ENTREVISTA DE CRISTINO WAPICHANA
ENTREVISTADO POR JONAS SAMAÚMA
GRAVADO POR JORGE RAINHA
PROJETO “Histórias Indígenas”
ENTREVISTA NÚMERO DOIS
MEMÓRIA INDÍGENA
PROJETO CONTE SUA HISTÓRIA
MUSEU DA PESSOA
TRANSCRITO POR SELMA PAIVA
Revisado por: Jonas Samaúma
P/1 – Muita gratidão por você estar abrindo seu espaço! Queria, primeiro, saber, assim, o lugar que você nasceu e o ano.
R – Eu nasci em Boa Vista, a capital de Roraima, embora meus pais morassem no interior, ela foi pra cidade, onde eu pudesse nascer na maternidade. Nasci e voltei pro lugar de origem.
P/1 – E era uma aldeia?
R – Era uma fazenda do meu pai, afastado da aldeia. Havia aldeias próximas, mas é afastada.
P/1 – Antes de contar como você veio ao mundo, eu queria primeiro que você contasse o que você sabe, um pouco, da história dos seus pais e avós.
R – Minha vó é Wapichana, meu avô Karapiá, que também sai de uma linhagem Wapichana. Minha vó é de 1910, morreu aos 105 anos, em 2015. Meu avô não sei quando ele nasceu, também não lembro quando ele morreu, mas tem bastante tempo que ele morreu. Uns 20 anos, talvez. 15, 20 anos que ele morreu. Uns 20 anos, acredito. E nasceram no Araçá da Serra, na região do Cotingo, hoje é Reserva Raposa Serra do Sol, onde a maior parte dos meus parentes ainda moram. Minha mãe nasceu nessa comunidade, Araçá da Serra e, aos 12, 13 foi pra cidade, porque era comum as pessoas que tinham um pouco de posse pegar indígenas pra ajudar nos afazeres de casa. Então ela foi, nessa começou a ter filho muito cedo, aos 13, 14 anos e meu pai já foi de um segundo encontro e com ele foram 12 filhos. Sete homens, cinco mulheres. Dois homens partiram, aí ficamos cinco casais. Todos tiveram filhos. E meu pai teve mais um casal fora, no Piauí, que ele é piauiense.
P/1 – Você sabe como seu pai foi pra lá?
R – Meu pai foi fugido da fome, da violência dos homens donos de fazenda, né, dos coronéis. E ele saiu - tem umas histórias meio malucas, assim - pra comprar o leite e nunca mais voltou. Passou 49 anos sem dar notícia. Eles eram 17 irmãos. Então, minha irmã tentou contato com a cidade, conseguiu, a família muito grande, terminou encontrando e ele passou... Ajudamos ele a chegar ao Piauí, ainda tinha uns 3, 4 irmãos vivos dos 17, mas todos já tinham partido. E voltou a ter essa ligação. É uma coisa interessante, porque eu sou casado com uma piauiense, que é prima de segundo grau. Então, na minha cabeça me vem uma coisa de ligar a família, uma missão de ligar as famílias. É interessante isso, muito. E interessante a história, porque eu trabalhava na escola de música na época e quando, um dia, eu falei: “Hoje eu não vou trabalhar, não”. Quando foi cinco horas o telefone tocou, eu atendi e era essa minha prima, a Paula, com quem sou casado. Ela anunciou o novo número da casa e eu falei assim: “Você tem uma voz bonita, posso te ligar amanhã?” Ela falou: “Pode” E ficamos ligados. Ela disse que desde esse telefonema ela sabia que iria casar comigo. Ela sentia isso. Passamos anos sem nos falar, quando eu lancei o livro em 2009, A Onça e o Fogo e aí ela demorou a dar resposta, eu falei: “Deve ter casado”. Aí voltamos a nos encontrar, foi em 2010, em 2011 começamos o contato. No terceiro domingo de outubro, que eu iria pra igreja, eu falei: “Hoje eu não vou pra igreja”, aí começamos a conversar no Orkut, se não me engano, mensagem e ela estava meio triste e a partir desse dia começamos a conversar todos os dias, à noite, muitas mensagens. Quando foi final de fevereiro de 2012 nós já estávamos com data de casamento e noivado marcados pra 2012. Sem nos conhecermos pessoalmente. E aí casamos. Estamos sete anos, duas filhas lindas e seguindo a vida.
P/1 – Eu quero voltar lá pra infância. Você lembra como aconteceu seu nascimento? Qual que é a história do seu nascimento? Onde você nasceu? Como foi o parto?
R – Não, nunca perguntei pra minha mãe. Não conversei muito a respeito disso.
P/1 – E quais que são as suas primeiras memórias de infância? Quais são as primeiras coisas que você lembra?
R – Eu tenho a memória muito ruim. Isso é desde criança. Eu tenho pouca lembrança da minha infância. Eu me lembro que nessa fazendola que tínhamos eu entrei no curral e uma garrota lá me deu uma carreira e eu passei rolando debaixo da porteira. Essa é uma lembrança que eu tenho na cabeça. Mas da casa, da coisa...
P/1 – Como era a casa?
R – A casa era coberta com palha de buriti e com parede feita de taipa, que chama, né? Que você põe com barro, vai enchendo e tal, faz um acabamentozinho. Era desse tipo. Então, foi nesse lugar que eu passei até acho que seis, sete anos.
P/1 – Foi seu pai que construiu a casa?
R – Foi. Meu pai era construtor, foi um bom carpinteiro de casa, bom pedreiro, fazia currais também, até carro de boi ele fazia. E minha mãe sempre cuidou da família, dos filhos. Minha mãe era que providenciava as coisas, ele passava um tempo viajando. Ela cuidava do local inteiro com gado, com tudo. Ela sempre foi a cuidadora.
P/1 – E eram muitos irmãos, né?
R - Acho que na época já éramos uns sete irmãos, pelo menos.
P/1 – E moravam todos juntos?
R – Todos juntos.
P/1 – Como é que era a relação?
R – Eu tinha um irmão mais velho que eu um ano, porque tudo era um ano, um ano, um ano, né? Então, um que era mais velho que eu um ano, que era meu parceiro. Esse, tudo que acontecia, estávamos juntos. Então, até as correções que a minha mãe dava, meu pai dava, era junto. Estudávamos na mesma série, fazíamos quase as mesmas coisas e isso foi até a adolescência, chamava Reginaldo. Eu acho que ele tinha um certo distúrbio, assim, ele não era muito rápido com as ideias, não. E ele faleceu aos 20 anos, se eu não me engano, em decorrência de erro de polícia, essas coisas. Foi uma morte meio chocante.
P/1 – Polícia?
R – Teve polícia pelo meio, pessoas pelo meio. É uma coisa que eu não entro muito no assunto, nunca quis ir com mais profundidade no assunto, porque isso termina te trazendo novas... a memória toda volta e, como foi uma coisa que não foi resolvida, não foi uma coisa que ele fez e foi punido por isso, a gente fica com aquela coisa que a justiça não existiu, então a sua tendência é você ir atrás dessa justiça, seja ela pessoal, seja ela... então já foi, partiu, deixa.
P/1 – Então deixa. Você é de um povo Wapichana. Como é que era a sua relação com o povo?
R – Boa até hoje. O povo Wapichana é um dos grandes povos, está entre os 20 maiores. Mas tem, no máximo, 13 mil indivíduos. Parte mora na República Federativa da Guiana e parte mora no Brasil. A maior parte, 60%, deve morar no Brasil. Com a crise na Guiana veio um pouco mais de Wapichanas que moram na Guiana, que é a língua inglesa, vieram no país porque, como moravam no que fizeram uma fronteira, não havia fronteira, então todo esse território é do povo, ele pode ir e voltar, pode ir e voltar, embora tenha essas legislações, né? E eu tenho uma relação boa.
