MEMÓRIAS, um relato 1996 APRESENTAÇÃO Nestes relatos tive a ousadia de escrever alguma coisa ao respeito da minha vida. Não se trata de nenhum tratado burilado de lingüística, mas a vontade de externar alguns tópicos da minha história, que apesar de simples, também,...Continuar leitura
MEMÓRIAS, um relato
1996
APRESENTAÇÃO Nestes relatos tive a ousadia de escrever alguma coisa ao respeito da minha vida. Não se trata de nenhum tratado burilado de lingüística, mas a vontade de externar alguns tópicos da minha história, que apesar de simples, também, tem o direito de ser contada. Procurei retratar com o máximo de fidelidade tudo aquilo que me veio à mente e estava guardado nos alfarrábios da minha memória. A linguagem é simples, como o é, aquela simplicidade das coisas puras. O que me norteou nesta obra, foi o desejo de passar para alguém alguns momentos que me marcaram, desde a infância, até a presente data. Não espere encontrar nada de sensacional. Leia, porém, com o espírito despreocupado, para não se decepcionar, ao avançar na leitura. O pensamento que me impulsionou a executar esta tarefa, foi o da simplicidade, haja vista, não existirem em mim quaisquer vaidades e intenções de me candidatar a uma cadeira de imortal da literatura.
Longe de mim, a ousadia desse intento
Almejei, apenas, neste trabalho, narrar fatos verídicos, os quais gostaria de transmitir a outras pessoas que, tenham a paciência de ler e a humildade de aceitar o que escrevi, da maneira como o fiz. Em conseguindo este objetivo, me dou por plenamente satisfeito, crendo ter atingido o ideal a que me propus. Desculpem-me os erros que,
porventura, existam e sei que os existem em profusão.
Atenham-se ao espírito da proposta e não será grande o desapontamento
Natal/RN,
janeiro de 1997.
O TRENZINHO Hoje, finalmente, estou iniciando um dos grandes sonhos da minha vida. Sempre quis escrever alguma coisa e agora me surgiu a oportunidade. Não poderia desperdiçá-la, de forma alguma
Para começo de história, devo retroagir no tempo, para contar alguns momentos que vivi e não os quero esquecer, pelo contrário, desejo perpetuá-los, não só para mim, como também, para quem interessar possa. Ao menos alguns parentes, terão a curiosidade de conhecer um pouco da minha vida e do meu tempo. Nasci às margens do rio Paraíba, numa pequena cidade chamada Pilar, no Estado nordestino que tem o nome do rio citado. Devo acrescentar, que nessa cidade, também nasceu o romancista José Lins do Rego, autor de vários livros como:
Menino de Engenho, Fogo Morto, Usina e outros que compõem a fase literária
denominada de literatura do ciclo da cana-de-açúcar.
Provavelmente, quem esteja lendo estas
páginas, se for jovem, não tenha conhecimento dessas obras, já que a literatura atual, geralmente dá mais ênfase aos autores mais modernos, em detrimento dos antigos, que me pareceram bem mais profundos e corretos, dentro de uma visão literária. As minhas primeiras imagens gravadas, remontam aos meus quatro anos, mais ou menos. Era início da década de 40. Cerca de um ano, mais ou menos,
começara a Segunda Grande Guerra ; o mundo estava envolvido num conflito bélico, que durou cerca de seis anos. Essa catástrofe, iniciada em 1o. de setembro de 1939,
se prolongou até
o dia 2 (dois) de setembro de 1945, com a rendição incondicional do Japão, e a assinatura do armistício pelo Imperador
Hiroíto.
Não me parece necessário que eu diga que estava
alheio ao conflito, já que, contando, apenas, quatro anos de idade, só estava pensando em comer e fazer peraltice,
como qualquer criança normal
O que me interessava mesmo era brincar com o meu trenzinho
de lata, com os seus vagões, parecendo, ao menos para mim, um trem verdadeiro. Aliás, esse brinquedo era importado. Na época, o Brasil
não produzia sequer um brinquedo infantil Parece que eu estou exagerando, mas é a pura verdade Quase tudo o que nós tínhamos, vinha do exterior. Hoje, está tudo muito diferente, produzimos até foguete espacial
É um avanço incrível
Bem, voltemos ao trenzinho, que é o que nos interessa no momento. A minha mãe tinha ido para a casa da minha avó materna, para dar à luz a mais um de seus filhos. A casa era grande e desajeitada, como eram normalmente as casas do interior e das capitais, também. A sala era enorme e tinha um piso de cimento, bem liso, que era o chique naquela ocasião. Pois bem, naquele ambiente de chão liso, eu fazia um pouco de
xixi
no chão e passava com o meu trenzinho no local, para que as rodinhas da minha composição fossem
marcando no piso da sala as duas listas, que representavam, para mim, os trilhos de um trem verdadeiro
Certa vez, era dia de feira na cidade do Pilar, e como acontecia com todos os chefes de família, iam à feira semanal, para a compra de gêneros alimentícios diversos,
de pequenos animais domésticos para serem abatidos em casa e outras “bugingangas” que seriam de utilidade no lar; de repente, chegou o meu avô, acompanhado de um “balaieiro”,.que trazia as compras na cabeça. Só, que ele vinha com um ódio terrível; estava agitado, vermelho e com os seus olhos azuis quase saindo das órbitas. Motivo: o preço do quilo da
carne bovina havia aumentado para 2000 mil réis. Não sei quanto custava, antes. Daí, não poder precisar o percentual de aumento. De qualquer forma, não devia ser uma diferença grande, pois naquela época, a inflação era muito baixa. Foi uma manhã de muita reclamação na casa do meu avô. Pena, que talvez somente eu lembre dessa história, pois os personagens envolvidos já se foram todos para o céu, ao menos espero
Só uma coisa eu tenho certeza. Deve ter sido um problema tão sério aquele aumento da carne, para os tais 2000 mil réis, que ainda hoje, cinqüenta e tantos anos depois,
me lembra aquele fato.
A
ESTAÇÃO
FERROVIÁRIA Ontem falei do trenzinho, hoje, falarei acerca da Estação Ferroviária da cidade do Pilar. Lembro com muita saudade daquelas idas e vindas à Estação. Era uma verdadeira festa a chegada do trem de passageiros. Muita gente ia ver a passagem do comboio ferroviário, pelos mais diversos motivos. Era um acontecimento, para a cidadezinha. Eu achava lindo aquele movimento , de pessoas que iam
e que vinham, no meio de transporte mais popular da época Alguns, os mais letrados, nem sempre iam esperar algum passageiro do trem, mas, iam com a finalidade de comprar
os jornais da Capital - A União e A Imprensa
- para tomarem conhecimento das notícias do
dia, principalmente, as referentes à política. Todo aquele contexto me agradava muito, apesar de não entender bem as coisas. Enquanto alguns esperavam parentes, ou amigos, ou iam comprar jornais, do jornaleiro do trem, eu me deliciava
com uma cocada ou uma tapioca que a minha avó comprava, para eu não dar trabalho a ela, enquanto estivesse
esperando o trem , que ainda não tinha”dado a partida” , lá da Estação vizinha, Itabaiana ou Coitezeira. Itabaiana, quando o trem procedia de Recife ou Campina Grande e Coitezeira, quando ele vinha de João Pessoa. Na casa, em frente à Estação do Pilar, situada num terreno mais alto, com referência ao plano em que nos encontrávamos, havia
algumas plantas floridas, uma pequena roça de milho e mandioca e uma ave que eu achava linda. Era um pavão. No horário da chegada do trem, o alvoroço das pessoas que estavam na plataforma,
parece que deixava
aquela ave meio excitada, nem sei se o termo exato é este, mas, a verdade é que o “bicho” ficava lindo, lindo
Para esnobar, na frente daquela gente, ele abria as suas penas multicoloridas e dava
um “show”
à parte.
Os trens passavam ainda cedo da manhã, cerca de 8, ou 9 horas. Os raios solares ainda estavam suportáveis para
o pessoal, as plantas ainda com o orvalho da noite anterior e o certo é que tudo aquilo me marcou muito e se eu
pudesse, voltaria no tempo, nas mesmas condições e no mesmo local, para sentir
aquele clima festivo da chegada do trem
Tudo isso acontecia, quando estávamos em período sem chuvas. Mas, quando chovia muito e o rio Paraíba estava com muita água, o cenário era bem diferente Para começar, as pessoas teriam que atravessar o rio em canoas, correndo um certo risco, pois a correnteza, as mais das vezes, era muito forte e poderia virar a embarcação. Não sei se
alguma vez ocorreu este problema, pelo menos, não tomei conhecimento. Os canoeiros já tinham bastante prática naquela travessia, que não havia quase perigo. Além das canoas, algumas pessoas atravessavam até nas costas “macaquinho”, nos braços “cadeirinha”, ou mesmo no colo de alguns homens que iam para a margem do rio, com a finalidade de atravessar aqueles que iriam para a Estação. Lembro que algumas vezes, eu atravessei
o rio dessa forma, no colo dos “atravessadores”. Eu achava ótimo. Tirava os sapatos
e ia molhando os pés na água corrente. Era uma
coisa gostosíssima
Pelo menos, para mim, que gostava de toda aquela movimentação. Atravessávamos os quase 200 metros da largura do rio,
e já estávamos, outra vez, em terra firme, nos dirigindo para a Estação, onde, por um motivo qualquer, íamos ver a chegada do trem. Ah Que saudade “danada”, daqueles tempos idos e vividos Que pena me dá, não haver um processo qualquer, para que aquela situação que tanta satisfação trouxe ao meu espírito infantil, pudesse voltar, para a alegria daquele garoto nascido
numa cidade ribeirinha. Há uns poucos anos atrás, fui a Pilar e refiz todo aquele itinerário. Não tive a sensação
dos tempos passados. Tudo mudara. O rio estava com pouca água, por causa das barragens que são construídas no seu curso normal; a Estação não tinha vida, como
no passado
E, ao
invés de atravessar de canoa, ou no colo do homem prestador
do serviço de travessia, fui por uma ponte, asfaltada e bonita, mas que não me transmitiu
aquele odor das folhas
orvalhadas e a beleza do colorido das penas daquele pavão
que ficava na casa em frente à Estação. Há emoções que mexem
com a alma da gente. Essa última, foi uma delas. Talvez, eu preferisse não ter refeito aquele trajeto. As imagens que eu guardava eram tão bonitas, tão coloridas, tão cheirosas e tão agradáveis, que eu não devia tê-las tentado reviver ; eu deveria saber que as coisas sempre voltam, mas com outros aspectos.
De qualquer forma, não vou lamentar, para que aquelas imagens fantásticas
e pueris não me abandonem
totalmente. Seria uma perda irreparável
Não quero correr
esse risco, de maneira alguma. O sentido e visto por mim, naquela
visão
infantil, ficará na lembrança, pelo resto dos meus dias. Que nunca se apaguem, para conforto do meu espírito
A CHEIA GRANDE Ainda
naqueles tempos de menino,
vi o espetáculo da “cheia grande” no rio Paraíba. Foi um acontecimento inesquecível. A cidadezinha estava em verdadeiro rebuliço, por
causa da cheia que estava chegando. Os búzios já anunciavam que a cheia estava se aproximando. Os boatos eram os mais variados possíveis e ninguém deixava de contar as suas notícias sobre a cheia que já se aproximava do Pilar . Os meios de comunicação à época , eram bem precários.
As notícias chegavam,normalmente, via rádio, jornal ou pelo telégrafo. Televisão, nem se ouvia falar. Era inimaginável se conceber a televisão, apesar dos grandes avanços da ocasião, motivados pelos esforços da Guerra. Toda a tecnologia daqueles tempos estava concentrada em benefício bélico; cada uma das partes envolvidas que tentasse chegar mais rápido às descobertas, que viessem somar conhecimentos e armas, cada vez mais sofisticadas. O rádio teve muita influência nesse período. Porém, as nossas emissoras não tinham grande alcance de propagação do som, dificultando bastante a comunicação entre a população das diversas comunidades. Note-se, também, que em poucas residências havia o aparelho de rádio. Era um objeto caro e poucos podiam desfrutar daquele “conforto”, como se pensava na época. O jornal era mais comum. Alguns compravam e muitos liam. Porém, as notícias chegavam, pelo menos, com um dia de atraso. O telégrafo, usado apenas pelos correios, também tinha uma pequena influência na comunicação. Algumas pessoas costumavam ir ao correio local, para saber das notícias, através de telegramas recebidos, ou mesmo cartas, de parentes e amigos, que estivessem em centros maiores e mais desenvolvidos. No nosso caso, o centro mais desenvolvido, para esse tipo de atividade era Recife. As rádios e os jornais de lá, eram disputados pelo povo do Pilar , por terem bem mais condições e uma estrutura maior do que os de João Pessoa. Afora isso, existiam os” faroleiros”, que contavam as suas estórias e vantagens. Cada qual, que se esmerasse mais, para que o seu boato parecesse realidade. A verdade é que com notícia, ou sem ela, a cheia do rio estava prestes a acontecer. Começava a mudar o tempo. A região toda, estava meio acinzentada. Os ventos traziam uma temperatura mais agradável.
O céu dava sinais de mudança, para já. Esse já, às vezes era realmente rápido. Não foram poucas as vezes, que o homem ribeirinho perdeu algumas de suas “criações”, por não ter tido tempo de pegá-las no leito do rio, onde elas pastavam.
