A CAIXINHA ESCOLAR, A PATRULHA ESCOLAR E O ESTUDANTE INSURGENTE
Ricardo França de Gusmão (Memórias da minha Escola)
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Eu sou do tempo da malfadada ‘Caixinha Escolar’. Tempo em que os estudantes do primário e, e, em especial, do ginasial, eram recrutados para fazer parte da ‘Patrulha Escolar’. Eram anos 70. E o ‘climão’ da ditadura ainda pairava sobre as relações das pessoas, na vida em sociedade, nas famílias, e... na Escola.
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Estudava na Escola Municipal Rodrigo Otávio Filho, na Rua Marambaia, em Irajá. Até hoje ela permanece de pé. Com o luxo de agora dispor de um ar-condicionado em cada sala de aula. Mas nos anos 70 não era assim. Havia a disciplina de Moral e Cívica e de Estudos Sociais. E gostava de no início de cada jornada escolar começar com todos os alunos em fila, para cantar o Hino Nacional.
Assistíamos, com devoção e orgulho, a Bandeira brasileira ser hasteada. Era um ato solene. E ai daquele que fizesse mímica em vez de cantar, ou que errasse a letra do Hino Nacional... Ou do Hino da Bandeira... Lembro, sem saudade, que nas fileiras discentes, nos ensinavam (ou nos doutrinavam) a fazer movimentos que lembravam a rotina militar, como “Cobrir!”. Aí tínhamos que colocar a mão direita no ombro direito do companheiro da frente. Mas também havia o movimento de colocar a mão direita sobre o coração. Éramos uma tropa estudantil!
Os estudantes recrutados para a Patrulha Escolar tinham a missão de vigiar os colegas e entregá-los à direção caso flagrassem alunos em atos considerados indiciplinares. Eles usavam uma espécie de ombreira, à semelhança das usadas pelos guardas de trânsito, à época, policiais militares. Mas a inspiração veio mesmo da Polícia do Exército.
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O uniforme escolar era calça tergal azul marinho escuro, camisa branca com botões e gola, com o brasão do município do Rio de Janeiro no bolso, do lado esquerdo. Novamente... bem em cima do coração. Haja amor! Vivíamos...
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A CAIXINHA ESCOLAR, A PATRULHA ESCOLAR E O ESTUDANTE INSURGENTE
Ricardo França de Gusmão (Memórias da minha Escola)
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Eu sou do tempo da malfadada ‘Caixinha Escolar’. Tempo em que os estudantes do primário e, e, em especial, do ginasial, eram recrutados para fazer parte da ‘Patrulha Escolar’. Eram anos 70. E o ‘climão’ da ditadura ainda pairava sobre as relações das pessoas, na vida em sociedade, nas famílias, e... na Escola.
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Estudava na Escola Municipal Rodrigo Otávio Filho, na Rua Marambaia, em Irajá. Até hoje ela permanece de pé. Com o luxo de agora dispor de um ar-condicionado em cada sala de aula. Mas nos anos 70 não era assim. Havia a disciplina de Moral e Cívica e de Estudos Sociais. E gostava de no início de cada jornada escolar começar com todos os alunos em fila, para cantar o Hino Nacional.
Assistíamos, com devoção e orgulho, a Bandeira brasileira ser hasteada. Era um ato solene. E ai daquele que fizesse mímica em vez de cantar, ou que errasse a letra do Hino Nacional... Ou do Hino da Bandeira... Lembro, sem saudade, que nas fileiras discentes, nos ensinavam (ou nos doutrinavam) a fazer movimentos que lembravam a rotina militar, como “Cobrir!”. Aí tínhamos que colocar a mão direita no ombro direito do companheiro da frente. Mas também havia o movimento de colocar a mão direita sobre o coração. Éramos uma tropa estudantil!
Os estudantes recrutados para a Patrulha Escolar tinham a missão de vigiar os colegas e entregá-los à direção caso flagrassem alunos em atos considerados indiciplinares. Eles usavam uma espécie de ombreira, à semelhança das usadas pelos guardas de trânsito, à época, policiais militares. Mas a inspiração veio mesmo da Polícia do Exército.
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O uniforme escolar era calça tergal azul marinho escuro, camisa branca com botões e gola, com o brasão do município do Rio de Janeiro no bolso, do lado esquerdo. Novamente... bem em cima do coração. Haja amor! Vivíamos tempo de um Brasil ufanista. Lembro-me das eleições marcadas por dois partidos políticos: o partido do Governo, Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), da oposição. Lá em casa, todos eram MDB.
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Eu olhava para os colegas com a ombreira da Patrulha Escolar com desconfiança. E imaginava... “São todos da ARENA!”. Ah, sim... Grêmio Estudantil... Nem pensar. Então, eu me posicionava, já, a partir dos 9 anos de idade, ideologicamente. E era capaz de instintivamente identificar cadeias de poder e de comando. Uma vigilância cínica e panóptica. E achava muito divertido — era a rebeldia da época — soltar bombinhas chamadas de ‘cabeça de nêgo’, no banheiro da escola, no pátio. Estávamos na sala de aula, depois de comer arroz com peixe (ou macarrão com salsicha no refeitório – quando, de repente: “BUUUUMMMM!!!”.
