A gente brincava muito, entrava só pra dormir

Morro dos Prazeres, este morro tem história

Realização Instituto Museu da Pessoa

Entrevista de Alsira Soares Leite de Oliveira

Entrevistado por Paula Ribeiro

Rio de Janeiro, 09 de abril de 2002

Código: MP_HV012

Transcrito por Neuza Guerreiro de Carvalho

Revisado por Alice Silva Lampert

P/1- Eu gostaria de começar nossa entrevista pedindo que você me dê o nome completo, o local e a data de nascimento, por favor.

R – Meu nome completo é Alsira Soares Leite de Oliveira. A data de nascimento é 30 de maio 1947. Local de nascimento Rio de Janeiro.

P/1- Você nasceu em que bairro, Alsira?

R – Eu nasci em Rio Comprido. Na rua....Vou pegar minha certidão de nascimento.

P/1- A gente está olhando a certidão de nascimento da Alsira e aqui indica que ela nasceu às seis e meia da manhã, no nº 280...

R – Casa 82.

P/1- Casa 82.

R - Na Rua Barão de Tefé.

P/1 – Na Rua Barão de Tefé. Isso era um hospital? Era uma casa? O que você acha?

R – Era uma casa. Naquela época não existia...

P/1 – Vocês moravam mesmo nesse endereço?

R – Nós moramos nesse endereço, que é lá no Morro dos Prazeres. No morro era dado esse endereço. 280 é no morro.

P/1- O que está escrito aqui Alsira? Eu não consigo… muito difícil entender. 280, casa 82, na rua Barão… esse homem estava bêbado. Você sabia que esse homem estava bêbado? O seu nome...

R – O meu nome aqui não saiu com “s”?

P/1- Isso aqui é um “s” ou um “z” ?

P/1- É um “z”.

R – Mas quando eu fui tirar a primeira identidade, saiu com “s”. Precisa ver o bode que deu isso aqui. É interessante que está registrada na 4ª zona, 7ª circunscrição, que era a freguesia do Espírito Santo [vozes misturadas].

P/2 - Provavelmente onde era o bairro de Santa Teresa.

R - E você não sabe da maior. A minha filha, quando foi ter a minha primeira netinha - você sabe que eu tenho uma filha adotada, mas é minha filha – mas eu digo assim, a neta carnal mesmo, ela teve ali no Amparo Maternal, que o marido dela é da Petrobrás e ela tinha direito. Aí, minha filha foi ter o nenê lá e ali é a Rua Barão de Petrópolis, olha a coincidência. Ai eu falei: “Pô, mas eu nasci na rua Barão de Petrópolis”. E você não sabe: fui eu que registrei minha neta, que o pai dela estava no Canadá, porque o pai é da Marinha. Eu, avó, fui registrar minha neta que nasceu na rua Barão de Petrópolis, no mesmo cartório em que eu fui registrada. Foi muita coincidência [risos].

P/1 – Bom. Alsira, Em relação aos seus avós. Você lembra o nome de seus avós, a origem dos avós?

R – O meu avô paterno, quando eu nasci, já tinha morrido. A única que eu me lembro um pouco é da minha avó. Também meu avô materno já tinha morrido quando eu nasci. A única pessoa que eu me lembro realmente é da minha avó, que é do tempo lá do Getúlio Vargas, era muito getulista. Isso eu me lembro. Mas a origem deles? Nada. Eu sei que meu avô materno era lá do _______ , foi enterrado por lá mesmo e a minha avó foi enterrada aqui – a mulher dele – foi enterrada aqui em Niterói, mas pouca memória tenho dela.

P/1 – E os seus pais? O nome completo de seus pais, por favor.

R – Antonio Soares Leite e Siomara de Oliveira Leite.

P/1 – E em relação aos seus pais. Sabe onde nasceram?

R – A minha mãe nasceu em Itaocara, cidade do Estado do Rio de Janeiro. São de origem dessa região. E o meu pai é do Rio de Janeiro com descendência portuguesa. Meus avós paternos eram portugueses mesmo, mas não tive assim acesso a eles. Eles morreram… meu avô morreu em 1945, minha avó parece que em 1946 e eu nasci em 1947. Não tive nenhum relacionamento com eles não.

P/1 – O que você poderia contar pra gente, Alsira, sobre a história de seu pai? Sabe lá onde ele nasceu, em que lugar da cidade? Como era a profissão de seu pai?

R – Papai era uma pessoa levada. Eu sei que o homem ia até a Lapa. O antigo Camisa Preta, Miguelzinho Camisa Preta - a música – e aquele Meia Noite, o Edgar, eram da Lapa. Era muito levado. Mas depois que ele casou com minha mãe, houve uma certa... Ele ficou mais calmo. E o que eu me lembro dele… sei que nasceu no Rio de Janeiro, mas não sei aonde. Não sei mesmo. Parece que nasceu em Niterói. Não tenho muita certeza não. Parece ter nascido em Niterói. Eu me lembro muito da Vila Pereira Carneiro, que meus tios moravam na Vila Pereira Carneiro, lá em Niterói, e havia uma relação muito grande com essa vila. Meu avô foi engenheiro. Na época, aqueles engenheiros sem estudo, mas com experiência. Imagina, meu avô, pai do meu pai, nasceu em 1909. Então, o meu avô trabalhava pro Conde Pereira Carneiro, dos navios. Ele tinha até direito a uma casa, na vila Pereira Carneiro. Então é o que ocorre? Mas eu não tive contato. Com ao meus tios. Agora o meu pai, não tinha muito juízo sabe, como _____ mas conduzia a vida. E nos conduzia junto com ele. Ele trabalhava no cais do porto e tinha um caminhão. Tinha um ajudante chamado José Higino, que eu me lembro bem do José Higino. Como é gostoso a pessoa deixar lembrança pra você. Como é gostoso. Mas então, ele ia no cais do porto, pegava aquelas caixas que antigamente tinha. Não existia o contêiner. Vinha tudo de fora. Até maçã. O Brasil não produzia nada. Nada vezes nada. Era pra seu próprio consumo. Agricultura individual. Então, papai pegava aquelas caixas e então propositalmente até – não sei essa parte – e deixava cair. Isso da época do Getúlio. Não existia mercado. Eram armazéns. Nós chegávamos e comprava 100 gramas – como eu te falei – de arroz. 100 gramas. Era muita pobreza mesmo. Eu vi muita pobreza. Sou da época de fazer a comida de porco – como é que chama? Como é que chama a comida de porco?

P/1- Lavagem.

R – Lavagem. Sou da época da lavagem. Um fedor desgraçado. E aquelas filhas ficava ali rodando aquela... Imagine como eu fui criada. Você não sabia que aquilo era errado, mas você sentia. Eu por exemplo, eu sempre tive uma... eu não sei se isso acontece com você, Paula. Você por exemplo diz: “Não, aqui não é meu lugar”. Eu sempre tive muito isso comigo. Está entendendo? Eu estar num lugar – eu não sou nada - mas espiritualmente sim. Meu espírito está galgando, está ambicionando alguma coisa mais. Eu me lembro que eu tinha consciência que eu estava ali no Morro dos Prazeres mas sentia que ali não era o meu lugar. Ali era uma coisa temporária, como foi mesmo. Eu saí com sete anos de lá.

P/1 – Você sabe como é que foi a chegada da sua família ali, no Morro dos Prazeres? Como é que você acha que você pode datar essa época?

R – Papai comprou. Papai comprou um casebre ali. Papai comprou um casebre. Nós éramos muito pobres mesmo. Nós morávamos de aluguel. Eu sou do tempo, Paula – talvez ainda exista – das cabeças de porco. Era aquelas vilas com várias casas e um banheiro coletivo para todo mundo, um tanque para todos. Morávamos em quartos.

P/1- Quer dizer, você nasceu no Morro dos Prazeres?

R – Eu nasci no Morro dos Prazeres. Está aqui olha. Eu achava que você devia levar uma xerox disso aqui, para você constatar que realmente o 280 é no morro. O começo do morro. A numeração...tanto é que eu passei de carro um dia desses com uma amiga, e aí eu falei: “Nossa, eu nasci por aqui”. E ela: “ Aonde?”. Eu falei: “ Eu não sei” e ela: “Mas aqui é tudo morro”. Eu não queria falar pra ela que eu tinha nascido no morro. Porque eu achei que não era uma pessoa que merecia o meu passado. Mas sempre o passado está me ____ então eu ocultei. Mas bem que quando eu passei aqui pra pegar o túnel pra ir na rua Alice. Por que? Porque ela morava, ou mora nas Laranjeiras. Então, ela cortou por ali. Que ali vai dar na Rua Alice nas Laranjeiras, quase em frente à Rua Alice. Aí, eu vi a entrada do morro.

P/1 - Esse que nós entramos?

R – É. É a entrada do morro.

P/1 – Você sabe se seus pais já moravam lá há muito tempo?

R – Não. Não. Bom, eu nasci em 1947. Meu irmão nasceu lá. Em 1942. Não, espera aí. Meu irmão acho que não nasceu lá não.

P/1 –Teu irmão é de que ano?

R – Meu irmão é de 1942. Eu sou mais velha que ele... não espera aí. Eu sou de 1947 e meu irmão é de 1944. Em plena guerra. Não. Meu irmão não nasceu lá não. Meu irmão nasceu numa cabeça de porco – me lembrei – como é que chama? Botafogo, na antiga campina. Eles moravam lá, naquelas cabeça de porco, que era um quarto para famílias. Ai papai com o caminhão conseguiu… eu não sei se foi... eu acho que não Paula, aquilo não foi comprado a troco de dívida. Papai levou o material para construir uma casa, e parece que tinha uma fossa. Foi qualquer coisa assim... porque não houve dinheiro, porque não havia. Paula, eu não me lembro de ver dinheiro naquela época. Nós crianças mesmo... a vida era muito dura. Não tinha dinheiro. Nós estávamos passando por um período igual agora. Nessa época atual.

P/1 – Conta um pouco como é que era sua infância no Morro dos Prazeres. Me conta. Como é que era a casa? Descreve-me um pouquinho.

R – A casa, ela era um barraco de _____

P/1 – Mas era de tijolo, de estuque? Como é que era?

R – De tijolo. Quando nós fomos morar lá, era um cômodo. Papai, com esse caminhão fazia muito frete. Já existia frete. A vida era parecida com a atual. E na época, ele carregou material pra uma pessoa, e a pessoa deu em troca aquele terreno ali, com um casebre. Mas era só um casebre. Eu morei em cama feita de ripa. Eu sou do tempo das camas feitas com um pedaço de caixote. O caixote pra mim, representa muita coisa. Eu lembro que o nosso beliche foi papai quem fez. Com caixote, nesse cômodo. Era separado com uma cortina. Depois, papai fez um quarto pra mim e meu irmão e ficou com o quarto. Mas era tudo pequeno. Me lembro que era tudo pequeno, e eu via muito porcos. Muito porcos.