As pessoas já começavam a se dirigir
às margens do Paraíba, na esperança de ver aquele espetáculo da natureza. Era lindo, apesar de às vezes ser trágico. As enchentes traziam muita destruição. Casas ribeirinhas eram arrastadas pelas águas; plantações, animais e tudo que estivesse ao alcance da violência delas, descia rio a baixo. A “barreira” do rio estava cheia de gente. Eram curiosos, que se aglomeravam para ver o início da cheia. Em uma dessas vezes, eu estava lá. Pequeno, mas, também, com uma curiosidade muito grande, dentro da minha percepção infantil. Não lembro quem me levou, mas a verdade é que vi tudo aquilo e fiquei impressionado. Confesso que naquele momento tive um certo medo. Para mim, aquilo era uma situação inédita, amedrontadora e chocante As primeiras águas, exatamente aquelas que abriam o desfile do espetáculo fluvial, me causaram um certo pavor. Talvez, situação criada pelos “papos” que eu ouvia das pessoas que estavam à minha volta. Cada um, sabia mais do que o outro, com referência a cheias.Era um fato interessante
As águas vinham dos lados de Itabaiana, e, antes de entrar numa reta, até chegar ao Pilar, despontavam
com uma fúria enorme. Parecia uma língua se enroscando e devorando tudo à frente. Acompanhando esse movimento estranho
e pavoroso, fazendo parte de um mesmo ato, havia um barulho forte, como denunciando que a força e o poder
estavam se apresentando à nossa frente e pediam passagem, para continuar o”desfile”
Jamais esqueci aquelas imagens. Era um acontecimento realmente fantástico Durante o dia, as águas iam subindo a pouco e pouco. Agora, com menos violência, porém, ainda apavorantes. Os perigos não cessaram totalmente. Não se tinha conhecimento das chuvas, lá nas “cabeceiras” do rio. Isso trazia uma certa inquietação, no meio do povo da cidadezinha. Após a enchente, a vida comunitária sofria nos seus afazeres do cotidiano. Nos primeiros dias da cheia, ficava praticamente impossível se “pegar” o trem no Pilar . Quem se aventurava a enfrentar a força da correnteza do rio? Ninguém. Ninguém, mesmo
A estação ficava vazia e aquele pavão lindo, não tinha para quem mostrar a sua beleza
Quem queria viajar, precisava se deslocar para outras estações ferroviárias, onde não houvesse a interferência negativa do rio,motivada pela
cheia.
Nesses momentos, os canoeiros do Pilar ficavam temporariamente sem ter o que fazer
e o que era pior, sem ganhar o seu dinheirinho. Tinham que esperar as águas baixarem, para voltar o movimento da estação e em
conseqüência os seus serviços, no transporte das pessoas que precisavam viajar. A verdade é que havia muito transtorno, mas, em compensação, após as cheias, o cenário mudava muito. O leito do rio se transformava numa várzea muito fértil e aquelas “criações” que foram retiradas, por ocasião da enchente, agora voltavam e numa situação bem melhor, pois o pasto e os riscos acabavam.Tudo mudara, por alguns dias. O homem ribeirinho, se sentia mais disposto, era hora de se plantar; a terra estava molhada e havia de se esperar uma safra melhor do que a do ano anterior. O camponês é sempre um sujeito esperançoso; de momentos difíceis, ele sempre tira uma esperança maior para o futuro, principalmente, com relação a boas safras. Creio, que se nós da cidade grande tivéssemos a mesma fé daquelas pessoas humildes do interior, a vida seria , talvez , mais gostosa de viver e suportar. A simplicidade daquelas pessoas
diverge muito da pseudo sofisticação do povo que habita as cidades maiores. Assim, era mais ou menos a visão que me foi guardada pelo tempo e que jamais
voltará.
O
ENTERRO O Pilar amanhecera mais triste, naquele dia. Acabava de perder um dos seus filhos mais ilustres. Não lembro de quem se tratava; sei,
apenas, que deveria ser alguém importante
da cidade, pois desde cedo, o velho sino da Igreja Matriz,
estava soando aquelas badaladas características, de anúncio de morte, na comunidade. Tenho a impressão que acordei com o badalar do sino. A casa do meu avô era bem perto da Igreja e da “venda” de dona “Tôta”, que ficava mais ou menos no”oitão” da matriz, a uns 150 metros, aproximadamente. Não sei de quem se tratava. Mas, uma coisa é certo, era alguém importante da cidade. O sino já tinha acordado mais da metade da população e os boatos já corriam, de boca em boca, como normalmente acontecia, dando conta de quem era o falecido.
Tia Iaiá foi das primeiras a saber. Foi comprar pão na “venda” e com a sua curiosidade, já tinha as primeiras notícias. Eu não entendia bem aquela situação.Ouvia os comentários, mas não possuía a percepção necessária , para entender aquele problema seriíssimo, que acabava de enlutar a cidade. Eu notava que havia alguma coisa estranha no ar. Não conseguia identificar com precisão. Via as pessoas, com as roupas dominicais, se encaminhando para a Igreja e por lá ficavam muito tempo. Na minha idade, pensava que se tratasse de algum ato religioso diferente, que não era do meu conhecimento O certo, é que aquele movimento
das pessoas, também me chamou a atenção. Elas estavam um tanto tristonhas, como se estivessem sendo culpadas de alguma coisa e iam à igreja para se penitenciarem. Mais do que isso, eu não conseguia perceber e nem os adultos me diziam. Criança naquele tempo não podia tomar ciência de muitas coisas, para não ser prejudicada na sua formação futura e nem tomar qualquer choque emocional. As horas passaram e já começávamos a entrar no período vespertino daquele
dia fúnebre. As pessoas já começavam a se aproximar da Igreja, muitas delas, contudo, ficando na pracinha, onde, sentados, à espera da hora do enterro, continuavam nas suas conversas, geralmente, enaltecendo o falecido e lembrando passagens de sua vida. O anedotário tinha naquele momento uma importância muito grande Cada qual que soubesse mais “vantagens” e “desvantagens” do finado. Era uma coisa bastante interessante. Hoje, eu teria a maior curiosidade em participar de uma situação semelhante e não naquela época, que eu não entendia nada do que se passava, principalmente um fato daquela natureza, que podia “mexer”com
toda
a comunidade Pilarense.
Três da tarde e se aproximava a hora da despedida e do ato fúnebre. As pessoas se aglomeravam no interior da Igreja, que já naquele tempo irradiava um certo odor desagradável, causado pela sujeira dos morcegos que “moravam” na Igreja Matriz. Aqueles pequenos mamíferos se alojavam na parte interna da torre e durante as cerimônias, principalmente as noturnas, efetuavam os seus vôos rasantes, por sobre na nave central. Eu ficava contrariado com aquele mau cheiro desagradável que se espalhava pelo templo. A minha fé de criança ainda não era bastante suficiente para suportar aquele “cheirinho” horroroso, talvez
isso tenha prejudicado a minha fé religiosa, até os tempos atuais.
Tornei-me um crente de pouca fé. Isso, inclusive, muito me prejudicou, quando fui, posteriormente, para o Seminário em João Pessoa. Mas essa, é uma história para contar mais na frente, em outro capítulo. Retomemos os acontecimentos que cercaram o enterro. Já estávamos na metade da tarde. A banda de música já se postava na frente da Igreja. Os componentes, em uniforme especial, parecendo militares, pelo tipo do traje usado, a pouco e pouco, começava a se arrumar, bem em frente à porta da nave central. Um
músico, de quando em vez, emitia um som do seu instrumento, como se estivesse conferindo a afinação do mesmo. Nada podia dar errado naqueles momentos. Não tenho certeza se todos os membros do grupo eram da cidade, ou se havia algum componente de fora, talvez de Itabaiana, que era, na ocasião, uma espécie de cidade pólo.
Não recordo quem me conduziu àquela cerimônia de fé e piedade cristã. Sei que ficamos, mais ou menos, próximo dos músicos; Aqueles homens fardados e garbosos estavam me prendendo a atenção. Quem ficou comigo, felizmente entendeu o meu propósito e conseguimos uma situação vantajosa, em relação à banda de música. Vi, até hoje, apenas, dois enterros com
esse tipo de acompanhamento. Esse, foi o primeiro; o segundo foi em João Pessoa, na oportunidade do enterro do Cônego João de Deus, poeta dos bons e um sacerdote, dos melhores
Finalmente, após os primeiros acordes da banda, começa a aparecer na porta principal da Igreja o caixão mortuário, conduzindo o falecido ilustre. Pessoas vestidas de preto, provavelmente,
parentes, se aglomeravam em torno do féretro, que se movimentava, vagarosamente, em direção à última morada. Havia muita gente no cortejo. A cidade vivia um dia completamente diferente dos normais, quando a tranqüilidade era a tônica principal. O Pilar
raramente via um movimento daqueles. O comum, era uma calma dominante, modificada, poucas vezes, quase sempre, por ocasião das enchentes do rio, do movimento das feiras semanais , ou nos dias de procissão, quando vinham para a cidade, inclusive as pessoas da zona rural. Descem os degráus da calçada da Matriz conduzindo o caixão fúnebre e à frente de todo o cortejo a banda musical, tocando algum “dobrado” escolhido para a ocasião. Não sei se era a marcha fúnebre de Chopin, mas a verdade é que aquele tipo de música me emocionou. Vi pessoas chorando no cortejo; não sei se com pena do morto, se pela beleza dos acordes musicais, ou porque via outras pessoas chorando Há criaturas
que reagem de formas, as mais diferentes possíveis, nessas circunstâncias de grande emoção. Chamou-me a atenção o fato de que a banda de música estava sendo regida pelo maestro Pedro Ivo, futuro sogro de minha querida tia Rosinete. Aliás, o seu namorado, José Lins, também deveria estar no grupo de músicos que acompanhava aquele enterro; lembro, que ele, talvez, por influência do pai, tocava saxofone. E
aquele, era o momento ideal, para mostrar as suas qualidades musicais. Falecido em 1995, não tenho como confirmar esse fato; finalmente, não sei se Tio
José Lins participara daquele acontecimento. Tia Rosinete talvez nem lembre mais essa passagem. Vou continuar com a dúvida. Lá perto da cadeia, estava o cemitério. Tudo pronto, esperando a chegada do enterro. Uma multidão conduzia vagarosamente o esquife, como acontece, normalmente nessas ocasiões. As pessoas de forma condoída, se comportavam, como se houvera perdido alguém da própria família. Era uma tristeza generalizada nos semblantes de todos. Não entendia bem o acontecido; eu me preocupava mais com as músicas executadas Aquele momento
me ficou gravado no cérebro; não o esqueci, até hoje. Parece, até, que ocorreu recentemente, pela facilidade com que recordo aquele momento de dor, na cidade do Pilar. Não vi a descida da urna funerária à cova. O grande número de pessoas me prejudicou, fazendo com
que os momentos finais, eu não pudesse ver. Deve ter havido muitos discursos de condolências. Convém que se diga, que nas cidades do interior, as pessoas se esmeram nessas oportunidades, e falam coisas lindas No enterro do tio José Lins, eu ouvi um discurso de improviso, de um seu ex-adversário político e me emocionei. Aliás, esse acontecimento, também, ocorreu na cidade do Pilar. O orador fora tão empolgado e feliz na sua oração fúnebre, que me lembrou a verve de um Carlos Werneck
de Lacerda, nos seus bons tempos, no Congresso Nacional Foi tudo o que eu vi e senti, naquele ato fúnebre de um ilustre desconhecido, para mim. A cidadezinha do Pilar
toda envolvida, para prestar a última homenagem a um de seus filhos, que com certeza, seria de família importante e representativa do lugar. Que Deus o tenha na Glória Amém
Deixamos o Pilar. Lá, ficaram os nossos parentes e as nossas saudades. Estamos em uma nova cidade, agora, no sertão paraibano. Minha mãe, já recuperada dos traumas
do parto do último filho, vai ao encontro do meu pai, que estava trabalhando na cidade de Juazeirinho. Ficamos morando um tempo que não sei precisar. Lembro, apenas, que foi
nessa cidade que eu comecei a ler. Sobre a escola que freqüentei, não tenho nenhum registro na memória. Parece-me que naquela época, as crianças que estudavam em casa, com os pais, tinham reconhecido o seu aprendizado, quando iam se matricular. Recordo que estudei muito com a minha mãe, quando estava nas primeiras letras. Tenho quase certeza que foi com ela que comecei a ler as primeiras palavras. Como se fosse hoje, me vem à memória aquele tipo de
ensino executado num ambiente não muito adequado; as aulas aconteciam, normalmente, na cozinha, ou na sala de jantar. Minha mãe, enquanto fazia as suas tarefas domésticas, me ensinava, como se fora uma professora E deu bons resultados. Por ocasião de meu ingresso na escola tradicional, já lia alguma coisa e fazia algumas contas. Certo dia, chega meu pai, para o almoço, e traz consigo o Primeiro Livro de Leitura. Foi uma surpresa das maiores Eu estava ávido para ler, mas, não a Cartilha das crianças mais atrasadas. Até, que enfim, poderia ter a satisfação de manusear
e ler realmente um livro mais bem elaborado, sem aquelas figurinhas e historinhas do tipo: vovó viu a uva
Não me contive. A surpresa, a alegria e a satisfação tomaram conta de mim, de tal maneira, que quase acontecia um “problema” mais sério Eu não quis parar de ler a primeira lição. Título da obra literária: O Rei Zulu Acredito que os meus primeiros contatos com o Continente Africano, iniciaram naquele momento. A lição
foi tão importante que não fui para a mesa, almoçar. Com muito jeito, fui convencido a parar a minha leitura e ir
para o almoço. Se aquele primeiro contato com as letras tem se perpetuado até os dias atuais, hoje, provavelmente, eu seria uma das pessoas mais instruídas da terra A verdade é que esses momentos de muita euforia, geralmente, com o passar do tempo, vai mudando, mudando, até que passamos a alterar completamente o
nosso comportamento. É uma pena, mas é a pura verdade. Isso é correto. Não fosse, aquele estado emocional que se apoderou
de mim, naquela ocasião, em continuando indefinidamente, causaria um estado patológico de dimensões imprevisíveis. Felizmente, foi um período razoavelmente curto e não prejudicou a minha mente. Senti alguma diferença na nova moradia. Agora sei que me faltava aquela companhia e assistência dos meus avós e tios, que deixara no Pilar. Eles me paparicavam muito, talvez, por eu ser o primeiro neto de Antônio Alves de Araújo Rêgo e Filomena Alves Pedroza, lógico, meus queridos avós. Não me despeço deles aqui. Vou reencontrá-los, novamente, no sítio Jenipapo, em Campina Grande, quando, mais uma vez, minha mãe vai para a casa de seus pais, para ganhar mais um filho. De Juazeirinho tenho umas poucas lembranças. Algumas delas vou contar. Naquela cidade meu pai comprou, para mim,
o
meu primeiro suspensório. Era um objeto que se usava preso à calça, para sustentá-la, podendo, com isso ser dispensado o cinto. Era de uso muito comum entre os homens e os meninos daquela época. Juntamente com o suspensório, o meu pai comprou uma roupinha de “marinheiro”, com
gola e tudo A moda, naqueles tempos era assim. Não havia muita opção. O jeans ainda não havia chegado ao Brasil. Por enquanto, vestiam os vaqueiros do oeste americano. Nós tínhamos que nos contentar mesmo era com as roupinhas de marujo. Mas, eu era feliz; estava usando o meu suspensório, grande moda da época e me bastava
Meu pai trabalhava numa repartição pública do Estado. Não sei bem o que era. Lembro, apenas, que ele me colocava sobre a sua mesa de expediente e me mandava carimbar uns papéis. E nessa função,
eu passava grande parte da manhã, até chegar a hora de ir para casa fazer a minha refeição.
