Meu nome é Maria de Lourdes Pimentel Sampaio. Sou Amazonense. Nasci no interior do Corocoró, na comunidade, em 1949. A minha mãe era mulher solteira. Engravidou. A vovó não sabia de nada, e foi crescendo a barriguinha, foi crescendo. A vó expulsou ela de casa. Mamãe foi parar na beira de um lago. Era um barracão onde criavam bode, carneiro. Ela ficou lá vigiando esses bichos. Ali nós nascemos... Nós fomos crescendo, nos formando. Com isso ela começou a filhar, teve mais sete filhos, tudo sem pai. Mas a minha vó recusou ela de uma vez. Ela trabalhava no campo com os outros, onde tinha trabalho, ela ia. Quando eu cheguei com sete anos, a minha avó adotou a outra, meu par, ela é branquinha, bem branca, e a minha mãe ficou comigo. Quando eu inteirei sete anos, a minha mãe me deu pra uma índia. Eu levei dois anos com essa índia no rio Curapá. Meu tio viu que eu estava muito sossegada, que não tinha notícia. Ele levou quatro dias andando de canoa nesse beiradão pra dentro desse rio Curapá pra me encontrar. Ele me encontrou na tribo onde ela estava e me trouxe. Quando eu inteirei doze anos apareceu uma tia minha, a irmã dela, me levou pra Santarém. E assim eu fui me criando no seio das outras famílias, porque minha mãe não tinha condições de ter.
Quando eu saí, que a minha mãe me deu pra Santarém, eu levei três anos. Foi dez, onze, doze. Eu só sei dizer que eu vim de lá com 13 anos. Aí, nós não tinhamos como sobreviver, a minha mãe era pobrezinha mesmo, pobreza é pobreza mesmo. Mas eu já sabia ler, já sabia escrever, já sabia fazer uma conta. Aí, eu olhei para um lado e outro e falei: “Meu Deus, como a gente vai viver aqui, meu Pai, como o pessoal vive aqui, mamãe?” Quando chegava o Regatão, mamãe trocava, tantos cachos de bananas por três quilos de açúcar, uma barra de sabão. Azeite, óleo de cozinha. Era desse jeito. Tinha muitos pescadores, pessoas que trabalhavam, pegavam os peixes. E a gente via aqueles...
Continuar leituraMeu nome é Maria de Lourdes Pimentel Sampaio. Sou Amazonense. Nasci no interior do Corocoró, na comunidade, em 1949. A minha mãe era mulher solteira. Engravidou. A vovó não sabia de nada, e foi crescendo a barriguinha, foi crescendo. A vó expulsou ela de casa. Mamãe foi parar na beira de um lago. Era um barracão onde criavam bode, carneiro. Ela ficou lá vigiando esses bichos. Ali nós nascemos... Nós fomos crescendo, nos formando. Com isso ela começou a filhar, teve mais sete filhos, tudo sem pai. Mas a minha vó recusou ela de uma vez. Ela trabalhava no campo com os outros, onde tinha trabalho, ela ia. Quando eu cheguei com sete anos, a minha avó adotou a outra, meu par, ela é branquinha, bem branca, e a minha mãe ficou comigo. Quando eu inteirei sete anos, a minha mãe me deu pra uma índia. Eu levei dois anos com essa índia no rio Curapá. Meu tio viu que eu estava muito sossegada, que não tinha notícia. Ele levou quatro dias andando de canoa nesse beiradão pra dentro desse rio Curapá pra me encontrar. Ele me encontrou na tribo onde ela estava e me trouxe. Quando eu inteirei doze anos apareceu uma tia minha, a irmã dela, me levou pra Santarém. E assim eu fui me criando no seio das outras famílias, porque minha mãe não tinha condições de ter.
Quando eu saí, que a minha mãe me deu pra Santarém, eu levei três anos. Foi dez, onze, doze. Eu só sei dizer que eu vim de lá com 13 anos. Aí, nós não tinhamos como sobreviver, a minha mãe era pobrezinha mesmo, pobreza é pobreza mesmo. Mas eu já sabia ler, já sabia escrever, já sabia fazer uma conta. Aí, eu olhei para um lado e outro e falei: “Meu Deus, como a gente vai viver aqui, meu Pai, como o pessoal vive aqui, mamãe?” Quando chegava o Regatão, mamãe trocava, tantos cachos de bananas por três quilos de açúcar, uma barra de sabão. Azeite, óleo de cozinha. Era desse jeito. Tinha muitos pescadores, pessoas que trabalhavam, pegavam os peixes. E a gente via aqueles peixes grandes, tambaquizão bonito, aí, nós tinhamos gado e eu disse: “Mamãe, vam´bora vender esse gado, mamãe, pra gente comprar uma mercadoria pra vender aqui. Porque nós já sabemos fazer conta.