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Era um ‘Deus nos acuda’. E uma forma de mandar um recado para os ‘patrulheiros’ “Perderam, seus aprendizes de milicos otários!”. Mas eu nunca tive coragem de fazer isso não. E, também, para falar a verdade, levava susto a cada explosão e aquilo me irritava. Sim. Vivi tempos de timidez. Sem perder a postura divergente e, por vezes, insurgente.
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Nessa temperatura a direção da escola cobrava dos pais a contribuição da “Caixinha Escolar”. Ora, estávamos em uma escola pública, do município, num bairro pobre. A minha família passava por momentos difíceis, de ordem financeira. Já éramos três irmãos em idade escolar. Todos nós estudávamos na Escola Municipal Rodrigo Otávio Filho: eu e meus irmãos gêmeos Eduardo e Luciana. O caçula de uma prole de quatro irmãos, viria nascer em 1976, Fábio.
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Então havia na agenda da escola datas específicas da “reunião com os pais”, por turmas. Cadeiras eram colocadas na área externa, porém coberta, da escola e a diretora, junto com a coordenadora acadêmica e a professora orientadora abriam a reunião. A pauta listava assuntos diversos, como o uso do uniforme alinhado... A padronização dos calçados. Era sapato preto e, nos dias das aulas de Educação Física, podíamos ir de Kchute, Bamba ou de Conga.
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A questão da disciplina, das ‘bombinhas’, do cumprimento do horário, da obrigatoriedade de levar a caderneta escolar, sob a pena, em caso de esquecimento, não poder entrar na escola para assistir aula. Mas uma coisa me incomodava nessas reuniões. E incomodava também o mano Edu. Era quando a diretora batia na tecla de as famílias terem que estar em dia com a Caixa Escolar.
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Não me lembro quanto era... Acho que era mensal. A direção alegava que era pra comprar insumos, como material higiênico para os banheiros. Mas os banheiros eram um ‘lixo’. Não havia uma rotina quanto a limpeza e faltavam rolos de papel higiênico... Aquilo não me cheirava bem. Não mesmo. E, como disse, as coisas lá em casa não estavam legais. Havia desemprego. E muitas famílias — em especial as que eu conhecia, por causa dos meus colegas de turma – também estavam passando por apertos financeiros. Muitos alunos tinham que parar de estudar para ajudar a colocar o pão na mesa de casa.
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E eu tinha entre 9 e 10 anos, quando participei, não sei como, pois a participação de alunos era vetada, de uma dessas reuniões. Estavam meu pai, Gilson, e minha mãe, Maria Helena. Lá pelas tantas — eles me contaram isso anos depois — entrou em pauta a tal da caixinha... Não sei o que exatamente me moveu. Eu era tímido. E não entendia muito bem o contexto... Tinha apenas percepção... A Patrulha Escolar... Os dois partidos políticos (porque emporcalhavam as ruas com ‘santinhos’ em épocas de eleição e eu me divertia com isso), a formação para cantar o Hino Nacional... As ombreiras que lembravam a Polícia do Exército.
E eu já me questionava quanto a obrigatoriedade de pagar uma caixinha escolar, numa escola pública que deveria arcar com essas despesas básicas e pontuais. Então foi meio assim... Levantei o dedo (dedinho...), no meio daquela população de pais e mães. E pedi, tímida e indignadamente, a palavra.
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— Posso fazer uma pergunta? — Meus pais não esperavam isso.
—O que você quer meu filho? Edstamos no meio de uma reunião. —Respondeu a diretora.
— Mas é sobre a reunião mesmo que eu quero falar. — Respondi, agora em tom de réplica. Houve um instante de silêncio geral e os olhares e pescoços ora viravam para a diretora com microfone na ao, e ora para mim.
— Pois fale então, garoto! – Permissão dada, não era mais insolência ou enfrentamento. Era um diálogo instantâneo permitido, quase esnobe. Então, ‘detonei’ a minha ‘bombinha’.
— Diretora, eu e meus pais queremos saber aonde é que foi parar o dinheiro da Caixa Escolar. Em que ele está sendo gasto. Precisamos saber de que forma o nosso dinheiro está sendo gasto — Pronto. Falei. Breve silêncio. Olhares agora todos voltados para a diretora e sua equipe. Não havia balancetes, notas fiscais, planilhas. Não havia controle com o dinheiro dado pelas famílias de forma colaborativa.
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Não me lembro como terminou a reunião. Aliás, nem me lembrava que isso tinha acontecido. Meu pai disse que foi o maior rebuliço, porque abriu-se uma janela para questionamentos gerais e contestação. Muitos pais optaram, depois, pela ‘desobediência civil’. Pararam de abastecer as torneiras da Caixa Escolar. E eu... Bom, e eu... Dali a diante passaria a ser ‘monitorado’...
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