Votorantim Fercal-DF
Depoimento de Mércia Ferreira da Silva
Entrevistada por Andreia Aguiar e Marcia Trezza
Fercal, 10 de junho de 2015
Realização Museu da Pessoa
VOF_HV010_Mércia Ferreira da Silva
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Qual o seu nome?
R – Mércia Ferreira da Silva.
P/1...Continuar leitura
Votorantim Fercal-DF
Depoimento de Mércia Ferreira da Silva
Entrevistada por Andreia Aguiar e Marcia Trezza
Fercal, 10 de junho de 2015
Realização Museu da Pessoa
VOF_HV010_Mércia Ferreira da Silva
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Qual o seu nome?
R – Mércia Ferreira da Silva.
P/1 – Data de nascimento da senhora?
R – Vinte e três de setembro de 1955.
P/1 – O nome dos seus pais, dona Mércia?
R – Joaquim Ferreira da Silva e Maria Fonseca.
P/1 – Qual a imagem que a senhora tem dos seus pais, dona Mércia?
R – Uma imagem muito boa, muito bonita e muito sofrida. Naquele tempo as pessoas sofriam muito pra criar os seus filhos, eram 12 filhos, aí trabalhavam em roça, lutavam muito pra poder sustentar os 12 filhos. Mas era uma vida muito boa, que era todo mundo unido, tudo em casa.
P/1 – A senhora disse 12 irmãos?
R – Doze.
P/1 – A senhora é a mais velha?
R – Não. A minha irmã mais velha tem 72 anos já.
P/1 – A sua mãe? Qual a imagem que a senhora tem da sua mãe?
R – Minha mãe era uma pessoa muito trabalhadora, muito meiga, era uma mãe que acho que todo mundo desejava ter. Era uma mãe muito maravilhosa, não tem nem como explicar.
P/1 – E o que vocês costumavam fazer em casa, os seus pais?
R – Meu pai trabalhava em roça, minha mãe em casa. E nós pra ajudar o pai na roça também. Nós tudo íamos pra roça pra ajudar o pai. Chegava da roça, ia ajudar a mãe.
P/2 – E vocês plantavam o quê na roça?
R – Plantávamos arroz, feijão, milho, de tudo que tinha numa roça, plantava. Cana, banana, tudo, tudo. E a gente participava junto.
P/1 – Era com qual idade que a senhora tinha?
R – Dez anos. Com dez anos eu já comecei a trabalhar, cozinhar, ajudar minha mãe tudo em casa. E ajudava na roça. Ajudava meu pai arrancar feijão, carregar arroz, tudo a gente fazia.
P/1 – E a senhora gostar de brincar de quê?
R – Boneca de pano.
P/1 – Boneca?
R – Não existia naquele tempo. Não existia outro brinquedo. Era só a bonequinha de pano e era só nos domingos. E brincar de “cozinhadinho”, casinha, “cozinhadinho”.
P/1 – Onde a senhora nasceu?
R – Em Salina, aqui em Goiás, depois do Ribeirão. A gente nasceu e criou em Salina.
P/1 – E a senhora lembra como era lá em Salina? O seu bairro, o seu lugar?
R – Lembro como hoje. Era uma casa de palha, pau a pique, a gente dormia em cama de vara, que nem cama a gente tinha, colchão de palha. Tudo naquele tempo era assim. Minha mãe que fiava algodão pra poder fazer coberta, fazer roupa pra gente.
P/2 – O colchão de palha era feito como?
R – Fazia o pano de algodão, a minha mãe fiava na roda algodão, que colhia na roça, fiava, pra fazer o pano. Quando fazia o pano, minha mãe fechava na mão, aí a gente ia pegar palha de milho, rasgar, pra encher aquele colchão.
P/1 – E você falou cama de vara, como era essa cama?
R – A cama era tipo assim, fazia a cama, um jirau, aí colocava o colchão em cima. Era tudo de vara assim. De vara de madeira. Não existia cama. Cama era só de vara, de pai, mãe, dos filhos, tudo.
P/2 – A madeira pegava onde?
R – Nos matos. Na roça, no mato mesmo.
P/2 – Galhos?
R – É. Galho. Cortava as madeiras e fazia.
P/1 – E nessa infância, a senhora já pensava o que queria ser quando crescesse?
R – Pensava não. Só pensava em brincar. Naquele tempo a gente nem estudava, não conhecia a cidade, não conhecia nada. Não sabia nem o que tinha. Não conhecia um carro, a gente não conhecia nada. A primeira vez que eu vi avião, eu saí gritando, correndo, chorando (risos). Com medo do avião. Carro, eu vim conhecer carro, eu tinha mais de dez... Eu tinha uns 12 anos. Não conhecia carro. Conhecia carro de boi. Que a gente usava era carro de boi pra moer, fazer rapadura, era engenho. A gente fazia isso, era em carro de boi, mas carro mesmo à gasolina não, não existia, não.
P/1 – Seu pai comercializava alguma coisa? Vendia? Como era?
R – Não. Não. Só mesmo pra despesa. Criava porco, plantava arroz, milho, feijão, só pra despesa mesmo. Não vendia nada.
P/2 – E as roupas?
R – As roupas, minha mãe fazia de algodão. Outra vez assim, às vezes ele arrumava um dinheirinho, sei lá o que ele vendia, a gente nem lembra, que a gente era criança, nem prestava atenção nisso, não. Ele ia a Planaltina, comprava os panos e a mãe fazia. Não sei nem o que ele vendia, porque a gente era criança e naquele tempo, você não tomava parte de nada. Porque era ele e minha mãe, e acabou. Não é igual hoje um casamento, até os filhos participam. Naquele tempo a gente não participava, não. Eram só os dois reservados. Aí eles falavam o que vendia, o que não vendia. A gente não tomava iniciativa de nada, não. Não sabia de nada, não.
P/2 – Posso perguntar?
P/1 – Pode.
P/2 – A senhora falou que brincava de boneca de pano, né?
R – É. A minha mãe fazia boneca de pano.
P/2 – Teve alguma especial, que até hoje você se lembra da boneca?
R – Lembro. Se for pra eu fazer, eu ainda faço uma (risos). Minha mãe cortava os panos, enchia de algodão, cortava uma fitinha preta, um paninho preto, desfiava e fazia o cabelo, pegava uma linha vermelha, fazia o olho, a boquinha. Era do que nós brincávamos, bonequinha de pano.
P/2 – E tinha nome as bonecas?
R – Tinha. A minha era Mariana (risos), minha bonequinha.
P/1 – A senhora ficou quanto tempo lá em Salina? Até que idade?
R – Eu fiquei até a idade de 15 anos.
P/1 – Depois a senhora foi pra onde?
R – Fui pra Planaltina trabalhar. Comecei a trabalhar com 12 em Planaltina. A gente foi, depois voltei, depois fui de novo pra Planaltina. Fui trabalhar em casa de família pra ganhar roupa, comida, pra estudar, e material de escola, não tinha pagamento, não.
P/1 – E qual idade a senhora começou a estudar?
R – Doze anos.
P/2 – Em Planaltina?
