não tenha tanta facilidade quanto você supere você pela quantidade de estudo”. Eu já marquei, liguei pra um amigo dele e disse, eu acrescentei no Face, Lucena, encontrei. E acho que a esposa que fala por ele e vou a Belo Horizonte recente. Quem vai dizer, quando eu tocar pra ele, se eu estou só agradando os 30 ou se consegui alguma coisa mais vai ser ele, né? (risos) nessa ida minha lá.
P/1 – E me diz uma coisa, Didi. A volta para Paracatu, como é que foi essa volta e o que você começou a fazer? Como é que você conciliou a música, que era a sua paixão, com a profissão de trabalhar dentro de um cartório? Eu queria que você contasse um pouco pra gente, como é que você...
R – É, eu voltei, comecei a trabalhar ali no cartório civil, era o civil e notas junto e tal, como datilógrafo, cumprindo aqueles despachos, aprendendo no dia a dia, na praticidade daquela coisa. Eu sempre quis mais um pouco das coisas, nunca me contentei com aquela normalidade. E aí trabalhava e chegava em casa violão debaixo do braço tocando muito, muito, muito, muito. Estudando sempre, tocando sem parar, muito tempo. E aí fui conciliando as duas coisas. E aí começaram os festivais de música aqui em Paracatu e a coisa tomou proporções enormes. Aqui vinha grupos e cantores de ponta, desses compositores, participar desses festivais. Ainda vem, mas naquele tempo era um tempo de que a música era uma música, vamos dizer assim, de melhor qualidade porque isso depende de quem vê, dos critérios que se usa pra avaliar. Mas era um tempo em que a música era mais inteligente, eu posso assim dizer, ela falava mais ao coração, ela provocava mais a compreensão das pessoas, não era essa coisa só de pele, era uma música de dentro, pra dentro. E aí eu comecei a compor pra participar dos festivais e comecei a ganhar os festivais. E aí foram, passaram de dez, deve ter chegado quase, o que eu lembro assim, eu ganhei uns 17 prêmios de festivais aqui em Paracatu e fora. Foi um tempo de auge de festival, de muita coisa. A ponto que depois eu deixei de participar porque ficava um negócio chato porque eu tinha essa vantagem da habilidade instrumental porque tinha tido uma formação e tinha uma enorme desvantagem que estava sempre ganhando os meus companheiros, meus iguais, com os meninos que eu encontrava na rua convivia com eles. E aí isso me fez ir me afastando dos festivais. Porque você ganha um ano, dois anos, três anos, provoca melindres, cidade do interior. E aí fui afastando dos festivais. Depois eu fiquei um tempo, fiquei 25 anos sem participar de festival. Voltei no festival, tirei segundo lugar e mais uns outros prêmios lá, quem tirou primeiro lugar foi a Aline Calixto, que foi outro dia, então foi recente, então eu falei: “Vou dar mais uma pausa”. E também porque não sei, tem um tempo, né? Aquele tempo era mais, tinha uma verve, uma coisa de desejo de participar, era um tempo da música de protesto, daquelas letras mais incisivas. E agora não, fica meio sem razão de fazer as coisas musicais.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho. Você fala desse tempo dos festivais, a gente está falando do final da década 70...
R – Sim, final da década de 70, 70 a 80.
P/1 – Que é a época da ditadura.
R – É, 70, 80, por aí. Aquele período. Aqui estava em efervescência a música, muito mais do que agora, por incrível que pareça.
P/1 – Como é compor? Porque eu acho muito interessante essa coisa da sua junção da literatura com a música. Isso acontece por causa da sua necessidade em participar desses festivais e compor ou por que era uma necessidade sua realmente de aproximar uma coisa da outra?