P/1 – Muito perto da Barão de Petrópolis. Essa casa foi a casa onde você morou?

R – Lá em cima. Onde eu nasci. Quando eu nasci, ainda era um casebre.

P/1 – E os porcos, como é? Tinha criação de porcos nos vizinhos ou do seu próprio pai?

R – Não. Nós não... ah. Nós tínhamos também. Teve uma época que nós tínhamos e morreu tudo de uma febre que deu. Todos os porcos. Era uma vida muito dura, uma vida muito... eu vejo meu ______ Ele tem indústria lá na cidade. É brasileiro, veio pra cá com sete anos de idade, passou por várias cidades, São Paulo. Niterói, São Paulo. Não tem um mando, mas tem também condição para sobreviver. Mas, como eu estou te falando, havia muita criação de porcos, muita vala negra. Eu lembro das valas negras. É muito parecido com a atual. O Brasil em si, ele só se expandiu demograficamente.

P/1 – E cozinhar? Como era a cozinha? Sua mãe cozinhava com que? Como é que era?

R – Isso eu lembro. Inclusive eu fui queimada. Era com carvão. Carvão. Sabe aqueles fogareiros? Até uma vez, a panela de feijão caiu em cima de mim. Não me queimou, me salpicou. Me lembro minha mãe gritando. Os banhos, Paula, eu sou do tempo da bacia. Da bacia. Não havia água corrente. E faltava muita água lá. A água lá era uma desgraça. Eu lembro muita gente carregando água. Eu lembro, por exemplo, nasceu criança, o pessoal passando correndo, com mulher parindo, filho preso na barriga, que não conseguia... um tipo África. Aí, pra mim representava… agora eu estou falando tudo. Me representava muito a África atual. Eu lembro que eu criança, uma vez eu estava assim, eu tinha meus cinco aninhos. Aí passou um bando e ia uma mulher dentro de um lençol. Uma mulher dentro de um lençol e uns oito homens carregando aquele lençol. Eu me lembro o barrigão da mulher. Pra ser atendida no hospital porque ela não conseguia ter o filho, e o filho morrendo. Olha a miséria. E, o que eu ia falar? E o pessoal fazendo aquela lavagem pros porcos, para tratar la mesmo. Pobreza. Pobreza mesmo.

P/1 - Você estava comentando que seu pai trabalhava então... ele ia no cais do porto, pegava as mercadorias e revendia essas mercadorias?

R – Não. Não ele trabalhava, ele recebia de acordo... por exemplo, um armazém… ele já tinha o armazém certo. Ele era um tipo de contratado entre aspas. Você sabe. A turma do armazém dizia assim: “Olha, vai chegar dez caixas de maçã. Tu vai lá e pega essas dez caixas”. Papai levava essas caixas de maçã. Bacalhau, maçã, azeite. Minha casa nadava em azeite [risos]. Quando acontecia um problema com o caminhão, ele não recebia. Quebrava o caminhão e ele ficava uns 15 dias. Aí nós sentíamos alguma dificuldade. Está entendendo? Mas no morro eu nunca senti muita fome. Mas tinha muita gente passando fome. Muita gente. Por exemplo, teve épocas que meu pai parou, não sei porque. Até que meu pai conseguia manter as entregas. Porque havia essas épocas. Tinha época que a gente tinha muito azeite lá em casa. Bacalhau, como eu falei, Mas tinha época que sumia. Agora não sei. Eu, no meu entender agora, eu calculo que seja por causa de... caminhão estragar, alguma coisa, ele recebia de acordo com o que ele entregava.

P/1- Você lembra desse caminhãozinho?

R – Lembro, lembro.

P/1 – Com é que ele era?

R – Era um caminhão de mil e novecentos e lá vai pedrada. Se não me engano, fordinho. Mas ele carregava muitas coisas. Ele mesmo ia no cais do porto, pegava mercadoria, entregava e era pago pra isso. Inclusive acho que em Santa Teresa, agora no começo do mês, eu vi um armazém dessa espécie. Lá existe. Até uma senhora está com noventa e poucos anos. Aí eu subi lá pra visitar a mulher atual do meu ex-genro, marido da minha filha, ex marido da minha filha que eles são muito unidos. Aí eu fui lá pra visitar a Claudia. Ai a Claudia não estava, fiquei esperando, e eu entrei nesse armazém pra tomar uma cerveja. Ainda falei pra mulher...eu vi aqueles sacos que você falou. E aí falei: “Nossa! Eu sou do tempo desses armazéns. Esse armazém me lembra muito meu pai”. Cheio de saco, barata, rato.

P/1 – Agora, em relação ao seu pai e sua família no Morro dos Prazeres. Como é que era?

R - Meu irmão era o dia inteiro em cima de um cavalo, perdido. Voltando ao assunto. Não era tão demograficamente habitado. Eu por exemplo, eu lembro, que nós morávamos em casa muito simples, mas tinha quintal. E quando eu voltei em 1983 – minto. Em 1981 - para visitar - eu já achei aquilo muito saturado. Os morros não eram assim com uma casa em cima da outra… e não existia como essas construções agora, puxarem para cima. Não existia isso. É interessante, não?

P/1- Quem eram seus vizinhos, Alsira?

R – Era essa Lisete. Lisete. Eu tinha uma foto da Lisete. Era em baixo...não. Morava um pouquinho acima. Tinha uma escada pra subir. Até uma vez eu caí dessa escada. Morava seu Emílio, que estava até com problema de pulmão. Existia muita… como agora. Tuberculose. Era assim. Morava seu Emílio em baixo, a família da Lisete do lado.

P/1 - Você se lembra qual era a atividade dessa família?

R – Olha, eles eram negros. Eu conheci essa gente… quando eu nasci, simplesmente há uns 57 anos. Espera um pouquinho. Vou fazer as contas. Eu sou de 1947, tinha 59 anos que tinha terminado a escravatura e eu conheci escravos. Ali era um reduto também de escravos. Ali parecia um reduto de tudo. Eu não sei o que atraia...

P/1- A maior parte dos habitantes era negra?

R - Negros. Negros. Muitos negros. Não que eu tenha nada contra os negros. Pelo amor de Deus. Mas eram muitos negros e pobreza. Então, era gente biscateira. Meu pai era um biscateiro. Meu pai sempre foi um biscateiro. Mas tinha profissão. Eram biscateiro, trabalhavam... havia muito era feira naquela época. Os xepeiros e ajudantes de feira que carregavam aquelas caixas. Ali dava muito esse tipo de coisas. Não tinham profissões definidas.

P/1 – E sobre a presença de imigrantes portugueses? Você lembra ali...

R – Olha, portugueses, eu lembro inclusive, o Sensinho que veio com a mãe e o pai. Brincava muito com ele.

P/1 – Sensinho?

R - É o nome dele era parecido com Censo. Chamava de Sensinho. Ou Inocêncio. A gente chamava ele de Sensinho. Eles vieram de Portugal sem nada. Sem eira nem beira. Um parente que pagou. Veio ele, um filho, uma filha – me lembro bem da filha - da postura de portugueses que são meio fechados. Imagina há quantos anos atrás. O garoto tem hoje quase a minha idade. Era um pouco mais novo do que eu. Então, o que ocorre? Eu brincava muito com o Sensinho. Eles estavam ali provisoriamente. Havia uns portugueses - era um tipo de uma estalagem provisória. Você sentia que não era o “eu” deles. Está entendendo. Por exemplo, um parente trazia, aí arrumava aquela casinha muito barata o aluguel ali. Muitos alugavam. E eu brincava com esse Sensinho. Então, os portugueses aqui, na verdade, não tem muita história não. Vieram de passagem.

P/1- Brincavam do que Alsira?

R - Pois é. Eu sou do tempo... por exemplo, como eu te falei. No morro não havia essa superpopulação. Tinha muito quintal. Eu lembro do quintal. Eu brincava ali fora, e eu olhava assim por céu – que eu gosto muito da lua. Adoro a lua. Sou mais chegada à lua do que ao sol. Então, eu olhava assim a lua... brincava muito. Eu sou do tempo de brincar de roda, passa anel. Cantar. “Passará. Passará. O que me deixa eu passar.” Até hoje. E aquela “Eu sou uma pobre viúva...”. Mas brincávamos muito. Brincava muito mesmo. As crianças sabiam brincar. Não havia essa aberração de agora.

P/1 - Quer dizer que vocês brincavam no quintal da casa de vocês?

R – No quintal. No quintal. Não no meu. O meu não tinha muito quintal não. Mas eu descia e ia brincar numa casa em frente. Tanto é que quando eu cheguei... Não é quando eu cheguei. Quando eu fui lá em 1981, eu olhei e falei assim: “Eu brincava aqui. Eu brincava aqui.” Aí eu lembrei...Talvez agora eu indo, eu tenha uma memória melhor. Não vai entrar o choque. Vai entrar mais a realidade. Porque eu queria talvez, que aquilo fosse tudo igual. Eu falei pra Taninha: “Taninha, eu brincava aqui.” A Taninha já é menor. Ela devia ter uns dois aninhos na época. Mas ela lembrava de mim e do meu pai também. Então, o que eu falo é o seguinte: a gente brincava muito ali fora, entrava só pra dormir. Porque não tinha televisão, mas nós tínhamos a brincadeira, a pureza. Você não via ninguém pintado. Nada disso. Não via. E brincava muito. Era muito gostoso mesmo. Aquele… [cantando]:

“Que ofício dar a ela?

De marré, marré, marré.

Que ofício dar a ela?

De marré deci “

Aí voltava:

“ Ofício de “professora”

De marré, marré...”

Brinquei disso:

“Passará, eu passarei.

Você me deixa eu passar.

Se não for o da frente…”

Olha, imagina. Gravar isso. E aquele:

“Carneirinho, carneirinho

Carneirão, neirão, neirão...”

E aí todo mundo deitava no chão. Aquilo era tão gostoso. Era a pureza da nossa alma. Era aquele céu maravilhoso. Aquela lua. Que hoje as crianças não vêm. Eu me lembro que eu deitava no chão e tinha que levantar. Eu não queria levantar. Eu queria ficar olhando pro céu. Eu sou uma privilegiada. Graças a Deus, tenho muita memória boa. Tive um pai que me amou muito. Me amou muito. Que meu pai me adorava.

P/1- Você está falando da Tânia. Você que é de 1947, volta e reencontra algumas antigas moradoras.

R - A Lisete eu não vi, porque infelizmente nesse dia que eu fui, o que ocorre? Eu tinha um compromisso… olha, eu não faço isso, tanto que até hoje não faço isso. Eu quando tenho uma coisa, faço uma coisa só. Eu podia ter ido. Eu almocei na casa da Taninha, eu almocei lá. O marido dela tem uma casa de negócio de pesca. Tânia e Lisete.