R – Em Planaltina, DF.
P/1 – E qual lembrança a senhora tem da sua escola? Da primeira escola?
R – Ah, boa demais! Eu nunca tinha entrado numa escola, pra mim foi o sonho da vida. Ainda me lembro da primeira professora.
P/1 – Lembra o nome dela?
R – Lembro, era... Deixe-me ver aqui. Oh, gente. Débora. Não, é Mirian. Mirian. Lembro até hoje, é a Mirian, professora Mirian.
P/1 – E como a senhora ia pra escola?
R – Eu ia a pé, que era pertinho.
P/1 – Perto.
R – Ia pra escola normalmente. Entrava às sete e saía às 11. Estudava à noite. Não estudei de dia mais. Trabalhava durante o dia e estudava à noite.
P/1 – Com 12 anos?
R – Com 12 anos.
P/2 – E essa professora dava aula à noite?
R – Ela dava. Dava aula à noite. Não sei se ela era do dia, mas à noite também ela dava.
P/2 – E a senhora falou que lembra bastante dela, como ela era?
R – Ela era bem bonita, professora Mirian. Ela é filha do Senhor Iron, perto da pedreira ali, do Senhor Iron, aqui da Fercal. Ela é filha dele. Ainda me lembro dela como hoje, muito bonita. Não sei se era porque era a primeira professora, encantei demais.
P/1 – E a senhora namorou cedo?
R – Namorei. Da escola mesmo já comecei a namorar (risos).
P/1 – Mas casou cedo, ou não?
R – Não. Casei com 22 anos, foi depois.
P/2 – E o primeiro namorado como foi?
R – Foi muito bom.
P/2 – Como ele era? Como a senhora conheceu?
R – O nome dele era meu nome, Mércio. O meu Mércia, o dele Mércio. Era muito bom, nossa. A gente ia pra pracinha lá em Planaltina. Só que a gente tinha aquele sistema, você saía, a irmã deixava ir, mas tinha hora certa pra ir e hora certa pra voltar. E namoro era pegar na mão, não tinha esse negócio de ficar...
P/2 – E a senhora morava com quem em Planaltina?
R – Eu morava com a minha irmã. Eu trabalhava, mas dormia na casa da minha irmã, que ela não deixava dormir na casa dos patrões, não.
P/2 – E ela que organizava o horário?
R – Era. Ela organizava. Eu saía de manhã, chegava à noite. Ia pra escola, quando eu chegava, ia pra casa dela já.
P/1 – E ela já era casada?
R – Já. Era casada há muitos anos já.
P/2 – E esse namoro foi pra frente?
R – Não. Foi um namoro por pouco tempo. Depois acabou, esqueceu. Depois tive umas paqueras de novo, mas não valeram a pena, não.
P/1 – Qual idade a senhora casou?
R – Vinte e dois.
P/2 – E a senhora conheceu o seu esposo como?
R – Em festa.
P/2 – Conta como foi.
R – Na festa, nós dançando, começamos a conversar. E ele é primo do meu primeiro marido. É que eu casei primeiro, depois separei, vivi um ano, separei, depois eu fiquei namorando, namorei um primo, tou até hoje, 42 anos.
P/1 – Nossa! Vocês tiveram filhos? A senhora teve filho?
R – Com o primeiro eu tive uma. Agora com esse aí tenho seis. Tenho as gêmeas, que são as caçulas.
P/2 – E esse primeiro casamento seu, conta pra gente como foi a história.
R – Não. Aquele casamento, se a gente lembrar de novo... Eu o conheci, meus pais gostavam muito dele, aí eu casei, bem dizer, pra fazer o gosto dos pais, vivi um ano só. Só isso. Não tinha muita história pra contar dele, não.
P/2 – E esse que a senhora é casada até hoje, como foi?
R – Ah, esse aí tem história!
P/2 – Então conta.
R – Esse daí tem. Em 73, eu mudei pra Catingueiro. Quando a
gente foi morar junto lá em Catingueiro, lá não tinha água, não tinha água encanada, não tinha energia, tudo era lavado roupa no córrego, água pra manter em casa era do córrego, os filhos banhavam no córrego. Tudo fazia buscando água no córrego. Lamparina, não existia energia. Em 88 chegou energia no Catingueiro, mas pra comunidade lá embaixo, pra mim não, pra mim foi só em 92 que chegou. A gente comprou uma bomba, que colocou a água, e aí que foi começando a melhorar, já veio a energia. A primeira geladeira foi a gás, depois veio a televisão, foi melhorando. Nem ônibus existia, o primeiro ônibus que entrou no Catingueiro, em 88.
P/1 – A senhora mudou para o Catingueiro com o primeiro marido?
R – Não, com o segundo marido. O primeiro marido era do mato, era lá para o lado do Ribeirão.
P/2 – Agora, quando a senhora morava em Planaltina, no lugar que a senhora morava tinha água, luz, tudo?
R – Tinha. Lá tinha tudo. Que eu morei ali naquele museu antigo lá em Planaltina. A gente morava lá. É. Aquele museu lá do pessoal Chico Gonçalves.
P/2 – A senhora morava no prédio do museu hoje?
R – Na casa mesmo. Eu morava com eles. É aquele museu lá. Aquele museu lá é da prima da minha mãe, do pessoal Guimarães. Chico Gonçalves e América, dona América.
P/1 – A senhora trabalhou sempre em casa de família?
R – Sempre em casa de família. Em 83, eu entrei na Secretaria de Saúde, no Catingueiro. Entrei na Emater, aí a gente começou fazendo reunião nas casas, fazendo doce, essas coisas. A gente reunia. Igual reunia numa casa um final de
semana, em outra casa no outro dia, em outra casa outro dia. E aí a gente deu a ideia para o pessoal da Emater: “Ah, vamos conseguir um posto de saúde, alguma coisa”. Aí foi na época que veio o pessoal do Hospital de Sobradinho, fazia reunião debaixo das árvores, porque não tinha nenhum local pra se reunir, aí que falou que ia fazer o posto de saúde, em 83. Em 29 de agosto de 83 foi inaugurado.
P/1 – O que é o Emater?
R – É assistência rural, a Emater. Ainda existe até hoje em Sobradinho. É assistência rural.
P/2 – A senhora disse que mudou. Em Planaltina tinha luz, água.
R – Tinha.
P/2 – E quando a senhora foi pra Catingueiro, como foi essa mudança?
R – Pra mim não fez muita diferença, que eu já fui criada desse jeito, sem água, sem luz, em lamparina. Levei pra frente o costume, a mesma coisa. A gente sente um pouco assim porque lá era um costume, veio pra cá, outro costume. Mas não senti muito mais, não. Já era acostumada. Nasci e criei assim. Já era a criação dos pais.
P/1 – E como foi a chegada do primeiro filho?
R – Ei, meu Deus, aí foi luta (risos).
P/1 – Conta.