R – Você já viu que eu sou falador, né? (risos) Eu sou falador, eu sou um contador de histórias. E a gente só pode ser contador de história se a gente for observador das coisas e eu sou extremamente observador de gente, eu amo observar gente. E a vida, natureza, as coisas, o ritmo das coisas. E aí eu pego o violão, vou tocar e começam a vir umas palavras, começam a ficar brigando pra entrar às vezes. E aí elas vão brigando, umas saem, outras ficam, e acaba a gente fazendo e quando vê está pronta a música. Porque eu sempre componho junto, eu nunca me predispus a compor, eu sempre pra tocar violão, pra estudar clássico, pra tocar uma música e às vezes um acorde, uma nota, mexe com alguma coisa, eu penso que é como se tirasse uma tampa de um baú de composição. E aquilo vem, vem, é lembrança. Assim, a coisa é muito interessante, às vezes é uma palavra de alguém, é um termo que se fala. Eu fico observando muito mamãe e as mulheres lá do Santana, do povo de Santana, que tinha um vocabulário. Eu compus uma música que é uma brincadeira que eu chamo de Vocabuneiro, que é vocabulário com mineiro, essa aglutinação. Vocabuneiro, que está no disco, que quando eu terminei de gravar o rapaz do estúdio, James, falou comigo: “Isso é um dialeto que você está, eu não conheço?”. Eu falei: “Isso não é dialeto, não, isso é uma língua que se fala no Santana, lá no beco” (risos). Porque fala assunga o cedro, menino, garra no eito, larga de fatiotagem, chispa que a boia não vem, nessa madorna é feito broa, quando é que vai, você está é pispiando moda, toma termo, não dá mais, larga me deixa, vamos parar de mesura, negar-se estripulia, onze horas, embromação. Eu não dou certo com menino. É coisa que teima. Então é quase um dialeto. E aí eu penso, se eu não fizer alguma coisa, se eu não gravar isso, essas palavras vão desaparecer. Os meus filhos, os meus netos já não, essas palavras não pertencerão ao cotidiano deles mais. E agora eu sei uma coisa no disco que está gravado, que está na nuvem rodando por aí, que esses termos que são do meu bairro, que são do meu lugar, da minha gente estão perpetuados, né? E talvez tem esse tempo, eu não tenho muita preocupação que o disco seja, embora ele tenha sido muito bem recebido aqui em Paracatu, pelas pessoas, eu penso que é sempre pra depois, eu penso que depois há de se ter um valor mais próprio desse casamento da música com a letra, da observação da natureza, essa vida na roça, que papai tinha fazenda e eu saía daqui levando gado, trazendo gado, a cavalo, com os vaqueiros. Então vivi com os vaqueiros, dormia nos pousos, tocava gado, passava as noites de lua tocando gado no chapadão, aquela coisa, isso entranha na gente pra sempre, né? Então não consigo ficar um mês sem ir lá pro chapadão onde eu vivi essa infância, pego o carro e vou pra lá. E ando pra lá e fotografo e vejo aquilo ali. Aí depois eu falo: “Mas por que eu tanto volto aqui nesse lugar?”, aí eu impliquei comigo mesmo: “Por que tanto volta aqui?”. Mas na verdade eu estou voltando pra mim mesmo, praquela infância, aqueles momentos lúdicos de alegria, de prazer, é um retorno que faz eu ficar mais inteiro, não rachar a cabeça nesse mundo confuso (risos).
P/1 – Aí você participa desses festivais, tal, como é que se deu essa coisa de gravar o disco? Como foi o primeiro disco, como você gravou, conta um pouquinho dessa história pra gente.