P/1- Você vai pra lá agora?

R –Não. Não. Agora não.

P/1- Agora, o que a Tânia lembrou do seu pai, Alsira?

R - A Tânia… Quando eu estive lá, quer dizer, eu subi o morro.... [barulhos externos]. Estou até arrepiada. Então eu passo em frente e essa casa nem existe mais. Talvez fosse um reflexo da última vista que eu ia ter dessa casa. Isso deixou uma recordação. Algumas muito boas,como eu falei pra você. Foi lá que eu tinha como deitar, olhar o céu, que as crianças não tem. Acho que são muito agitadas, mas eram muito calmas. Não existiam crianças bravas. Não existia essa rebeldia. Nós éramos pacíficas. Eu sou do tempo que a minha mãe olhava pra gente tranquila. Hoje há uma rebeldia incrível. Aí quando eu subi, tive vontade de ir lá. ________________________________ Então eu fui pra recordar mesmo. Para voltar ao passado. Até meu pai. Falam muito dessas chácaras lá em baixo. Em 1980, tinha uma chácara, meu Deus. Eu lembro das formigas de carro. Tinha formigas de carro ali. Procura que tinha. E no verão...

P/1 – Lembra um pouco disso. Como é que era? O verão.

R – Eles inventavam uma artimanha para ter corrida de carro. Não existia pista. Corriam ali, que ali eles pegavam aquela rua… sabe os malucos daquela época. A rua ali não é… como é que chama?

P/2 - __________

R – Curvas. Justamente essa. Aí a corrida, faziam lá em baixo. Começava ali no Rio Comprido. Corrida de carro. Eu lembro que tinha. Eu lembro.

P/1 - Mas passando pela rua…

R - Barão de Petrópolis. Subia e descia. Faziam ali de pista. Eu lembro. Eu tenho certeza.

P/1 – Durante o dia?

R – Durante o dia. E nós crianças ali. O bonde vinha até um certo trecho.

P/2 – O bonde não subia aquilo ali?

R – O bonde? Eu sou do tempo do bonde. O bonde vinha até um certo trecho. Tinha uma escola ali. Uma casa que era uma escola – até _________. As meninas todas uniformizadas _____ que iam estudar ali. Meu pai não tinha condição de pagar escola. Aí as crianças com aquela boininha, sabe aquelas boininhas....

P/1 – Mas como é que era? Você, na tua época de ir pra escola, você foi pra escola?

R – Não. Eu comecei a estudar com um professor. Eram homens que nem eram formados professores, mas tinham uma certa cultura... aí montavam na própria casa.

P/1 - No Morro dos Prazeres?

R – No Morro dos Prazeres. Montavam uma saletinha, vamos dizer assim, aqueles banco de madeira [risos]. Os bancos de madeira – eu diria assim – bancos super desconfortáveis. As minhas perninhas curtas. Aquilo me incomodava. Aí eu sentava ali, ele vinha, ele… era uma - como é que chama? Um negócio comprido assim. Espécie de uma gaveta pra você escrever. E sentada no banco. Era tudo junto. Ele separava por série. Quarta série, terceira série...

P/1 – Por quê? Vocês não iam à escola pública?

R – Não. Não existia. Ali não existia. Aqui não existia. Tanto não existia que eu fui aprender a ler com ajuda de um professor, que se fazia de professor. Não era nem professor, mas tinha um certo estudo. Vamos dizer, um ginásio. Naquela época tinha o ginásio. Eu sou do tempo que tinha o ginásio. Era ali, pô. Quem fazia o ginásio...

P/1- Seus pais eram alfabetizados?

R – Eram. Tinham só o primário. Aprendiam a ler. A ler e escrever. Não eram ignorantes não. Tinha muita gente lá que não sabia. Aí, o que ocorre? Eu me lembro que o homem passava aquelas lições do “A” e aí eu tinha que ir por cima da letra dele pra cobrir. Sou do tempo do “cobrir”. Aí depois, esse frei, frei Pisco arrumou pra gente ir pra escola, que era ali. Eu sei onde é Paula. Se eu for lá eu eu vou dizer: “Foi nessa casa aqui que estudei”. Aí nessa escola ia gente muito pobre, não iam uniformizadas. Elas não tinham dinheiro. Eu me lembro que uma vez um garoto me deu um tapa, mas eu não estava bem. Comecei chorar e aí meu irmão veio, meu irmão me defendendo, brigando com o garoto.

P/1 - Quando você fala “nós”, é você e seu irmão?

R – É. Eu e meu irmão.

P/1- Que era o frei Pisco que você cita?

R – Eu não me lembro. Ele era alemão. Eu lembro que eu ia na… escuta, lembra desse detalhe. Preciso perguntar pra Lisete. Mas eu me lembro que eu ia na igreja todo domingo. Nós ganhávamos um cartão – falei pra você inclusive – nós ganhávamos um cartão pelo comparecimento nas missas. Porque aquele cartão, chegava no fim do ano, frei Pisco transformava aquilo num prêmio. Quando eu saí do morro, eu tinha tanto consciência que aquilo era importante – acho que nem tanto a missa – vai me desculpar. Mas pelo prêmio. Porque nós éramos muito pobres. Eu sou do tempo em que não existia presente de Natal. Não havia essa propaganda do Natal. Eu sei do Natal porque minha mãe fazia alguns doces. Tinha muito doce de coco no pote. Não existia docinho. Muita pobreza. Bolo sim. Foi depois da guerra. E aí, o que ocorre? Então, eu dei esses cartões, imagina, quase o ano inteiro. Nós saímos de lá no mês de julho mais ou menos. Eram vários cartõezinhos. Toda semana. Uma vez por semana. Quando ele atraía nós. Olha. Olha a perspicácia. O porquê? Eu nunca vi um padre fazer isso. Atrair a gente para a igreja. Gostoso. É uma forma inocente.

P/1 – Mas a que dava direito esses cartõezinhos? O que tinha de prêmio?

R – Não sei.

P/1 – Você nunca foi contemplada?

R – Quando eu saí, eu tinha muitos cartões. Aí, eu me lembro que era tão importante, que eu passei pra Lisete. Eu criança, eu lembro eu dando os meus cartões pra Lisete: “Olha, eu vou embora. Aqui ficam os meus cartões”. Quer dizer, ela ficou com os dela e os meus.

P/1 – Você acha que por ventura pode ser no Casarão?

R - Eu não me lembro. Eu não sei. Era uma igreja mesmo. Eu liguei pra minha prima: “____ você lembra da Igreja?”. “ Não”, ela me respondeu. A Lisete vai saber. Os moradores antigos entre a minha faixa etária de idade, talvez até mais – que tem gente lá de mais idade – vão saber do frei Pisco, um alemão. Ele era forte, loiro, alto. Ele que arrumou pra nós estudarmos nessa escola. Ainda fez uma caridade pra gente se sentir bem.

P/1 – Qual era o nome dessa escola? Você lembra?

R - Não lembro. Eu sei que as crianças tinham uniformes. Era uma casa.

P/1- Em Santa Teresa?

R – Não. Ali na Barão de Petrópolis. Na Barão de Petrópolis. Eu via o trem passar. O bonde passar. O bonde cheio de gente. Eu via. Eu via o bonde passar. Aí, o que ocorre: era uma casa, havia várias salas, que costumava existir salas. Várias salas de aula vamos dizer assim. Ia toda uniformizada. O que era o uniforme pra mim? Era um símbolo, um poder. Ali não tinha colégio. Não tinha. Não sei se em outros lugares tinha colégio do governo. Ali não tinha. Não tinha.

P/1- Você saiu do Morro dos Prazeres com quantos anos?

R - Eu saí com sete anos. Fiz oito anos em 1954. Eu fiz oito anos em Niterói. Me lembro até que papai me deu um bolo. Papai todo ano dava um bolo _____. Em baixo do morro tem uma chácara. O pessoal não está procurando _____.Pra você como a gente fica atraída pelo _____ Eu em vez de estudar aqui, eu fui estudar em Rio Comprido porque eu falei: “Eu não vou pagar escola”. Meu marido pagava um bruta imposto de renda na época. Eu falei: “Ah Tânia, eu vou pro Dom Pedro II”. Eu fiz segundo grau velha. Eu fiz segundo grau no Estados Unidos. De noite ele é... como é que é o colégio de noite? Tomás Antônio Gonzaga. De dia Estados Unidos.

P/1 – Ah. Você foi estudar mais tarde. Você fez só o primário e depois...

R – Fiz o primário muito mal e aí só fui estudar mais tarde. Porque foi uma luta criar filhos, viajar com o marido. Fui embora pro Paraná. Está entendendo? Muita luta. Então eu fui estudar no Estados Unidos que de noite é o Antônio Gonzaga. No segundo grau de lá. Entrei direto na Faculdade UFRJ Aí eu falava com os colegas assim: “Olha, aquela chácara...”. Daí vi essa chácara. Agora é um condomínio lá. Muitas casas. Eu queria ir lá. Alguma coisa me impede?

[Mistura de vozes].

R - Como eu estou te falando. Esse Casarão, que eu me lembro dele, é de uma mulher magra à beça, proprietária, magra. Se não me engano era inglesa. Ali moravam muitos ingleses. Por causa do clima. Eu sou do tempo que Santa Teresa não era tão povoado. Eu me lembro que nós passávamos... Íamos pegar fruta pão, você sabe. Ia com minha mãe, aquela tropa, aquela criança, todo mundo novo...

P/1 – Ia pegar onde?

R - Nós íamos pegar no Casarão. Tinha árvore no Casarão. Nós íamos pegar lá e também espalhadas. Era uma fruta muito comum Apesar de que eu não gosto de fruta pão. Até que há pouco tempo me deparei com uma delas. Então, o que ocorre? Era muito mato. Eu conheci mato. Mato. Eu sou do tempo que a gente pegava a tal da serralha pra fazer sopa. Conhece? Pois é. Há pouco tempo eu vi. Falei “Ah, moço. Isso me lembra minha meninice lá no Morro dos Prazeres”. Nós éramos pobres. Mas tinha época das vacas gordas_______________________________________________________Aí nós saíamos pra catar serralha. Todos catavam serralha. Serralha é um tipo de uma verdura. Um tipo não. Ela é uma verdura comestível. Então fazíamos muita sopa, ensopadinho.

P/1- Isso tinha ali no Morro dos Prazeres.