R – Naquele tempo a gente não existia igual hoje, que você compra uma fralda descartável, que você ganha muita coisa. Antigamente você não conseguia nada, você não ganhava nada. Eu abria lençol, tirava pedaço de lençol, blusa, camisa, e meu marido pra enrolar. Porque não existia um cueiro, não existia nada. Até a minha saia servia de um cueiro pra enrolar um filho. E criei tudo assim. Depois vieram as gêmeas, a mesma coisa. Nunca existiu: “Ah, eu ganhei uma fralda”. Não existia fralda descartável. Hoje tá tudo bem, tá tudo fácil. E as pessoas ainda reclamam, ainda choram, ainda falam que a vida tá difícil. Difícil foi o que eu passei.
P/1 – E como foi entrar nesse novo trabalho que a senhora disse, de saúde?
R – Foi muito bom. Porque foi ali que eu comecei a ajudar dar sustento para os meus filhos. Quando eu recebi meu primeiro salário, foi o primeiro iogurte que eles tomaram, que eles nunca tinham tomado um iogurte, eles não sabiam nem o que significava um iogurte. Então aí que eu fui comprar, comprei boneca de verdade para as minhas filhas. Aí a vida foi melhorando, graças a Deus.
P/2 – Quando a senhora trabalhava em casa de família, a senhora nunca recebeu salário?
R – Não. Já bem depois, com uns 19 anos que eu comecei, recebia um pouquinho. Recebia o salário, mas não sei nem quanto era, minha irmã pegava, que comprava as coisas pra mim. Eu não tinha nem acesso ao salário. Porque naquele tempo, a gente era dominado pelo irmão mais velho, o que ele falasse, tava falado.
P/2 – A senhora pegava o seu salário do trabalho na casa de família e dava pra sua irmã?
R – É. A minha irmã que administrava, que comprava as coisas pra mim. Compra uma roupa, comprava um sapato, uma coisa assim. Eu mesma não tinha acesso.
P/1 – Ainda em Planaltina, a senhora tinha amigos lá?
R – Tinha. Amigos de colegial, da escola, mas amigos assim pra ir a casa de alguém, não.
P/1 – E pra se divertir, a senhora saía?
R – Bicicleta. Se divertia nas festas juninas, era só assim. Porque a minha irmã não deixava, não. Ela era muito rígida com a gente, ela não deixava a gente ficar saindo, não.
P/1 – Só em festa junina?
R – Festa junina e brincar na rua de bicicleta. É só isso, a diversão lá era essa.
P/1 – Aconteceu alguma situação nessa cidade ainda quando a senhora era jovem que a senhora lembra até hoje?
R – Quando entrou o Buriti. Quando entrou o Buriti de Planaltina. Porque lá era dois, três dias, todo dia você via um caixão descer. E a gente: “O que é aquilo?” “É morte no Buriti”. Quando começou a entrada do Buriti. Eu morava em Planaltina quando o Buriti começou. Aí perdeu o sossego de Planaltina. Daí pra cá que Planaltina foi ficando violenta.
P/1 – Que era o Buriti?
R – Ele era tipo um assentamento. Ele é tipo uma invasão, começou tipo uma invasão. Que a gente era criança, mocinha, não vai lembrar, não dava atenção muito pra aquilo. Não tinha asfalto, não tinha nada, tudo de chão, tudo chão. Não tinha um asfalto, não tinha nada. Não tinha uma rodoviária, não tinha nada. Planaltina é antiga, aí veio o Buriti. O Buriti que veio como tipo fosse uma invasão, não lembro direito.
P/1 – E o asfalto, tudo isso, veio depois do Buriti.
R – Planaltina existia. Depois que veio o Buriti, que formou tudo, que aí começou a asfaltar, por escola, por tudo. Lá é difícil.
P/1 – E seus filhos estudaram onde, dona Mércia?
R – Começaram na escola do Catingueiro. Do Catingueiro estudaram até o quarto ano, vieram para o Centro de Ensino aqui da Fercal, da Fercal pra Sobradinho.
P/1 – A senhora lembra o ano que construíram o colégio do Catingueiro.
R – Primeiro que no Catingueiro não existia aquele colégio, existia uma escolinha, uma casa de lado, que era uma escola. Os professores vinham a pé aqui. Eles ficavam a semana no Catingueiro, na sexta-feira eles vinham até à Fercal, até no trevo, pra pegar o ônibus, uma condução pra ir embora.
P/1 – E essa casa era de alguém?
R – Era do dono da fazenda do lado do posto, do seu Alcino. Que tinha uma casa, mas não tinha sala, era só um galpão, só lá que existia essa escola.
P/2 – Quando a senhora veio pra Catingueiro? A senhora conheceu seu marido na Planaltina?
R – Não, aqui mesmo no Catingueiro. Porque meus pais moravam na Salina ainda. Meus pais morreram lá na Salina, eles eram agregados. Antigamente falava agregado.
P/1 – Da fazenda?
R – Na fazenda, era. Os meus irmãos todos nasceram na Salina, do primeiro até o último.
P/1 – E seus pais até o fim ficaram lá.
R – Até o fim na Salina.
P/1 – E a senhora conheceu o seu segundo marido, esse que a senhora vive, lá?
R – É. Aqui no Catingueiro, nessa região, porque as festas eram em Ribeirão, Catingueiro. Conheci aí.
P/2 – E como foi assim esse momento que a senhora conheceu o seu esposo?
R – Foi bom.
P/2 – Como foi bom? Conta pra gente.
R – Foi numa dança, numa festa de futebol, parece. Que teve um jogo lá no Ribeirão, a gente se encontrou, começou, aí começou a namorar. Dançando, conversando, aí começou.
P/2 – E o casamento?
R – Igual eu falei, a gente ficou convivendo junto. Depois eu desquitei do outro, falei: “Quer saber? Não vou casar mais, não”. E com isso aí já tem 42 anos.
P/2 – Que deu certo.
R – Que deu certo. E graças a Deus a gente vive bem até hoje, criamos os filhos. Minhas meninas já estudaram, uma fez Administração, a outra fez Enfermagem, trabalha no Hospital de Sobradinho. Tudo, graças a Deus, formadas. Eu vinha a pé aqui pra Fercal, porque não tinha ônibus no Catingueiro, o primeiro ônibus que foi para o Catingueiro era em 88. Eu fiz meus pré-natais vindo a pé do Catingueiro pegar o carro aqui no trevo da Fercal. Vinha a pé! Saía duas horas do Catingueiro pra pegar o primeiro ônibus, cinco horas, aqui no Fiote.
P/1 – E os netos? Quantos netos a senhora tem?
R – Oito. Agora tem nove.
P/1 – E bisneto já tem?
R – Bisneto ainda não, só tenho netos. Eu não tenho bisneto, não.
P/1 – Fala um pouco dos seus netos.
R – Ah, meus netos são maravilhosos. Tem o Wender, que é esse que eu tava te falando, quando ele nasceu, a mãe dele morava pertinho de mim, e ele ficava só lá em casa. Ele foi morar com a mãe dele mesmo quando ele tinha 14 anos, que ele foi embora. Morou comigo toda vida. Agora tem o Lucas. O Lucas, o pai mais a mãe moravam em casa depois que eles casaram. Moraram na minha casa três anos, eles foram pra casa deles e Lucas não foi, está até hoje mais eu, 11 anos.