R – Ah, eu tinha essas músicas e aí apareceu o que foi Secretário de Cultura, um menino vindo lá do Rio Grande do Norte, o Tarzan Leão, ele é muito meu amigo e ele era Secretário de Cultura e nós começamos uma amizade, amizade que dura há mais de 15 anos e continua até hoje, e ele cismou que eu fosse gravar um disco: “Vamos gravar um disco, vamos gravar um disco com essas músicas suas, vamos gravar”. Porque músico, o povo é tudo meio maluco, e o Urbano Medeiros, um grande saxofonista, ele foi numa aldeia indígena aí e lá estava passando muita necessidade. Ele vendeu o sax lá e comprou coisas pros índios, tal. Aí tinha um outro sax e ele veio tocando uma clarineta. Aí chegou em São Paulo e tinha os mendigos, chegou num lugar lá e viu os mendigos. Vendeu a clarineta e saiu distribuindo dinheiro pros mendigos (risos). E o Urbano veio aqui em Paracatu tocando com a clarineta toda de liguinha, de dinheiro preso, aquele negócio todo. E aí a gente resolveu, ideia do Tarzan, pra comprar um sax pro Urbano. Ele falou: “Didi, como é que faz? Vamos fazer um show?”, eu nunca tinha feito, “Vamos fazer um show em Paracatu, no distrito de Santo Antônio e tal, pra gente arrecadas um dinheiro pra comprar o sax pra Urbano?” Ele falou: “Eu topo”. E ele ajeitou as coisas e foi um show eu, o Rubinho do Vale, Urbano, Valdemar Gavião, que é um grande músico aqui de perto, e fizemos esse show todo improvisado, foi uma coisa linda, um momento lindo que arrumamos o dinheiro, compramos sax para o Urbano e aí que a gente foi crescendo nessa coisa de tocar uma coisa mais, não diria profissional, mas com um pouquinho mais de seriedade, menos improvisada, né?
P/1 – E você contou uma história pra gente que você foi gravar no estúdio um disco, eu queria que você contasse essa história pra gente.
R – Ah sim, sim, sim. Aí chegando lá em Brasília, fomos parar no Zen, que era um grande estúdio lá e um técnico fantástico, era o James, que havia tocado guitarra nos Estados Unidos, um músico e grande técnico de som. E aí eu cheguei naquele negócio lá e ele falou: “Como é que é, vai gravar o violão primeiro pra depois colocar a voz e tal”. E eu não entendi patavina, nem sabia que tinha que fazer desse jeito, sair pêgo no laço pra ir lá pensando que já ia gravar e voltar com o disco na mão no mesmo dia. Ele falou: “Não, eu não dou conta de fazer isso, não”. Ele falou: “Então senta aí, vai tocando e vamos ver o que dá pra fazer aqui, vai gravando”. Aí eu toquei a primeira música e ele mandou parar. Acendeu a luz do estúdio e mandou eu parar e o Tarzan que estava sentado perto dele, ele mandou o Tarzan ir lá dentro pegar meu violão. Eu pensei: “Aí lascou porque o que ele veio fazer aqui pra pegar o violão? Deve estar tão ruim que ele quer ver o que esse violão está tão ruim assim”. Aí ele levou o violão, eu de cá olhando, ele pegou o violão, olhou, olhou dentro do violão, olhou assim e tal. E levantou e veio com o Tarzan. Aliás, me chamou lá, eu levantei e fui lá. Aí ele chegou lá e falou: “Didi, você chegou aqui falando que você veio do mato. Então eu queria que você fizesse um favor pra mim, o senhor me desse o endereço desse mato porque eu moro aqui em Brasília, na capital federal, e não consegui tocar violão assim como você está tocando (risos). Então você, por favor, me dá o endereço desse mato” (risos). Ele achou que eu estava fazendo uma gozação, que eu era profissional e aquela coisa toda. E ficamos bons amigos, estou até com um disco lá gospel com ele já pra colocar voz, essas coisas. E aí eu gravei o disco assim. Na hora, aquele disco foi gravado pouco mais de três horas, uma coisa assim maluca que não se faz em hipótese nenhuma. O disco tem muito erro, tem muita coisa, tem oscilações, desafinação na voz, porque aquela coisa, aí falta ar e você, na emoção do estúdio, em frente àquilo e é a primeira vez aquela parafernália toda. Imagina, né? E aí, mas o que me redimiu disso, dessa vergonha dos errinhos que têm no disco é que um dia o telefone tocou e era o Vital Farias, o grande Vital. E aí, depois de conversar longamente, que ele fala demorado, contador de causo como eu, fala longo. Eu falei: “Ô Vital, mas...”