P/1 – Você cresceu no povo?
R – Não cresci no povo. Eu sempre ia visitar nas férias, com a mamãe, se4mpre com a mamãe, mas eu não cresci. Eu voltei, depois, grande, pra fazer trabalhos culturais, de revitalização cultural, até pra mim mesmo, mas isso foi já em 2004, a partir de, sei lá, 30 anos de idade, já tinha 30 e poucos anos de idade. Que eu fixei.
P/1 – Mas você jovem já se via wapichana?
R – Não. Eu sabia que era, no entanto não assumia, pela violência como a gente era tratado. E sempre falava assim do civilizado: “Olha o civilizado”, como se o civilizado fosse a melhor coisa, sabe? E, no fundo, é só gente. Que maltrata gente. Não é porque ele tem uma casa, tem um carro que significa ser... não, isso não traz nada e não significa que seja melhor que o outro. Não é isso. Gente é gente em qualquer lugar. Mas como o conhecimento, tanto da maldade, quanto de tecnologias de outras formas, são maiores, então chegam com essa carga de dominação e continuam dominando. Então, eu não vou falar dessa pessoa, do branco, como uma coisa que fosse superior, que a gente não pudesse fazer absolutamente nada. Eu lembro quando eu trabalhei em borracharia quando era adolescente, o cara me chamava de índio e eu tinha a maior raiva disso. Eu o xingava, até, na cabeça, mas eu achava isso... porque quando falava de índio era aquele ser atrasado, sujo, preguiçoso, era tudo de ruim. Então eu estava, embora na cidade, sendo tratado com toda essa carga suja que a sociedade aprendeu, que o colonizador colocou e vem ensinando que indígena é isso. Nunca que ele é gente, que ele é igual ao outro, que tem a mesma potencialidade. Mas essa carga permanece até hoje e aí eu ficava pensando: “Poxa vida, que desgraçado!” Mas eu terminei, lá pelos 20, 25, mais e falei: ‘Não. Eu sou. Nada do que eu fizer, falar, vai mudar. Eu sou isso. Eu tenho que assumir isso. Eu sou wapichana, agora eu vou atrás”.
P/1 – Mas teve algo que fez você pensar assim: “Eu sou wapichana, eu vou atrás”? Teve algum fator, alguma coisa?
R – Teve porque as pessoas sempre falavam mal do ser indígena. Eu falei: “Tá errado”. Eu tive que provar que não. Como músico, estudei música, aprendi composição e eu comecei a compor. Ganhei festival. Então, os caras que eram distantes, se tornaram meus colegas. Os caras que eram os caras considerados como os caras do som, os donos do tempo da música.
P/1 – Mas você, quando era jovem, o que você lembra? Você ia na aldeia?
R – Ia. Ia algumas vezes na aldeia.
P/1 – O que você lembra da aldeia?
R – Eu lembro das mesmas coisas que acontecem até hoje, de ir pra roça, de apanhar muito caju, porque tinha muito caju. A gente fazia os doces. Ia tomar banho nos mesmos lugares, assim. Ficava com a vovó, ouvia uma ou outra história. Ajudava nas coisas de casa, ia buscar lenha ou ia buscar água. Essas coisas comuns. Comer fruta.
P/1 – Você falou de ouvir uma ou outra história. Eu queria saber o que você lembra de ouvir de história. Quem te contava história?
R – Mamãe contou muita história pra gente. É a que mais contava história. Vovó contava uma ou outra história. Lá tem um igarapé, na comunidade, que tem locais que há muitas pedras redondas, como se fosse uma sobreposta à outra. Por dentro dá pra você nadar. Água bem fria. É um lugar quente pra caramba. E a vovó falava, uma tia também contava uma história assim, que ela viu uma sereia lá. Uma tia viu. Casada com meu tio. E ela conta, assim, com uma força. E que ela teve febre por três dias, quando ela viu essa sereia. A sereia olhou pra ela, depois que olhou pra ela, que ela desceu. Ela era menina, correu pra casa e teve febre por três dias. Bom, o lugar está lá e aí, embora eu tenha 47 anos, eu vou lá, o que me vem? A memória daquela sereia. A mamãe contava a história de umas pedras que andavam à noite. Elas mudavam de lugar. Deixava marca, até. Bom, eu ando no lugar e, quando eu estou lá, eu lembro exatamente das pedras que, quando estou passando, estou lembrando daquelas pedras que andavam ali. Ela contava de uns pássaros que ficavam bicando. Uns pássaros pretos que bicavam, se não fechasse bem a casa, eles podiam entrar e furavam olho, comia gente, tal. Bom, ela falava isso e se teu pai te conta uma história, tua mãe te conta uma história, tua tia conta, tua avó conta, é história real, não tem como. Embora você se torne adulto, o medo pode não ser o mesmo, mas ele ainda está presente, ele vai sempre estar presente. E aí tem um ser que é muito comentado, que chama Kanaimã, Canaimé, outros chama de rabudo, que mata outros seres. É uma entidade. Isso é milenar. Então, essa região toda tem. E todas as vezes que eu vou lá sozinho, que eu ia lá sozinho, eu fui algumas vezes sozinho de moto, quando eu passava no lugar, eu lembrava disso. E eu tinha o cuidado em passar em alguns lugares que eles pudessem estar escondidos. E aí desviava, ficava o tempo inteiro em alerta, olhando pra tudo quanto é lugar. Porque isso é real. Não é uma coisa de ficção. E é isso que eu comecei a escrever. Minha primeira história, que nunca terminei. Que eu pretendo, ainda, fazer um filme disso. E vou terminar, um dia, de escrever e fazer essa história. Mas a gente lembra, a história é isso, a história tem a sua origem, tem seu lugar, tem sua força, tem a sua magia e é isso que move a gente.
P/1 – Tinha alguma coisa deles contarem no fogo também?
R – Não entendi.
P/1 – Tinha uma coisa de se contar história com fogo?
R – De sentar pra... sim, porque não tinha luz elétrica, aí você acende o fogo e vai contar história. Só que as histórias são diversas e pela influência, a chegada dos não indígenas, as histórias se misturam, porque as religiões se misturam. Tudo vai se misturando. Então, chega um momento que você vai ouvir uma história tradicional, que tem lá algum santo pelo meio, alguma coisa nesse sentido, sabe? Tem o sagrado do outro dentro da sua história. Tu sabe que não é, que já é uma influência, mas está lá, está presente lá e aí não tem jeito, as histórias vão modificando. Algumas não. Essa A Onça e o Fogo já não foi uma história que eu ouvi da minha vó. Essa A Onça e o Fogo foi uma história que eu já peguei escrita, de uma pesquisa do Theodor Kock-Grünberg, que passou entre 1911 e 1913. Aí eu a reescrevo. Bom, há coisas que são, de fato, pra ensinar e há aquelas coisas que, de fato, são. Então, há de se achar um equilíbrio e o ponto do real e o ponto do ensinamento. E aí você escolhe... escolhe, não, tem as suas paradas no sentido de: “Bom, aqui eu não posso ir além. Aqui eu posso ir, mas tenho que ir com muito cuidado”. Então, as coisas existem. Esse mundo é espiritual e é além da coisa física. Andam juntos. O espiritual está solto. O físico está mais parado, está fixo. Mas o espiritual, não. O espiritual está o tempo inteiro em movimento.
P/1 – O que você lembra desse espiritual nessa fase de infância, adolescência, além dessa história das pedras? Como ele se manifestou, você vivenciou isso?