P/2 – Dona Mércia, quando a senhora veio para o Catingueiro, a senhora teve os filhos, mas a senhora falou que participava de atividades, não é?
R – É, participava no Catingueiro.
P/2 – Conta pra gente tudo que a senhora fazia assim.
R – A gente participava de curso de costura, o pessoal da Emater. Do Senai, tudo dava curso. Aí eu participei de curso em Planaltina, agora há pouco tempo, de uns 15 anos atrás, participei de curso no Sebrae lá em Planaltinha, que é no Colégio Agrícola, a gente fez muito curso. Fiz curso de culinária, de padeiro, confeiteiro. Fiz muito curso em Planaltina.
P/2 – E como a senhora começou a participar dessas coisas?
R – Nas reuniões da Emater mesmo, que eles iam às casas, convidavam a gente pra participar. A gente fazia integração, grupos. Aí que a gente foi conhecendo a comunidade. Que a comunidade era tudo desunida, ninguém ia à casa de ninguém, cada qual na sua casa, no seu mundinho. Com essa reunião que a gente fazia, a gente foi conhecendo, trocando ideia, um falava o problema dele, ele falava do outro, a gente foi entrosando. Daí pra cá, tudo que vai fazer no Catingueiro é em grupo. Depois eu fiquei sendo presidente de associação oito anos, aí fui trabalhar com a comunidade de verdade. Aí que eu integrei com a comunidade.
P/2 – Como vocês formaram essa associação?
R – Quem formou primeiro foi o João Miguel. O João Miguel foi o primeiro presidente, depois vieram mais dois, depois fui eu. Aí eu enfiei de cabeça e tudo, peguei a comunidade, fiquei oito anos com a comunidade. Foi na época que colocamos água tratada, que a gente doou o terreno pra fazer, colocar o poço artesiano. Fizemos a igreja nova, reforma do centro comunitário. Foi muito bom. A gente fazia mutirão pra fazer trabalho da comunidade. Até hoje, tudo que a comunidade quer: “Mércia, vê isso pra nós. Mércia, ajuda”. Ônibus no Catingueiro, todos os horários fui eu. Juntei com a comunidade, levamos no DMTU pra conseguir os horários, os itinerários certinhos, tudo foi daí pra cá na época.
P/2 – Como você virou presidente da associação?
R – Votada pela comunidade. A comunidade que fez uma reunião e votou. Indicou: “Não, Mércia, entra”. Eu falei: “Ah, será que eu vou dar conta disso, gente? Eu não vou, não. Eu não tenho muito conhecimento”. Mas aí com o tempo você vai pegando conhecimento. Aí já veio o doutor Sálvio ali que deu uma força boa pra gente. O Sálvio ajudou muito aquela comunidade, ele ajudou foi de unhas e dentes dentro do Catingueiro. Ele deu muita força pelo Catingueiro.
P/2 – Mas ele ajudava como?
R – Ele ajudou, ele construiu a igreja. Aquela igrejinha velha, aquela capela, ele mandou derrubar, mandou fazer a outra igreja, ajudou na reforma do centro comunitário, festa que tinha, junina, tudo podia vir aí que eu participava. Ele ajudava. No que ele podia ajudar, ele ajudava. E até hoje se eu chegar e falar: “Sálvio, eu preciso disso”. Ele nunca falou não. Ele nunca deu não. Quando eu saí, ele falou: “Dona Mércia, deixe isso pra lá. A senhora é líder e sempre vai ser líder. Ninguém vai tirar isso da senhora, não”.
P/1 – E como era o Catingueiro quando a senhora chegou? O que mudou em relação a hoje, Dona Mércia?
R – Nossa senhora, o Catingueiro mudou muito. Só pra você ver, não tinha água, não tinha energia, não tinha ônibus, não tinha escola, não tinha um centro comunitário, não tinha água. Hoje pode dizer nós temos tudo. Hoje pode dizer nós temos tudo no Catingueiro. Só que ainda falta, não tem uma caixa postal, que a gente tava lutando pra conseguir, não conseguiu. Meio de comunicação hoje a gente já tem, tem um telefone, mas só que é um orelhão, tem vez que ele passa até semana, duas semanas quebrado. E é o único meio de comunicação que tem lá é um orelhão. Se ele quebrar, não tem. Mas a gente hoje já tem internet, que nunca tinha visto, não sabia nem o que era internet. Hoje já tem internet. Paga, mas tem. Hoje é mais tranquilo.
P/1 – Aumentou o número de moradores?
R – Aumentou muito. Aumentou muito, porque era 50, quem foi pra 170, aumentou muito.
P/1 – Cento e setenta é o quê?
R – Moradores. Eram só 50 moradores no Catingueiro.
P/2 – Seu marido trabalhava com o quê?
E – Meu marido sempre trabalhou na chácara. Ele nunca teve carteira fichada, não. Tirava leite, fazia um queijo, criava um porco, criava galinha, mexia com roça. Sempre foi isso.
P/2 – E vendia?
R – O que sobra da boca, ele vende. O que sobra da despesa ali, do consumo, ele vende. Vende um queijo, vende uma galinha, vende um porco.
P/1 – E assim que você criou seus filhos?
R – Assim que eu criei meus filhos, sempre ali. Nunca achei ajuda de governo. Naquele tempo, a gente nunca teve ajuda de governo, não. Hoje o governo ajuda todo mundo e o povo não quer nada. Eu socava arroz no pilão. Meu marido plantava arroz, a gente socava o arroz pra os vizinhos, pra ganhar dinheiro pra comprar as coisas para os meus filhos. Eu nunca tive ajuda de governo pra criar, e tá tudo aí formado, criei.
P/2 – Socava arroz. Pra que soca o arroz, dona Mércia?
R – Pra quê? Socava no pilão pra gente fazer a comida, porque ele era em casca. Você socava, assoprava pra fazer.
P/1 – Dona Mércia, a senhora falou que não tinha muitas coisas que hoje tem no Catingueiro.
R – Isso.
P/1 – A senhora se lembra de algum movimento assim que a senhora participou, que foi difícil, ou então teve alguma coisa marcante? Foram muitos movimentos, mas a senhora se lembra de algum?
R – O que a gente sempre fez lá marcante mesmo são as folias do Divino Espírito Santo,
que eu fazia todo ano na minha casa. Todo ano a gente fazia esse festejo, todo ano. Esse aí marca pra sempre, que era muita gente.
P/2 – Como era?
R – A gente fazia muita comida, biscoito, três dias fazia biscoito, matava porco. Era muita comida, muita gente, muita mesmo! Umas mil pessoas. Era muita gente e todo ano a gente fazia.
P/1 – E a senhora fazia, e quem mais participava pra organizar?
R – A comunidade. A comunidade reunia. Só mulher, eram 12 mulheres, os homens vinham faziam barraca de palha. Aqui fala palhoça. Fazia as barracas, todo mundo participava. Era
integrado mesmo, todo mundo da comunidade sempre participa. No Catingueiro, se você pedir uma ajuda, todo mundo participa. É uma comunidade unida. Catingueiro é! Depende ter uma pessoa na frente e pedir “vamos embora”, vamos embora. Ali é unida.