R – Tinha. E há pouco tempo eu me deparei, não sei aonde porque eu ando tanto. Tem um mês mais ou menos... não sei se é uma feira? Serralha. Vou comprar. Vou comprar. Ah. Lembrei. Em Marechal Hermes. Se você passar por Marechal Hermes, lá tem. Falei: “Moço, pelo amor de Deus, eu lembrei da minha meninice catando serralha pra fazer sopa.”. Então nós pegávamos serralha… Era a família atrás de serralha. Olha, pra falar a verdade nós éramos tão pó... – morava também uma tia minha também, com cinco filhos na travessa desse morro. Tia Lúcia. Ela era chifreira. Imagine. O marido não fazia nada. Uma miséria desgraçada. Juntava aquelas. [Sons externos]. E nós saíamos pra catar fruta pão. Nesse Casarão tinha...

P/1 - Você estava falando dessa senhora inglesa, que morava lá.

R - Morava uma senhora inglesa e tinha um mato muito grande atrás desse Casarão. E aí ela falava assim… eu me lembro que estava eu com a minha mãe, um monte de crianças, com aquelas bolsas, catando... bolsa de... não era de plástico. Não existia. Eu me lembro que a mulher falou assim: “Entra, já vai dar cinco horas.” Por causa da instrução dela. Eu me lembro que ela falava assim: “Vai dar cinco horas e eu vou ter que entrar porque eu tenho muito medo de ficar aqui fora”. E aí minha mãe falou: “Por que?”. E ela falou: “Não, porque aqui dá muita assombração”. Eu não sei se era o mato que causava essa impressão pra ela, mas ela tinha medo sinceramente. Ela morava sozinha naquele Casarão. Eu não lembro. Eu lembro ela sentada do lado de fora, magra. Magra. Uma mulher magra. Morava ali.

P/1- Por que você acha que era estrangeira?

R – Por causa do sotaque pesado. Eu gravava muito as coisas. Tenho memória auditiva. Minha memória é muito auditiva. É mais auditiva que visual. Eu pouco vejo.

P/1- Que ano era isso?

R – Isso devia ser 1955. Não espera aí. Não pode ser 1955 se eu saí em 1954 de lá. Espera aí. Eu saí com sete anos. Isso devia ser 1953. Isso mesmo, 1953.

P/1 – Mas o que vocês da comunidade, que viviam no Morro dos Prazeres achavam, pensavam desse Casarão. Vocês tinham alguma relação com ele? De distanciamento? Por quê?

R – Porque era gente rica e nós pobres. Era como se fosse uma… era como se você morasse perto assim de um convento. Eu não lembro… eu me lembro da entrada dele. Ele tinha uma entrada meio longa. [Alsira perguntando para alguém]. Tinha entrada longa?

? - Tem várias entradas até hoje.

R – Eu lembro da entrada meio longa. Não longo, longo, mas… [Alsira perguntando para alguém]. Tem uma varanda?

? – Lá tem varanda.

P/1 – Aquela entrada...

? – Tem sim. Tem um lado que tem. Que é o lado...porque você subiam pela Almirante Alexandrino?

R - Eu tenho que ir lá. Tenho que ir lá.

?- Você quando criança entrou?

R - Não, não entramos. Nós éramos muito pobres, miseráveis. Oh Paula, eu sou do tempo que não tinha sapatos. Paula _________________ escravatura. Muita pobreza no Brasil. Está entendendo? Tinha terminado a guerra. 1914. 1918. Não sei se o Brasil esteve na guerra de 1918. Não sei.

? Parece que esteve sim. Esteve sim

R – As coisas eram muito difíceis. Eu lembro que faltava muita água. Nós não tínhamos água encanada. Não, não tínhamos água. Eu sou do tempo do esgoto correndo a céu aberto. Das fossas. Então o que pode ocorrer é o seguinte: o Casarão era uma barreira. Uma barreira. Como um feudo. Ali o castelo e nós. Ali era um feudo e nós os vassalos. A miséria. Nós íamos lá pra catar. Catar uma sobrevivência. Catar uma sobrevivência. E andava aquilo tudo ali. Eu lembro que _____ estava no alto, mas também aquela barreira. Você sabia que era uma pessoa importante e você não era nada. Você não era nada porque papai _____________ Não é porque era uma pessoa importante que você... Papai sem querer passava e isso não era nada. Aí mora fulano. Um fulano qualquer. Um status.

P/1- Vocês tinham rádio? Lembra do rádio?

R – Muito pouco. Eu lembro muito da minha mãe costurando, de costas pra mim. Eu tenho verdadeira aversão das pessoas de costas pra mim. Minha mãe costurava para fora, para sobreviver. Eu sou do tempo da Casa Canadá. Depois da Adalgisa Colombo, mas aí já estava maior. Mas nessa época, minha mãe pegava muita roupinha de criança pra costurar.

P/1- Na época do Morro dos Prazeres?

R – No Morro dos Prazeres subia aquelas roupas pra costurar. Não existia sistema de costura. A costureira fazia em casa. Então, ela sempre de costas pra mim, eu não me lembro do rádio. Eu me lembro dela sempre fazendo a comida. Horríveis. Sopa. Não sei. É isso que eu queria… eu gostaria de encontrar uma pessoa pra me falar porque, se uma época tão farta e era uma época de muita miséria. Me lembro daquela sopa branca, com gosto de alho, aquela comida rápida. Não sei também se era um pouco de preguiça dela. E eu ali participando daquela comida horrorosa. Aí entra na da mulher do lado, com aquele panelões de ferro. Fogão de lenha. Usava muito fogão de lenha naquela época. O carvão a gente não usava. Aquilo era uma coisa de rico. Geladeira nem pensar. Imagine [risos]. Então, o que ocorre? Me lembro muito da minha mãe lavando roupa pra fora. Entregando pra dona Fulana, dona Sicrana.

P/1 – Como é que funcionava isso? Você sabe? Ela ia à casa das pessoas?

R – Pegava a roupa. Pegava roupa.

P/1- Mas não tinha água e ela lavava pra fora?

R - Era bacia. Bacia. A água de poço. E juntava o pessoal. Minha mãe comandava isso. Comandou esse sistema. Ela juntou uma vez com novas pessoas do morro e foram lá ver negócio de água. Lá gritar, apelar pra vir a água. Aí eu me lembro que veio a água e depois levaram um bolo - eu fiquei com uma vontade de comer aquele bolo que ela fez com glacê de manteiga – pra levar pra dar pra aquela pessoa que forneceu aquela água, e passou a ter água lá dentro. Mas era muita miséria. Muita pobreza. Muita pobreza mesmo. Muita dificuldade. Só de ouvir falar em hospital.

P/1 – Como era a inserção da sua família no bairro de Santa Teresa. Dos moradores do Morro dos Prazeres. O que você lembra do bairro nessa época? Você comentou sobre as corridas de carro.

R – O Morro dos Prazeres era o reduto da pobreza e Santa Teresa era o reduto da... não digo riqueza, mas dos mais ou menos. Um poder aquisitivo muito melhor que o nosso. Então, muito pouca coisa nós... tirando aquela brincadeira nossa de brincar... as crianças eram muito fechadas.

P/1- Carnaval. Você comemorava lá?

R - Papai. Papai se vestia... era o símbolo dele. Ele com seu Emílio, que morava em baixo. Tinha um tal de um palhaço venderam pro papai um sapato deste tamanho. Ele mesmo fazia aqueles madeiros, sei lá o que era aquilo. Naquela roupa de palhaço. Papai adorava se vestir de palhaço. O que eu me lembro de carnaval... ah, outro detalhe. Do meu… meu carnaval. Meu pai... Papai com aquela roupa de palhaço ridícula. Meu pai ficou ridículo à beça. Muito ridículo. Botava meia dúzia dentro do caminhão com aquela cobertura de lona, encostava o caminhão na Presidente Vargas. Imagina. Caminhão na Presidente Vargas. Eu criança e de pezinho ali, vendo o corso passar pra lá e pra cá. Eu, meu irmão e outros bobos que a gente levava. Pra poder assistir carnaval [risos]. E eu achava aquilo bonito.

P/1 - Presidente Vargas? E você fantasiava também? As crianças?

R – Não. Nós não. Nós não. Não existia quase criança fantasiada. Papai sim. Eu não sei que raio que tanto prazer. Era ele descer o morro vestido de palhaço. Eu não entendo aquilo. Papai que era um homem assim tão estranho. Mas ele tinha essa característica. E também, chegava de noite, pegava o caminhão e tal tal. Aí minha mãe ia só pra lá. Se perdiam. Interessante. Não havia aquele perigo de deixar as crianças dentro do caminhão. Daquela cobertura de lona, criança dormindo. De madrugada, dormindo no caminhão. Até estavam guinchado um carro. Isso eu me lembro. Carnaval existia. Sempre houve aquela folia do carnaval. O pobre e o rico se misturavam. Englobava, vamos dizer assim. Como ainda até hoje. Mas era um Carnaval inocente. Outra coisa. Não havia perigo assim de seqüestro. Não sei porquê? Havia muita pobreza, mas pouca violência.

P/1 - Isso no Morro dos Prazeres?

R – É. Por exemplo. Já tinha esse negócio de droga. Tinha um e outro viciado, mas não era… moravam muitas família ali, mas muitas mesmo. Muitas famílias.

P/1- E aquela pouca vizinhança era uma boa.?

R - Muito boa. Muito boa. Havia um pouco de galinhas. Também. Mas havia famílias que tinham essa criação de galinhas para sobrevivência e mercado. De porcos. Eu me lembro que faziam aquelas lavagens de porco com aquelas colheronas grandes, que no fim parece até… agora eu vou... Paula deixa eu te passar o que eu me lembro. Eu fiz uma lista daquele momento. Era muito escuro. Eu lembro como se fosse assim uma terra muito escura. Talvez seja minha parte espiritual. Ali você que o campo mais ou menos – não sei agora.

P/1- Já que você está falando de escuridão. Luz. Tinha luz?

R – Tinha. Tinha luz. Nós nunca tivemos problema de luz não. Tinha luz. Ali não tinha problema de lampião. Eu não me lembro de lampião não. Na minha época tinha muita luz. Que mais que eu podia lembrar?

P/1 – Sobre seu irmão? Havia uma diferença de educação do menino e da menina ali naquela localidade?

R – Os meninos eram muito levados, mas sem malícia. Eles corriam muito. Meu irmão, minha mãe teve muitos problemas com ele porque ele fugia de casa. Até trancavam para ele não fugir. Ele sumia o dia inteiro com negócio de cavalo. Ficava em cima de cavalo andando pra lá e pra cá.

P/1 – Mas quem tinha cavalo?

R – Não sei. Aí eu não sei, mas tinha cavalo ali. Tinha cavalo. Porque no morro, eu não sei. Cada vez que eu volto pra cá ele está melhor, estão com uma visão melhor. No meu tempo teve um sofrimento muito grande. Pessoas muito pobres. Então eu não via tanto quanto eu vejo agora a parcela deles. Eu lembro que na parte de cima não era tão habitável.