. Ele falou: “Cabra velho, eu tenho o seu disco aqui comigo, está no meu carro, só anda no porta-luvas do meu carro”. Aí depois descobri que é um Fiat 147, que Vital anda com ele lá (risos). Porque quando falava “no meu carro”, você pensa que é bem próprio dele, um Fiat 147. Eu falei: “Meu Deus, quanta honra o meu CD lá sendo ouvido por Vital no carro dele, um músico daquele naipe, daquela altura. E ele falou: “Cabra velho, gostei muito, é uma das melhores coisas que já surgiu nesses últimos anos, pra mim”. Eu falei: “Vital, mas tem muito erro e tal, isso foi feito de uma maneira muito incipiente e tal”. Ele falou: “Se tivesse polimento eu nem ouvia. Eu gostei porque ele foi feito à unha, foi feito assim, natural e isso é o que me agradou no disco”. Então assim, essas coisas são gratificações. Eu falo que o disco é redondo e ele vai andando, por isso ele não para de rodar, ele vive rodando, rodando, rodando. Outro dia, depois disso eu estou na rua, encontro com um amigo: “Pô, Didi, seu disco está no Guitar Play”. Eu falei: “O quê? Guitar Play? Você tá caducando, rapaz? Isso é revista nacional, Guitar Play meu disco” “Tá, tá sim, página tal”. Eu fui na banca, comprei a revista e estava lá com uma resenha de um violonista e crítico musical da revista, Mario Akaiama, que eu nunca vi, um japonês bacharel em Música, doutor em Música e tal. E ele fazendo uma crítica das mais louváveis do disco, falando sobre o disco. E tantas outras coisas assim que eu sou muito agradecido àquele momento de gravar porque aquilo abriu um outro horizonte, criou, construiu muitas pontes, me ligou a muita gente. Eu pude alegrar muita gente, as pessoas ficam orgulhosas disso. Um dia eu entrei no banco e um senhor veio e me cumprimentando assim pelo disco com aquela efusividade toda. E eu fiquei acanhado, ele falando muito alto, eu fiquei meio encolhido, meio sem jeito, mineiro, você fica meio sem jeito, meio vergonhoso daquilo. Eu falei: “Não, disco é coisa simples, tal”. Ele me deu uma bronca em voz alta e falou: “Coisa simples não! O senhor respeita o seu próprio trabalho!”. Você imagina, né? E naquele dia eu entendi que sempre tem dois discos, tem dois lados, aquele que o compositor compõe e aquele que a pessoa ouve. Tem o imaginário do ouvinte e o imaginário do compositor, que eu não interfira nessa imagem, nessa percepção, nessa identidade que o ouvinte tem, que é diferente da minha no ato de compor.
P/1 – Você coloca uma coisa muito interessante de quem ouve e quem escuta, mas quando você compõe e põe a música, que cidade é essa que você canta? Que Paracatu é essa que você canta? E pra quem você está cantando?
R – Eis uma questão difícil, né? Olha, eu gosto muito da Divina Comédia, Dante, eu acho, depois da bíblia, é o livro mais importante, um dos livros mais importantes. E no terceiro círculo do inferno, ele diz que lá quando ele entrou estavam aquelas pessoas que não faziam nada, nem de bem, nem de mal. Talvez eu componha, eu faça pra não integrar esse grupo (risos). Às vezes, é só pra isso, para não integrar esse grupo. Mas eu canto a minha história. Eu acho que eu não conseguiria viver sem escrever, sem escrever os contos com esses personagens. Porque minha vida foi cheia de gente, menino correndo pra cá, bebendo café, apanhando biscoito, correndo praqui, adultos, brincadeira de roda, batuque, samba, aquelas cantigas lá do beco, da bitesga. Eu não faço muita coisa não, o que eu faço é apenas dar uma roupa mais harmônica, um pouquinho mais rica, àquilo que o povo já fazia, àquilo que o povo já fazia. Na verdade, eu acabo cantando pra mim. E tomara que agrade, né? Porque é pra isso que a gente faz, a gente canta pros outros também, pras outras pessoas. Porque é aquela coisa, eu só fico inteiro se eu me completo no outro. Deus fez as coisas muito bem-feitas, aquele adágio que ninguém é uma ilha, é absolutamente verdade em todos os sentidos, inclusive na música. Se não tiver quem ouve, quem sabe apreciar, quem sabe observar aquilo, isso é o combustível do compositor, do músico. E que Paracatu que eu canto? Que cidade é essa? Eu acho que está naquele misto da imaginação e a realidade. Eu não quero fazer com muita clareza essa distinção, eu prefiro que fique assim. Eu não sei o que é imaginário, o que é sonho e o que é real, né, nesse aspecto da composição. E é um negócio muito bom porque eu acho que aí é a minha fuga, é a fuga do mundo, é aquela coisa, a imersão, é o outro mundo. A gente anda na rua, mas às vezes você está em outro mundo, está pensando em outra coisa, está pensando em monjolo, está pensando em cavalo no pasto, em mugido de boi, em cheiro de curral, em vaqueiro de roupa rústica, chapéu de palha, sabe? Está pensando nessas coisas. E de comer lá no pouso, dormir ao relento com a cabeça no arreio vendo as estrelas por telhado, sabe? Esse é o meu mundo, meu imaginário.