R – De ter medo. Eu tinha muito medo do escuro, de enfrentar o escuro. Eu morei em região de matas e de campos. Mas o escuro, à noite, os sons da noite são terríveis, né? E um bicho desse tamanho faz um som que parece que é uma coisa gigantesca, né? E, quando se ouve um determinado som, que você fica em alerta, os velhos percebem ou não, ele vai te explicar o que é e, quando ele te explica o que é, ele vai e conta uma história daquela situação. Então, o que chamam de rasga mortalha, que tem aquele canto esquisito lá, que está trazendo um som de morte próxima, né? O próprio bacurau também tem um som meio chato nesse sentido, que também tem essa vertente que tem alguma coisa de energia ruim próxima. Então, você tem que ter alguns cuidados. Essas coisas espirituais são afastadas com, por exemplo: o casco do jabuti se queima à noite, se você está ouvindo muita coisa fora, que parece ser espírito, especialmente essa parte de Canaimé, você tem que usar o casco do jabuti. Eles se afastam. Você usa pimenta malagueta, se afasta. Então, tem todo um pró e um contra, aquilo que te fortalece é aquilo que vai expelir aquilo que está perto, de ruim. Então, é isso, os mundos andam muito próximos, assim. E o cuidado é necessário.
P/1 – Qual foi a vez, na sua vida, até esse período, que você ouviu uma história que realmente te marcou?
R – De encantamento eu digo que, assim, de te deixar alerta, pensativo, com receio. A mamãe sempre contava dessas coisas do Canaimé. São várias histórias. A coisa das próprias pedras, desses pássaros, tudo isso sempre deixa alerta. Alerta, mesmo, porque ela não conta só a história de que o pássaro foi lá, mas ele pegou alguém. É uma coisa que é espiritual, mas ao mesmo tempo pega uma coisa física, faz, executa em uma coisa física. Então, isso te traz medo, ainda mais quando são crianças. Aí não tem jeito. Você cresce com aquilo. E você vai amadurecendo isso. Quando se torna adulto, aí você começa a fazer as suas próprias reflexões, quando você está adolescente: “Bom, mas medo do escuro por quê? O que o escuro me traz, que eu tenho medo? Depende onde eu vou estar”. Mas no escuro total, onde o silêncio também é extremo, às vezes você sente coisas ali dentro, perto de você, você sente o movimento de vento passando, assim, na pele. Sente uma presença, uma coisa forte, assim. Você sente um peso, sabe? Como é que você vai reagir a isso? Vai ficar quieto? Vai se esconder debaixo do lençol? Vai tapar os olhos pra não ver mais nada? Isso não vai mudar a sua vida. Aí você lembra dos contras, né? Da pimenta, do casco do jabuti, pega no Criador, entende? Aí a coisa vai, você se alimenta. Pra poder enfrentar.
P/1 – Qual foi a cena mais forte que você viu nesse período de você nesse lugar? O que você viu, assim, que você carrega com você até hoje?
R – Eu já era adulto, 19 anos, talvez e eu estava numa área, um garimpo antigo, vindo de uma comunidade, ia pra um outro local, já era um final de tarde, já estava chegando, morava perto de uma cachoeira, morei três meses e eu ia passar por um igarapé, dois, mas um eu sempre tive receio daquele igarapé. Quando eu passava sozinho, nossa! Passava olhando, com a faca na mão. Sempre eu passava ali. E aí, quando eu passei, num pé de Buriti, vários Buritis, mas bem em um Buriti, ele deu um sopro tão forte, assim: vrauuuuuuuuu, nas folhas secas. Eu olhei, cara, não vi nada. E eu já estava com uma faca na mão, só segurando, olhando o tempo inteiro pra ver se acontecia. Foi algo espiritual ali. E não era coisa boa. Então, isso marcou minha vida. Eu sei do local, não lembro o dia, mas eu sei o local que aconteceu, como aconteceu. Então, foi marcante isso, pra mim.
P/1 – E aí como estava se desenhando? Você estava estudando e aí você começou a trabalhar. Seu primeiro trabalho foi em uma borracharia?
R – Basicamente. Foi em uma borracharia. Eu trabalhei com meu pai, como ajudante de pedreiro, depois fui pra borracharia, fui vender esses picolés, chamam de sorvete aqui, mas nunca fui bom de venda. Era muito bobo. Então, até, as pessoas me roubavam, sabe? Um cara, uma vez, me enganou, falou, perguntou: “Isso aqui é lá da sorveteria tal?” Eu falei: “É” “Eu conheço o pessoal lá”. Aí pegou um picolé. Daqui a pouco pegou outro e falou o seguinte: “Quanto tu pegou?” Eu falei: “Eu peguei tanto” “Quanto tem que pagar?” Eu falei: “Tanto” “E quanto tu tem aí de dinheiro?” Eu falei: “Tanto” “Faz o seguinte: tu me dá esse dinheiro, que eu vou lá pagar pra você”. E aí eu dei a minha única grana que eu tinha pro cara. Não sabia que o cara estava me roubando, não tinha nem ideia de que ele estava me roubando. Aí, quando eu cheguei na sorveteria, eu contei essa história, a mulher falou: “Olha, faz o seguinte: pega esses mil cruzeiros, esconde, porque na hora que o fulano vier pra você acertar com ele, ele vai te mandar embora, ele não vai te dar nada. Então, guarda esses mil cruzeiros, pra você levar pra sua casa”. E foi isso que aconteceu: o cara foi conferir, eu contei a história, ele ficou puto, esculhambou e me mandou embora. Então, por quê? Porque o meu mundo não é o mundo de violência, não é o mundo de enganar o outro. É o mundo que a palavra existe, tem força. Não é o papel. Aquilo que é, é. Tem umas coisas assim incríveis, sabe? Mas eu nunca esqueci dessa cena. Eu não lembro do rosto do cara, era um rapaz. Só sei disso.
P/1 – O que me chama atenção, que eu queria que você falasse é que no seu mundo a palavra tem poder, o que é, é, como isso foi passado pra você?
R – Foi passado pela minha mãe, pelo meu pai, pelos meus avós, pelos meus tios. E, na cultura, no início de tudo, isso não estava pronto, a planta não estava pronta, o mundo não estava pronto e ela foi feita, criada a partir da fala, da palavra, do som, que era puri, magia. Até o mundo ficar como ele é hoje, com o rio certo, com a pedra dura, com a árvore fixa, assim. Não era nada disso. Então, a história conta isso. Então, a palavra vale isso. Não é a coisa da escrita. E eu aprendi assim. Aprendi o respeito ao mais velho, até hoje. Eu vou conversar com um senhor, às vezes tem alguém que vem conversar comigo, um senhor e eu fico conversando muito tempo e às vezes eu estou correndo e eu não sei falar: “Você me desculpe, mas eu tenho que ir embora”, porque é um velho. O velho, pra gente, tem essa referência da verdade, da sabedoria, dessa ancestralidade que mora dentro da gente, que guia a gente. Então, tem toda essa força. Não é o que a gente vê aqui, fora. Você vê a galera aqui mentindo o tempo inteiro, você não acredita.
P/1 – E você ficou lá até quando?
R – Onde? Eu fui pro mato, pra essa fazenda, fiquei até sete. Meu pai vendeu, fomos pra cidade, ficamos até uns oito, nove anos. Aí fomos para o sul do estado de Roraima, que é a floresta amazônica. Lá eu devo ter passado aí uns três, quatro anos, que foi onde aconteceu essa história do O Cão e o Curumim. Esse cão existiu, essa caça existiu e foi um momento marcante na vida, que eu lembro bastante da gente fazendo roça, de fazer farinha, de ir pro mato caçar com cachorro, pescar. Meu pai não estava, tinha que ir com nossa mãe. Iam uns cinco, três irmãos mais velhos. Então, isso ficou muito forte na minha cabeça. Esse momento, nessa floresta amazônica. Lá eu conheço a castanheira, eu conheço as outras árvores.