P/2 – A senhora disse que quando entrou pra ser presidente da associação, a senhora ficou em dúvida, mas depois foi aprendendo.
R – Fui aprendendo, conhecendo as pessoas. Como tem uma aqui, a Tereza, que deu força pra gente. Conheci Tereza, conheci Nildinha, fui conhecer o Paulo Castanheira, aí a gente foi conhecendo, integrando, integrando, integrando. Hoje se for pra pegar, eu pego qualquer comunidade, não embaraça mais, não. Naquele tempo a gente não tinha conhecimento, chegava assim: “Ah, aquela é a presidente do Catingueiro”. Eu ficava assim. Mas aí as pessoas: “Mércia, é assim, assim”. Ajudaram-me muito. Tereza mesmo me ajudou muito, Tereza.
P/1 – O que você acha assim, se for lembrar, o que você mais aprendeu assim? Dá pra dizer?
R – Integração com a comunidade. A integração é o que eu mais aprendi. Aprendi muito das
pessoas. Conviver com as pessoas, eu aprendi muito. Como eu trabalhei 32 anos dentro de um posto de saúde, você vai se integrando com as pessoas. A convivência foi muito boa, o que eu aprendi mais foi isso.
P/2 – E como é pra ser essa pessoa, liderança, integrar? Tem um segredo?
R – Tem. Amor e ser disponível. Alegre, disponível. Você tem que ser disponível pra fazer aquilo. Pra você ser um líder, você tem que ser disponível. Pra trabalhar com a comunidade, você tem que ser disponível. A hora que você pega aquela responsabilidade, você tem que ser disponível pra ela, você tem que trabalhar integrada com a comunidade. Você tem que ser disponível, alegre, fazer tudo com amor. Tudo que você for fazer, você faz com amor.
P/1 – Voltando pra folia, a senhora lembra quando foi a primeira folia lá na comunidade?
R – Em 2001.
P/1 – A senhora lembra quem trouxe a folia do Divino?
R – É a região aqui da Salina mesmo, que foi o Valdemar. O seu Valdemar foi o primeiro integrante da folia da Salina, que chama Folia da Roça. Hoje ela tá como Folia da Região. Que hoje tem até a integrada do padre, aqui da Nossa Senhora Aparecida, da igreja Nossa Senhora Aparecida. Tá integrada junto hoje. Ela faz parte também. Que é a folia de outubro, tem a da região, é a de setembro, e a do padre é de outubro. Todo ano tem ela. Dão uns 300, 400 cavaleiros. Muito.
P/1 – Aqui em Fercal, a folia que tem é essa?
R – Não, tem a de Reis também em janeiro.
P/1 – Mas a do Divino?
R – É essa.
P/1 – Essa que virou a da região de Fercal.
R – Virou a da região Fercal. Essa folia é desde o tempo do meu pai. Eu tinha o
quê? Uns dez anos que começou essa folia. E ela veio só passando de geração pra geração, e aí ela vai.
P/1 – E como era um pouco a folia da época do seu pai?
R – Olha, mudou muita coisa, porque naquele tempo mais era pouquinha pessoa. Ela ia pra uma casa, pra outra, ela era poucas pessoas. Hoje não, ela expandiu muito. Vem pessoa de Brasilândia, vem pessoa de Planaltina, vem pessoa de Brasilinha, vem pessoa de Água Fria. Vêm pessoas de outras regiões também fazer, participar. E antigamente ela era bem mais fechada.
P/2 – Quantos cavaleiros têm?
R – Tem vez que vão 300, 300 e poucos cavaleiros.
P/2 – O cavaleiro, aqueles que vêm...
R – Vem de cavalo, fora os que vão de carro.
P/2 – Tem músicas?
R – Música assim, da folia. Não tem som, essas coisas, não tem, não.
P/2 – E você lembra alguma música da folia?
R – Lembro.
P/2 – Você pode cantar? Canta uma pra gente.
R – Deixe-me ver se eu lembro. Eu só me lembro da chegada, aquela que fala assim, que
ver (cantarola): “Em vós descei divina luz, a vós descei, divina luz, em nossas almas acendei, em nossas almas acendei”, é muito bonita ela. O resto eu não sei muito, não. Mas ela é da chegada. Toda vez que chega, só canta essa aí.
P/2 – Bonita, né? Muito bem. Canta bem, viu?
P/1 – Seus filhos participam? A família?
R – Todos. Todos desde pequenos, desde criança participam da folia. Meu neto, agora esse que eu tava te falando, ele toca na folia, ele canta. Ele é integrado da folia, ele é participante da folia.
P/2 – E os jovens gostam ainda? Ou é meio...
R – Gostam. Os jovens estão muito integrados naquela folia. Você vê muito jovem, muito jovem. Graças a Deus, que a gente fala ainda tem isso aí, porque hoje o mundo da droga tá muito... Esses jovens da região, eles participam muito.
P/2 – E o que os faz participar? Você acha que é por que, Mércia, que eles ainda gostam?
R – Eu acho que é por causa dos pais, vem de família. Eu acho que é por conta de família, que foi criado daquele jeito, os pais os criaram naquele sistema, e eles crescem com o mesmo sistema dos pais. Meu neto mesmo, nossa! É igual eu tava te falando, ele toca, ele canta. Ele toca viola que você olha assim, você fica lindo, lindo, lindo.
P/2 – Com quem ele aprendeu?
R – Com o guia da folia, Helvécio. Tem o guia da folia. Aprendeu com outro guia de Brasilândia.
P/2 – A tocar viola?
R – A tocar e cantar. E como o menino aqui da Fercal, o Alcino, também faz parte da folia, eles ensinam, o Edvaldo. Tudo é integrado da folia, tudo é o grupo, é o grupo de violeiro.
P/1 – Além da folia, seu neto participa de alguma atividade ou outro grupo?
R – Não, ele só participa da folia mesmo, estuda e faz curso.
P/2 – A senhora disse que trabalhou no posto.
R – Trabalhei.
P/2 – Então, como foi que a senhora começou a trabalhar? A senhora ia contar...
R – Quando eu comecei no posto foi assim, que a Emater fez essa reunião com o pessoal da saúde. Aí veio o pessoal do hospital, falou: “Vamos fazer uma reunião, vamos votar. A comunidade vai votar quem vai ficar pra ficar pra fazer o curso”. Aí a comunidade votou em mim, em João Miguel, e em Raimunda do Galeno. Aí a gente foi fazer. Foi fazer estágio, fazer curso. E em 83 que a gente entrou no curso. O posto já tava pronto, o posto de saúde. Aí fiquei até agora de 22 de maio.
P/1 – E o curso era pra quê?
R – Naquele tempo era o USB de enfermagem, hoje é auxiliar de enfermagem. A gente fazia
tudo. Eu fazia tudo: vacina, injeção, fiz até parto. No Catingueiro até parto eu fiz.
P/2 – O curso era longo?