P/1- Como é que ele era. Explica.

R – Faz tempo que eu não volto lá.

P/1 – Que tal fazer uma visita ao Casarão Alzira? E ao Morro dos Prazeres. Não. Ele é totalmente habitável. Muitas...

R – Não. Não. Ele não era tanto. Como eu falei no começo da entrevista. Ele não era tão habitável. Tinha muitos espaços entre casas. Eram casas simples, mas tinham muito espaço. Pra gente brincar como eu te falei. E eu lembro que aqui em cima, ele era muito mato. Havia muito mato. Muito mato. Mato. Agora um detalhe: Eu morei nesse morro, nasci nesse morro e nunca ouvi falar que uma criança foi raptada. Taí um detalhe que você falou. E a vizinhança? Era no respeito. Eu nunca ouvi falar que estupraram uma criança, que mataram uma criança. Nós éramos respeitados, éramos amados. Nesse morro. Que beleza. Nunca nunca ouvi falar que pagaram uma criança...nada. Não existia isso. E nós brincávamos, deitávamos em cima do morro. Subíamos o morro vindos da escola. Eu acho que estou sendo uma filha ingrata. Não sei agora. Eu acho que eu devia voltar. Voltar para recordar e agradecer cada esse conviver da experiência, que eu disse. Foi uma coisa agradável. Não estou falando em desgraça. Você já percebeu que não saiu uma desgraça hoje? Nada. E eu acho todos que são da minha época, vão pensar a mesma coisa. Faz um tempo que essa violência que está lá. Seria até bom botar o meu nome pra falar do perigo dos traficantes. Como alerta. Antigamente, nós não tínhamos bar, não tínhamos nada, mas brincávamos. Nós éramos umas crianças livres. Tem uma terra livre. Entendeu?

P/1- Você lembra bem da vista que você tinha lá.

R –Lembro. Lembro. Eu lembro. Porque nós tínhamos espaço para ter vista. Eu lembro muito da chácara. Tinha umas chácaras - eu digo que não, mas eu gosto da terra.

P/1 - Cristo Redentor, Baía de Guanabara num canto

R- Eu peguei a baía limpa. Peguei a baía limpa. Inclusive atravessava a baía para ir visitar minha avó. Minha avó morava em São Gonçalo. Você sabe aquela lanchinha pequenininha que a água entrava dentro. Que horror. As janelinhas eram desse tamanhico, que as ondas cobriam. Não tinha essa “lanchonas” de hoje, grandes. Lanchas grandes não existiam. Só lanchinhas. Aquela balsa pra atravessar com o caminhão do papai. Papai, quando chegava feriado, botava a gente dentro do caminhão para gente passar na balsa. Você levava quase o dia inteiro para atravessar aquilo ali. Então, eu tinha muita relação com a baía. Eu lembro da baía por causa da minha avó. Mas o que ocorre é o seguinte: o Cristo, nós íamos a pé. Nós íamos a pé. Eu lembro. Saíamos de manhã cedo. Aquilo era o nosso passeio. Éramos filhos livres.

P/1- Você ia com quem?

R – Papai. Papai era um andarilho, por isso é que eu ando que nem uma condenada. Adoro andar. Papai pegava a gente: “Vamos lá hoje, no Cristo”. Aí fazia aquele farnel. Isso no tempo da farofa. Aí subíamos ali, até o topo nós andávamos. Eu quero ir com a Vânia. Eu andava com meu pai, a pé e aguentava. Não existia ali, não subia muito. Se não me engano, bonde não subia não. Ia até um determinado ponto. Se não me engano. Eu me lembro do túnel. Inclusive eu falei pra Vânia: “tem uma escadaria na rua ali”. Tem uma escadaria não tem?

P/1 – Não sei.

R –Tem. Tem lá. Eu vejo o grupo sentado em cima. Nós íamos levar comida para o papai. Às vezes não estava com o caminhão, às vezes íamos a pé. Não tinha dinheiro. Era enorme aquela escada. Aí, o papai, a profissão dele era lanterneiro. Nós íamos levar a comida. Imagina. A pé, do morro. Subir aquilo tudo ali. Mas nós não víamos distância. O impacto da aventura. Eu me lembro de tanta coisa do Rio de Janeiro. Estive uma boa temporada no Rio de Janeiro. Eu não me lembro de temporais. Eu me lembro só assim. Aquela parte que fazia a comida era uma parte muito escura, estreita, horrorosa. Ou então o sol. Eu não me lembro dos temporais. Não lembro. Gozado não. Devia chover é evidente não?

P/1- Você comentou sobre a lembrança de um prédio que caiu...

R – Mas era no bairro de Santa Teresa. Ficava em frente, e se não me engano foi em 1954, um pouco antes de nós sairmos de lá. Caiu um prédio. Ele ficava em cima de uma pedra, se não me engano. Era de quatro andares. Foi uma cena muito triste na época. Caiu em frente ao Morro dos Prazeres. Se eu for lá, eu vou até te mostrar. Não com toda a precisão, mas vou dizer: “ Ali”. Eu lembro até que eu estava com uma criança, larguei a criança. Quando eu vi o prédio... eu me lembro que ele deu um estalo. Ele tinha sido condenado, as famílias não saiam dali. Aí um belo dia – belo não, um mau dia pra elas – eu criança, segurava a mão dessa criança. Eu estava até com uma laranja, lima da pérsia. Quando eu pego na laranja lima da pérsia, ouço aquele estalo. Se não me engano, era a irmãzinha da Lisete. Eu estava na casa da Lisete. A casa da Lisete tinha uma varanda toda de madeira, com as cadeiras. Muito no estilo daquelas casas do Mississippi lá [risos]. É no Mississipi, Estados Unidos, aquelas casas de madeira com as varandinhas, que é uma sala “curta”, meio disfarçada. Eu estava na casa da Lisete.

P/1 – E vocês viram cair o prédio?

R - Nós vimos. Eu então... minha mãe costurando. Ele deu um estalo, uma coisa muito grande. Parecia um tiroteio porque ele subiu. No que ele subiu, ele rodou. Eu me lembro muito bem do...

[Todo mundo fala junto].

R – Eu me lembro que o telhado dele era vermelho. O telhado vermelho. O telhado caiu e quando tudo aquilo bateu no chão, lembro da fumaça. Subiu uma fumaceira. Aí já começaram os gritos, os gritos, os gritos. E eu corria, corria. Eu queria minha mãe. Eu larguei aquela criança, não na rua. Até Deus me perdoe, que eu não devia ter feito aquilo. Mas foi uma questão de querer mamãe, mamãe, porque eu sabia que era uma coisa grave. Aí, logo em seguida foi os gritos, o susto. Aí veio o bombeiro. E crianças. Crianças mortas saiam com o cadeirão, com metade do cadeirão preso no corpo. Foi um acontecimento muito… enquanto eu for sã eu tenho muita lembrança

P/1 – Alzira. Vocês saíram em 1954.

R - Mais ou menos em julho ou agosto de 1954.

P/1 - Você sabe o motivo? Da saída do seu pai.

R - Minha mãe enjoou daqui. A casa era nossa. Tanto é que nós vendemos a casa. Nós vendemos a casa. Nós saímos e ainda ficou algum tempo ali aquela casa sendo nossa, alugada. Porque minha mãe falou: “Não quero criar meus filhos...”. Meu irmão fugia. Meu irmão sumia naquele morro ali pra cima com aquele negócio de cavalo. Aquilo eles fazem assim um tipo de uma _______ O maior medo de transar. Ia pra Santa Teresa, sumia. Meu irmão era _____ Quietinho, o bandido. Já tinha, já tinha bandido, mas a perda, que eu falei pra você, o respeito a nós. Os moradores. Havia uma união. Havia uma confraternização até, sabe. Eu lembro que papai levava a gente pro hospital. Muita coisa assim. Por isso nós saímos. Fomos embora pra Niterói, São Gonçalo. Mas tudo estava aqui, Papai trabalhava no Rio de Janeiro. Aí de lá nos meus 17 anos fui embora pra São Paulo. São Paulo, Paraná. Casei em São Paulo e fui morar no Paraná e por esse _______ eu gostei do meu marido. Eu fiquei só, sem meus parentes.

P/1 – Seus pais são vivos?

R - Não. Meu pai faleceu em 1970. Vai fazer 32 anos que papai morreu. Papai faleceu em São Paulo. E minha mãe está viva, mas não está bem não. Agora vai ter que fazer a operação do coração. Está hospitalizada.

P/1 – Então você estava contando, pra gente ir finalizando, Alsira. Você contou que em 1981 você volta...

R – Retornei.

P/1 - Retornou. Contou que foi porque uma amiga… foi isso? Que você tinha até uma amiga que morava ali perto, na rua Alice, que você fez um passeio e passou por ali?

R – Não. Não foi bem isso não. Eu tenho um desejo de retornar às minhas origens., entendeu? Em 1981 eu fui lá, eu queria subir, pra ver aquilo ali. Talvez, influenciada pelo meu pai. Lembranças do meu pai. Aquela chácara que marcou muito a minha pessoa. Eu lembro, a chácara de um português. E ele era tido como um... nós os vassalos. Ele era um senhor total, vamos dizer assim. Que nós íamos na chácara pegar verdura também. Ficava esse empregado tomando conta para que nós não roubássemos [risos]. Existia trocadinhos e existia dinheiro. Eu sou do tempo do tostão. Mil réis. Que era tudo mil réis. Um tostão disso, um tostão daquilo. Essa porcaria desse dinheiro nunca muda. Só muda o nome. Era isso aqui. Mil réis. Com isso aqui você não compra nada. Acho que nem um ______ compra.___ com pobre e pobre ainda ia comprar.

P/1 – Vocês compravam legumes nessa chácara.

R – Também. Comprava. Quando tinha dinheiro. Então catava serralha, catava fruta pão, como uma forma de subsistência. Então, esse português... ele, português, português, e tal. Papai soltava balão na chácara dele. Pedia pra soltar.

P/1- Conta um pouquinho a história do balão, por favor.

R - Papai soltava muito e eram balões enormes. Não era balãozinho, não. Até hoje eu fico horrorizada com negócio da boca. Eu tinha medo daquelas bocas. Papai soldava na oficina. Era meio louco [risos]. É uma pena papai não estar aqui. A boca do balão, aquelas buchas, eram feitas com... como é que chama? Cera não. Era... sei lá o que era. Sebo. Eu lembro papai passando sebo naquele saco de estopa. Mas aquilo era a boca do balão. Era isso aqui. Era muito grande. Aquela roda, era uma coisa parabólica. Era deste tamanho a roda. Tanto é que os balões levavam um aviso: “Àquele que encontrar” [risos]. Era um espetáculo.