P/1 – E Didi, eu queria que você falasse um pouquinho exatamente desse seu imaginário, dessa troca com a cidade. O que você acha que você representa pra própria Paracatu quando você faz essa leitura do imaginário e você traz um pouco de você na música. Que você falou, ‘estou cantando pra mim e, de alguma forma estou me expondo’. O que significa, pra Paracatu, esse jeito seu de olhar pra Paracatu?
R – Essa é uma leitura que eu faço inversamente, é com o que me vem. Com a grande receptividade, com o acolhimento de um trabalho tão simples, despretensioso porque se tivesse uma pretensão eu estava correndo Brasil, marcando show praqui, prali, tem possibilidade de fazer mas eu, eu só quero fazer a obra, eu falo que eu estou fazendo a trilha sonora do meu lugar. Eu sinto essa responsabilidade, eu estou fazendo a trilha sonora do meu Santana, do meu beco, da minha Paracatu, das pessoas. Eu estou fazendo a trilha sonora desse lugar. E isso tem voltado pra mim com muito carinho, as pessoas são muito afetuosas, tratam muito bem, tem uma receptividade muito boa. Professores de faculdades têm já trabalhado a música, de primeiro grau, segundo grau, eles trabalham a música na escola por causa do conteúdo que remete pra questões de base da história, do lugar, da cidade, termos, costumes. Uma música povoada, minha música é muito povoada (risos). E assim, então nessa leitura inversa eu sou muito feliz porque eu vejo uma boa receptividade, muito acima daquilo que eu imaginava, que eu nunca pretendi nada, eu só queria fazer música, só isso.
P/1 – E olhando um pouco pra isso tudo que você contou pra gente eu fico me perguntando, a oportunidade que você teve de ir pros Estados Unidos com uma bolsa e a opção foi voltar pra Paracatu. Como ficou isso naquele momento pra você?
R – Depois da conversa com o Lucena, uma transição tranquila. Porque eu nunca fui dado a exageradas alegrias e nem a exageradas tristezas, né? É mais de encarar a vida e dar o passo seguinte levando as coisas, sempre crendo que pra quem ou pra além daquilo que a gente imagina, o projeto é de Deus, ele que sabe, ele que conduz sempre pros melhores lugares, pros melhores feitos. Eu fico imaginando assim, hoje eu fico imaginando que eu estaria talvez errado naquela opção porque eu não teria vindo pra cá, eu não teria casado com a minha esposa há mais de 30 anos, não teria os filhos que tenho, não morava aqui e talvez não tivesse, fosse um violonista clássico de renome internacional mas não teria feito esse singelo trabalho que desenha um pouco meu bairro, meu lugar, minha gente, meu povo.
P/1 – E como é que se deu a coisa da fotografia? Como é que a fotografia entrou na sua vida?