O ano, era lá por 1941. Como disse antes, o mundo estava em guerra, para variar Por conta disso, havia muitos soldados americanos pelas nossas plagas nordestinas.
Forçado pelo clamor do homem sertanejo, que sofria com a falta d’água, o Governo resolve construir o açude de Coremas, na caatinga paraibana. Aí, eu tive oportunidade de ver e conhecer a primeira pessoa estrangeira. Eram soldados americanos que transportavam cimento para a barragem do açude de Coremas. Usavam caminhões enormes, do tipo caçamba, para transportar o material a ser utilizado na construção daquele açude. Meu pai, um comerciante amigo dele e eu, sentados em cadeiras, na calçada da casa comercial, víamos aquele movimento com um certo espanto Causava-nos muita admiração aquele tipo de intercâmbio. Um povo estranho, colaborando com o nosso Jamais eu entenderia uma posição tão abnegada daquela gente Hoje eu sei exatamente o que significava aquele ato. Eram os nossos irmãos ricos do norte querendo que o Governo brasileiro facilitasse a instalação de bases militares em nosso território. E assim aconteceu. Em Natal construíram as
bases aérea e naval, tudo, com a finalidade de implantar no Rio Grande do Norte um ponto de apoio, para transporte de pessoal e material , com destino ao velho mundo, centro das operações bélicas. Para nós foi ótima essa vinda e permanência dos americanos em nosso Estado. Eles tinham dólares e muita estrutura, que nos fizeram muito bem . Quando por aqui chegaram, a nossa Capital tinha aproximadamente 50.000 habitantes; daí, em diante, o surto de progresso foi enorme, para nós. Finda a Guerra, voltaram para o seu país, mas a semente que plantaram por aqui, ficou e até hoje, utilizamos os benefícios que nos trouxeram
naquela oportunidade. O comerciante de quem falei há pouco, tinha um bazar em Juazeirinho. Creio que fosse, talvez, a loja mais sortida da cidade. Ele se orgulhava disso . Além de
próspero comerciante, era espirituoso e brincalhão. Quando alguém lhe comprava algo e pagava com um nota de grande valor, pensando que não haveria troco, se enganava completamente; nesse momento, rindo, dizia que para ele, “graúdo”, só os poderes de Deus e passava o troco ao cliente Para confirmar a sua grande variedade de mercadoria, ele complementava,
dizendo que também tinha na sua loja freio para amansar gato, suspensório para cobras e grelha para assar manteiga. Que pena eu não ter gravado o nome daquela figura tão interessante e simpática, que faz parte das imagens da minha
infância Citalo-ia, aqui, com a maior satisfação.
Em Juazeirinho, iniciei o meu convívio com adultos. Acredito que meu pai me levava para esses ambientes, para facilitar a vida da minha mãe, em casa; já que ela tinha muito o que fazer com a criança recém-nascida. Não vejo outra alternativa para esse problema.
A cidade era bastante quente. Fazia um calor infernal. Chuva, nem pensar Não sei como aquele povo agüentava Em matéria de clima, havia uma diferença enorme daquela cidade de onde tínhamos vindo. Mas, o jeito era suportar. O chefe da família trabalhava ali, então a família deveria ficar. É o óbvio. Apesar dos pesares, não tenho más recordações de Juazeirinho. Ganhei meu suspensório, aprendi a carimbar papel, meu pai me deu um roupa de marinheiro, que era o chique na época, em matéria de moda infantil
Não foi tão ruim assim Pior
seria se não tem acontecido nada disso e eu não tivesse a oportunidade de ver soldados americanos em terras do Brasil. B R A S I L , segundo o humorista Chico Anísio, significa: bravos rapazes americanos silenciosamente irão levando Levando, o quê ? Mais na frente, talvez a gente saiba o que eles queriam, ou querem levar
Em
continuando as minhas andanças, agora estou mudando mais uma vez de endereço. A nova residência é em uma nova cidade. Desta feita, como o próprio nome bem o indica, é uma nova terra, ainda no sertão, pequenina, em relação a Juazeirinho e fazendo jus ao nome que lhe impuseram. Aparentava um lugar ermo, até mesmo deserto, como sugere o seu nome. Meu pai, mais uma vez havia sido transferido para cá.
Não sei o que acontecia, mas, a verdade é que antes que nos acostumássemos em um determinado lugar, já vinha uma nova transferência de localidade. Só vejo duas opções para isso; ou ele seria muito eficiente profissionalmente, ou exatamente o contrário Não sei com qual das duas conclusões em possa ficar
Jamais poderei tirar essa dúvida, já que Pedro Ferreira da Rocha, o meu inesquecível pai
foi para junto de Deus, desde abril de 1978. Vou, portanto, continuar sem conhecer esse problema, pela impraticabilidade da solução. Soledade não me trouxe quase lembranças. Foi erma e deserta, também, para a minha mente. Apenas duas coisas tenho para registrar desse lugar. O meu irmão Laurentino, sofria, desde muito criança, as conseqüências
penosas de uma bronquite asmática, a qual o persegue até os dias atuais. Consultando pessoas que “entendiam” do problema, o nosso pai, com várias sugestões acerca da solução para aquela patologia, optou por uma bastante estranha Quem orientou e “receitou” aquele tipo de tratamento, acredito que estivesse abusando da ingenuidade do meu pai, que de patologias, não entendia nada, creio, eu.
Veja só que “medicação” diferente, esquisita e extravagante O paciente, no caso o meu irmão, deveria ir ao matadouro, cedinho, para tomar um banho (literalmente), com esterco de boi, que seria morto, momentos antes. Bem estranho esse tipo de tratamento Mas, na ânsia de curar o filho, fomos algumas vezes ao matadouro da cidade, para executar aquela tarefa desagradável. Apesar de não poder optar em ocasiões daquela natureza, já que eu também era bem novo,
não aprovava o procedimento adotado. O modernista Mário de Andrade no seu livro “Namorando com a Medicina, pág. 75, afirma que :” já nos tempos coloniais se usava pôr esterco de jumento nos cortes que sangravam muito” . Mas isso era nos tempos coloniais Já estamos nos tempos republicanos há quase 107 anos. O avanço no ramo da medicina tem sido uma coisa fantástica e por isso, penso que naquele ano de 1941, deveria haver remédios bem mais apropriados, para curar a asma Acho que o problema, é que a cidadezinha era tão insignificante, à época, que nem um médico devia clinicar por lá. Aquilo era um fim de mundo Acho, até, que foi ali, que o diabo perdeu as botas, como diz
o provérbio popular A rememoração mais forte de Soledade, foi
esse tratamento imposto ao meu irmão, que pela sua fragilidade infantil, sem qualquer opção de defesa, foi obrigado a se submeter, apesar dos meus protestos veementes . Éramos muito frágeis, para que as nossas vozes viessem a causar algum eco, naqueles instantes desagradáveis. O certo é que de nada adiantaram aquelas providências. A criança continuou com as suas crises asmáticas e as tem até hoje. Por causa dessas idas e vindas ao matadouro da cidade, tive a oportunidade de ver o açude. Um grande reservatório de água doce, que abastecia toda aquela região. Não
se tinha o problema da falta d’água, por lá. A água existente era o suficiente, para que não se tivesse o problema de seca na cidadezinha. Eu achava linda aquela obra. O paredão da barragem era bastante largo e seguro. Carros passavam
por sobre ele, sem qualquer problema. O visual era bastante agradável.
O matadouro de que falei algumas vezes, ficava bem perto do açude. Acho, que até para facilitar o problema de lavagem de algumas peças dos bois mortos no local. Os animais abatidos, eram uns dois ou três bois eram o suficiente para atender a toda a cidade . Era, como disse antes, um povoado bem pequeno, menor que Pilar. Por isso, dá para se ter uma idéia do tamanho daquele lugar.
Felizmente, foi bastante curta minha permanência por aquelas plagas, aliás, plagas, não, praga, mesmo Era uma verdadeira calamidade Não fossem as águas tranqüilas do açude Soledade,
nenhuma lembrança relevante teria trazido comigo ; a cidade teria passado em brancas nuvens, como vulgarmente se diz. Daqui, vamos partir para um ambiente bem
melhor. Vem uma nova transferência para o meu pai. Dessa vez, ele e nós, fomos premiados O nosso futuro destino será a brava princesa do sertão paraibano - Patos. Não percamos mais tempo por aqui. Quando
a mudança é para melhor, não há porquê se demorar. “Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer”, disse o compositor Geraldo Vandré,
também paraibano e perseguido durante a Revolução Redentora de 1964. O termo Redentora, foi criado pelos próprios militares golpistas, na ocasião. Bem, isso é assunto para se falar mais na frente; ainda não chegou a hora.
Chegamos a Patos. A cidade bem maior do que as três primeiras. Um centro comercial bem mais avançado, já naquela época. Estávamos no coração do sertão da Paraiba. A cidade era de uma vida bastante intensa, tanto comercial, quanto industrial. Além de possuir boas lojas de comércio, havia duas fábricas de beneficiamento de algodão - Sanbra e Anderson Clayton - duas multinacionais . Beneficiavam o algodão da própria região e de cidades até do Rio Grande do Norte. Meu pai prestava os serviços nas duas fábricas, como classificador da matéria-prima usada nas duas indústrias. Patos, apesar de estar situada em cima da serra do Espinhara, fazia durante o dia um calor insuportável. À noite, as coisas melhoravam um pouco, mesmo o dia tendo sido muito quente. Aqui, o meu pai teve uma oportunidade melhor do que nas cidades anteriores. Senti que a sua dedicação profissional era bem mais acentuada do que antes.
Algumas vezes, fui às fábricas com meu pai. Achava tudo muito interessante. Muito algodão nos armazéns e nos pátios das usinas. Devia correr muito dinheiro na cidade, pois o número de empregados era bem razoável, para a cidade e para época. Uma primeira lembrança de Patos foi um presente que recebi do gerente da Sanbra. Não sei se por gostar de criança, para agradar o meu pai, ou porque era o meu aniversário, a verdade é que na minha data natalícia, aquele executivo me deu um presente, em dinheiro. Para mim, seria mais interessante se fosse um brinquedo, mas foi dinheiro. Uma nota, cujo valor eu não lembro, me foi entregue dentro de um envelope. Vibrei com aquilo. Antes, não sentia qualquer sensação, porque não entendia o gesto; agora, já tinha mais noção das coisas e sabia que com aquele dinheiro, poderia comprar um brinquedinho para mim. Lembra do trenzinho que ganhei no Pilar ? Deve ter sido no meu aniversário Mas não guardei a lembrança
de quem mo deu; só sei que me agradou imensamente Como a importância recebida de aniversário tinha algum valor, pedi ao meu pai, para me comprar um presente, com ela. Prontamente fui atendido; só que aquele dinheiro não deu para comprar o que eu havia escolhido. Mesmo assim, fomos, meu pai e eu, ao artesanato de um cidadão que morava na periferia da cidade, tentar comprar um carrinho de madeira, feito pelo tal artesão. Esse cidadão usava
um tipo de madeira que lhe facilitava, na sua arte. Os carrinhos que ele produzia eram conhecidos de toda a cidade. Apesar de miniatura, tinha a aparência de um carro verdadeiro, com volante, banquinhos, rodinhas, tudo, finalmente, que dava a impressão de ser um veículo verdadeiro Hoje não seria novidade, mas naquela época era algo um tanto ou quanto difícil de se imaginar. Escolhi, naquela fábrica de sonhos um automóvel do tipo Ford, modelo 1940. Era o que havia de mais moderno, possante, versátil e bonito, em matéria de carro de passeio, como chamávamos naquela ocasião. O carrinho tinha cor vinho, brilhante, era lindo. Basta que se diga, que ainda lembro daquela minha frustração Frustração, sim; porque o artesão e meu pai não chegaram a um entendimento, quanto ao preço daquele Ford, modelo l940, de cor vinho, brilhante Foi um Deus nos acuda Botei a boca no trombone e chorei até cansar Coitado do meu pai Não tinha idéia dos preços e me levou, na esperança de me causar uma surpresa, das mais agradáveis possíveis
Não se efetuou o seu intento, sem contar que aquilo me causou um mal tremendo. Eu jurava para mim mesmo, que naquele dia eu voltaria para casa, dirigindo o meu carrinho Ford. Decepção dobrada, minha e do meu pai. Minha, porque não ganhei o presente, do meu pai, porque não teve chance de me presentear com um brinquedo que me deixou impressionado. Foi um vexame Hoje, nem me lembro mais daquele carrinho lindo, de cor vinho, brilhante, cópia fiel do modelo original, que muito marcou em mim e eu não pude comprar Ah Criança se impressiona com tão pouco?