P/1 – Tinha samaúma lá?
R – Tem. Todo igarapezinho, todo rio tem a samaúma.
P/1 – E você já viveu alguma coisa na samaúma ou em alguma outra árvore, forte, além daquela?
R – Tem uma árvore que eu não sei o nome, já conversei com meus irmãos pra ver que árvore era aquela. Uma árvore gigantesca, eu acho que é a mais alta que se tem na região amazônica, que não é a sumaúma. É uma árvore que tem as raízes, que vem lá de cima. Cinco, seis, sete metros. Faz tipo uma tábua, que você pode cortar e fazer uma tábua dela. Chama de capenga, capeba, capemba, se não me engano e ela é tão gigante, ela chega ser tão gigante, que ela chega aí tranquilamente, uma distância de uma pra outra, de sete, oito metros. Ela é gigante, essa árvore. E, na nossa fronteira com outro vizinho, tinha uma dessas. E, no meio da outra roça, tinha uma outra maior ainda. Essa maior caiu com fogo. As duas o fogo derrubou. Imagino que aquela árvore era muito velha. E nessa árvore da fronteira, um dos meus irmãos, minha irmã estava chorando muito, eu estava em casa cozinhando, meu pai tinha saído, tinham ido para o mato e eu tentei ir atrás, falei: “Não, vou beirar aqui e vou dar uns gritos pra eles”. E tinha muita onça lá. E nessa capemba podia se esconder. E, quando eu fui passando perto dessa árvore, eu vi um bicho lá. Eu não sei se era um bicho preguiça, não sei o que era, mas foi um susto tremendo e eu voltei correndo pra casa. E lembro que também uma coisa marcante foi que eu sempre gostava de pescar no final da tarde, ia pra beira da estrada, tinha um bambueiro, eu ficava pescando. Sempre pegava traíra ou Juju alguma coisa assim. E um dia eu estou pescando e começa a fazer um barulho: xiiiiiiiiii, parava e daqui a pouco... aí eu olhei pra trás, era uma cobra, cara. Ela estava descendo a piçarra e desde esse dia eu nunca mais voltei nesse lugar pra pescar. Normalmente eu ia sozinho. Há um outro momento que marcou muito minha vida, que foi a minha mãe ter saído durante o dia pra ir atrás de alimento, comprar alimento a quatro quilômetros e ela demorou a voltar. E começou a anoitecer e ela não tinha chegado ainda. Daí eu chamei esse meu irmão um ano mais velho e falei: “Cara, vamos ter que buscar a mamãe. Somos os homens da casa. Vamos deixar a nossa molecada fechada aqui e vamos atrás da mamãe”. Aí eu peguei uma vara com uma ponta, ele pegou uma outra vara com uma ponta porque, se vier uma onça, dá uma paulada nela. Fomos nós dois. Sem lanterna, noite escura, pegamos a estrada. Encontramos minha mãe três quilômetros, quase três quilômetros longe de casa. Umas oito horas da noite, sozinhos, cara. Sozinhos. Imagina a alegria da minha mãe em ver a gente, cara! Isso é uma coisa...
P/1 – Onde ela estava?
R – Ela estava na estrada, voltando, mas ela estava a três quilômetros ainda. Nem ela tinha lanterna, nem a gente. Mas imagina isso, cara. Que cena bonita, que coisa extraordinária! Dois meninos, tinha o quê? Talvez nove anos, dez anos, indo buscar a mãe. Isso é forte, isso é bonito. É uma cena forte da gente que eu lembro.
P/1 – Era no meio da floresta?
R – Era a floresta amazônica pura. Chegamos lá, tinha muita onça, ouvia onça sempre, toda noite a gente ouvia a onça perto.
P/1 – E essa coisa sua da arte, cara, veio de onde? Quando que você começou a fazer arte?
R – Quando eu estava nesse lugar, nessa floresta amazônica, no sul do estado, meu pai tinha um violão e eu comecei a pegar no violão. Quando ia pra roça pegava o violão, mas não sabia nada. Ele também não tinha paciência de ensinar. Eu lembro quando eu ia pra mata, um vizinho sempre chamava: “Vamos numa caçada hoje, vamos embora”. Aí a gente ia caçar, eu ficava assobiando bem baixinho, fazendo improviso, que eu sei o que é improviso hoje, uma música que eu não sabia na época. Então, eu sempre tive um olhar diferente da minha família. Dos irmãos todos. Então, sempre observei mais. Eu nunca fui de chegar em um lugar pra não olhar, dar uma geral antes. Eu sempre fui muito ligado a isso, muito atento. Embora eu seja desligado pra várias situações, mas eu mapeio um local quando eu chego.
P/1 – E aí você começou a pegar o violão e fazer...
R – Fazer alguns sonzinhos. Aí voltamos pra cidade. Foi a época que eu fui pra borracharia, minha mãe foi pra Igreja Batista Regular e eu comecei a pegar o violão, vendo as pessoas e comecei a tocar. Eu pedi pro meu pai comprar um violão e ele falou: “É o seguinte: eu posso conseguir o violão pra ti, porém eu vou pagar a primeira parcela e você paga o resto. Você se vira, capina os quintais”. Eu paguei capinando quintal, meu violão. Aí eu toquei na igreja bastante tempo. E uma certa vez eu fui pra um garimpo, tinha uns 20 anos, por aí e falei pra um cara: “Meu irmão, eu até sei tocar uma viola”. Ele ficou rindo de mim. Eu falei: “Não, sério, eu toco um pouco”. Não tinha violão pra provar. Ele ficou rindo, eu falei: “Tá bom”. Fiquei pensando: “Eu vou voltar pra casa, não vou vir pra cá mais, não. Vou estudar música”. Voltei pra casa e fui na escola de música e estudei música. Estudei por dez anos, dei aula por dez anos. E comecei a participar de festivais, com essas composições, coraizinhos, essas coisas, fui testando, fui me testando. Só que meu interesse também foi por outras artes. Não foi só a coisa da música.
P/1 – Mas com a música, nesses dez anos, qual foi o momento que você sentiu: “Nossa! Isso vale a pena”?
R – Quando eu fiz uma primeira música. A terceira música. Passei um ano e três meses fazendo a terceira música. Sempre muito exigente. Eu passei um ano e três meses fazendo uma música. Essa música ganhou o festival, mudou inclusive o regulamento do festival, porque só aceitava língua portuguesa e eu fui conversar com o pessoal. Fui conversar, não, passei no Sesc, era quem estava fazendo, queria fazer uma mostra de música do estado e tal e a moça falou pra mim: “Você não vai se inscrever, não, professor?” Aí deu aquelas loucuras que dá, te aparece rapidinho do nada e eu falei: “Não, não vou fazer, não” “Mas por que você não vai fazer?” Eu falei: “Porque eu sou wapichana e vocês estão no nosso estado, são de fora, querem descobrir a musicalidade do nosso estado, mas você coloca língua portuguesa e você tira todos os indígenas, as nove línguas que tem aqui, deixa fora. Então, por isso, eu não vou fazer”. Aí ela ficou pensando e, de fato, era isso, mas eu não tinha ideia, não planejei, não pensei. Isso foi e saiu. E aí, três dias, ela me liga toda feliz: “Agora você pode fazer a inscrição”. Fez uma errata e colocou, em cada regulamento, aceitando língua indígena de Roraima. Aí entrou eu, um outro indígena e, quando eu coloquei essa música e uma outra instrumental, eu falava pros meus colegas de música, meus alunos: “Coloquei duas músicas lá. As duas irão passar, vão ser apresentadas, mas essa aqui vai ganhar o festival”. Ganhou o festival. No entanto, quem ganhava o festival, ia pro Maringá, que é o nacional, um festivalzão, 40 anos já tem. Não avisaram quem foi que ganhou, me avisaram na surdina, aí compraram a passagem e falaram: “Você vai”. Acho que nem em jornal saiu. Porque eu era indígena. Imagina indígena ganhando festival! Muito louco, né? Não dá. O estado anti indígena. Mas foi isso que aconteceu. Eu não tinha ideia do que significava isso, de não sair no jornal, de nada. Eu não tinha ideia. Aí fui. Cheguei lá, o festival também só língua portuguesa. Eu toquei a música e falei: “Essa aqui é uma música indígena. Bonita, vocês viram. Mas o regulamento aqui não permite que essa música indígena, na língua indígena, possa ser cantada” - e o Brasil, na época, tinha 180 línguas – “e vocês estão tirando tudo isso, deixando uma única língua. Não está certo”. Dois anos depois o regulamento mudou. Hoje o festival continua com o regulamento mudado, aceitando língua indígena brasileira.