R – Assim, naquele tempo não foi longo, porque quase 30 anos atrás, fomos uns três, quatro meses. Teve o teórico, depois foi para o prático dentro do Hospital de Sobradinho.
P/1 – Mas quantas vezes por semana?
R – A semana toda, de segunda a sábado. De segunda a sexta, todos os dias.
P/2 – O dia todo, ou não?
R – O dia todo. Quarenta horas. A gente fazia todo dia, oito horas por dia. Mas também valeu a pena, porque o que eu aprendi, valeu a pena.
P/2 – Aí com esse curso já ia direto para o posto trabalhar?
R – A gente terminou o curso, fez o teórico, fez prática, fizemos as provas, passamos em tudo. Porque só ficava quem passasse, quem não passasse... Em cada hospital tinha seu revisor, que cada setor tinha uma pessoa que era responsável por você: laboratório, pediatria, maternidade, tudo tinha um responsável por você. Ficavam ali só te observando. A gente tinha.
P/1 – A senhora trabalhou esses 32 anos só no Catingueiro?
R – Só no Catingueiro.
P/1 – Ou saiu pra outro lugar?
R – Não. Só no Catingueiro. As criancinhas que nasceram no tempo que eu tava no Catingueiro, hoje já são mães, esses bebezinhos.
P/2 – O posto, ele veio logo depois que acabou o curso, já formou o posto?
R – Não, o posto veio primeiro. Quando tava terminando o posto, que veio o curso pra gente fazer e trabalhar no posto, atender às comunidades. Não tinha agente de saúde, os agentes éramos nós mesmos que tínhamos que ir às casas pra entregar consulta. Se um paciente faltasse à consulta, a gente tinha que ir lá ver por que ele faltou. Sempre a gente ia. Brocotó, Pedreira, Boa Vista, tudo a gente que fazia . Era muito bom.
P/1 – Quando a senhora morou no Catingueiro, a senhora teve envolvimento com algumas outras comunidades aqui da região?
R – Quando eu comecei a trabalhar no posto.
P/1 – Só no posto?
R – Só quando eu comecei a trabalhar no posto que a gente foi envolvendo com as comunidades, conhecendo. E já ia, porque você tinha que marcar consulta, levar uma consulta. Quando uma criança nascia, você tinha que ia fazer a visita puerperal, era assim.
P/1 – E como vocês iam?
R – A pé ou a cavalo. Se desse pra ir a pé, ia a pé, senão montava num cavalo e ia. Hoje não, hoje os agentes vão tudo de carro. Hoje tem uma Kombi pra levar, tem um carro pra levar. Nós não, era tudo a pé. Quando não era a pé, era a cavalo, pegava um cavalo, montava e ia.
P/2 – Mas você ia sozinha em cima do cavalo?
R – Não. Ia mais a menina que trabalhava na limpeza, ela me ajudava muito. Que é a mulher do Messias que mora na Boa Vista, hoje ela tá no Sobradinho II.
P/1 – Teve alguma história que aconteceu nessas idas de cavalo, algum susto, alguma coisa diferente?
R – Tinha história demais, gente.
P/2 – Conta então pra gente.
R – A gente ia a pé, chegava lá, a gente andava, andava, andava. Via se almoçava, se conseguia ter comida, tinha vez que não conseguia, a gente pegava lima, pegava as coisas pra chupar na estrada. Era bom demais, sabe? E susto? A gente corria de vaca, corria de cachorro, tudo a gente tinha medo. Tinha muita vaca nas estradas. A gente passava debaixo dos arames, era cachorro, você corria de cachorro. Era muita aventura naquele tempo, gente. Hoje não, todo mundo tá de carro. Você vai fazer uma visita pra entregar uma consulta, é tudo no carro. Igual a Fercal aqui, a Fercal é porta à porta, é muito bom. Naquele tempo não existia isso, não. Era muita distância, era muito morro pra ir, era muita ladeira, sol quente, chuva. Não tinha dessa não! Hoje a gente ganha uma capa a gente ganha tudo. A gente não ganhava nada, tudo era da gente, tudo a pé, a cavalo. O cavalo era da minha casa, que não tinha nem o cavalo do serviço. A gente pegava o cavalo da casa pra montar. E eu jogava a menina na garupa e nós íamos.
P/2 – Você que ia levando o cavalo?
R – Eu ia levando o cavalo. Era bom. Naquele tempo era muito melhor que hoje, que hoje tem muita violência. Antigamente, nós criávamos os filhos, dormíamos até de porta aberta, você não sabia o que era uma violência. Ia para as festas. Criei meus filhos tudo assim. Hoje não! Hoje o cidadão tem que estar preso e as pessoas ficam aí aprontando. Igual Catingueiro mesmo, nunca existia falar em roubo. Hoje tem muito daqueles roubozinhos de galinha, tem muita invasão. Hoje tem, Catingueiro tem. Muitas pessoas não denunciam porque muitos: “Ah, não, é conhecido, é vizinho, não sei o quê”. Não denunciam e fica por isso mesmo.
P/2 – Ia pra festa?
R – Ia. E festa longe. Eu ia e levava as crianças tudinho, chegava e dançava a noite inteira. Eu mais o marido, a gente levava as crianças pra dançar. Levava, punha tudo pra dormir, eu ia dançar. Chegava em casa, ia trabalhar (riso).
P/1 – Seu marido ia junto?
R – Ia. Toda vida ele foi. Dançava que só também. Nós dançávamos a noite inteira. No outro dia vinha embora de manhã, carregava os meninos na cacunda, vinha embora pra casa. Chegava em casa, punha pra dormir, e eu ia lavar, ia para o córrego buscar água, lavar a louça, e continuar a vida. Grávida, aquele barrigão de gêmeos, descia ladeira de 100 metros assim, o córrego era fundo. E nunca reclamei da vida, não! Graças a Deus, acho que por isso que eu sou assim.
P/2 – E água limpinha ainda?
R – Água de céu aberto, de córrego, água limpinha, limpinha. Água doce.
P/2 – Ainda é assim?
R – Ainda tem o córrego, mas a gente não usa, usa água da Caesb agora, água tratada. Agora a gente não usa água do córrego mais, não.
P/2 – A senhora tava contando quando trabalhava no posto. Os outros dois que fizeram o curso também foram trabalhar no posto?
R – Foram. Eram a Maria de Lurdes e o João Miguel. João Miguel tá aqui até no Engenho Velho, até hoje trabalhando no Engenho Velho, e Maria Lurdes lá no Center 3, Sobradinho II.
P/2 – E a senhora falou que fez parto também?
R – Fiz, menina. Eu tava lá no posto trabalhando, a pessoa chegou e chamou. Eu peguei
uma camisola, calcei uma luva, cheguei lá, o neném tava coroando, eu acabei de pegar, pus no carro e levei para o Hospital Sobradinho. Tem que ajudar, né? Você tá ali na hora, é você ou é nada, tem que fazer. Fiz lá no Catingueiro.
P/2 – E quando a senhora foi presidente da associação foi já trabalhando no posto?
R – Já tava trabalhando no posto.