Desse fato, tirei uma lição para a minha vida futura. Antes de falar com meus filhos - Taciana
e Odilon Filho (Mano), a respeito de alguma coisa que queriam comprar, sempre lhes dizia que iria verificar as condições
de adquirir o objeto. Não lhes prometia, tinha medo de uma decepção, por parte deles. Desde cedo, se acostumaram a entender que as coisas nem sempre acontecem como queremos. Isso fez com que eles não ficassem traumatizados, ao menos no que se referisse a brinquedos e presentes. Não é demais salientar, que na medida do possível, sempre consegui lhes dar o melhor, dentro das minhas possibilidades. A nossa casa em Patos, ficava numa avenida, em posição perpendicular à rua que ia até as usinas de descaroçamento de algodão. No final do expediente, eu ia para a janela esperar meu pai. De longe, o conhecia, pelo seu andar meio banzeiro, provocado por falha anatômica dos seus pés. Ao andar, tinha as pontas dos pés ligeiramente inclinados para dentro, causando um movimento característico, pelo qual, há uma certa distância, conseguia identificá-lo. A essa altura, o meu expediente de estudante já havia terminado. Minha mãe já tinha exigido que eu fizesse cópias e até ditados das lições; também no currículo escolar constavam contas
e mais contas. Eu era um estudante aplicado Convém lembrar, que ali, não conhecíamos ninguém e por isso, eu não possuia amiguinhos, com quem pudesse brincar. Era novato na cidade e tudo se tornava mais difícil. A minha mãe, sempre ocupada com os seus afazeres domésticos, pouco se relacionava com vizinhos, ainda mais, que era do seu temperamento uma espécie de isolamento natural. Isso era uma característica “in nata” da sua personalidade. Creio que até mesmo familiares seus, não tivessem entendido essa questão adequadamente, por ter sido, a minha mãe, de pouco falar. Para mim, isso representava uma virtude, já que, quem menos fala, menos erra, segundo o axioma
popular. Adorava a minha mãe, pela bondade, carinho, dedicação, compreensão e amor, que sempre dedicou aos seus filhos. Pouco falava realmente, mas, muito agia, pelo bem da sua família.
Falar de mãe é meio difícil. No meu caso, dá vontade de chorar; portanto, vou mudar de assunto, antes que o pranto e a emoção me dominem. Certo dia, caminhava com meu pai pelas ruas do centro de Patos. Vi um fato que me marcou muito. Tive um dos grandes medos da minha vida. Saía correndo de um determinado bar um indivíduo, com uma faca na mão e logo atrás, cambaleando, um outro, que fora ferido pelo que saíra em disparada. Foi uma visão fortíssima para mim, que não presenciara, até aquele momento, uma cena tão chocante e que bem representava a maldade humana. Fiquei transtornado. Para uma criança, cena dessa natureza é por demais impressionante. Foi um momento difícil, contornado por meu pai, que me fez mil agrados, para que eu esquecesse aquele momento tão chocante. Em compensação, após esse horrendo acontecimento, guardei uma lembrança bem mais interessante, que foi o “batizado” de um piloto de teco-teco, que acabava de receber o seu “brevet” de aviador. Creio que era um dia de domingo. Muita gente fora ao campo de aviação
ver e aplaudir as acrobacias de alguns aviadores e como ponto principal, o vôo inaugural de um novo piloto de avião. O campo era simples, não havia pista asfáltica como nos aeródromos modernos, para pouso de grandes aeronaves. Os hangares eram pequenos, mas suficientes para o abrigo dos pequenos aviões que existiam na região. Muita festa, muita gente e muita alegria na área do pequeno campo de pouso. Afinal, um filho da terra iria receber um diploma não muito comum naqueles
dias, especialmente em terras sertanejas. Ainda hoje, somos considerados subdesenvolvidos, imagine-se naquela ocasião Mas, o certo é que o candidato a piloto fez o seu vôo e mereceu a graduação esperada. Ao pousar com a sua pequena aeronave, após um exercício perfeito, foi cercado por todos que se encontravam presentes. Vivas, aplausos, gritos, muita alegria e finalmente o “batismo” do novel piloto de aeronaves.
O batismo foi uma tremenda novidade para mim. Esperava que seria uma cerimônia com água benta , como acontece nas igrejas Nada disso O jovem piloto estava vestido com o seu uniforme branco e foi batizado com algumas latas de óleo queimado, bem preto. Achei engraçado e ao mesmo tempo apavorante. Não entendia como é que se fazia uma “maldade” daquela, quando o jovem havia pousado tão bem e estava tão alegre Naquele momento, meu pai me explicou que aquele tipo de comemoração era o usual . Devo ter entendido, pois aceitei a extravagância e só guardei mesmo o acontecimento. Não houve maldade por parte de quem estava em terra para ver o acontecimento, pelo menos naquela época, era daquela forma. Foram essas, as lembranças que me ficaram de Patos . Residimos pouco tempo, por lá. Mais uma vez, voltamos à casa dos meus avós. Meu pai ficou na cidade, após nos ter levado, outra vez, ao Pilar, já que minha mãe estava esperando mais um filho.
Meus avós estavam prestes a deixar o Pilar. O meu saudoso tio, Padre Odilon Alves Pedrosa havia comprado um sítio próximo a Campina Grande. Era pensamento do tio Padre levar a família toda para o sítio e assim aconteceu.
JENIPAPO
Chegamos a Jenipapo. Era dia, ainda. O caminhão que transportava a mudança estacionou em frente à casa onde iriam residir os meus avós e os demais parentes que moravam com eles. Havia uma calçada em toda a frente da casa, que ficava meio irregular, porque o terreno era meio inclinado, em declive para a direita, fazendo com que o início da mesma, no lado esquerdo, ficasse quase igual ao chão e ia aumentando a altura, à medida que se prolongava para a direita, chegando ao final, com aproximadamente um metro acima do terreno.
A casa era nova. Cheirava a tinta e cal, como normalmente acontece com as novas construções. Na sua parte externa, estava toda pintada de um amarelo quase creme. As janelas eram verdes e grandes, como quase todas, daquela época. A entrada principal era pela lateral direita da casa. A calçada continuava, dobrando à esquerda, formando agora o piso de um terraço, com alguns degraus, até o chão
do lado direito da casa. Tinha três quartos grandes, uma sala de visitas bem espaçosa , uma sala de jantar bastante grande, creio que imaginada para se colocar uma mesa bem comprida, como se usava na época; já que as famílias, geralmente, eram bem numerosas. Compunha, também, a casa construída para meus avós, uma cozinha grande, onde estava o fogão novo, que funcionava a lenha. Naquele tempo não conhecíamos a maravilha do GLP, gás liqüefeito de petróleo, como hoje. Para se acender o fogo pela manhã, era uma dificuldade enorme. Mãe Filó (minha avó), e tia Iaiá,
sofriam, até que o fogão estivesse apto para esquentar a água do café da manhã e cozinhar o inhame, que normalmente acompanhava esta refeição. Continuando na identificação da casa, tínhamos ao lado da cozinha a despensa, o banheiro e uma pequena área à sua frente, que no meu entender não tinha a menor utilidade. Nos fundos da casa havia um tanque, tipo cisterna, de onde se retirava toda a água utilizada na residência. Há uns dez metros
dos fundos da casa, tio Padre mandou construir o galinheiro. Era uma espécie de quarto, com paus estendidos entre uma parede e outra, para as aves utilizarem como poleiro. Um segundo compartimento, anexo, funcionava,
como depósito; ali eram guardadas ferramentas e alguns outros objetos. Cerca de uns cem metros, mais atrás, existia um pequeno açude que fornecia toda a água potável usada nesta casa e na de tio Né, (Manoel Pedrosa). Sobre esta segunda casa, falarei mais tarde. Ela também teve muita importância na minha vida de criança. Foi lá, por exemplo, que aconteceu o almoço de despedida do tio Biu ( Severino Alves Pedrosa), por ocasião de sua partida, para integrar a Força Expedicionária Brasileira, que iria lutar em campos de batalha do velho mundo, contra a tirania da Alemanha Nazista. Voltando a esse açude, devo dizer que tio Padre mandou fazer uma espécie de calha, que por gravidade, descia a água, até o tanque, que ficava por trás da casa dos meus avós. Esse reservatório era todo cercado de pés de agave, para evitar que os animais o usassem, para beber e etc. Foi um projeto inteligente. Com muita simplicidade, estava sendo resolvido um problema que afeta as residências, especialmente, quando não existe serviço de saneamento. Ia esquecendo um compartimento da casa muito importante. Era um quarto que ficava no final daquela varanda lateral de que falei. Nele, tio Padre repousava, quando vinha aos domingos, visitar a família e verificar como estavam as providências determinadas na semana anterior. Só que, às vezes, este quarto servia também para guardar a safra de inhame. Lembro que quando a produção era grande, o inhame era estocado, e se usava durante meses seguidos. Os frutos, com o passar do tempo, germinavam e criavam raízes, como se estivessem plantados no chão.
Quase em frente à casa, um pouco à direita e distante mais ou menos uns cento e cinqüenta metros estava o estábulo. Comandava este setor, o tio Né. Era dedicado e interessado. Trabalhava, como se tudo aquilo fosse seu. Era um “vibrador” Nunca o vi reclamando do trabalho pesado. Estava sempre satisfeito e muito empenhado naquilo que fazia. Esse departamento estava,realmente, em boas mãos.
Ao lado do estábulo, à esquerda, o cercado, com pasto suficiente para o gado; eram umas seis ou sete rezes e mais dois cavalos. Um, para a cela e o outro para carga. O de cela, servia para as viagens de tio Padre, quando vinha para o sítio e o de carga, trazia, todo sábado, as feiras para as casas de meu avô e de tio Né. Aliás, sobre essas feiras, mais na frente vou falar alguma coisa. Há uns detalhes que devem ser lembrados à guisa de curiosidade, para aqueles parentes que não tiveram oportunidade de vivenciar aqueles momentos tão lindos e ingênuos, que dominavam aquele ambiente. Do lado direito, para quem estava na casa da minha avó, via um terreno de uns quatro mil metros quadrados, todo plantado com pés de laranja-da-baía. Era um visual lindo. Aquelas laranjeiras, todas carregadas de frutos,
me transmitiam um bem-estar indescritível Como era bom, ver e sentir aquilo tudo Lembro, que quando tinha vontade de chupar uma daquelas laranjas, bastava ir até a fruteira e escolher a maior, mais madura e que me parecesse mais doce Um cenário desse, para uma criança, é como se estivesse no paraíso Diga-se, de passagem, que aquele ambiente, parecia,
mesmo, um paraíso Fantástico, é o mínimo que posso dizer de tudo aquilo que eu vivenciei. Há outros parentes que também participaram dessa maravilha; não sei se têm a mesma expectativa que eu Nesse terreno, onde havia as laranja-de-baía, tinha um pé de lima, já perto do açude que ficava por trás da casa de tio Né e tia Clotilde. Recordo, que o meu lanche da manhã era em cima da limeira, escolhendo a mais bonita, para chupar. Veja-se, que era um comportamento bem “sui generis” . Só as crianças criadas em sítio, gozavam aquele privilégio. Eu era uma delas Quanta saudade daqueles tempos Descendo um pouco mais, íamos dar na casa de tia Clotilde, que ficava às margens da estrada, que vinha de Campina Grande e continuava até Puxinanã e outras cidadezinhas do brejo paraibano. A referida casa fora edificada sobre um lajedo.Era razoavelmente confortável. Por estar num terreno, também, irregular, a parte de trás da mesma ficava há uns dois metros de altura, do chão. Da porta da cozinha, tinha-se uma visão do açude, logo atrás e da pocilga. Aliás, a pocilga fora, inicialmente, habitada por lebres; parece que não foi viável esse tipo de criação e tio Padre passou a criar porcos. Havia bastante água do açude ao lado, que por estar num plano mais elevado do terreno, servia muito bem, para a manutenção dos porcos. Agora, vejo que as coisas foram planejadas, de forma a suprir quase todas as necessidades das duas famílias.