P/2 - ...chama Antônio no Morro dos Prazeres.

P/1 - Mas era na chácara? Nessa chácara...

R – Na chácara papai soltava os balões. Na chácara.

P/1 – E tinha feito as rodas.

R – E eu lembro papai soltando… em detalhe. Eu lembro do papai com muitos fogos. Eu tinha medo dos fogos dele. Eu não gostava daquele barulho. Papai era muito agitado. Papai era barulhento. Papai era muito...

P/1 - Na época de São João?

R – Na época de São João. Véspera de São João. Papai acho que era devoto de São João. Véspera de são João. Ele soltava muitos balões mesmo. Imagine quantas florestas, quantas casas. Aquilo não era em um ano nem em dois não. Enquanto a gente morou ali. Nós fomos pra lá, se não me engano em 1942 ou 1943. Nós não. Eu nasci lá. Meu irmão… espera aí. Meu irmão nasceu em 1944, que eu te falei?

P/1 – Você falou

R – Vamos racionalizar. Meu irmão nasceu em 1944 e eu em 1947. Diferença de três anos. Nós fomos pra lá… acho que em 1945... eu tive um outro irmão que morreu lá. Morreu com oito meses. Morreu de meningite. Eu tive um irmão, chamado Arnaldo, que morreu lá. Antes de mim. Era meu irmão, esse menino que morreu e depois eu.

P/1 – O nome do teu irmão qual é?

R – O que morreu era Arnaldo.

P/1- E esse?

R – Ah. Ele é Alberto .Alberto meu irmão nasceu lá. Nós fomos pra lá, se não me engano em 1945.

P/1- E qual é a profissão do Alberto hoje?

R – Ele também é lanterneiro. Mas, porque nasceu um irmão meu lá, antes de mim. Eu sou de 1947. 1944 não. 1945.

P/1 – Você lembra de outro carro ou caminhão como o do seu pai, naquela época?

R - Não. Papai só tinha esse caminhão. Mas eu lembro muito da Oldsmobile, carro de cauda. Era carro de político. Você não sabia o que era luxo. Você sabia a diferença sua. Do papai. Você sabia que era ____- Hoje um carro pra _______. Mas, havia muito desses carros. Conversíveis. Mas só quem tinha carro era os que tinham sorte de serem, vamos dizer assim... na época, de ser um artista ou… como ainda é o ídolo hoje. Mas, havia muita pobreza. O rico até pra quem estava dentro. Não havia muitas fábricas quase. Não existia.

P/1 – Você falou de artista. Tinha outras pessoas assim mais famosas que moravam no bairro, que vocês sabiam, ator de teatro,cinema, músico? Alguma coisa assim.

R – Lembro só do _____. Papai falava muito do ______. Isso eu me lembro bem. Agora, outro, eu não me lembro não.

R – Eu lembro que eu passando a pé, ali por Santa Teresa com papai...

--- TROCA DE FITA ---

P/1 - Alsira, você estava rememorando...você estava com a irmã de Lisete na sua cabeça...

[Vozes sobrepostas].

R – Porque realmente ela foi muito gravada. Eu lembro do pai dela, Sr. Mário, negro, negro, mesmo. Da mãe dela eu não lembro. Lembro do pai dela. Lembro de alguns irmãos...

P/1 – Deixa pra quando eu te perguntar, que é pra gente...

R – Essa gente está lá. Ela não saiu. A história da jaca...

P/1- Não só na história da jaca. Antes. Havia diferença? Você fala muito dessa pobreza que havia ali. Quer dizer, havia, nessa pobreza, diferenças no morro? Quer dizer: sua família era uma família mais pobre do que as outras, ou vocês...

R – Não. Eram todas beneficiadas. Às vezes sim ____ Ultimamente ____ perto de casa. Mas, tinha muita pobreza. Tinha muita pobreza mesmo. Era um cômodo para muita gente, era, vamos dizer assim.

P/1 – Sua família era pequena?

R - Era eu, meu irmão, minha mãe e meu pai. Éramos pequena a família. A gente escutava. Eu lembro de uma menina do morro, que morreu queimada. Brincava muito comigo. Por causa de fogão, eu lembro, morreu queimada. Foi pro hospital, não aguentou, morreu. Não lembro o nome dela. Sabe a nossa brincadeira? Era fazer fogãozinho de lenha. Lembro disso agora. Pegava barro, amassava o barro, molhava o barro, amassava e fazia aqueles fogãozinhos.

P/1 –Como assim? As meninas brincavam de fazer...

R – É. Faziam uns fogãozinhos de lenha. Nós víamos e fazíamos aquilo lá. Não havia assim maldade. Eu acho que eu vivi. Agora, quanto à jaca, como eu te falei, a jaca tinha que ser colhida na hora, porque não dá pra pegar.

P/1 – Tinha muita jaqueira então?

R – É. Eu lembro. Eu sempre lembro assim: as árvores sempre cheias, mas nós não podíamos cortar porque era uma coisa muito pesada. Como eu falei ___________ aquilo. A fruta pão sim. Eu me lembro: “Ah, fruta pão”. Que é uma coisa menor. Às vezes servia com o café. Alimento com café. Usada como pão. Alimento no café.

P/1 – Apesar dessas dificuldades da vida, algum outro festejo era comemorado? Por exemplo, Natal...

R – Natal sim.

P/1 – Uma festa de algum santo que alguém do morro fosse mais devoto?

R – Não. Não me lembro. Outra coisa que também não lembro é festa de aniversário. Nós não tivemos isso. Era dia de aniversário, e parabéns só. Também não tinha mais nada. Eu tinha que agradecer se tinha um pão dentro de casa. Tinha época que estava tudo bem. Esse caminhão papai perdeu muito tempo nas costas. Não sei porque tinha época que estava tudo bem, tinha época que não tinha.

P/1- Quer dizer: além do trabalho como lanterneiro...

R – Ele trabalhava... Naturalmente o caminhão dava defeito, alguma coisa.

P/1 – Ele tinha algum ponto específico como lanterneiro? Tinha um lugar?

R - Não. Ele trabalhava em oficinas... como... como é que chama? Ah, meu Deus. Tem um nome. Particular de oficina? Agora me fugiu a palavra. Isso de não ter carteira assinada.

P/1 – Como se fosse um autônomo.

R – Mas ele não cuidava. Durou pouco tempo. Sete anos. Mas eu saí, mas ficou gente lá. Ficou, a Taninha, ficou... Eles fazem festa pra fora. Quando eu retornei sei que tinha um barco lá. Ela tinha até puxado até uma _____ lá pra cima.

P/1- Eu fiz a referência aqui que depois você indica: Lisete e Tânia. Pra procurar pra talvez poderem dar depoimento pro projeto. A Lisete...

R – Alsira. Você ficou com a Lisete na cabeça. Tem que procurar.

P/1 – Tem.

R – É Lisete.

P/1 – Não. Eu soube de uma senhora Eliete.

R –Ela é escura?

P/2 –Não sei. Não conheço.

R - É uma bem escura. Fala que não. A pessoa conheceu a Lisete. Eu tinha foto da Lisete. Magrinha. Bem mais nova do que eu. Eu estive lá, queria falar com Lisete, mas saí. Mas como eu estava com pressa, eu não procurei ela. E ficou um sentimento disso. Eu não sei por quê?

P/1 – Seus pais falavam desse período do Morro dos Prazeres depois que vocês já moravam em Niterói. Eles rememoravam um pouco essa época?

R - Não. Minha mãe acabou com a história. Foi uma época até meio vergonhosa. Pra eles. A pobreza e a favela. O morro da favela. Eu guardei mais coisas do que eles.

P/1- Quando você lembra do período em que viveu, como é que você se refere àquele lugar que você morava?

R - Olha, eu não queria dar uma vida pras minhas filhas. Eu tive uma com 33 anos. Tenho uma filha de cinco pra seis anos e a outra eu adotei. Choramos muito.

P/1 – E por que a senhora adotava?

R- É adotada mas é criada igual. Eu não queria. Não queria. Não tenho nada contra o lugar, veja bem, mas também não queria criar minha família no borel justamente por causa desse tumulto. Você vê agora, vocês passaram. Eu graças a Deus dei uma vida melhor pras minhas filhas. Minhas filhas estudaram no Pedro II. Eu não sei. Eu não podia pagar a educação. Era baixa para estar no Pedro II.Então uma forma... eu não tive isso e vou dar isso. Eu não queria. Inclusive quando eu vi aquelas pessoas ali, que não saíram, eu fiquei até um pouco assustada.

P/1- Não mudaram de vida?

R - Porque eu sou de uma teoria. Você vai em frente. Nunca reclamar. Eu sempre sofri. Eu sempre fui muito pobre. Meus pais parece que tinham o estigma da pobreza. Tem gente que veio ao mundo pra isso. E eu não. Eu sempre pleiteando alguma coisa, lutando.Você vê: eu solteira lá em São Paulo, fiz um curso. Só tinha o primário. Fiz um curso de auxiliar de secretariado. Com pouco estudo, com muita dificuldade, mas aquilo foi abrindo, canalizando muita coisa pra mim, Então, eu lembro que eu estava sempre procurando alguma coisa, e aquilo me beneficiou muito. Inclusive eu fiz a pessoa assinar um documento, que se eu não tenho uma certa cultura, eu tinha perdido um terreno. Devido a essas experiências. Porque eu estou sempre alerta. Quero sempre ver algo mais. Ou manter o que eu tenho. Eu não sou muito ambiciosa. Já acho que eu tenho muito. Eu moro num lugar. Eu gosto dos meus vizinhos. Moro aqui há 21 anos. Eu gosto muito do meu ponto. Eu gosto da vida. Eu gosto de descer do ônibus e saber que eu estou dentro do meu prédio. Quando acontecem temporais. Nós tínhamos, olhando pra cima, um tanque lembro de _________ Agora aquele lance que depois que veio água encanada jogava água no tanque. Aí a gente esfregava a roupa. Pra enxaguar, tinha que jogar a água de novo. E batia. E bacia. Banho e bacia. Banho era bacia. Não tinha chuveiro. Aí eu lembro das mulheres descerem com a roupa. Trouxa de roupa pra lavar roupa lá em baixo. Inclusive lavar pra fora. Havia muito, muito mesmo. As mulheres do morro sobreviviam lavando pra fora. A minha mãe, era costurando. Uns tempos teve a costura. Deve ter sido um período. Que foi após a guerra. Eu vi o após a guerra um pouco. Você imagina. Aí também ela lavou pra fora.

P/1- Quando você fala “descia”. Descia pra onde?

R - Tem uma subida. Tem umas pedras, não tem? Que eu levei um tombo uma vez naquelas pedras. Eu me lembro… não escorria uma água na pedra?