O que a gente fazia? Levava açúcar, café, farinha, sabão, o que mais de necessidade no interior. E a gente vendia. Depois nós fizemos, eu e ela, uma amizade com os pescadores, com os pais de família. Mandamos eles pegarem o peixe, não matar o peixe, que naquele tempo não tinha gelo e também a pobreza era muita, nem sal eles tinham condições de comprar. Eles prendiam o peixe vivo, quando era de madrugada, duas horas da manhã, eles chegavam em casa, batendo na varanda, era uma casa de varanda. Aqueles peixões bonitos, tambaquis, surubizão! A gente embarcava. Você imagina que a gente atravessava o Amazonas. Três horas da manhã pra chegar às seis horas da manhã para vender o peixe na beira. Não existia motor nessa época, quem tinha motor era rico.
Mas depois, quando eu tinha 15 anos, eu porque se eu fizesse a quinta série, eu ia ser uma professora. A mamãe me deu para uma família para eu poder estudar, mas eu não tive sorte, não. Naquele tempo, pra estudar era escravizado, tinha que tomar conta de casa, de filho, tinha que arrumar tudo e ter tempo pra ir pra escola, se tivesse, e sem ganhar um tostão.
Eu me casei com 20 anos. Meu marido era muito colega dos meus amigos, dos meus irmãos. Aí, as minhas irmãs disseram: “Olha, é com esse rapaz que você tem que casar”. Aí, eu me casei, levei seis meses e me casei. Eu pensava que o meu marido era uma pessoa que eu pudesse esperar alguma coisa boa. Ele era ignorante, ele não criava as coisas pra ter, a mãe dele que fazia tudo. Depois de dois anos, eu me sujeitei a trabalhar mesmo. Eu ia pra roça, eu fazia roça, plantava milho, aquilo. Montei um comércio, mas não deu certo porque onde morávamos era campo. Depois de dois anos tive o primeiro filho, que é o Manuel. De dois em dois anos eu tive um filho, tive dez filhos. Aguentei. Depois de uns 15 anos de casados, ele virou alcoólatra.
Uma vez, eu dei um dinheiro pro primo dele comprar dois sacos de milho aqui em Juruti, ele gastou tudo em bebida, e os meus capões, estava com 70 capões, que era frangão bonito, iam morrer tudo. Eu disse: “Hoje vou lá pra baixo ver se eu consigo alguma coisa pros meus bichos comerem”. Quando eu cheguei na casa da minha mãe, baixando, eu com o meu filho que estava com dois anos já. “Mas Lourdes, o que tu tá fazendo por aqui, mulher?” Eu disse: “Ah mamãe, eu vim atrás de umas comidas pros meus bichos. “Mas não tem por aqui”. “Eu vou lá no terreno da tia Juca. Lá tem”. “Lourdes, não vá lá, Lourdes. Mas tu é muito corajosa, mulher”. Ia dar umas nove pra dez horas. “Tu te lembra que faz dois anos que a tia Geralda falou com o filho dela, que era morto há muitos anos e falou com ele embaixo daquelas árvores? Castanheira grande? Ali tem visagem, menina. Não vá, mulher. Não vá”. “Não, eu vou. Visagem quem faz é a gente”, falei bem assim pra ela, ‘barquei’ o moleque e vim embora. Quando cheguei lá, ancorei a canoa lá, puxei, falei pro menino: “Olha, meu filho, fica aí na canoa enquanto eu vou lá em cima”. Eu peguei, subi. Naquilo que eu subi, vi muita castanha embaixo da árvore. Aí, começou a visagem. Apareceu um cachorro. Branquinho, branquinho, parecia uma algodão. O cachorro veio abanando o rabo pro meu lado, eu peguei no queixo dele, macio. Deitou embaixo da árvore, eu juntei as castanhas. Apareceu um gavião em cima. Fui na canoa, peguei um paneiro. Paneiro é pra gente carregar as coisas no interior, pra levar pra qualquer parte. Botei as castanhas no paneiro, quando ia pra carregar, estava com o meu chapéu de palha, o gavião vinha, coisava na minha cabeça. Por que ele faz isso comigo? Eu ainda falei: “Não estou mexendo com teus filhos, nem no seu ninho, fica pra lá! Deixa eu juntar as castanhas”. Só eu falando lá com os bichos. Quando eu fui carregar de novo o paneiro, lá vem ele. Não sei se ele cantava, se ele chorava. Meu Deus do céu. Aí, eu disse pro menino: “Embarca na canoa que eu vou jogar o paneiro com a castanha aqui”. Fiz isso. Até que eu levei a canoa cheia de castanha. Quando eu cheguei na casa da minha mãe, parecia uma hora e meia da tarde. “Mas agora mulher, que tu vem de lá? O que estava fazendo na castanha?” “Ah, mamãe, entrei numa história boa pra lhe contar. Um gavião me judiou, mamãe. Eu botava o paneiro na minha cabeça, ele vinha e arranhava minha cabeça, e nunca que eu enxerguei esse gavião. E eu