No sítio tínhamos laranjas de várias espécies, bananeiras, cajueiros, mangueiras, coqueiros, abacateiros, limoeiros e até uma plantação de café. O cafezal ficava no final terreno, do outro lado da estrada. Já era meio distante. Creio que meu avô nunca se aventurou a ir por lá. Da casa dele, até o cafezal, dava mais de mil metros e o terreno era meio acidentado. Meu avô não se aventurava, já estava com a idade meio avançada, tinha mais de 70 anos. O peso do tempo já começava a incomodar. Para nós garotos, aquilo era uma “farra”; cada qual que se esmerasse mais em peraltices. Éramos eu e os demais primos, filhos de tio Né e tia Clotilde. Irinha, minha irmã, ainda era muito nova e por isso, quando acompanhava aquelas caravanas, normalmente, caminhava junto à minha avó. Lembro que a ida à parte do sítio, onde estava o cafezal era uma coisa meio rara. Por conta disso, as frutas amadureciam e caíam, sem que ninguém as colhessem. Em baixo dos cajueiros, havia uma quantidade enorme de frutas que caíram das árvores e agora estavam se desperdiçando, no chão. Até que poderiam servir para os porcos de que falei a pouco, mas só havia um empregado no sítio, para fazer alguns tipos de serviço, como esse. Era “seu “Severino. Mas ele ficava mais tempo cortando e transportando capim para as vacas e os cavalos. Isso tomava-lhe muito tempo e não dava para desviar para outras tarefas. De qualquer forma, não havia muita necessidade, os porcos se alimentavam muito bem. Comiam muita batata doce cozida, além
de outras rações. Descendo, um pouco à direita, se estivéssemos em frente ao cafezal e de costas para ele, tínhamos um novo açude, no meio de outras mangueiras. Esse era pouco usado. Ficava no setor onde existia a casa do morador chamado João de Brito.Tínhamos pouquíssimo contato com ele. Ficava na sua roça e não participava de quase nada, com referência a nós. Estamos voltando da parte onde estavam os cafeeiros e cajueiros. Atravessávamos a estrada e dávamos com um trecho onde havia muitas bananeiras. Dali, tirávamos todas as bananas consumidas pelas duas famílias. Como se vê, o sítio Jenipapo era bastante pródigo em matéria de frutas. Não tínhamos o menor problema, nesse sentido. Da casa da minha avó, mais a baixo e à esquerda, estava o setor das bananeiras. Era tudo muito bonito. Os campos sempre verdes. Não lembro de ter presenciado secas, como normalmente as temos por aqui. A região era regada pelas chuvas, não sei , se por estar situado sobre a Serra da Borborema. A verdade é que não tivemos a calamidade da seca, como acontecia no sertão. Os dias eram bem agradáveis e à noite, fazia sempre um friozinho gostoso, que às vezes, nos obrigava a usar umas colchas de lã, conhecidas como “colchas parayba”. No terreno ao lado direito da casa e para trás, também tinha mais um açude. Era um lugar mais elevado e fazia fronteira com as terras de “seu Timbira”. A terra era boa e lá tio Padre andou plantando capim elefante, para o gado. Havia um outro pequeno açude, onde às vezes, tomávamos banho. No lado oposto, ficava a continuação do “cercado”, onde estava o açude dos marrecos. Eu achava interessante, quando os patos e marrecos iam tomar o seu banho diário. Desciam
em fila, como se formassem uma tropa adestrada em ordem unida. Eram organizados, sempre um atrás do outro, em fila indiana. Na margem desse açude existia um pé de graviola. Andei comendo algumas vezes. A fruta era saborosíssima. Aqui, ninguém
tomava banho. Como ficava na área correspondente ao cercado das vacas, era um tanto ou quanto perigoso, especialmente, quando tinha uma vaca parida, de bezerro novo. Nessa fase, ela fica violenta e pode atacar quem se aproxime. Não podíamos correr o risco. Assim, creio que descrevi de alguma forma o sítio Jenipapo, do tio Padre. No seu conjunto, era uma ótima propriedade. Tenho grandes e lindas recordações de lá.
Vou, a partir de agora, contar um pouco de alguns momentos vividos no sítio. Já disse que escolhia as laranjas, limas, bananas e cajus que eu queria chupar.Vou voltar no tempo e contar alguma coisa que presenciei e vivi. Não tínhamos luz elétrica. À noite, era na base do candeeiro a querosene, com direito a fumaça e tudo Como sendo criança, eu não gostava da noite. Tinha muito medo; ainda mais, que eu dormia em uma rede, na sala de visitas. Até dormir, sentia uma inquietação muito grande. Tinha medo até do barulho do vento. A pouca iluminação da casa me trazia imagens aterrorizantes, para a minha cabecinha de garoto. Mas, lá para as tantas, eu terminava dormindo. Eu ficava só, na sala. Minha mãe, tia Iaiá, Albertina, Irinha e o recém-nascido dormiam todos no segundo quarto, vizinho ao do meu avô. Tia Lala, (Eulália Alves Pedrosa) dormia só, no terceiro quarto da casa. No quarto da frente, ficava o casal; vovô e vovó. Quanto a mim, estava exatamente ao lado dos dois primeiros quartos, que correspondia ao tamanho da sala de visitas. Nas noites mais escuras, eu achava ótimo, quando o meu avô tossia, lá dos seus aposentos. Aí eu ficava mais tranqüilo, era como se ele estivesse me guardando, no meio daquela escuridão Dava graças a Deus, quando amanhecia. Aquele
pavor das noites escuras me apavoravam
Cedinho ainda, escovava os dentes, pegava o meu copo, com um pouco de açúcar e ia para o estábulo, onde tio Né estava tirando o leite para as duas casas. Leite puro, ainda meio quente, saboroso e forte. Com um copo daquele leite, acredito que eu iria até o almoço, sem precisar comer nada. Era tão forte, que eu não agüentava beber dois copos seguidos. Um caldeirão ia para a casa da minha avó e o outro, para a de tia Clotilde. Daquele leite fazia-se
coalhada, que todos tomavam. Pena é que não sabíamos produzir o queijo. Esse, vinha na feira do sábado. E a feira semanal do sábado, como era? Durante a semana, ia-se anotando o que seria necessário comprar. Fazia-se uma relação da mercadoria
que se precisava e no sábado, ainda muito cedo, “seu Severino” ia para o Colégio Pio XI, onde entregava a lista e esperava a volta do comprador, com tudo que fora encomendado. Havia um item que sempre causava algum problema. Era o queijo de manteiga Meu avô sempre queria um pouco mais e do pedido, davam um “jeitinho” e cortavam do mesmo, alguns gramas. Vovô ficava tiririca com aquilo Realmente não gostava. O problema, é que ele foi criado à base de leite e seus derivados; não seria agora, já com bastante idade, que teria que perder aqueles cem, ou duzentos gramas em cada quilo de queijo a ser comprado, para a sua casa. A verdade é que esse tipo de coisa existia. Talvez,nem tia Clotilde lembre mais, disso
Acredito, também, que o problema acontecesse lá, no próprio Colégio Pio XI, em Campina. Queijo sempre foi caro. Daí, a necessidade de comê-lo em pequena quantidade. Das feiras, só lembro isso. Não tenho outras lembranças que sejam marcantes como essa. Há pouco, disse que havia descrito o sítio; não, ainda faltam alguns detalhes, que me iam escapando. Não falei sobre o “Castelo”, nem sobre outros lajedos que havia por lá. O “Castelo”, era como se denominava a casa onde residia “seu Severino”, o empregado responsável pelo corte e transporte da ração do gado. Era uma casa mais simples e menor do que a tio Né. Ficava situada ao lado esquerdo desta, e fora construída, também, sobre um lajedo. Aliás, essas pedras enormes começavam sob o “Castelo”, passavam sob a casa de tia Clotilde e continuavam descendo, até a estrada, com uns 40 metros de comprimento, mais ou menos. Era uma pedra só. Se britada, daria para calçar muitas avenidas. Como disse, eram uns 40 metros de comprimento, por uns 15 de largura, aproximadamente. Mas, em matéria de pedra, não ficamos por aí. Quem ia da casa de tia Clotilde, para a casa da minha avó, há uns 100 metros de distância, tinha uma outra pedra para subir. Essa, já era próxima do estábulo; logo no final daquele açude, que ficava por trás da casa de tio Né e tia Clotilde. Seguindo-se pela estrada, como quem ia para a “Capela”, havia um outro lajedo famoso. Esse, já era na divisa do sítio, com um vizinho, que não lembra o nome. Não tínhamos quase contato com ele e por isso, não tenho mais a mínima idéia de como se chamava. Aí, também, era um conjunto muito grande de pedras. Juntando tudo, daria para calçar Campina Grande. Tenho a impressão que tudo aquilo foi destruído e vendido para as construtoras. Mas, qual era a importância do “Castelo”. Tinha o seu valor, sim. Ali residia “seu Severino”, como disse antes, mas, também, funcionava como depósito, onde eram guardadas ferramentas diversas, arreios para os cavalos, sementes para plantar e outros petrechos, para uso no sítio.
Sobre o morador do “Castelo” já disse alguma coisa; mas falta uma de fundamental importância. Ele era o “Zorro” do sítio Uma das suas atribuições era exatamente fazer uma ronda, começando pela casa de tia Clotilde, passando pelo estábulo e indo até a casa do meu avô, voltando em seguida, ao ponto de origem. Só que, para essa ronda, ele vestia uma batina preta de tio Padre, com a finalidade de se confundir com a noite e não ser notado, caso houvesse alguém intentando algum mal a qualquer das duas famílias. Essa ronda era ainda cedo da noite. Dormíamos logo que escurecia. Não havia mais nada a fazer; não tínhamos sequer rádio, para ouvir as notícias. Ficávamos, como isolados do mundo. Cerca de sete horas da noite, já estavam todos deitados, para dormir. Sempre que seu Severino chegava à casa do meu avô, dava um sinal, falando alguma coisa. Muitas das vezes, tia Iaiá abria a porta da cozinha e lhe dava um cafezinho. Só assim, ele se demorava um pouco mais, conversando
alguma coisa, com tia Iaiá e mãe Filó e nos deixava mais tranqüilo. Naquele momento, ele representava a segurança Essa, era a participação daquele empregado fiel e amigo, que eu conheci no sítio do tio Padre.
Narrei algo sobre a casa de tio Né e tia Clotilde, mas, não falei sobre os seus filhos, meus primos. Éramos mais ou menos da mesma idade, com pequena diferença de um para o outro. Do mesmo ano que eu, era a filha mais velha do casal, a Neide (Neidinha), em seguida vinham:
Cássio, Nilton, Tarcísio e José. O companheiro mais próximo era o Cássio. Meio fanhoso, agitado, mas, amigo. Por ser
meio agitado, como disse, de quando em vez, era repreendido e até apanhava. Tia Clotilde era muito severa com os seus filhos. Mas, acreditava que estava formando uma personalidade íntegra, para enfrentar o mundo depois. Creio que atingiu o seu objetivo. Esses meus primos são de primeira qualidade; boas pessoas Os demais parentes, já foram mencionados, no início deste capítulo. Não há o que se acrescentar. Eram bem mais velhos, com exceção de mim e de Iris (Irinha), que estávamos, mais ou menos na faixa etária dos meninos de tia Clotilde. Não falei nem da “médica” e nem da “enfermeira” do sítio. Essas funções eram desempenhadas por tia Clotilde Quando o problema era remédio, era ela que assumia a “clínica”. Tanto é, que aqueles purgantes que nós tomávamos para uma série de doenças, eram todos aplicados e “receitados” pela pseudo-médica. E o bom, é que “funcionava”
Isso era o bastante. Que saudade daqueles tempos Como
era bom e saudável
viver num ambiente daqueles Será que hoje, existe, ainda, um paraíso como aquele ? Talvez, nas ilhas dos mares do sul, como cantou o poeta Uma outra coisa muito séria na convivência dessas duas famílias era a freqüência à missa, todos os domingos. O “cabeça” de tudo era tio Padre, daí, não podermos nos furtar ao mandamento da Igreja Católica, de assistir as missas nos domingos e demais festas religiosas. Íamos todos, ou quase todos. Os que ficavam, tinham as suas justificativas. Meu avô, a idade; minha mãe, a gravidez, ou o resguardo e tia Lala, por problemas neurológicos. O restante, de roupinha nova, a roupa da missa, caminhava até a “Capela”, para assistir a missa de Frei Paulo. Era um Franciscano que vinha do convento de Lagoa Seca, para celebrar a missa dominical naquela comunidade. A Igreja ficava cheia de fiéis; vinha gente de toda parte. Era um momento muito importante; ali se encontravam os “compadres” e trocavam idéias sobre os mais diversos assuntos. Era realmente um grande acontecimento para aquela gente simples, boa e honesta que habitava naquela redondeza. No domingo, também, todos nós esperávamos o tio Padre. Vinha de Campina Grande; chegava por volta das dez horas. Ia direto para a casa do meu avô, onde se preparava para caminhar pelo sítio, fazendo as suas observações e dando as novas instruções ao tio Né. Levava sempre consigo uma varinha, com a qual, apontava as coisas e nos passava algum ensinamento, sobre os mais diversos assuntos, geralmente sugeridos por ele próprio. Era um dia de festa para todos nós. Primeiro a missa do Frei Paulo, depois, a visita do tio Padre, aguardada por todos. Lembro que até o meu avô, tinha um certo respeito pelo filho Padre. Quando meu avô ou minha avó se referiam ao tio Padre, sem que estivessem em sua presença, se referiam ao Padre Odilon. Eu achava engraçado esse tipo de tratamento. Só pessoalmente é que eles omitiam o título “Padre”; era, apenas Odilon. Que comportamento respeitoso e nobre, nossos avós nos transmitiram Onde estiverem, recebam a minha homenagem e o meu respeito, por aquele exemplo de fino trato Parabéns Vovô, parabéns Vovó Vocês foram um exemplo para os seus descendentes
A visita do tio Padre também tinha um caráter comercial. Os vizinhos que desejavam fazer alguma transação de comércio, do tipo vender ou comprar uma vaca, moer
mandioca para fazer farinha, ou outra coisa qualquer , aproveitavam a vinda dele, para efetuar o negócio. E nós presenciávamos tudo. Até palpite, às vezes, as crianças davam
não lembro se éramos atendidos Mas que nós metíamos o bedelho na conversa, nós metíamos. Não éramos levados a sério, mas participávamos das discussões Um dos que apareciam sempre, nesses momentos, era o compadre “Quincas”. Proprietário de um sítio próximo e muito amigo da família. Tio Padre tinha muita consideração a esse vizinho. Era homem de aspecto forte e valente. Tio Padre sempre nos recomendava a ele. No que, prontamente, era atendido. Seu Quincas sempre disse que nós podíamos dispor dele e da sua família, para quaisquer necessidades que, por ventura, surgisse conosco. Transmitia uma segurança muito grande para nós, um pronunciamento dessa natureza, vindo de quem vinha
E assim, era a nossa vidinha no sitio Jenipapo, tranqüila e mansa, como acontecia com outros sítios daqueles lados.