P/1 – Aí você mudou o regulamento?
R – Mudou o regulamento. A música mudou.
P/1 – Você fala que a música era em Wapichana, mas como você aprendeu a língua?
R – A tradução eu pedi ajuda de quem sabia. Eles me ajudaram. Eu sei pouca coisa wapichana porque minha mãe não me ensinou. Minha vó falava com ela wapichana, mas ela respondia em português. Então, eu aprendi pouca coisa: bom dia, boa tarde, olá, você, essas coisas. Mas o fato é que essa música ganhou dois prêmios: esse lá e ganhou também em Maringá. E aí eu fiz mais sete músicas. Mais sete, não. Eu acho que eu tenho sete músicas. Cinco prêmios em festivais. Aí eu parei de fazer música. Fiz uma tem dez anos, que eu fiz a última. Aí não voltou mais. Preciso fazer pro O Cão e o Curumim, porque essa história vai ter continuação. Eu quero finalizar com uma música. Mas a música tá voltando agora. Tanto é que eu estou aprendendo músicas novas, pra fazer o sarau. Então, estou sentindo que está voltando, esse momento musical.
P/1 – E aí você disse, por exemplo, no começo, estava falando que o cara te chamava de índio e você se sentia ofendido, mas nesse momento você fala, já, do indígena, assumindo isso.
R – Não. Eu não assumia isso.
P/1 – Como foi que você começou a assumir?
R – Isso eu era adolescente. Ele falava índio, eu ficava puto, mas não podia fazer nada. Não podia nem falar. Por respeito, por ele ser mais velho. Eu só fui reclamar isso com mais de 25 anos, quando eu comecei a ler livro, mesmo; comecei a conversar com outras pessoas. Eu falei: “Tá, eu sou”. Aí eu coloquei Wapichana, era Cristino Wapichana. Aí virou o nome. E, diga-se de passagem, é um dos nomes mais fortes da arte de Roraima hoje. Da literatura é o nome mais conhecido, o nome mais premiado da história do estado. O nome mais premiado da história. Não existe. Só existe um prêmio decente de uma outra autora, que fez com mais sete pessoas, ilustradora inclusive, que foi o Jabuti. Mas esse foi o primeiro Jabuti de Roraima. Fui o primeiro a subir no palco pra pegar o Jabuti. Então, o primeiro nome de Roraima a ter o Jabuti. Nunca Roraima tinha entrado no cenário nacional e internacional da literatura. Ele só entrou por causa do livro. Foi através de mim que ele entrou, que participou de feiras grandiosas. Participação oficial.
O Daniel Munduruku sempre organizou encontros de escritores entre os indígenas, que acontece no contexto do Salão do Livro Infantil e Juvenil, que acontece no Rio todos os anos, que é feito pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a Fnlij. Aí, em 2005, eu conheci o Daniel, em 2006 eu já comecei a ajudar e eu conheço o Ailton aí. É a primeira vez que eu venho participar de um evento indígena, de fato, de nível nacional. E em 2008 eu mudo pro Rio, pra ajudar o Daniel a organizar. Então eu conheci o Ailton, acredito que em 2006, 2007, nesse encontro. Foi por aí. E aí viramos colegas. Sempre, todos os anos, estavam com a gente. Aí viramos colegas, assim.
P/1 – Qual foi o indígena, na sua trajetória, que mais te abriu caminho, tanto de ideia, quanto de percepção no trabalho? E dessa questão de você se ver e de inspirar o que você faz?
R – Não teve alguém que teve todas essas coisas juntas. Mas o meu parceiro, amigo, Daniel Munduruku, é a pessoa com quem eu mais tenho tido envolvimento. De conhecer o mundo, de participar das feiras literárias, de portar, de uma certa maneira, em alguns lugares e tal. Conselhos tive vários: Ailton; Marcos; Álvaro; o Moura, que partiu, era extraordinário. Um moço que a gente ouvia. São as minhas referências, mas se hoje eu sou um autor, Daniel tem parte nisso. Não pela... vamos dizer assim... poética, por tudo isso. Não. Mas em entrar no mercado. Dizer: “Funciona assim o mercado”. Isso Daniel tem parte. Revisão de texto, ele tem parte. Essa sensibilidade poética, isso aí ninguém ensina pra ninguém.
P/1 – Mas até esse pedaço onde você está lá, já, ganhando o prêmio Jabuti, você foi capinar pra comprar o seu primeiro violão.
R – Tive que limpar quintal dos outros pra pagar meu violão.
P/1 – E aí, como que você tocou sua vida daí em diante? Você ficava tocando, o que mais que você fazia?
R – Não, depois eu fui ser pedreiro, fui ajudante de um cara muito tempo, do Marcos Sobral, meu amigo até hoje. E aí, depois de um ano ou dois anos, já sabia fazer essas coisas, aí um dia ele que me lembrou essa parada, disse que eu cheguei no trabalho e falei: “Pô, Marcos, é o seguinte” – ele mandou eu fazer massa e eu falei: “não vou fazer mais massa, não, porque reboco eu sei fazer, sei levantar tijolo, o que eu vou ficar fazendo massa? Então, a partir de hoje, eu vou ser pedreiro”. Ele olhou assim e falou: “É mesmo?” Eu falei: “É” “Tá bom, então vamos fazer o seguinte: me ajuda a preparar essa massa aqui e aí tu vai rebocar aquela parede, vai botá-la no prumo, vai rebocar”. Beleza. E aí eu fiz a massa com ele e fui rebocar a parede. Reboquei a parede. E aí eu virei pedreiro, nesse dia.
P/1 – E como foi sua vida de pedreiro?
R – Não foi muito boa porque eu sempre achei, sempre vi como arte. Então, se o negócio tinha que ser quadrado, tinha que ser bem quadrado. Se ele tinha que ser arredondado, tinha que ser simétrico. Tanto um, quanto o outro. Tinha que ser medido. Então, essas coisas demoram, quando você faz com esse olhar. Aí eu não conseguia ganhar grana. Fazia bem feito, mas não conseguia ganhar grana. E era um trabalho muito pesado. E aí eu falei: “Não, não dá, não, vou pra arte”. Eu fui pra arte. Eu vivo de arte já tem 20 anos, pelo menos.
P/1 – Você tinha quantos anos quando tomou essa decisão de ir pra arte?
R – Já estava com 25, tranquilo.
P/1 – E aí você foi pra onde?
R – Pra música.
P/1 – E você ganhava dinheiro como?