P/2 - E a senhora falou agora há pouco que foi pra São Paulo. Conta qual foi essa história.
R – A gente foi convidado pra ir ao Dia Internacional da Mulher lá em São Paulo. A gente foi. Fui eu, a professora Givonete, ela era a diretora. A Tereza foi até a comunidade, levou o convite, arrumou as excursões, nós fomos pra São Paulo. Foi lá no Memorial da América Latina, foi o Dia Internacional da Mulher. Foi o meu melhor passeio que nós ganhamos nessa vida foi esse, conhecer São Paulo. Fomos conhecer Morumbi. Foi ótimo lá, muito bom. Fomos a hotel de primeira, foi muito bom.
P/1 – Vocês foram com ônibus daqui?
R – Foi um ônibus de excursão, pegou a gente em sobradinho.
P/2 – E aconteceu alguma coisa engraçada, diferente nessa viagem?
R – Ai, gente, dona Dezinha que caiu no meio do povo, foi só isso (riso). O que eu achei que foi bom, é igual eu falo pra você, é você conhecer as pessoas, você conhecer o problema de cada um, as pessoas te contarem, integrar: “Eu sou isso, eu sou aquilo”. Uma falava: “Eu sou a presidente”. Tereza fazia participação da Federação dos Negros e das Mulheres. Era muito bom. Então aquilo ali é o conhecimento. Eu acho que o importante hoje é você ter conhecimento com as pessoas integração, se integrar. Lá tinha mulher de todo o Brasil. Um contava da sua comunidade, o outro contava da sua cidade, então aqui você fica assim pensando: “Ah, eu pensei que era só eu que era assim. Mas tem gente talvez melhor ou talvez pior”. Tem situação que é muito boa pra você participar, que você vai conhecendo.
P/2 – E vocês criaram lá outra organização nesse dia, nessa viagem?
R – Em São Paulo? Não. Criar não. A gente já foi nesse assunto mesmo, que era desse Dia Internacional da Mulher, só que a gente teve vários passeios lá, no final terminou com um show pra gente, foi muito bom. Depois do show a gente veio embora de novo. Foi muito bom estar lá.
P/1 – A senhora disse que integrou com as outras mulheres, ouviu muitas coisas nesse encontro. De toda essa história de participação, Mércia, o que ficou pra você até hoje de aprendizado?
R – Pra mim, o que nunca saiu da cabeça foi esse dia, o Dia Internacional da Mulher. Que eu acho que naquele dia as mulheres criaram valorização. Acho que aquele dia foi que eu vi que mulher é valorizada, mulher tem que participar, mulher tem que integrar. Aquele dia eu senti o valor da mulher brasileira dentro de uma comunidade, dentro de uma participação.
P/3 – Com a experiência que você teve lá, já que tinha mulheres de todo o Brasil, e até mulheres de outros países, eu também estive lá, o que você trouxe de lá como experiência que você pôde aplicar na sua comunidade, no seu trabalho do dia-a-dia, tanto como comunidade, como no seu trabalho, que é também de lidar com a população, com o público?
R – O que eu trouxe pra cá, não só pra mim, pra todas as mulheres, o que eu trouxe pra cá foi que eu acho importante muito você respeitar. Trabalhar com respeito, com amizade e saber ouvir as pessoas. Eu acho que não é só a gente falar, é também ouvir. Eu acho que a gente aprende mais em ouvir do que falar. É isso que eu achei. Tem gente que só quer falar, falar, e não quer ouvir o lado do outro. Eu acho que a gente o direito de ouvir. A gente aprende mais em ouvir do que falar.
P/2 – E hoje, dona Mércia, a senhora tá trabalhando ainda no posto?
R – Não. Já me aposentei. Agora dia 22 de maio eu aposentei do posto, da Secretaria de Saúde.
P/2 – E agora?
R – Agora eu vou ficar em casa. Vou fazer meu trabalho em casa e vou trabalhar com a comunidade. Se precisar de mim, tou lá. Sempre a comunidade me liga: “Mércia, você tá fazendo falta”. Eu falei: “Não. Não tou fazendo falta, não, tou aqui com vocês. Precisou, eu tou aqui, pode me procurar”. Mas eu acho que foi uma jornada, 32 anos eu prestei meu serviço como cidadã, que eu tinha que prestar o meu serviço para o governo, e também pra comunidade de tratar ela com respeito, trazer com amor, saber ouvir a comunidade. Porque você tá trabalhado na saúde, vêm muitos problemas. Às vezes a pessoa chega agitada, você tem que saber conversar. Você tem que saber conversar com a própria pessoa, nem tanto você tá trabalhando. Às vezes eu tou num lugar, a pessoa chega nervosa: “Calma, vamos conversar, o que aconteceu?”. Quando você pensa que não, acabou o nervoso dela, ela se abriu com você. Eu acho que isso é muito importante pra uma pessoa saber lidar com outra pessoa. Eu aprendi muito isso na minha vida. É saber respeitar e ouvir as pessoas.
P/1 – Dona Mércia, como liderança, teve alguma coisa que lhe entristeceu, que lhe magoou, que a senhora aprendeu, mesmo com esses problemas, a senhora tirou alguma coisa?
R – Eu fiquei triste foi na época de eu sair, porque teve uma eleição que algumas pessoas, não são todas, uma pessoa partidária, de outro partido, agrediu os meus filhos, apedrejaram o meu carro. Então aquilo ali me marcou muito, que eu trabalhei, prestei serviço oito anos com aquela comunidade, trabalhando, lutando pra ver a comunidade crescer, e naquele momento... Hoje eles ficam: “Mércia, volta”. Eu não volto por isso, eu não quero fazer “misturanga” com minha família, envolver a minha família nessas coisas. Eu quero ajudar fora de associação. De eu estar como presidente, fazer parte da associação, não. Eu quero ajudar como voluntária, mas como isso, não. Eu fiquei muito chateada, porque uma pessoa partidária entrou na reunião, falou: “Tira essa ladra daí. Você tá é roubado. Tira isso daí”. Então você fica chateada. Sempre eu tive as minhas coisas com honestidade, guardo as minhas notas até hoje. Como tem uma pessoa de testemunha, tem a Tereza, tem o Sálvio, todo mundo sabe que a gente trabalhou honestamente. Ia às reuniões até fora de hora, uma meia–noite a gente tava voltando pra casa. Então a gente sempre lutou pela comunidade. Eu nunca lutei pra comunidade pensar em dinheiro. Dinheiro não, eu tinha meu salário. Tenho a minha casa, tenho meus filhos, tenho meu marido, eu nunca pensei em roubar de associação. E outra coisa, associação não tem nada pra você roubar nela, e nem tanto as pessoas pagam. Você tira mais do seu bolso do que eles pagam. O certo é esse, você tira mais do seu bolso, mar por isso nem tanto eu ligava. Eu fiquei chateada de uma pessoa partidária entrar e fazer isso, então aquilo chateia muito. Eu nunca tenho vontade mais de pegar uma associação por isso.
P/1 – A associação é menos envolvida com partidos?