P/1 - Pelo que eles contam hoje.

R – A subida é do lado.

P/1 –Hoje tem outras subidas, mas se for o que você está falando, tem uma pedra que eles dizem que tinha como se fosse uma mina de água.

R – Ali escorria água de monte. Que eu levei um tombo. Bati com a cabeça. Coisa horrível. Eu lembro da dor que eu passei. Existia limo, mas eu criança não sabia que aquilo fazia cair. Então as mulheres desciam pra lavar roupa, pra fora inclusive. As suas e as das madames.

P/1 – Mas você como filha mulher, você tinha que ajudar nesses trabalhos?

R - Não. Não. Não. Mas as meninas maiores do que eu – eu era pequena – as meninas maiores ajudavam muito em casa. Ajudavam mesmo, aprendiam a cozinhar. Eu lembro da Lisete fazendo lavagem, com essa colher grande, de pau. Eu me lembro de um pessoal… vinha muita gente de fora. Você falou certo. Aí era um ponto de passagem pra ver o que ia fazer, porque talvez não existisse isso. Porque agora tem estalagens, tem albergues. Aquele tempo não existia isso. Agora tem. Mas naquela época não existia. Então as pessoas quando traziam o fulano… ali seria um ponto de referência. De turistas não. De sobreviventes. Sobrevivência para ver o que iam fazer. Contei o caso dos portugueses. Isso eu lembro: “Não estamos aqui para ficar. Estamos aqui por pouco tempo”. Não estavam provisórios. “Até fulano alugar uma casa pra poder”, a expressão do português, “fazer a quitanda na frente e moradia atrás”. Usava muita quitanda. Eu me lembro dos panelões de ferro. Eles faziam aqueles panelões de angu, aquela raspa. Me lembro do angu, nessas panelas de ferro.

P/1- Eles quem? Fala os vizinhos?

R – Os vizinhos. Era muito angu. A influência do cativeiro vamos dizer assim. Havia muito angu. Havia muito preto, preto alforriado. ______. O pai da Lisete, ele chegou menino. Aí já havia a lei do Ventre Livre. Mas a Lisete fez isso. Imagina. Você esqueceu que ______ 59 anos depois? Foram 59 anos._____ Meu irmão tem 56 anos. Meu irmão tem 50 e poucos anos e não faz mais nada.

P/1 – Você está falando em quitanda. E as compras? Sua mãe fazia as compras aonde?

R - Olha Paula, você frisou bem. Hoje eu me vejo sozinha – praticamente sozinha – eu vou no mercado com carrinho e trago meus alimentos. Arroz, feijão, uma cerveja, que eu tomo o tempo todo, meu suco, minha carne, meu frango. Eu tenho horror do serviço de guardar minhas compras. Você falou uma coisa muito certa. Eu não lembro. Não lembro compras grandes em casa de ninguém. Não lembro. Você não via movimento de compras.

P/1 – Uma coisa. Tinha vendedor ambulante, por exemplo?

R - Havia sobreviventes ali nesse lugar. Havia sobrevivência muito custosa. O pessoal usava muito angu. Feijão, angu, arroz. Não tinha esse negócio de _____ Não, não não não. O que entrava de fartura, meu pai pegava… que quando carregava o caminhão, na ________ espalhada ali. Rio de Janeiro, comércio. Mas nunca me lembro de ver muitos... Por exemplo, biscoito. Nunca vi. Não existia. Hoje em dia, eu vou no mercado, minhas crianças: “Me dá esse biscoito”. Nós não tínhamos isso. Pra você ter uma idéia, eu fui conhecer o gosto de um Toddy aos 10, 11 anos de idade. Nós tomávamos café preto, mais um pão e manteiga. Pão. Pão, quando tinha também. Posso falar uma coisa pra você? Quando nós fomos embora pra Niterói, meu pai ficou doente. Não sei. Era muita miséria. Acho que o casal em si… como eu falei, eu encaro como estigma. Apesar de que eu adoro meu pai, mas meu pai tinha um estigma. Meu pai matou muito. E acho que isso não fez bem pra vida dele. Ele atropelou um homem, matou. Eu vi o homem morrer. Nós estávamos no caminhão. Perdi meu pai. Mas ainda oro por ele. Mas, veja bem, meu pai ficou doente, não sei porque cargas d’água, eu desmaiei na escola de fome. Eu conheci a fome. Eu desmaiei de fome. Isso já foi Niterói. Nós saímos não foi para progresso. Nós saímos da violência. A luta foi nós pagarmos aluguel, sermos despejados. Aí saímos de Niterói, fomos pra São Paulo. Aí cheguei em São Paulo e até que melhorou um pouco eu fui trabalhar. Em são Paulo fui trabalhar. Aqui não arrumava emprego. São Paulo era um rio de empregos. Aí já foi melhorando. Depois eu conheci meu marido, casei, eu fui batalhar no Paraná. Então, nós vivíamos vida de pobreza. Mesmo lá, nós não fomos... no morro, ou mesmo em Niterói, em São Gonçalo eu não me lembro de um biscoito, uma bolacha como diz o Paulinho e os paranaenses.Não via assim fartura de comida, carne, nada, nada, nada, nada. Era o angu [mistura de vozes]. Se eu pudesse, comia angu todo dia. No café então, eu adoro. Era muito angu e eu ia pra casa dos vizinhos para comer. Eles faziam doce como eu te falei. Como a família era grande, faziam muito “panelão” de angu, de feijão. Era isso. Você não via compra subindo. Você não via movimento. Natal era doce de abóbora, porque abóbora é barato. Era doce de coco ralado. Não tinha panetone, não tinha nada disso. A rabanada sim porque eu vim de descendência portuguesa. Então tinha rabanada. Era rabanada, doce de coco, doce de abóbora, doce de mamão verde que eu odiava. Mamão tem sempre. Você pegava e fazia. Era muita pobreza. Não os ricos. Isso era outra questão. Mas ali mesmo era.

P/1- Então hoje, pra ir finalizando, como é que é um dia hoje na sua vida? Como é que é sua vida? Sua rotina?

R - Eu fiquei viúva com 33 anos. Perdi meu companheiro com 48 anos. Estava começando a progredir. Mas o que ele comprou passou a ser dívida do governo. Aí eu tive que pagar. Eu consegui retirar algum dinheiro desse seguro e o que prevaleceu de mim? O juízo. Mas primeiramente a proteção de Deus. Eu sinto muito a presença de Deus. E essa proteção é que me deu esse juízo. E o amor às minhas filhas. Eu morei numa colônia de holandeses, e um europeu, como eles sofreram muito, aprendi lá dentro a palavra “filhos”. Mas e os filhos? E os filhos? E aquilo me passou essa cultura. Passei anos dentro de uma colônia holandeses.

P/1 – Por causa da profissão do seu marido?

R – É. Ele pulverizava áreas lá do Paraná.

P/1- No Paraná.

R – No Paraná. Na colônia de holandeses, na Batavo. Hoje, você compra tanto produto Batavo. Eu vi o início dessa cooperativa. Ele pulverizava essa Batavo. Então, quando ele começou a progredir, veio o acidente e muitas das coisas que ele tinha comprado viraram dívidas e eu tive que pagar. Mas aquela expressão que eu te falei, do juízo, que devo a papai do céu… que isso é um dom. Ele não perdeu. O juízo é um dom. Uma característica do _______ Você não ganha juízo. Então, o que ocorre? Eu comprei esse apartamento. Comprei depois um outro apartamento menor. Vivia com sacrifício porque eu fiquei com uma pensão muito pequena. Sempre sobrevivendo. Depois vendi e comprei essas quatro casinhas na praia. Alugo no carnaval.

P/1 –Que cidade que é?

R - Barra de São João. Então, vou lutando. Eu me dou ao luxo de dizer, graças a Deus estou sobrevivendo. Não sou nenhum rico, mas tenho alguma coisa. Moro onde eu gosto. Minhas filhas foram criadas aqui em _____. Não que eu tenha nada contra o Morro dos Prazeres, veja bem, mas fico satisfeita de ter saído de lá. Principalmente agora, com essa violência. Agora não. Já há algum tempo atrás. Muita violência. Inclusive eu soube que há algum tempo atrás para subir não sei, mas tinha que pedir licença. Eu estudei no Estados Unidos e os colegas falavam comigo: “Por que voltar lá?” Eu terminei lá em 1997, e entrei na faculdade em 1998. Então eles falavam pra mim assim: “Olha, pra subir agora tem que pedir licença, senão você não ______.” E olha que tem toda a sequência, que você participou do lance, que realmente existe.

P/1 – Nós temos três perguntinhas...

R - Uma prevenção, você _______

P/1 – Temos uma perguntinha: se você pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, o que você mudaria?

P/2 - Pessoal?

R – Olha, eu queria... isso eu me questiono muito

P/2 - Mas isso é a nível de você também?

R – Eu vou falar uma coisa que você também mudaria, com certeza. Meu Deus, por que papai do céu não me deu mais esclarecimento? Meu Deus, por que eu não tive mais malícia? Meu Deus, por que eu não sou aquela que eu sou agora?

P/1 - Algum sonho ainda não realizado?

R – Olha… eu pretendo voltar… não tem não. Eu cheguei a um estágio que eu tenho que agradecer muito. Eu agradeço muito a Deus. Agradeço muito mesmo. Tenho uma filha que é enfermeira da Prefeitura, graças a Deus. A outra é casada com um oficial da Marinha. Agora, um sonho meu, não tenho não. Eu tenho vontade sim, de terminar a minha faculdade. Não pra trabalhar a ferro e fogo, porque eu gosto muito de ajudar. Inclusive minha filha agora vem: “Onde se viu. Não. Não faz isso não”. Entrei com essa fome desse conhecimento da experiência. Porque, eu posso não ser ____ nessa pergunta. Eu fui dona de firma, eu tive que lutar pra sobreviver com aquela firma. Eu tive que vender muita coisa pra pagar as contas que o homem deixou, com as dívidas. Passou também o encargo. Então eu já tive muito dinheiro naquela... Mas também não quero. A pouca experiência com a burrice até. Aquilo pra mim é uma mágoa. Uma vergonha. A minha vergonha é essa. Gastei muito dinheiro. Enfim, olha. É aquelas coisas que todo mundo tem. É o normal. Por que eu não fiz isso? Por que eu não tive aquela clareza? Mas isso vem aos poucos. O amadurecimento. Eu me sinto uma mulher muito amadurecida. Eu me sinto assim...Eu gosto muito de mim. O importante é que eu me sinto muito bem comigo, Paula. Eu gosto muito de mim. Gosto sim. Porque eu sou honesta, sabe? Eu sou uma pessoa alegre. Outro dia lá na igreja eu falei assim… eu estava pensando em botar na lanterna. Não tem aqueles copinhos? O papel é em cima. O meu copinho estava ____ eu digo: “Que burrice a minha. Eu me deparei, eu vi numa igreja.” Aí a mulher disse:” Não. Não é burra não. Você é filha de Deus” [risos].