R – Eu dava aula particular, dava aula na escola de música. Depois eu cuidei de um grupo de música chamado Grupo Macunaima, música regional. Depois entrei na literatura. Depois estudei cinema no Rio, direção. Mas na literatura eu me achei.
P1 – Foi como que você chegou na literatura?
R – Foi a partir do Daniel, da publicação e eu comecei a fazer falas, a contar histórias, a escrever, a pensar nas histórias com mais profundidade e aí saiu Boca da Noite já nessa outra visão, de que a história tem a sua origem, as suas funções, de ensinar, de encantar, de carregar toda uma memória, de carregar com ela encantamento, carregar milagres, carrega essa força que move a gente. Ela tem a função de dizer como tudo foi feito: esse lugar, essa câmera, microfone, a minha roupa, tudo. Essa roupa tem uma história dela, a partir de que a Sandra comprou, pra gente fazer o trabalho da Ceuci, a Velha Gulosa, no próximo domingo. Essa é a história que eu sei, mas até chegar a esse desenho, alguém fez, pensou, alguém costurou, cortou. Tudo isso é uma história, desde o algodão. Então, cada um tem uma história. Então, a história nos localiza, nos diz como tudo existiu. Então, a partir desse momento, é que eu comecei a compreender que a história, com toda essa força, magia, é dona de si. Por isso que algumas histórias não deixam a gente contar. Não deixam. Simplesmente não deixam. A história que ainda não foi materializada em livro ou foi materializada numa contação, por alguém, que estão por aí, têm a força, o direito de achar alguém que possa materializá-la. Então, as histórias, a maioria não é aquela que a gente concebe: “Vou conceber uma história”. Não. Ela vai se entregando.
P/1 – Qual foi a primeira que te pegou?
R – Que marcou, assim, essa, Boca da Noite.
P/1 – Como foi que ela veio pra você?
R – Há um concurso chamado Tamoios, pra escritores indígenas, que é da Fnlij. Todos os anos tem. Eu ganhei com A Onça e o Fogo em 2007. Em 2014 eu falei pros meus colegas, que alguns ganharam também: “Olha, vamos ver como nós estamos como autores”. Cada um pode inscrever dois títulos no concurso. Beleza. Combinamos. E eu estava querendo escrever uma história que falava sobre cantos e cores de uma pesquisa, mas havia uma morte de um menino que eu não resolvia. Eu estava com três meses naquilo, se eu estou com aquilo, não escrevo nada. Faço só isso. Pensando, amadurecendo, esperando. E um dia cheguei do Sesc de Três Rios com dois autores: o Tiago Hakyi e o Roni Wasiry, ambos com mais de seis livros cada um e falei: “E vocês, se inscreveram?” “Colocamos, cada um, dois”. Falaram os nomes e eu falei: “Cara, eu ainda não escrevi. Semana que vem está terminando o prazo, mas eu vou fazer o seguinte: amanhã, domingo, vamos fazer um churrasquinho, vocês podem beber à vontade” - eu não bebia, quase ou ainda – “e quando for oito horas da noite eu vou entrar no quarto pra parir a história que vai ganhar o concurso”. Falei sério. Como eu estou falando aqui. Eles não acreditaram. Aí brincaram: “Vai ser história tal”. Eu falei: “Tudo bem”. Passamos o dia, quando foi oito horas da noite falei: “Chegou o momento. Eu vou entrar no quarto pra parir a história que vai ganhar o concurso”. Até então estava ainda Cantos e Cores, mas eu sabia que ia parir. Então eles falaram: “Não, quem vai ganhar é o fulano de tal”. Então eu falei: “Beleza”. Quando eu empurrei a porta o curumim chegou com o pai. Seis anos. Ele falou: “A Boca da Noite”. Eu só virei pra eles disse: “A Boca da Noite, não esqueçam. A Boca da Noite. A Boca da Noite”. Brincaram, entrei, fechei a porta, liguei o computador. O moleque ficou comigo de oito à meia noite. Eu fui dormir, quando foi quatro da manhã, o moleque retornou, me acordou, liguei o computador, fomos até nove da manhã, saiu a história da Boca da Noite. Não alterei palavra, não coloquei palavra bonita, não fiquei mudando depois, pensando depois. Não. É o que está aí. A única coisa que teve foi a revisão ortográfica e não é minha parte, isso é do outro.
P/1 – E quem era esse curumim?
R – Cupai.. Eu considero o menino espiritual. Foi o menino espiritual que chegou e falou.
P/1 – E aí ele te contou a história?
R – Contou a história.
P/1 – E quem você acha que é esse menino?
R – É um menino. Um menino espiritual.
P/1 – Ele já te contou outra coisa?
R – Não.
P/1 – Só aquela noite?
R – Só veio pra contar essa.
P/1 – E como foi que Boca da Noite cresceu, virou livro?
R – Essa é uma história muito complicada. Esse livro, essa história não ganhou concurso, mas ela ficou como menção honrosa. E um outro, Edson Krenak, ganhou. O Edson Krenak era mestre em literatura. Quem eu sou? Peão. E aí fui procurar editora, terminei achando uma editora que até faliu a parte infantil, foi o Rovelho e eu falei: “Rovelho, me dá um dinheiro adiantado, que a vida tá dura”. Aí me deram dois paus. “Taí o texto” “Vamos procurar agora um ilustrador à altura. O texto tá muito lindo”. Falei: “Beleza”. Aí fomos achar, pensaram na Graça Lima, aí vieram falar: “A Graça é três anos” “Eu espero a Graça”. Eu nem a conhecia direito, nem sabia do tamanho dela, mas eu tinha alguma coisinha dela. A Graça teve um evento no Rio, ela mora no Rio, eu morava lá nessa época, acho que era 2015, 2014 pra 2015, ela foi fazer um evento na Biblioteca Nacional. Eu falei: “Eu vou lá conhecer a Graça”. Eu vi assim, só de longe, né? Eu fui lá, terminou, eu fui cumprimenta-la, cara, ela veio, me cumprimentou, deu um abraço e falou: “Olha, que história despretensiosa, bonita. Essa história não foi feita pra... concurso, não... editais, foi uma história livre”. Eu falei: “Foi, foi livre” “Não se preocupe, não, que eu vou ilustrar”. Ela bateu no meu ombro. Vinte dias depois, ela tinha assinado o contrato, abaixou o preço, deve ter abaixado o preço e o livro saiu em três meses, como está aqui e aí a editora recebeu e falou: “Está magnífico!” Só que a editora achou que a fonte estava pequena, ela mexeu na fonte e a Graça dá pronto, diagramado, como está aí. A Graça não gostou, destratou, aí ficou preso o livro por um ano na editora. Foi quando eu entendi melhor sobre o que é história, que ela é dona de si. Aí eu mandei um e-mail pra editora falando: “A história não é minha, não é tua, não é da Graça. Ela é dela, porque é dela. A deixe ir embora. Vocês não podem prender essa história. Ela está pronta, ela precisa ir pro mundo. Divide os dois mil que eu pago em 20 vezes”. E aí eles me mandam um e-mail liberando a história e me presenteando com os dois mil reais, não precisava pagar. Dois mil. Aí, vamos procurar editora. Aí levou pra Melhoramentos, está na crise, não vai ser agora. Aí a Graça fala: “Tem a Zit”. Aí conversou com a Zit. Tinha falado com a Moderna também, a Moderna me deu uma semana pra dar resposta, a Zit ligou e eu falei: “A Moderna precisa responder. Vou ligar pra Moderna”. “Moderna, vai fazer?” “Não” “Então, Zit, vamos fazer”. Aí fizemos em 2016. Foi publicado. Quando eu recebi esse livro, já no final de 2016, novembro talvez, cara, quando eu olhei, falei: “Esse livro é o mais bonito de autores indígenas. A ilustração mais bonita. Ano que vem esse livro aqui vai ganhar selo altamente recomendável, vai entrar no catálogo de Bolonha e vai ser finalista do Jabuti”. Quando foi dezembro eu fui fazer o lançamento lá em Roraima, dia 19, alto verão. Foi na praça, mas fizeram dois shoppings e o povo não estava indo mais na Praça das Águas. Começamos oito horas, vendemos seis livros, 20 minutos começou uma chuva torrencial. Fugiu todo mundo, eu triste, estava com uns 40, 50 livros, fui prum boteco, tomei um pouco com a galera, fui pra casa uma hora da manhã ainda zangado e dia 17 de janeiro de 2017 tinha um lançamento no Sesc Pinheiros, com a presença minha e da Graça, com cachê. Dia 17 de janeiro, cinco da tarde, o tempo se forma de novo, aparecem poucas pessoas, cinco pessoas talvez e só um livro é vendido. Falo: “Mas que azar do inferno!” E aí um colega falou: “Não, cara, isso é bênção”. Eu falei: “Porra, desse jeito?” Aí, logo em seguida veio e começaram, as coisas, acontecer: catálogo de Bolonha, convite pra fazer o livro em sueco. Eu não sabia que era em dinamarquês também. Pra mim ir na Suécia fazer o lançamento. Depois veio catálogo de Bologna, altamente recomendável, melhor livro pra criança e melhor ilustração, que são os melhores prêmios, os mais antigos da Fnlij, das 24 categorias. Depois veio. Fui pra Suécia, chego lá recebe o selo da maior biblioteca do mundo, ele é finalista do Jabuti. Volto pra cá, ele ganha o Jabuti.