R – Ah, sim, sim. Eu digo que eu acabo fotografando o que eu canto e cantando o que eu fotografo (risos). Quem olhar minhas fotografias vai ver que tem tudo a ver com a minha música. Porque uma das coisas da fotografia é isso, a gente não fotografa nada externamente, a gente só fotografa aquilo que a gente tem dentro. Você olha e só fotografa aquilo que a gente tem dentro, não outra coisa. E eu fico sempre policiando a minha fotografia que tem uns tempos que ela começa a ficar feia e eu me preocupo porque é sinal que alguma feiura interna pode estar querendo crescer (risos), alguma feiura interna. E aí, mas isso veio do meu irmão, o Lucas. Ele era amigo do Biluca, que era um fotógrafo, e eles tinham, na época talvez aquela coisa da Rota 66, eles tinham os motores, e câmeras fotográficas Yashica (risos), por isso que eu falo, você tenta ligar lá, né? E aí eles andavam fotografando pra cá. E o Biluca é fotógrafo de altíssima sensibilidade ainda hoje. E o meu irmão já não está mais aqui, mas ele tinha um hábito, ele transformava tudo em slide e projetava aquilo nos finais de semana pra todos nós. Aí as crianças todas do beco do Santana, do bairro ali, iam todas lá pra casa porque aquilo era igual cinema, projetavam na parede as fotos. Imagina, tamanho grande naquelas paredes, parede de adobe tudo ondulada (risos), eu lembro até hoje (risos). Zero K seria, nem bem de 4k, seria zero k (risos), parede tudo ondulada, aquelas projeções. Mas aquilo era um sonho, né? Eu lembro até hoje do barulho (imita som), aquilo rodando, de vez em quando claque, claque, pá, mudando o slide (risos). E a gente ficava pensando: “Meu Deus, vai terminar, vai terminar”. E isso foi ficando, essa ideia de composição, do todo fotográfico, do ver. E observador eu fui ficando com aquilo. E depois eu ia viajar com minha esposa e meus filhos, via alguma coisa e queria tirar uma foto com aquelas maquininhas, batia, aquilo nunca prestava. Eu falava: “Deve ter alguma coisa nisso aqui, por que não presta”. Aí fui descobrir que a máquina prejudicava também, ela não conseguia ver aquilo que eu via. Aí eu tive que mudar pra máquinas melhores, equipamentos melhores, profissionais, foi quando eu fui aprimorando aprender a fotografia. Porque não termina, né? Então assim, eu estou aprimorando aprender a fotografia. E ela entrou assim por causa desse meu irmão.
P/1 – E esse seu irmão tinha uma diferença de idade muito grande entre vocês?
R – Tinha, tinha, tinha. Ele era uns 15 a 20 anos mais velho que eu. Tanto que ele já trabalhava e tal, ele me pegou pra criar, ele também, com a minha irmã. O negócio foi tão misturado que até hoje não sei se foi mamãe que me pegou pra criar, se foi papai, meu irmão ou minha irmã. Na verdade, resolvi que foram os quatro (risos). Eu resolvi assim, foram os quatro que me pegaram.
P/1 – E ele veio a falecer faz muito tempo?
R – Tem, já está pros seus quase 20 anos, por aí. Se não chegou a isso está quase.
P/1 – E ele faleceu do quê?
R – Foi um infarto, uma coisa que ele teve.
P/1 – E ele não trabalhava com fotos.
R – Não, não, não. Ele era gerente da Caixa Federal e tal, em Belo Horizonte, quando ele faleceu.
P/1 – Você falou da sua esposa. Conta como você a conheceu, como se deu esse namoro e fala um pouquinho dos seus filhos pra gente.
R – A minha esposa, eu a conheci na igreja. Talvez ela tenha me conhecido primeiro do que eu a conheci porque eu estava sempre lá na frente tocando violão, regendo coral com uma turma lá e tal, e às vezes acaba dela tendo me visto primeiro, né? Mas se ela me viu primeiro o interesse meu por ela com certeza foi mais efetivo. Ela era noiva, imagina! Eu acho que esse é o único senão que eu tenho na minha vida pregressa, que eu desmanchei um noivado (risos). Não sei se foi eu ou o violão, certo é que eu desmanchei o noivado, né? E estamos juntos até hoje, aprendendo junto. Mais de 30 anos de casados. Eu sempre brinco, se tivesse casado de novo só me casaria se fosse com ela. Não sei se ela vai dizer a mesma coisa, mas eu digo que é assim (risos).