P/1 – Aliás, em termos... Só pra gente...

R – Eu sou assim, onde eu estou, as pessoas se distraem comigo.

P/1- Na sua casa, me chama a atenção, a quantidade de símbolos diferentes que você tem na tua casa, de culturas e de religiões. Você tem muitos símbolos judaicos, você tem símbolos ligados à religião espírita e ao catolicismo. Santos brancos, ali tem uma santa negra também. De forma que, explica como é que você é espírita....

R – Eu sou mística. Eu sou uma pessoa esotérica. Então, eu sou... É como esse hino agora: [cantando] “Povos juntos de todas as raças...”. Então os povos juntos… nós precisamos disso. Nós precisamos da união espiritual. A única religião que, Deus que me perdoe, que eu não aceito, é o Budismo. Não aceito. Porque eu sou uma filha de fé do meu Cristo. Eu acho que o Budismo tira o brilho de Cristo. Tira. Ele não tem tanta coisa assim. É o único que eu não aceito. Mas o que eu ____ também, é a cultura judaica._______ no fundinho, no fundinho, eu tenho ____ Essa minha vizinha fala no preto velho. Ela é uma judia convicta. Ela ouviu falar de um preto velho ao meu lado. Então, há aí uma ligação espiritual. E também a indiana. Não tenho nada contra os indianos, mas também não aceito, devido que a tal religião deles, vários deuses. Não aceito. Meu Deus é único e ____ . Não sei se você já percebeu que eu falo muito em Deus. Mas, ao mesmo tempo... não que eu sou uma pessoa assim... não. Não sou. Apenas eles são de uma parte religiosa e o judaísmo. E tem aqui o judaísmo e são parte católica. E o espiritismo, eu freqüento um centro que é até espiritualista. O Tupiara. O Tupiara é um centro que faz cura, uma coisa mais... que não é... não que eu tenha nada contra a Umbanda, nada disso. Frequentei também, mas não é o que eu gosto. Me sinto bem. O importante é isso.

P/1 – E Alsira, então, o que você achou de ter participado do projeto Memória do Casarão e Comunidade Morro dos Prazeres? O que acha de ter dado esse depoimento?

R – Olha. Eu só lamento que foi muito pouco. Eu queria saber mais. Mas não é por minha culpa porque eu saí com sete aninhos, ainda guardei alguma coisa.

P/1 – Você tem uma memória fabulosa Alsira.

R – Eu queria cooperar mais.

P/1 – Ajudou bastante.

R - Eu, com certeza, tenho a impressão que o meu irmão não daria o mínimo, porque meu irmão não acreditaria no amanhã, porque o mundo dele é muito fechado. É aquele mundo dele de cavalo, fugir do morro. Mas eu queria cooperar mais sobre o Casarão. Eu lembro da mulher sentada... Tem uma varanda?

R – Tem. Uma varanda pequena. Não é uma varanda grande não.

P/2 - Me diga uma coisa. Vamos acompanhar meu raciocínio aqui. Ele fica dentro do morro não? Fica do lado do morro.

P/1 – Ele fica numa subida. Pela Almirante Alexandrino você pode chegar. Ou pelo que eles fizeram, pela Gomes Lopes, que tem uma entradinha, que você também pode subir.

P/2 – Pela Almirante Alexandrino.

P/1- É uma entradinha...

R – Essa Almirante Alexandrino é a Barão de Petrópolis? Me lembrei de um detalhe. Os pobres foram para... lembrei. Nós fomos para... eu era pequenininha... Nós fomos no Zoológico. Existia Zoológico. Era uma coisa bem mais simples, mas existia. Meu irmão se perdeu da família. Quando eu nasci, ele tinha três anos. Ele devia ter uns cinco aninhos. Uns quatro ou cinco anos. Aí, ele se perdeu. A família desesperada, os quatro lá procurando e os quatro perdidos. Aí achamos meu irmão e meu pai: “Você está louco?” Minha mãe gritando: “você tá louco? Porque você se desprendeu da gente?”. “Ah. Eu tava olhando o rabo da cobra” [risos]. Mas enfim, esse Casarão, eu lembro assim: aquela varanda não muito grande. Mato. Tinha muito mato.

P/2 - Aquela região foi toda urbanizada. O primeiro grande projeto favela – bairro em 1982 e agora nessa última gestão da Prefeitura.

R –Tinha mato na época.

P/2 - Pois é. Aquém, atrás, tem uma mata ali perto. Mas ela está mais urbanizada. Você tem uma entrada à beira mar...

P/1 – Eu queria um pouco voltar..

P/2 - Tem uma mata, mas... Você tem que fazer uma visitinha lá.

R – Eu lembro da mata. A moça sentada numa varanda. Não tem uma varanda? Uma senhora magra, alta, com sotaque meio puxado. Tinha que ver quem foram os donos em 1953, 1954, 1952. Alguma coisa eu lembro da morte do Getúlio. Eu lembro. Do alvoroço que foi a cidade. Uma coisa horrível. Tudo fechado dentro de casa, com medo de guerra. Uma guerra civil. Porque me parece que o Sul queria descer pra invadir o Rio de Janeiro. Foi um bafafá danado na época.

P/1 – Você morava no Morro dos Prazeres?

R – Morava. Quando ele morreu eu morava. O rádio gritava aquelas notícias. Aí eu lembro da fila. Eu lembro da fila. Acho que me levaram lá. Não lembro dele no caixão. Mas eu lembro que parece que alguém foi lá e me levou. Desistiu.

P/2 – Seu pai era getulista?

R – Não. Minha avó e minha mãe que eram. Papai não era não. Eu lembro do...

P/1 - Como é que você se refere ao lugar que você morava? Você fala muito em morro, mas você não fala em Morro dos Prazeres. Mas era assim que você se referia ao lugar onde vocês moravam?

R - Não. Não aí é que está. Eu sei que o morro é o morro do Escondidinho, que falavam muito.

P/1 – Já se falava no Morro do Escondidinho.

R – Ele é Prazeres agora?

P/1- Não. Morro do Escondidinho é uma coisa e Morro dos Prazeres é outra.

P/2 – Mas os dois eram juntos. Eles são quase juntos. Tem a rua Gomes Lopes que passa pelo meio.

R – Eles já eram coligados.

P/2 – A parte ____ Começava mais pra baixo, é.

P/1 - Mas vocês falavam… se seu pai quisesse falar: “Ah. Eu moro...” Aonde. Aonde ele falava que morava?

R - Esse Escondidinho era uma coisa. Deixa ver o mapa.

[Confusão].

P/2 - Pra mim é interessante recuperar isso Alsira. Saber. Suas memórias, você lembra muito de subir pra ir ao morro, ao Casarão.

R – É. Ali é o Escondidinho?

P/2 - Porque existem duas comunidades muito claras hoje: O Morro dos Prazeres, existe o Casarão e em baixo o Morro do Escondidinho. Acredito que nessa época...

R – Não era Morro dos Prazeres. Foi por isso que… a Taninha não é… mas tem uma subida. A rua do morro é subida. Era pra cima. Era pra cima.

P/2 - Pois é, mas quando você estava no Casarão e olhava pra cima do morro, tinha uma outra comunidade?

R – Não.

P/2 - Espera aí. Você falou certo. Que a Barão de Petrópolis, ela é abaixo da rua Gomes Lopes.

R – Eu lembro que eu olhava. Tai, você está me fazendo lembrar, está me puxando [risos]. Estou brincando. Eu lembro muito dessa rua pacatum, pacatum....

P/2 – Vamos centrar aqui nessa Gomes Lopes.

R – A Gomes Lopes eu não lembro.

P/2 – Não lembra. Aqui eu vi...

R - Onde eu estou? Cadê o Morro dos Prazeres?

P/2 - Tá aqui.

R – Tira a mão pra eu achar ele. Aqui ele. Eu lembro que eu via… eu falei, Paula, eu olhava pra cima e via muito mato. Não era um mato fechado, mas havia uma densidade. Uma coisa densa de mato, mato, mato. Capim, capim, capim e terra, terra. Isso deve ser o Morro dos Prazeres. E eu falei: “Paula, não tinha muitas casas. Tinha muito quintal”. Eu tinha que voltar lá. Nessa via que nós descíamos – está escutando? Que nós descíamos, aí sim tinha uma concentração de casas. Mas saíam fora da rua principal, vamos dizer assim, do morro. Não havia muitas casas.

P/2 – Então eu acho que a rua referência realmente é hoje onde é o Morro do Escondidinho.

[Vozes misturadas].

P/2 - O que pra gente é interessante é isso: você como criança tem a lembrança de ver o Casarão acima do lugar que você morava. E quando você fala do mato...

[Vozes misturadas].

R – Mas o Casarão que eu lembro é como se fosse uma coisa alta.

P/1- E a bica em que sua mãe lavava roupa?

R –Tinha a bica que minha mãe...

P/1 – Era mais pra cima ou mais pra baixo?

R – Era pra baixo. As mulheres desciam pra lavar roupa.

P/2– Eu lembro que suas referências são sempre a rua Barão de Petrópolis.

R - É. Eu estudava aqui na rua Barão de Petrópolis. Eu estudava aqui olha.Se eu for lá, com certeza... olha como está marcado. Aqui era o largo. Eu ia pra esse largo do Rio Comprido

P/2 O Casarão é nessa ponta. Exatamente nessa bifurcação.

R – O que eu falei? Nós saíamos, andávamos muito.

P/2 – A entrada do Morro dos Prazeres é exatamente... O bonde acaba aqui. Você sobe essa rua à pé. Do lado esquerdo é o Morro dos Prazeres, pra baixo é hoje o Morro do Escondidinho.

R – Mas não existia esse túnel. Não existia isso. Isso aqui era tudo mato. Tudo mato. Estou falando pra vocês. Daqui nós víamos… eu via muito mato,muito mato. Capim. Aquele capim de mão.

? – Teu irmão, quando saia a cavalo, pra onde você acha que ele ia?

R - Ele subia pra esses morros aqui. Aquilo dava bandido. Ele sumia por esses morros de cavalo, que era muito cavalo. Aquela época existia muito pessoas carregando móveis, Paula. Não existia quase carro com os caras carregando... os cavalos puxando aquela charrete. Uma vida parecida com... Paquetá. Era muito cavalo puxando. Mas não via movimento de compras como eu te falei. Não existia isso.

P/1 – Bom Alsira. Eu quero te agradecer o depoimento. Muito obrigada pela participação no projeto Memória da Comunidade.

R – Eu queria ir lá. Queria ir lá.