P/1 – Como foi o dia do Jabuti? Se puder me descrever o dia, como foi.
R – Foi uma coisa extraordinária ver tantos autores, tanta gente assim grande. Muita gente estava ali e não apenas pra receber a premiação, mas eu estou aqui de novo. Eu tinha um colega que era Ministro do Comércio Exterior de Roraima e eu falei: “Eu vou receber o Jabuti. É o primeiro de Roraima” “Eu vou lá”. Ele foi. Foi a segunda pessoa a ser apresentada. Na época ele era executivo do Executivo. Era diretor executivo, alguma coisa do Ministério. Ele foi. Quando eu ganhei o Jabuti ele já tinha entrado na Lista de Honra do Ibby, já era o brasileiro escolhido, infantil, pra entrar na Lista de Honra do Ibby. Isso foi em junho. A entrega acho que é outubro, novembro, do Jabuti, eu falei pra ele: “Cara, esse livro ganhou isso e eu como autor brasileiro. Roraima nunca teve isso, talvez nunca terá isso. Me ajude a chegar lá, pra receber essa premiação, na Grécia, porque eu vivo de aluguel, pago aluguel. Eu não tenho como chegar lá” “Não, vamos dar um jeito”. E aí, realmente, no outro ano eu fiquei cobrando, cobrando, ele deu um jeito, conversou, fui pra Feira de Brasília, marquei uma reunião com ele junto com o pessoal das Relações Exteriores e aí consegui chegar lá na Grécia, pra receber esse que é considerado o terceiro maior prêmio da literatura mundial, a Lista de Honra do Ibby. Os melhores do mundo. E é isso.
P/1 – Como é que você ganhou uma coisa dessas e não subiu seu ego?
R – A primeira coisa: isso é uma obra, um livro. Tudo que ganhou foi a obra, não fui eu. Eu sou parte da obra. Sem ilustração, não era uma obra tão bonita. Sem o revisor, também não era. Então, as premiações são da obra. Eu vejo assim. As músicas, cinco prêmios de música, eu não falei que eram prêmios meus. Falei que eram os prêmios das músicas. É da música. É da arte. A arte é dona de si. A gente só é intermediário. Ela usa a gente pra isso, quando se deixa. Por isso que eu não vejo razão pra falar que tal, que eu... eu nada, eu continuo gente, continuo pagando aluguel, continuo fazendo comida pras minhas filhas, limpando a casa, lavando banheiro. Isso não faz diferença alguma.
P/1 – Falando nisso, de você como intermediário da obra, a sua obra chega em muitos lugares, muitas pessoas, chegou em mim, funcionou, assim como em muitos outros, qual foi a coisa mais bonita que você já viu uma obra sua fazer em uma pessoa?
R – Tem uma criança. Ela tem uma certa... eu não sei o nome, se é autista, eu não sei o que é. A partir do momento que ela ganhou esse livro, não sei nem se ela fala direito, mas ela dorme com esse livro. Todas as noites a mãe tem que ler esse livro pra ela, tem que mostrar esse livro pra ela. Então, isso é extraordinário. Ver que uma criança, ver que uma coisa dessas age na vida dela, entende? Por isso que eu acredito que a história tem o seu poder próprio. Ela se apropria quando quer. Você deixando ou não, ela se apropria. Por isso que a gente acredita em histórias que não são nossas. Então, isso, pra mim, foi... ver isso, a mãe mandou um vídeo uma vez, pra mim, nossa! Isso é demais!
P/1 – A gente pode ver, assim, entrevistando vários outros contadores de história, que tem histórias que entram dentro da gente, do contador, e transformam nossos olhares, nossa vida mesmo. Qual foi uma história que você fez isso com os outros, com outras crianças, mas que uma história fez isso com você? Que você lembra, mesmo, que ela entrou, transformou uma situação? Teve alguma coisa assim?
R – História... tem mais de leitura. Não sei se... história, assim, a Ceuci, a Velha Gulosa. Eu ouvi essa história e, quando eu ouvi, parece que ela se ofereceu, assim: “Estou aqui. Vai pegar ou não vai?” E foi uma história que fala sobre tempo, tem toda uma narrativa. Ela é muito imagética, assim. Você visualiza enquanto está contando. E essa história, de fato, foi a que eu mais, não sei se me adaptei ou ela se adaptou a mim, mas quando eu estou contando nós somos um. Ela, pra mim, é mágica, assim. Ela é transformadora pra mim. Pros outros pode ser uma história, meio de terror, mas pra mim é uma história do tempo, das lutas, das batalhas da gente, dos nossos medos, dos enfrentamentos. Pra mim ela é isso. A Ceuci, a Velha Gulosa, a história que eu mais gosto, assim.
P/1 – Como foi? Porque você, eu já ouvi contando, é um contador em palavras.
R – A arte, pra mim, move o mundo. Tudo que nós usamos vem de um artista. Não é a grana. A grana é o resultado do que foi criado. Então, toda criação é artística. Talvez foi uma necessidade de aprender a contar melhor, pra poder ganhar uma grana nas escolas, pra poder... mas depois que eu tive a compreensão de que ela é dona de si, existem as que se deixam contar e as que não se deixam contar. Mas hoje ela é como meio de vida pra mim. Me ajuda a ganhar o pão. E eu deixo que ela se conte. Simplesmente. Então, ela que traga os bichos, que traga magia, que traga o rio, que traga esse passado mágico. Que ela faça isso por si. Então eu fico solto, livre. A arte tem que ser assim, tem que nascer, surgir livre como ela é. Senão, deixa de ser arte, não precisa ter essas intervenções.
P/1 – Você mudou pra cá quando?
R – 2014.
P/1 – E como você sentiu a diferença de morar no norte, pra cá?