DEIXANDO
A
PARAÍBA
Finalmente, estamos nos aproximando da partida do Sítio Jenipapo. Vamos deixar
temporariamente a Paraíba. Meu pai tinha acertado com meu tio Luiz, (Luiz Ferreira da Rocha) e agora, ele pedia exoneração do Estado e ia trabalhar
para um sobrinho, Adauto Ferreira da Rocha, num Engenho de cana-de-açúcar, no Estado do Rio Grande do Norte. Por parecer uma decisão meio apressada, sem que se tivesse muita certeza que a nova empreitada daria certo, meus avós, a título de colaboração, pediram para ficar com a minha irmã Iris (Irinha), no que meu pai acedeu, esperando em futuro próximo, trazer a menina de volta. Isso, porém, não aconteceu. Irinha ficou definitivamente em casa dos meus avós, até que chegou a idade de estudar num colégio que tivesse ginásio e científico. Nessa fase, foi para a casa de tia Rosinete, que não tinha filhos. Serviria de companhia e em troca, recebia a ajuda necessária para freqüentar o Colégio das Damas Cristãs, em Campina Grande. Acertados esses detalhes, rumamos para um novo destino. A meta da família, agora, era iniciar uma nova vida e desta vez, no Rio Grande do Norte. Terra estranha, onde , de parente, só tínhamos tio Luiz.
A nova missão do meu pai era assumir a administração do Engenho “Califórnia”, propriedade adquirida há pouco tempo por Adauto Rocha, seu sobrinho.
Para se chegar a essa decisão, provavelmente, tio Luiz contara a situação do meu pai, ao sobrinho, que de imediato, concordou com a
vinda da minha família para o Engenho Califórnia.
Chegamos, finalmente, ao ponto de destino.Terra desconhecida, outros costumes, outra gente, um trabalho totalmente diferente daquele que meu pai estava acostumado a executar; mas, “alea
jacta est”, ou,a sorte estava lançada, como disse o General Romano Júlio César, quando chegou à Gália. Em chegando ao Engenho, nos instalamos na “Casa Grande” da fazenda. Era uma verdadeira fortaleza. Prédio muito bem edificado, de paredes muito sólidas, digna, realmente, da posição que ostentava na propriedade Havia um contraste enorme, entre a nossa casa e as “casinhas” dos moradores. Estas eram pequenas, geralmente, de “taipa” e muitas delas, sequer eram pintadas. Mas, o problema não era nosso
Isso acontecia, há séculos Culpa do sistema agrário brasileiro. Vizinho à “Casa Grande” existia uma segunda casa, também, bem razoável, porém inferior à que fomos habitar. Mais à frente, nós tivemos que nos mudar para essa segunda casa; isso aconteceu, quando da chegada do meu primo, o dono do Engenho, para morar definitivamente na fazenda. O prédio onde funcionava o engenho, propriamente dito, era igual a centenas de outros que existiam espalhados por todo o nordeste. A maquinaria era bastante conservada e funcionava durante a safra, sem problema de quebra etc. As terras eram férteis e boas para plantação, especialmente, para o cultivo da cana-de-açúcar, que era a nossa principal matéria-prima. O rio Potengi passava em parte do terreno do engenho, valorizando, desta forma, a propriedade, comprada na ocasião, por 320 contos de réis. Valia bem mais, segundo comentários feitos por meu pai, após ter conhecido todo o patrimônio do engenho. Havia muitas fruteiras, nas terras do engenho. Nesse ponto, lembrava um pouco o sítio Jenipapo, que deixáramos para trás. Tinha um gado muito bom, com algumas vacas leiteiras, que nos atendiam plenamente. Não tínhamos problema, com referência a leite. Aqui, também, lembrava Jenipapo. Os moradores eram alegres e de quando em vez, “arrumavam” um bailezinho de fim de semana, para se divertirem. Mas, o forte em matéria de festejo era o São João
Muito milho verde, muita batata doce e lenha bastante, para se armar
a fogueira junina. Era uma época realmente animada no engenho o mês de junho e comemoração ao São João.
Lembro uma dessas festas. A dona da casa, com seus quitutes, procurava me agradar, pois assim o fazendo, agradava o administrador do engenho, meu pai, que estava presente; aliás, ele não perdia de forma alguma essas “brincadeiras” que faziam por lá. Minha mãe
não participava, não sei exatamente por qual motivo, mas tenho uma certa desconfiança. Por não ter certeza e por respeito à sua memória, não vou opinar sobre o assunto. O segredo vai continuar na minha consciência, para sempre
A propriedade distava alguns poucos quilômetros da cidade Macaíba. As nossas compras semanais eram feitas ali, nas feiras livres dos finais de semana. Macaíba era uma cidade pólo,de uma região agro pecuária, de grande importância à época. Além do mais, distava poucos quilômetros da Capital. Para exemplificar, certa vez, viemos a cavalo, trazer uma carga de banana para um “bichão” da polícia, que morava em Natal. Com o empregado do engenho, eu também vim, montado sobre um dos burros que conduzia a carga. Esse tipo de aventura, nos tempos atuais, não seria concebível. Só uma criança tinha condições de enfrentar um desconforto desse. Mas, naquele tempo, não era tão incomum esse tipo de aventura. As pessoas faziam longas viagens a cavalo. Hoje, seria completamente descabido. Nos meus seis ou sete anos de idade, nesta época do Engenho Califórnia, me aprazia efetuar esse tipo viagem.
No engenho havia uma carroça de tração animal, puxada por quatro bois e de quando em vez, eu acompanhava, nas suas idas e vindas, transportando os diversos tipos de material. Eu achava ótimo. Apesar de estar em período escolar, mas no engenho nós não tínhamos uma escola adequada para mim; uma que funcionava, era muito
aquém
daquilo que eu já conhecia. Talvez, por isso, os meus pais não me tenham matriculado na mesma. Veja que, eu já lia, há bastante tempo. Nessa escola, eu poderia até ser professor, apesar da idade. Devo salientar que a minha mãe continuou me ensinando e, conseqüentemente, permaneci sempre atualizado, em matéria de estudos. Devo isso a ela, que me foi muito útil, quando houve a necessidade de meu ingresso na escola tradicional. Mas, eu falava da carroça e mudei
de repente; voltemos a ela. Uma coisa que me chamava a atenção é que o referido veículo tinha os pneus de borracha maciça. Era só borracha, sobre a roda de ferro. Não possuía câmara de ar. Mesmo ficando menos confortável, não corria o risco de furar o pneu e ficar no “prego”, pelo meio do caminho. Esse tipo de roda, fora mais ou menos comum, no início da época do automóvel. Eu não alcancei, mas, tive a oportunidade de ver, através de fotografias do princípio do século. Adauto chegou ao engenho com muita inovação. Na Paraíba, já estavam substituindo os “carros de boi”, como comumente dizíamos, por carros um pouco menores, puxados, apenas, por um único boi de tração. Era uma medida econômica e bastante prática. Ao invés de quatro, atrelava-se apenas um animal. Foi construída a primeira carroça, em Califórnia, para se usar apenas um boi. Nela, foi adaptado “Delicado”. Era um animal muito forte, bonito e muito manso. Mesmo pequenino, eu “fazia e acontecia” com “Delicado”, sem que ele desse o menor sinal de que não estivesse gostando. Foi uma beleza de “trabalhador” Sim, trabalhador. Nunca reclamou de nada e diariamente, era atrelado à carroça, para executar as diversas tarefas, sempre exigindo dele, muita força no “cangote” . Quando saí do engenho, fiquei com saudades da doçura daquele animal. Soube, algum tempo depois, que Adauto o teria aposentado, por tempo de serviço e também por idade. Já era um animal bem maduro, quando o conheci. Naquele gado da fazenda, havia um touro enorme, não lembro mais o seu nome, que às vezes, vinha deitar e descansar em frente à minha casa. O “bicho” mais parecia um elefante Dava uma porção de arrobas. Pois, com toda aquela monstruosidade, quando estava deitado e ruminando, eu montava no seu dorso e o animal não dava a menor atenção à minha peraltice. Acho, que pelo seu tamanho, nem notava que eu, com meus 20 quilos, mais ou menos, estava sobre ele. Recordo-me, que vez por outra, eu chegava a colocar frutas, como manga e banana, na sua boca e ele aceitava e comia “numa boa”. Não lembro de alguém me ter alertado para o “perigo” que eu corria, em agindo daquela forma. Ou eu fazia escondido, ou o animal era realmente muito manso e todos tinham consciência disso Acho que foi exatamente em Califórnia, que eu me “aproximei” mais, dos animais. Em Jenipapo, eu era menor e tio Né tinha muito cuidado. Não deixava que nós nos aproximássemos da “cocheira”. Era válido o seu cuidado; éramos muito pequenos, eu e seus filhos e havia um certo risco
A BOTADA DO CALIFÓRNIA O engenho já estava prestes a iniciar a moagem daquela safra. Já havia sido marcada a data da “botada” . Os últimos retoques e acertos, estavam caminhando para o seu final. As máquinas todas lubrificadas, adequadamente, para que na botada (início da moagem), o Califórnia iniciasse a todo vapor. Eu, como todos que dependíamos do engenho, estávamos ansiosos, por aquele momento. Era um dia de festas no engenho.
Finalmente, chegou a data tão esperada. Ia ter início a moagem. A safra de cana era bastante promissora. Tinha chovido suficientemente e a cana estava aparentando que teríamos uma produção bem significativa, em relação à safra anterior.
Acenderam a caldeira e ligaram todos os motores. O terno de moenda já começava a rolar. A cana ia aos poucos chegando, trazida por burros e carros de boi. Era
um novo espetáculo,
o qual, eu ainda não conhecia. Começaram a descarregar as cargas de cana, junto à moenda e a partir daquele momento, estava sendo iniciada a produção da safra l942/43, do Engenho Califórnia. Tudo era alegria, no semblante das pessoas que estavam nas proximidades da moenda Uma barulheira infernal tomava conta do ambiente, naquele instante. Mas valia a pena. Dávamos os primeiros passos em busca de mais uma safra recorde. Como era natural, fiquei o tempo que pude, observando os movimentos e resultados de todo o conjunto mecânico, em funcionamento. Momento indescritível para mim Não vira, antes, coisa semelhante. Era uma experiência nova, aquela rotação de rodas de ferro, enormes, umas, através de engrenagens, impulsionando outras
e assim sucessivamente, pondo em funcionamento todo o conjunto do engenho.
Vi o caldo da cana
escorrendo para um tanque, que ficava logo abaixo das moendas. Dali, o perdíamos de vista, já que por tubulações apropriadas, seguiam para filtragem, cozimento e finalmente, para o alambique, que era o fim do processo. No alambique, através de um sistema químico, era produzida a aguardente “Dois Tombos”, que era a nossa marca. Saía, ainda, meio morna, por conta do processamento, pelo qual, houvera passado aquela calda escorrida da moenda. Isso levou algum tempo. Não sei precisar, quanto. Mas , finalmente, já tínhamos o nosso produto sendo armazenado no alambique. Daqui, ia para o engarrafamento. O recipiente, do tipo garrafa, de 700 ml, já estava com rótulo e o nome do produto. Aguardente “ Dois Tombos”. Não sei porquê,
essa denominação O certo é que a “branquinha” do Engenho Califórnia, agradava bastante os amantes de um bom aperitivo. Era forte e saborosa, segundo os entendidos no assunto. Mas, voltemos ao setor da moenda. Os burros continuavam chegando, a todo instante, transportando a matéria-prima. Era um vai-e-vem muito grande. Quase havia a necessidade de se controlar o trânsito, apesar dos animais se organizarem em fila indiana, para a
descarga . Tudo funcionava muito bem. Os empregados já estavam acostumados, desde safras anteriores. Não havia muito o que fazer. Esse povo é bastante consciente das tarefas que lhe são determinadas e isso facilita muito, na hora
de se colocar em prática, determinadas ações, especialmente em matéria de trabalho.