P/1 – E Didi, vocês tiveram quantos filhos?
R – Dois filhos, um casal de filhos, que eles moram, o Tiago e a Moema. Moema é advogada e Tiago é internacionalista, formado em Relações Internacionais. A Moema é casada, tem aquele menininho que está aí, Estevão, garotinho, correndo pra lá e pra cá, que faz a alegria da casa hoje, né? E o Tiago toca piano, tem uma facilidade enorme pra piano. Mas toca blues, enveredou pro negócio do blues (risos), ele toca blues. Eu deixei livre, nunca quis forçar. E Moema toca violão, gosta de cantar, fazer as coisinhas dela. E eu estou brincando que são dois violões clássicos feitos por luthier e quem é que vai herdar isso? A esperança minha é que o Estevão herde (risos). Tudo o que puder fazer pra influenciá-lo eu vou fazer (risos), esse eu vou fazer.
P/2 – Eu estou curioso aqui, sem perder o fluxo, mas a sua conversa traz tantas referências e aí eu lembrei que a gente escutou a música tal e eu queria que você contasse um pouco, você falou que você veste, essa coisa de vestir cenas, situações, e coloca a tua cor. E eu fiquei pensando nos parceiros, nos companheiros, naqueles outros músicos que tocam e que você meio que, não sei se espelha, mas se aproxima. Quem são essas referências? Você falou bastante da literatura, mas e da música, que você tenta... gostei de escutar aquilo uma vez e parece que a minha música, como você falou a música regional, tenta se aproximar. Quem são?
R – Quem ouvir o meu violão vai perceber, o Mario Akaiama, quando ele falou lá no Guitar Play ele diz: “Ele vai do estilo de Dilermando Reis a Ulisses Rocha” e citou mais alguns lá, né? Edu Lobo. Ele fez essas alusões lá. Mas eu cresci ouvindo Dilermando Reis. Então, meu violão tem aquela chorosidade, aquele sentimento do Dilermando Reis, tem um pouco da agressividade do Baden Powell, que aí eu fiquei, eu tenho todos os discos do Baden, eu cresci ouvindo Baden, passei a vida toda assim... Era o grande ídolo da gente, era o Baden que fazia aquelas coisas no violão, de berimbau e aquelas harmonias tremendas, aquelas coisas todas. E depois vem a poesia de Chico, o violão sui generis de Gil, Gilberto Gil. Foi um tempo, os anos 60, 80 foi de uma riqueza, não só pra mim mas pra todos os brasileiros no campo da música, foi um despertar de genialidades. Milton Nascimento, a turma do Clube da Esquina, Gal arrebentando, Caetano com suas composições maravilhosas. Depois vem Elomar Figueira, um gênio. Vital Farias, com Saga do Amazonas, o que precisa mais? Ele só precisava ter composto aquilo, né? Como não ser influenciado por essas pessoas, por esses gênios? Então o meu imaginário musical, André Segovia, na coisa do clássico, John Williams. É um universo. Eu sou um caldeirão de influências (risos). A grande dificuldade é me achar no meio dessa turma toda gente boa (risos). Essas são as minhas referências musicais, Gil, Caetano. Eu fiquei alucinado quando eu ouvi João Gilberto batendo aquela batida desencontrada dele, com violão, com aqueles acordes desencontrados, aquelas sequências, mudando os acordes, o baixo permanecendo do mesmo jeito, mudando acorde, o baixo fico, o acorde vai, aquela loucura. Então, isso fundiu a cabeça, isso mexeu. Mesmo pra quem não fez aquele estilo de música, não ficou copiando aquele estilo de música, não deixa de influenciar na possibilidade de uma abertura harmônica, criativa. E de fazer do seu jeito, à sua maneira o seu trabalho, aquilo que alegra a gente, que alegra o peito da gente.
P/1 – Então Didi, a gente está caminhando pro fim, eu queria que você falasse um pouquinho, qual é o seu sonho hoje?