R – É menos. Ela não se envolvia. Sempre assim, a gente às vezes fazia qualquer coisa pra um deputado, alguma coisa, nas casas, nunca fizemos nada em órgão público. Nunca fizemos em centro comunitário, nunca fizemos em escola, nunca fizemos em frente o posto de saúde, sempre nas casas das pessoas. A gente pedia uma casa, a pessoa ia, a pessoa sempre ia lá, levava seu candidato à vontade, você vota em quem você quer. Eu acho que você tem o direito livre, você vota pra quem você quer e trabalha pra quem você quer. Eu acho isso. A gente nunca envolveu: “A comunidade, você tem que votar em fulano”. Não, não existe. Você tem a vontade livre. E a gente trabalhou sempre assim.
P/1 – Dona Mércia, voltando ao colégio do Catingueiro, como era o expediente lá da escola e como é hoje?
R – Olha, gente, sempre ela foi uma escola boa. Não sei a antiga que eu te falei, que não existia. Depois que existiu essa escola nova, que renovou, sempre ela foi uma escola boa. Sempre teve bons professores, eu não tenho que reclamar, bom diretor, assim, participativo. Sempre a escola foi participativa com a comunidade. Integrada, a escola foi integrada com a comunidade. Tudo que a escola precisa, uma festinha, a comunidade tá junto. Ali nunca teve separação: “Não, essa é a escola, essa é a comunidade”. Nunca teve isso. Sempre bons professores, bons diretores, não tem que reclamar.
P/2 – Como vocês conseguiram essa integração da escola com a comunidade?
R – Essa parte da Emater que eu falei, desse saneamento rural, que é a Emater. A Emater fazia muito curso dentro da escola, a escola cedia fogão, a escola cedia espaço. Então a gente foi entrosando com a comunidade. A escola com a comunidade, e até hoje. Se fizer uma festinha na escola, pedir: “Ah, cada um traz um pratinho”. Todo mundo leva. Se a associação pedir, todo mundo vai. Se a escola fizer, tem até festa de amigos, da festa dos amigos do Catingueiro. Todo mundo participa. É muito boa a escola.
P/2 – A escola abre espaço pra fazer festa lá dento?
R – Abre espaço quando é da escola. Agora, quando é da associação, da comunidade, é no centro comunitário. E a escola tem acesso ao centro também, não tem esse negócio, não. Precisou do centro comunitário, vai lá, faz a festa, dá aula. Teve aula integral no centro comunitário. Lá teve escola integral no centro comunitário, porque não tinha espaço dentro da escola.
P/2 – Esse centro comunitário, como ele foi organizado?
R – Ele foi no tempo do João Miguel. Foi feito pra associação. Eu não lembro qual foi o governo, acho que foi Zé Ornela. Eu não lembro qual foi o governo. No tempo do governo do Zé Aparecido que foi feito o centro comunitário. E tá lá até hoje prestando... Tá lá servindo a comunidade. Tudo que você vai fazer, um aniversário, uma festinha, o centro comunitário. Já teve casamento dentro do centro comunitário na minha época. Já teve casamento dentro do centro comunitário.
P/2 – Ainda é usado bastante?
R – É usado. Assim, é usado pra escola e usado pra comunidade. Todas as reuniões que faz, faz no centro comunitário. Tem uma área muito bonita, que o doutor Sálvio fez na frente, ajudou na reforma dele. Tem muito curso, curso Senai, já teve vários cursos. Lá é só pedir, a Emater vem, programa e faz curso na comunidade. Já fizemos muitos cursos lá: costura, bordado, de muitas coisas.
P/1 – E quais são seus sonhos? Já que a senhora disse que aposentou, quais são seus planos futuros?
R – Ai meu Deus, acho que agora eu quero pensar em dar uma viajada (riso). Não, mas meus planos agora são assim, é ficar em casa, curtir meu marido, curtir meus netos, minha casa. Acho que agora que eu vou curtir minha casa, que eu era visita, saía de manhã, chegava à noite. Só ficava em casa final de semana. Agora eu vou curtir minha casa, meus netos, meus filhos. Curtir minha vida agora.
P/2 – Será que acostuma?
R – Acostuma! Acostuma, porque era meu desejo. Porque eu já prestei 32 anos. O que eu tinha que fazer, eu já prestei de serviço. Minha missão foi cumprida.
P/2 – A gente já tá terminando, a senhora gostaria de contar alguma coisa, falar alguma coisa que a gente não perguntou?
R – Deixe-me ver. Não. Acho que o que eu tinha de falar, chegou aqui. Acho que se eu lembrar depois, hora que estiver em casa, posso lembrar. Mas foi muito boa essa participação, de conhecer todos vocês. Foi ótimo! Isso pra mim foi uma honra ser convidada pra participar. Porque eu nunca pensei que eu ia ser convidada pra participar um dia de uma entrevista pra contar a história da minha comunidade. Então acho que isso foi uma honra. Pra mim foi honra de mostrar, trazer o Catingueiro, trazer as origens do Catingueiro. Eu acho que isso aí vai servir para os meus netos, bisneto, para o pessoal mesmo do Catingueiro. Pra mim isso aí foi uma honra. Eu fico muito agradecida por vocês terem me convidado e fazer parte desse grupo.
P/1 – Só uma pergunta, por que o nome Catingueiro?
R – É nome de uma caça. Tinha muita caça que chamava catingueiro. Aí ficou por Catingueiro. O que eu conheço é isso do Catingueiro. O pessoal comenta que existia uma caça que chamava catingueiro. E ficou por isso, Catingueiro.
P/2 – A senhora já viu alguma vez um catingueiro?
R – Não. Eu nunca vi. O catingueiro mesmo eu nunca vi. Mas o pessoal... Os antigos só falam. Eu falo: “Por que Catingueiro?” “Não, porque era o nome de uma caça”. Aí ficou por Catingueiro.
P/1 – Os primeiros moradores do Catingueiro, a senhora sabe de onde eles vieram?
R – Que eu conheço, que eu tenho conhecimento, é seu Sebastião de Gilo, ele já faleceu, que é o pai da dona Josa. Quando eu conheci, já moravam no Catingueiro. Eles são dessa região mesmo. Não sei que região eles eram, não, mas criaram seus filhos tudo no Catingueiro, né? São os primeiros, antigos. Era meu sogro André, que era do pessoal da Rua do Mato, os Coleta, e o seu Sebastião de Gilo, os primeiros fundadores do Catingueiro.
P/1 – E quando foi o ano mesmo que a senhora chegou ao Catingueiro?
R – Em 73 eu cheguei ao Catingueiro.
P/2 – Lá eram chácaras?
R – Era. Assim, igual tá hoje, setor de chácara. Toda vida foi setor de chácara. Todo mundo tem seu lote, sua chacrinha, planta sua laranja, planta sua cana. Todo mundo a mesma coisa.
P/2 – A gente tá terminando. Muito obrigada. Foi muito gostoso ouvir a sua história.
R – Obrigada.
P/2 – Aprendi bastante também.
R – Obrigada vocês. Igual eu falei, eu fico muito grata de ter sido convidada...
FINAL DA ENTREVISTARecolher