Uma das coisas que mais me agradaram, foi o transporte do bagaço da cana moída, para o cercado que ficava ao lado esquerdo do engenho e bem em frente à moenda. Essas máquinas ficavam exatamente na lateral esquerda do engenho. Havia uma abertura bastante grande, por onde saía todo o bagaço da cana que estava sendo moída. No piso, que ficava mais ou menos, há cerca de um metro, abaixo do terno de moendas, era colocado um couro de boi, com duas alças, onde eram amarradas duas cordas, que iriam ser fixadas na canga de um boi de tração. Ao sair da moenda, o bagaço caía sobre o couro, onde ia se acumulando, até formar um “montinho”
de uns oitenta centímetros de altura, mais ou menos. Agora, o mesmo bagaço era puxado e espalhado pelo cercado, destinado a recebê-lo. Como ainda havia ainda alguns resquícios do caldo da cana, o gado era solto no cercado, à tardinha, para comer um pouco daquele bagaço. A maioria desse material, secava, no cercado e serviria como combustível na caldeira a vapor. Além do caldo de cana,que às vezes eu bebia, uma outra coisa que me agradava muito, era ir sentado sobre o bagaço, que estava sendo arrastado para o cercado. E quando o couro voltava, para transportar mais bagaço, eu achava ótimo, pois geralmente, o empregado chicoteava o boi, para que o mesmo voltasse correndo. Nesse momento, a “brincadeira” ainda era mais gostosa Convém se frisar, que só eu podia praticar essa “farra”; porquê o meu pai era o administrador geral do engenho e tio do proprietário. Os outros garotos não tinham esse direito. Como eu não entendia esse problema de classe social, não me pronunciava sobre o caso. Para mim, tudo aquilo estava correto e perfeito. Todos os empregados, faziam tudo, para me agradar. Eles até gostavam, quando eu participava desse tipo
de divertimento. Antes de eu ir para a casa do engenho, minha mãe preparava sempre alguma coisa para eu comer. Como não devia ser “bom de boca”, os empregados aproveitavam e comiam grande parte do meu lanche. Eu não fazia a menor questão. O meu caso, mesmo, era brincar e me divertir, como qualquer criança de sete anos e que goza de boa saúde. Era o que acontecia comigo
Na época da moagem, como essa que estamos contando agora, o movimento de pessoas estranhas ao engenho quadruplicava. Eram compradores de aguardente e de melaço. As atividades de meu pai, na mesma proporção, também
crescia, porque os negócios eram “fechados” por ele. Sobrava pouco tempo para me controlar. Então,eu aproveitava e me soltava, fazendo mil e uma peripécias Minha mãe, não era de sair de casa, portanto, não podia me “vigiar”. Mas, não havia o menor problema. A comunidade era relativamente pequena e todos se conheciam; especialmente a mim, que era a “estrela”, no meio daquela gente
Apesar da minha pouca idade, as minhas ordens eram cumpridas à risca, por todos. Naquela situação específica, quase todas as pessoas da comunidade eram empregadas do engenho; daí, a atenção, o carinho, (talvez, até falso) de todos, que me cercavam. Meu pai era muito querido pelos moradores. Sempre facilitava alguma coisa, ou “quebrava algum galho”, de quem necessitasse da sua ajuda, já que era o homem mais poderoso do lugar O engenho estava moendo e muito bem. Graças a Deus, não houve nenhum contratempo que o fizesse parar. A produção estava dentro do esperado e não existiam quaisquer problemas mais sérios, que viesse prejudicar a moagem. Vamos passar para um outro setor muito importante da fábrica. Vou falar, agora, da Destilaria do engenho. Aqui, era o ponto final do processo de fabricação. A aguardente estava no destilador e dali, era transferida para barris de madeira, onde ficava guardada, até que fosse vendida para comerciantes ou tropeiros. Esses tropeiros, eram vendedores ambulantes, que compravam o produto e saíam vendendo pelas cidadezinhas e povoados próximos. Só tinha um detalhe; eles não emitiam nota fiscal das vendas. Era a famosa “venda no mole”. Mesmo em pequeno valor, causava um certo prejuízo à arrecadação estadual. Mas na época, os meios de fiscalização eram precaríssimos, não havia como se controlar esse tipo de sonegação. Ainda bem, pois do contrário, nós, também, seríamos infratores Um detalhe me chamava a atenção, no salão onde estava o alambique. Todos os que lá chegavam, pegavam uma pequena “cuia” de coco, que ficava permanentemente junta à torneira do alambique, e, a enchiam de cachaça, daquela que forma um “rosário” em volta do recipiente; saudavam o “santo” e bebiam, como se bebe água, dando, em seguida, aquela mal educada “cuspida” no chão Educação e higiene, ali, passou longe, bem distante Eu não entendia aquele gesto Pensava que fosse um comportamento normal, quando, na verdade, não o era Mas, daquela gente humilde, analfabeta e de pouca educação doméstica, não se podia esperar menos do que isso Um certo dia, ainda cedo da manhã, me deu vontade de, também, beber a “branquinha” Apesar de ver que só os adultos praticavam aquele procedimento, julguei, que com os meus sete anos de idade, também, pudesse tomar a minha “bicadinha” Aliás, eu era a única criança que podia entrar no setor da destilaria. Talvez, para evitar que fizessem o que eu iria fazer, naquele exato momento Olhei para os quatro cantos do salão, não vi ninguém. Pensei, é agora, ou nunca Ato contínuo, me aproximei do alambique e seguindo o mesmo ritual, enchi a “cumbuquinha” de cachaça, da boa e virei, de uma só vez, na boca Acho, que nem precisa dizer o que aconteceu, em seguida Subiu, como um fogo, à minha cabeça Fiquei totalmente desnorteado Até a visão, foi prejudicada por aquele ato insano Tentei subir os três degraus que davam acesso à destilaria. Em vão Caí, ali mesmo Fiquei completamente “embriagado” Alguns segundos, minutos ou horas depois, fui levado para a “Casa Grande”, no colo do responsável pela destilaria, que me encontrou desmaiado, no chão, exatamente no local, onde aquelas pessoas cuspiam Que vexame Entrei em coma alcoólico e passei três dias, totalmente inconsciente Aplicaram-me uma série de medicamentos. Até o médico de Macaíba, cidade próxima, veio me socorrer Não sei como não morri daquele “porre” Também, aquela foi a primeira, das duas únicas vezes, que bebi cachaça A segunda, foi quando estava no Exército. Depois eu contarei. O empregado da destilaria foi demitido, por irresponsabilidade No mínimo, ele foi negligente e não estava presente, nas imediações do alambique; deve ter sido o pensamento de meu pai, naquela ocasião Quando voltei ao normal, quase quatro dias depois, o “homenzinho” já não estava mais trabalhando no engenho. Meus pais ficaram preocupados em me salvar e, por isso, não lembro se me repreenderam Acredito que sim. O Problema é que eu era muito “independente”, daí, fazer esse tipo de traquinice, pouco recomendável, para menores de 18 anos
Os negócios do engenho estavam indo muito bem. A propriedade, realmente, vinha correspondendo à expectativa. Meu pai andava muito satisfeito; um problema que preocupava um pouco, é que, não existia uma casa comercial, para atender os moradores. Qualquer compra, precisava que se fosse a Macaíba, cidade próxima. Mas, acostumado com as usinas de cana lá da Paraíba, logo se pensou em instalar um “barracão”, na sede do engenho. Barracão é uma mercearia que atende os moradores de uma determinada propriedade. Adauto optou, no sentido de que essa tarefa ficasse a cargo do seu pai, meu tio Vital (Vital Ferreira da Rocha). Na verdade, tio Vital veio de Santa Rita, cidade perto de João Pessoa e instalou o barracão no Engenho Califórnia. Era um ótimo negócio, já que, não havia comércio concorrente. Assumiu o comando da pequena casa comercial
e se deu muito bem. Foi fácil enfrentar o desafio; ainda mais, que o lucro, nesse tipo de comércio, é de no mínimo, cinqüenta por cento. Dessa forma, só não progride, quem não tem a menor capacidade para ganhar dinheiro O lucro no barracão é sempre fácil e rápido Funciona da seguinte forma: o trabalhador recebe um “vale”, que lhe autoriza comprar aquele valor, em mercadorias. Só que esse tipo de “moeda”, vale apenas, para compras no barracão “oficial” Não tenho certeza, mas, acho que meu pai ficou meio “enciumado” com a escolha de tio Vital, para tomar conta da casa comercial. Em se concretizando essa hipótese, meu pai seria alijado do “Programa Califórnia”. Finalmente, foi na realidade, o que findou acontecendo. Apesar de rentável, a propriedade, como um todo, não tinha condições de manter dois executivos, a nível de “diretores”, que seriam, meu pai e o tio Vital, já que o próprio dono do Califórnia, estava para chegar e se instalar, definitivamente, no engenho, a fim de assumir o comando do mesmo, principalmente, por ser um especialista no assunto. Desde muito novo, Adauto Rocha assumira posição de destaque no grupo Ribeiro Coutinho, nas usinas da Paraíba. Finalmente, meu primo Adauto e toda a sua família chegam e passam a residir no Califórnia. Foi nesse momento, que tivemos de mudar da “Casa Grande”, para a residência vizinha, da qual, falei anteriormente. Ficava, desta forma, muito difícil a nossa permanência no engenho. Mais uma vez, o fantasma da mudança, voltava a nos perseguir Tínhamos nos dado tão bem naquela propriedade e já se começava a pensar em uma nova saída Agora, eu já entendia melhor o problema. Estava com meus 7 anos de idade. Lamentava, deixar para trás, aquela “mordomia” que eu gozava no meio dos moradores da fazenda, aquelas frutas gostosíssimas, as brincadeiras no cercado, quando eu sentava sobre o monte de bagaço de cana e ia sendo puxado, até chegar à moenda Essa brincadeira , para mim, era o máximo Já próximo à nossa saída, como prêmio de consolação, tivemos a oportunidade de ver um Aeróstato, vulgarmente, conhecido, como zepelins. Era um dirigível muito grande, em formato de um charuto, de cor aluminizada. Sobrevoou o
engenho vagarosamente Foi uma visão única. Provocou uma certa apreensão nas pessoas, por causa das notícias da Guerra. Depois dessa ocasião, só consegui ver esse tipo de aeronave, através de fotografias. Vamos deixar o Califórnia. Tio Luiz, que fora a principal figura na negociação da compra do engenho, estava se envolvendo com negócios de algodão, em Baixa Verde, cidade situada na região do Mato Grande, também, no Rio Grande do Norte. Adeus, Califórnia Adeus, gente simples e hospitaleira das margens do Rio Potengi E esse adeus, creio que foi para sempre. Nunca mais, por lá voltamos e nem sei, se voltaremos um dia Trouxe, comigo, uma grande saudade, que nunca esqueci
VOLTANDO A
JENIPAPO Ainda não foi dessa vez, que deixamos o engenho Califórnia. Um acordo entre meu pai
e Adauto
convencionou que passaríamos mais algum tempo, por lá. Tio Luiz estava em negociações, para a compra de uma pequena usina de descaroçamento de algodão, na cidade de Baixa Verde. Não tinha condição de levar o meu pai, naquele momento. Felizmente, ficamos ainda um ano, talvez, ou um pouco mais. A verdade, é que de Califórnia, voltamos para Jenipapo, desta vez para eu ganhar a minha irmã Marinita. E, em 15 de março de 1945, com certeza, estávamos
todos em Campina Grande, com exceção do meu pai, que já tinha seguido para trabalhar com tio Luiz Rocha, no seu novo empreendimento; nesse dia, nasceu Marinita, a única dos irmãos” Alves da Rocha”, a vir à luz, em Jenipapo. Agora, eu já iria completar nove anos de idade. Já estava bem mais sabido e dando, talvez, mais trabalho à minha mãe, aliás, não era bem a ela e sim à minha avó. Minha mãe continuava
naquele problema de gravidez e resguardo. Desta feita, demoramos bem mais, do que das vezes anteriores. O tempo foi tanto, que até me matricularam numa escolinha que ficava ao lado da “Capela”. Capela, era a igrejinha
que citei, quando ainda estava em Jenipapo, antes de vir residir no Rio Grande do Norte. Tenho uma vaga lembrança daquela escola. Parece-me, que eu não era um aluno muito assíduo, não. Talvez por conta da rIgidez com tia Clotilde tratava os seus filhos, eu fosse meio rebelde, querendo, com isso, mostrar que era muito mais “independente” do que eles Na época, aquilo representava “status” para mim. Coisas de criança, que nem ela própria, sabe explicar.
No sítio, quase tudo continuava como antes. O tempo parecia ter estacionado em um lugar qualquer e não chegara a Jenipapo As mesmas pessoas, os mesmos costumes, as mesmas fruteiras e quase o mesmo gado, continuavam compondo o mesmo cenário
do sítio Jenipapo. Na nossa ausência, nasceram alguns bezerros; aí estava a diferença, talvez, a maior de todas. Os meus primos estavam como antes, alguns centímetros a mais na altura; mas “trabalhosos” , na opinião de sua mãe, que não “dava colher de chá” `a turma Tia Clotilde era terrível
Há uns poucos anos eu a vi, continuava ainda muito esperta, apesar dos seus mais de 70 anos; isso, fora no enterro de tio Zé Lins, o dono da “brasília amarela” e que não era do grupo dos “Mamonas Assassinas”
Meu avô já mais cansado, não tinha aquela disposição de descascar cana e fazer roletes para os netos. A vista já querendo falhar e o entusiasmo acompanhava
a lentidão do peso da idade. Três, quatro anos atrás, ele sentava numa cadeira, tipo de balanço, lá na varanda da sua casa e passava boa parte da manhã descascando cana para nós. Era uma maravilha Só servia se fosse cana caiana Era mais doce, mais mole e mais fácil de manipular. O único problema é que minha avó reclamava dos netos, por causa do bagaço, que, normalmente, deixávamos cair no chão da varanda. Varanda essa, que era enfeitada com uma planta do tipo “trepadeira”, que se enroscava num dos pilares de sustentação do telhado da varanda citada.
VOL
ACABA A GUERRA
Meus familiares estavam em festa. Era uma alegria só A Guerra estava para acabar e tio Biu, de lá, do centro de operações bélicas, mandava as notícias mais alvissareiras possíveis. Pena, é que não ficamos, para esperar a sua chegada. Acredito que tenha havido muita festa e muita alegria de todos. Soube alguma coisa, ao respeito, por intermédio da correspondência que meus pais mantinham com os parentes que estavam em Jenipapo. Nessa ocasião, estávamos residindo, temporariamente em Natal. Meu pai se metera a comerciante, montando um negócio, na própria casa onde morávamos. Passou a vender carvão. Em casa, era uma “sujeira” infernal. Ficava tudo preto, por causa do pó desprendido da mercadoria. Esse período foi meio difícil para nós. A situação financeira não era das melhores. A venda de carvão foi uma emergência necessária. No bairro onde fomos morar, ainda não se conhecia o “gás de cozinha” , sendo o carvão, portanto, o processo mais usual, à época, para se efetuar o cozimento dos alimentos, em todas as casas. Conheci Natal nessa oportunidade. Antes, viera apenas a passeio, quando trouxe uma carga de banana para aquele comandante da Polícia. Não tive chance de me deter mais detalhadamente sobre a cidade e suas belezas. O clima aqui, ainda era de guerra. O movimento de militares era muito grande, em relação ao número de habitantes. Havia soldados de vários Estados brasileiros, além de um contingente bastante razoável de americanos, que aqui estavam sediados, como que protegendo a cidade “Trampolim da Vitória”.