R – Olha, meu sonho é ficar (risos). Parece reducionismo, não parece? Mas não é não. Porque eu sou muito feliz (risos). Mas esse cara não pensa no futuro, mas eu sou muito feliz, eu sou muito feliz em todos os sentidos, né? Sou feliz com a minha família, sou feliz com Deus, eu sou feliz com esse mundo meu e mesmo nesse caos de Brasil eu sou feliz com a esperança. Eu sou feliz com a esperança, eu não consigo ter aquele olhar negativo das coisas, a gente é meio antena do mundo, o músico é como a antena, ele fica filtrando tudo, olhando tudo, se metendo em tudo, dando palpite em tudo, se imiscuindo em tudo. Mas assim, no meu mundo, se eu ficar, Deus me dando graça de ficar assim está lindo, está bom. Está sobrando, está pra além. Estar aqui falando com vocês, isso é pra além das pessoas comuns, do metiê comum, do universo comum. Isso é felicidade, é um tipo de prazer, isso é algo que é bom pra mim, é bom pro meu lugar, é bom. Então é melhor ficar. Eu fico feliz se ficar assim, como estou.
P/1 – E como é que foi pra você contar a sua história pra gente?
R – Eu não pensei, eu já falei pra muita gente, já dei entrevista pra muita gente, mas eu nunca vi ninguém tão bisbilhoteiro quanto você (risos). Ninguém nunca me encarafunchou tanto (risos).
P/1 – Que bom que eu consegui!
R – Teve momentos que eu pensei que eu estava sentado na cadeira da Lava Jato (risos).
P/1 – Não era essa a minha intenção (risos).
R – Mas foi muito bom, foi muito bom. Porque também eu não tenho outra coisa a dizer, esse aí sou eu, sou eu. Se daqui 50 anos você voltasse aqui e nós pudéssemos conversar e você fizesse essas mesmas perguntas você teria as mesmas respostas, então tá bom (risos).
P/1 – E pra terminar, o que você acha da Kinross propor contar a história de Paracatu através da história das pessoas?
R – Eu acho uma excelente iniciativa, mesmo porque as duas coisas estão atreladas. Não existe história sem pessoas e não existem pessoas que não construam uma história. E essas duas coisas vão estar sempre atreladas, que eu ache a ou ache b, tenha esse ou aquele ponto de vista. A história está sendo contada, quer eu queira, quer não, com os que concordam, discordam da vida, estão todos construindo uma história. Eu acho uma boa iniciativa. E a melhor maneira de chegar perto da história do lugar é conversando com pessoas do lugar, com pessoas que vivenciam, que pisam esse chão aqui há um bom tempo e eu já o estou pisando há 60 anos, eu acho que já dá pra contar alguma coisa (risos).
P/1 – E pra finalizar eu vou pedir pra que você toque um pouquinho pra gente gravar um pouquinho, tá bom?
R – Tá ok.
P/1 – E eu queria agradecer muito, em nome do Museu da Pessoa e da Kinross, a sua participação, foi excelente! Adorei ser bisbilhoteira na sua vida (risos).
R – É, ninguém nunca tirou tanto de mim (risos). (Toca violão e canta): “É no balanço do rio que a canoa desce. É no descuido da gente que amor não se aquece. Ingazeiro tá florado banhando o galho no rio, saudade me nutre o remo, remo qual nunca se viu” (solo de violão) “É no balanço do rio que a canoa desce. É no descuido da gente que amor não se aquele. Ingazeiro tá florado banhando galho no rio, saudade me nutre o remo, remo qual nunca se viu. Bate no peito um coração bem compassado, emoldurado pelos rios que passou, a curva longe das notícias e chegada, cheiro de mato, peixe, rede pelo chão. É no balanço do rio que a canoa desce”. (palmas).
P/1 – Eu vou pedir pra você tocar um pedacinho do Villa-Lobos.
R – O Estudo número 1?
P/1 – É. Tá. Só pra poder compor com a fala.
R – Com a fala, né? Mas você não vai pedir que eu toque igual ao Lucena não, né, em 15 minutos? (risos). (Solo de violão, Villa-Lobos, Estudo número 1). Esse era o Estudo Número 1 de Villa-Lobos.
FINAL DA ENTREVISTA
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