R – Eu vim, na verdade, para o Rio e depois pra cá. Lá eu já estava saturado de não ser nada. Ser só um indígena que toca o violão, que faz uma coisa, conhece aquilo. Falei: “Não, preciso que a arte saia e aqui eu não vou ter possibilidade. Preciso ir embora”. E era uma coisa tão engraçada, que eu falava pros meus alunos: “Daqui um tempo eu vou embora. Daqui um tempo eu vou ganhar prêmios por aí. Daqui um tempo eu vou viajar muito, eu não quero nem conhecer quem vai pagar as passagens”. Eu falava exatamente assim. Sem nunca ter entrado num avião. Sem nunca ter recebido um prêmio. Eu falava exatamente assim, com essa força. Pronto. Aconteceu tudo isso. Acontece tudo isso. E acontece como nós estamos aqui, naturalmente, sem forçar. Quando eu estou escrevendo, recebendo, eu nunca penso em coisas de premiação. Isso é resultado da obra, não é minha. O Cão e o Curumim está seguindo o caminho dele, já pegou dois. Que siga o caminho dele. Onde ele chegar, é problema dele. Eu já fiz a minha parte. Ele não precisa de mim. Já foi. Então, eu vejo assim. Então, as premiações não me assustam. Me alegram, mas não é aquela alegria: “Puxa vida, eu vou pular, vou cair”. Não. Você sabe que eu fico feliz quando eu tenho uns momentos especiais na minha casa? Um deles é quando eu estou passando a roupa das minhas filhas. Eu gosto de passar. Passo duas, três, quatro horas passando roupa. Mas não é o processo de passar roupa. Que seja, porque quando elas reclamarem, mais velhas, eu falo: “Me respeita porque eu passava sua roupa”. Posso falar isso. Mas é o momento que eu estou refletindo sobre tudo: sobre quem eu sou, onde estou, sobre todas as conquistas. Quem eu sou pra aquele estado, quem eu sou para o mundo hoje. Isso me alimenta como ser, como artista. Acabou meu momento de passar, claro, a gente também não é de ferro e depois que Jesus me libertou, tem seis, sete anos, eu pude experimentar uma Heineken e eu posso tomar uma Heineken de vez em quando. Então, depois dessa liberdade que Jesus me deu, de respeitar o outro, eu fui da igreja 30 anos, mas um dia ele falou: “Não, cara, sai desse negócio. Respeita o homossexual. É mais importante. A opção é dele. Respeita aquele ali que está na umbanda, porque a opção também é dele. Respeita gente, como gente que tu é”.
P/1 – Jesus que falou? Como foi que você ouviu isso?
R – Falou, senti, aí saí da igreja. Quando eu saí da igreja, eu fui liberto pra arte. Por isso que saiu o Boca da Noite. Por isso que saiu O Cão e o Curumim. Se Jesus não tivesse feito isso na minha vida, cara, não tivesse me salvado, eu estava ainda, talvez, só com recontos. Agora, não. Agora eu sou um homem livre. Um ser livre, um ser que viaja, um ser que pensa, que desconfia, que respeita, que dá um abraço num travesti, assim, daquele bem que chega chegando, com um negócio nos olhos desse tamanho, pintadão, com a boca... eu posso chegar e abraçar de coração.
P/1 – Tem algo relevante que aconteceu na sua caminhada que você gostaria de deixar registrado, que não contou?
R – Não sei, não. Eu vim de uma vida muito difícil de comida, difícil das coisas básicas. Hoje eu estou mais ou menos no nível da música do Roupa Nova, que diz que hoje ele pode comprar o que a infância dele sonhou. Ainda não posso, mas pelo menos a comida que a minha infância sonhou eu posso comprar. Posso comprar, posso fazer. Pelo menos isso. O carro ainda não, a casa ainda não, mas o básico eu posso. E, como eu falei, essas coisas da vida a gente pena muito por aí. O fato de ter vindo morar no Rio, numa cidade diferente. A gente passa pelos problemas de doença, fica isolado, sozinho, o que eu estou fazendo aqui? Podia estar em casa, com a minha mãe fazendo um caldinho, mas não, estou aqui, mas por uma razão maior, eu estou aqui como missão. E minha missão é fazer a partir da arte, especialmente a literatura, com que os povos indígenas, o povo indígena, tenha respeito. E eu sei, eu sinto, não é apenas que eu sei, eu sinto como estou falando aqui, normalmente, que as premiações estão longe daquilo que eu vim pra trazer pro mundo. Seis livros agora. Acho que com literatura já deve ter mais de 12 prêmios. É, esse é o Boca da Noite, mas com a literatura já tem mais de 12 prêmios. Quando um prêmio desses sai, imagina se eu estou feliz, que sou um só, para os povos indígenas, que são muitos. Que força! Como é que essa força chega lá? Então, essa é uma das minhas missões. Eu sinto que eu estou muito longe ainda do que ainda vou chegar. Por causa da minha missão. Da minha passagem aqui na Terra.
P/1 – Qual que é o seu sonho de chegar?
R – Eu não tenho sonho de chegar. O que eu estou dizendo é que, dentro desse período da minha passagem, dessas premiações que já são razoáveis, vai ter muito mais. Não é por mim, por Cristino quer e vai atrás, não. É porque isso faz parte do caminho. Isso é uma coisa natural que vai acontecer.
P/1 – Pra você, se você puder falar na visão dos povos indígenas, o que é a memória? Qual você acha que é a melhor maneira de se preservar a memória dos povos?
R – Diante desse turbilhão de tanta informação que se tem, tanta mídia que se tem, fica difícil você segurar a tua oralidade, a tua própria cultura. As cidades já chegaram. Muitas aldeias estão isoladas, mas mesmo isoladas, você chega lá e tem plástico, já tem o celular, já tem umas outras coisas. As coisas vão chegar. O mundo acha que os indígenas são um povo que está lá no mato. Não. Que está com uma cultura parada. Cultura parada é de museu. Todo povo está em constante movimento. A cultura é isso. Todo povo tem suas tecnologias, tem seu jeito de viver. Não é à toa que o meu povo está há 4 mil e 500 anos naquela região. E o Brasil tem só 500 anos. Então, o povo está nessa constante movimentação. E somos gente. Gente com sentimento, com sangue no corpo, mesmo formato de coração, cabeça, cabelo, com a mesma inteligência, com as mesmas... tudo. Com as mesmas potencialidades. O que precisa? Trocar conhecimento. Buscar conhecimento. O violão é indígena? Não. Mas eu não domino? Domino. A literatura é indígena? Essa escrita? Não, mas eu domino de qualquer forma. Então, as pessoas acham que ser indígena tem que estar lá, isolado. Não. Indígena é gente. Gente, ponto. E qualquer coisa que foi feita, que foi pro bem da humanidade ou pro mal da humanidade, qualquer pessoa pode usar. Se eu puder comprar uma Ferrari, tiver dinheiro pra comprar uma Ferrari, eu vou comprar uma Ferrari. Ferrari foi pra gente usar. Se eu puder comprar um avião, eu vou comprar, porque foi pra gente usar. Não foi pra alienígena usar. Não foi pro cachorro usar. Foi pra gente. Então, independente de ser brasileiro, Wapichana, Munduruku, japonês, é gente. Então, gente está no mundo. Está em constante movimento. E a gente quer aquilo que é melhor pra gente como ser e o melhor pro mundo.
P/1 – Você acha que, pra preservar essa oralidade que você fala, qual é o melhor caminho?
R – Acho que hoje vai ser a tecnologia que resguarda. Vai ser o vídeo, o gravador. É isso que vai ficar. Essa cultura da oralidade tradicional está sumindo. Ela precisa ser captada. Porque ela captada, vai ser guardada e repetida. Ela vai ser lembrada em algum momento.
P/1 – Gratidão.
R – Então, fechou.
P/1 – Como foi pra você contar sua história?
R – Foi bom. Tenho que correr, pra pegar minha filha.
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