Militares americanos, por aqui, na época, não era a menor novidade. Eles tomaram conta da nossa terra e nos trouxeram as suas contribuições. Por causa desses estrangeiros, Natal teve a oportunidade de ver e ouvir a famosa orquestra de Glen Miller, a voz e o charme de Humphray
Boughart e outros nomes internacionalmente conhecidos, naqueles tempos de guerra. Não sei se os nomes acima estão corretos, porque na época, eu era apenas alfabetizado, não entendia nada de inglês Por sinal, hoje, entendo menos, ainda Vi Natal às escuras, algumas vezes. Era um “blackout” provocado pelos militares, para que a cidade ficasse” invisível”
aos Nazistas Pura bobagem Estes, não sabiam nem se nós existíamos Hoje, eu sei, que essa providência, deveria ser para proteger os americanos, que havia às centenas, na base aérea de Parnamirim.
Acaba a Guerra. Foi uma comemoração geral na cidade. Muita festa, muita alegria e muita lembrança desagradável, daqueles quase seis anos de luta, onde milhões de pessoas perderam a vida, por uma causa que nem justificava tantas perdas Vamos deixar Natal, agora, no pós-guerra. Nosso futuro destino será Baixa Verde. Cidade onde se concentrava a maior compra e venda de algodão, no Estado. Ali, estavam as indústrias de beneficiamento de algodão de João Câmara; senador e próspero industrial no Estado do Rio Grande do Norte. Corria o ano de 1947. Chegamos a Baixa Verde, onde meu pai iria trabalhar com tio Luiz, numa coisa que ele conhecia muito bem - algodão.
Tio Luiz comprou dois grandes armazéns, bem em
frente à estação ferroviária de Baixa Verde. O ponto era muito bom, mas, o concorrente era fortíssimo e não havia como enfrentá-lo. Tratava-se do senador de quem falei há pouco - João Câmara. Este, tinha um estrutura formidável no ramo algodoeiro. Possuia duas ou três fábricas
de descaroçamento de algodão e de produção de óleo de algodão. Era exatamente esta “fera” que tio Luiz iria enfrentar. E começou a fazê-lo. O único problema, é que a maquinaria que nós compramos, já estava obsoleta e isso provocou muita dificuldade, até que se começasse a produzir satisfatoriamente. Porém, as dificuldades iniciais, provocaram um certo desânimo em tio Luiz, que estava pensando em partir para outro tipo de negócio. Enquanto os irmãos, meu pai e tio Luiz, se envolvem com a usina de algodão, eu levava a vidinha normal de criança do interior. Agora, já mais maduro, tinha 11 anos, já me comportava de forma diferente. Estudava no Grupo Escolar Capitão José
da Penha, que era, à época, a única escola pública da cidade. Diga-se de passagem, que havia um déficit
muito grande de escolas públicas, na cidade. Afora esse Grupo citado, tinha um embrião de ginásio. Era a escola do Professor Paulo. Um projeto de escola de 2o. grau, com uns poucos alunos particulares. Concluído o Exame de Admissão, no Cap. José da Penha, o aluno fazia uma prova para ingressar na escola do prof. Paulo. Mas, se tornava meio inviável, para aqueles meninos, pois, a mensalidade não era barata, sem contar que era exigido o uso de um uniforme meio caro. Poucos meninos se aventuravam a ingressar nessa escola, já que as famílias, de um modo geral, eram de renda muito baixa. Disse que era um embrião, porque, ali, se cursava apenas o 1o. e 2o. anos de ginásio. Os alunos do prof. Paulo eram muito “convencidos”
Cursar um 2o. ano ginasial em Baixa Verde, se eqüivalia a concluir a Universidade nos dias atuais Por isso, eles se julgavam importantes demais, na cidade Nos desfiles do dia 7 de Setembro, eram os mais garbosos e bonitos. O meu sonho era poder ingressar naquele “projeto” de ginásio e desfilar fardado, de uniforme cáqui, pelas ruas centrais de Baixa Verde Não consegui realizar o meu intento. Fui para uma escola bem superior em todos os aspectos. Era o Seminário Arquidiocesano da Paraíba. Depois eu conto essa passagem. Vamos voltar para a cidadezinha de Baixa Verde. Aqui, tive alguns amigos, como Gilson, Canindé, seu irmão, Zé Pequeno, Rogério e outros, que não me lembra a memória. Gilson era meu compadre de “fogueira”; ainda hoje, quando nos encontramos raramente, falamos um pouco daqueles tempos. Sua mãe era a proprietária da” Pensão
Central”. Uma espécie de hotel, com alguns quartos e que fornecia alimentação aos seus hóspedes. Nessa pensão se hospedava a Diretora do Grupo Escolar, onde estudei, dona Maria Guimarães. Uma solteirona, dedicada por toda a sua vida à causa do ensino. Tinha os seus méritos, era rígida, exigente e controlava o Grupo, como se fosse propriedade sua. Valeu a pena Sofri um pouco para acompanhar a turma. Até ali, os meus estudos foram feitos de forma meio irregular, como tive oportunidade de comentar, um pouco atrás. Mas, finalmente, consegui me sair bem e a prova disso, é que chegando ao Seminário, acompanhei os estudos “pesados”, de lá. Ainda nessa fase de minha vida, porque eu gostava muito de sinuca, pedi ao meu pai que comprasse uma, para mim. Pesquisando, soube de um garoto que possuia uma pequena mesa de sinuca e talvez a vendesse. Iniciei a negociação de compra e ao final, meu pai pagou a alta importância de cinqüenta cruzeiros pelo brinquedo Com ele instalado em minha casa, a minha “liderança” aumentou e muito, no meio dos meninos entre 10 e 14 anos. Como não havia outras opções, os garotos da cidade se divertiam jogando, principalmente. Ainda bem, que naquela ocasião ninguém conhecia as “drogas” que existem atualmente. Do contrário, muitos seriam encaminhados por essa via, de ida e nem sempre, com volta.
Por causa da pequena sinuca, às vezes, se contavam seis a oito garotos, esperando a vez de jogar. Eu mesmo, quase não jogava A minha missão, quase sempre, era funcionar como “árbitro”, nas “jogadas”
dúbias. E, o importante, é que a minha decisão era seguida à risca; não se discutia mais o assunto. O que eu decidia, era do tipo “falou, tá falado”; mas, sabem por quê ? Porquê, se eu me “invocasse” com qualquer daqueles aficionados por sinuca, o mesmo ficava “proibido” de usar a minha casa de “diversão”
Cobrava 20 centavos, por partida jogada. Cheguei a juntar algum dinheiro Com ele, comprei roupas, sapatos, livros e cadernos e me sobrava dinheiro no bolso Acho, que se tenho continuado no ramo, hoje seria bastante próspero Algum dinheiro que levei para o Seminário, ainda foi ganho com o brinquedo da sinuca. As noites de Baixa Verde. Eram comuns, como as das cidades pequenas do interior. Não havia quase diversão, a não ser às quintas-feiras, quando chegava o “cinema”
de Ceará Mirim. É que não tínhamos na cidade uma máquina de projeção cinematográfica; uma vez por semana, vinha um cidadão com o equipamento projetor de uma cidade próxima - Ceará Mirim - e rodava os filmes da época, acompanhado pelo seriado, umas
vezes do” Zorro”, depois, do “Homem de Aço” e outras mais, que não lembro.
Nessa ocasião, estava em fase de construção a nova Igreja Matriz. Quando mudamos para a cidade, as paredes estavam levantadas. Faltava o teto. A Diretora do Grupo Escolar, muito carola, abonava as nossas presenças, como se em sala de aula estivéssemos, caso fôssemos ajudar a transportar
telhas e tijolos para a construção. Não tinha nem o que se discutir; a garotada toda, ou quase toda, se oferecia em “sacrifício”, para prestar aquele serviço. Um ou outro, para se” mostrar”, levava um quantidade enorme
de material; eu, magro e franzino, transportava bem menos. Pensava, o importante aqui, não é servir de “burro de carga” e sim gazear as aulas. Mas não era só eu, que pensava assim; muitos comungavam o mesmo pensamento Vê-se, assim, que os meninos daquela época, eram tão interessados em aulas quanto os de hoje A diferença, é que lá, nós tínhamos os famosos “castigos”, do tipo ficar mais uma ou duas horas no colégio e em alguns casos, até a “palmatória”, de péssima lembrança Aquilo era um castigo Ainda “ganhei alguns bolos” daquele execrável instrumento de terror, quando estudava as primeiras letras. Finalmente foi abolida a prática de “tortura” para os estudantes,
então, fomos todos beneficiados No Capitão José da Penha, além das aulas normais de conhecimentos científicos, também iniciei a prática de alguns conhecimentos que poderiam ter sido evitados, como fumar, por exemplo. Foi no banheiro do Grupo, que dei os primeiros tragos em cigarros. Maldito aprendizado Até hoje, trago o estigma do vício. E, em sendo vício, é dificílimo de abandonar, já tentei, algumas vezes, mas, foi em vão. Fazíamos excursões ao “Morro do Estrondo”, dizendo terem fins científicos, para estudo da fauna e flora da região, mas a finalidade mesmo, era fugir de casa, para fumar na viagem. O dito morro era uma elevação distante uns três quilômetros do centro da cidade, que provocava uns abalos sísmicos na região. Quando de grande intensidade, acontecia de garrafas se chocarem, nas prateleiras das mercearias O mais famoso dos abalos, aconteceu em fevereiro de 1986, quando o sismógrafo da Universidade de Brasília acusou mais de cinco graus na escala, usada para medição dos abalos sísmicos. Como Pilar, Baixa Verde também tinha a sua estação de trem. Como lá, aqui existiam o mesmo movimento, a mesma alegria e a mesma festa, por ocasião da chegada do trem de passageiros. Agora eu tinha mais idade e sentia mais de perto os acontecimentos que cercavam uma gare. A mesma coisa do Pilar. A sala do chefe da estação, o telegrafista, o manobreiro, o sino usado para dar a “partida”, a plataforma apinhada de gente, os vendedores ambulantes, aqui, vendendo tapioca, grude,bolo de goma, sequilho, bolo de milho, laranja e até água. Naquele tempo, pouco se consumia refrigerante. Coca Cola, nem se ouvia falar
Bebia-se água, mesmo E o que era pior, sem tratamento adequado
A cidade ficava situada numa zona meio seca do Estado. Era uma espécie de sertão. Apesar do nome, não havia muito verde por lá. Porém, quando caía uma chuva qualquer, a natureza se transformava toda. E, como a terra, os seus habitantes também Recordo os “banhos de chuva” que tomávamos em grupo. As casas tinham aquelas biqueiras, com cara de leão, etc., por onde escorria a água da chuva. A garotada se realizava nesses dias De “calças curtas”, esse era o traje normal dos meninos da época, saíamos correndo pela cidade, em busca das casas maiores, que tinham um volume de água bastante grande nas suas biqueiras e consequentemente
o banho seria muito mais gostoso Era uma delícia
Às vezes, era uma manhã inteira correndo pelas ruas, quase todas de barro, ruas calçadas eram raras, para aproveitar ao máximo a chuva que caía; a roupa era enxuta no próprio corpo, após a chuva. Aí, uma gripe seria inevitável. Três dias depois, os alunos do Grupo, especialmente os meninos, estavam todos gripados Mas, valia o sacrifício Era bom demais o acontecimento provocado pela enxurrada. Vou me despedir de Baixa Verde. Vou deixar o assunto, com muita saudade. Foi um período muitíssimo agradável, para mim. Realizei-me, aqui, como uma criança feliz
Começo a ouvir os comentários de meus pais, no sentido de que, eu iria para o Seminário. Estranhei a opção. Até aquele momento, nunca me tinha passado pela cabeça a idéia de ser padre. Era uma surpresa do destino e que algum tempo depois, se realizou. Os meus amigos eram totalmente leigos, com referência ao assunto; eu, também, pouco sabia do que me estava reservado. Contudo, teria que enfrentar o problema, que não fora criado por mim e sim pelo tio Padre, que acreditava ser a melhor opção, naquela oportunidade. Adeus, Baixa Verde. Adeus, meus inesquecíveis colegas do Grupo Escolar Capitão José da Penha. Adeus, minha sinuca, que de uma forma ou de outra, me ensinou a ganhar dinheiro; pena que fui pouco aplicado e não aprendi o suficiente, para me tornar uma pessoa rica. Mas, isso é destino, creio eu. Adeus, minhas excursões ao Morro dos Estrondos; finalmente, adeus a tudo de bom que me aconteceu nessa cidade. Parti de Baixa Verde, quase para sempre. Voltei trinta e oito anos depois, por ocasião dos abalos sísmicos, conhecidos em todo o Brasil, pelo noticiário da televisão. Corria o ano de 1986, fui rever a cidade, em companhia do meu compadre
Ivan de Melo, que veio de Niterói/RJ, especialmente, para conhecer João Câmara, novo nome dado à cidade de Baixa Verde. Houve muito estrago, por ocasião daquele abalo de 5 graus, do qual falei há pouco. As casas estavam de paredes rachadas e até aquela igreja que ajudei a construir, sentiu os efeitos do sismo. Parte da torre apresentava rachaduras enormes. Fiquei triste, em vendo a cidade daquela maneira; mas, contra as forças da natureza, quase não há o que se fazer. Remediar, é só o que podemos fazer, em situações como aquela. Um fato pitoresco, ocorrido com a visita de Ivan de Melo e Família, a João Câmara, ocorreu, quando a sua filha menor, Vívian, na época, com uns sete anos, olhou para vários pontos da cidade estragada pelos abalos e disse: “pôxa, pai; rodamos 3000 quilômetros, de Niterói, até aqui, para vermos os abalos e não vimos nenhum, caramba”Recolher