carreguei assim, o paneiro na minha frente para eu poder conseguir. E lá apareceu um cachorro branco também, não sei se caiu de algum motor, ou se eu dei alguma coisa. Mas não tem casa lá pra baixo”. Ela disse: “Aquele cachorro é vigia de lá com certeza”. Eu deixei umas castanhas pra ela, ovo, e fui embora pra minha casa. A minha casa era muito longe. De lá eu ia na canoa com uma vela, velejando. Cheguei em casa umas cinco e meia da tarde. Cansada. O menino também cansado”. Naquilo que eu fui pro meu quarto, uma voz apareceu pra mim: “Olha, lá onde você estava com uma criança, nunca mais leva o teu filho”. Aquela voz, assim, mas não aparecia a pessoa, só era a voz. “Nunca mais leva o seu filho. Aquela coisa que aparecia, aqueles ovos que estavam lá, foi pra criança ficar lá se entretendo. Aquele cachorro branco que tu viste é mãe de lá. O gavião é dono de lá. Toda vez que você for lá, você pede, todas as coisas têm seus donos. Outra coisa eu vou te dizer. Tu és uma pessoa que nós precisamos ajudar, eu quero te ajudar”. Eu procurava falar, ver a pessoa e não tinha como. Ela disse: “Tu é uma mulher muito batalhadora. Nunca mais viva do jeito que tu vive, tu trabalhas muito. A vida que tu pensava que ia levar, tu não levaste, mas se tu soubesse conseguir isso aqui, nunca mais tu ia fazer o que tu fazes”. Olha, embaixo de onde tu estava tem uma bacia, ela é grande, tá cheia de ouro. Lá onde o cachorro deitou, lá está. Agora, só uma coisa eu te peço, não vá pela frente, e nem leva criança. Leva o teu marido. Tu só pode conseguir isso com o teu marido”. Meu Deus, fiquei assim até que desapareu. Aí, parecia que não tinha acontecido nada comigo, eu peguei a lapiseira, tudinho que ela me falou, para eu não esquecer. Fiquei neutra, pensando, aquilo não saía do meu pensamento. Quando foi na outra noite, de novo, já era mais de meia-noite, de novo, aquela voz. Meu marido não estava, estava pescando. “Olha, tu vai, mas vai com o teu marido e não vai pela frente, vai por ‘detrás’. Tu só consegue isso se tu levar o teu marido”. Passou na terceira noite, de novo. Aí, eu falei pro meu marido. Ele estava cuidando de um pirarucu grande que ele tinha matado, uns 30 quilos. Deixei ele preparar tudinho, ele alegre: - “Com esse pirarucu eu vou viajar agora, Lourdes”.
-“Pra onde você vai?”
-“Eu vou pra Juruti vender”.
Quando ele chegou, trouxe bolacha pra cá e pra ali. Ele levou um corte pra mim. Eu me lembro tão bem, que era um cortezinho de florzinha, dois metros e meio. Naquele tempo a gente vestia vestidão, mulher não vestia calça! Nem pensar.
Ele disse:
-“Olha, trouxe um pano pro seu vestido”.
Fiquei olhando. Aí, eu falei assim pra ele: - “Mas um dia, se Deus quiser, eu não vou vestir esse paninho aqui, eu vou só vestir roupa bonita”.
Ele disse:
-“Por que tu tá falando assim?”, ele ficou sério.
-“Não, porque eu vou vestir, mesmo. Eu tenho uma coisa pra te contar, mas só quando você estiver bem”.
Aí, ele ficou, disse: - “Mas eu estou bem”.
- “Olha, são três noites que eu sonho. Você lembra que eu fui pegar castanha lá na tia Juca? Assim, assim e assim. Toda noite vem. Mas tenho que ir contigo e por ‘detrás’. E que não leve criança. Aqueles ovos que eu trouxe pra cá, a voz disse que colocou lá pra criança não subir nos altos. E aí?”
-“Mas eu prefiro andar vestido com uma saca de sarrapilha, mas lá eu não vou! Lá, mas nem pensar! Se tu quiser agora, nós nos separamos, mas lá eu não vou, eu vou ficar na minha pobreza”.
-“Tudo bem, tá bem. Passou na outra noite de novo, tornei a sonhar, aquilo veio de novo, aquela voz. “Teu marido não vai, então, você vai perder. Convida ele mais uma vez, me ajuda. Eu estou aqui porque há muito tempo a gente não podia ter nada que a gente era morto. A gente enterrava essas joias, tudo o que a gente tinha”. E os antigos contam isso mesmo, que eles enterravam. No tempo da Cabanagem. Eles enterravam tudo o que tinham pra não ser mortos. Mas acabou que ele não foi mesmo. Depois de dois anos, aquilo caiu que foi tudinho, foi levando tudo, uma extensão da terra.
Com isso, toda noite me perturbava, foi o tempo que eu vim pra cá em Juruti, aquela voz sempre estava comigo. Aí, eu fui em Parintins, consultei, mas ninguém me falou nada. Até que um dia eu me aproximei de uma senhora, acho que ela sabia essas coisas do outro mundo, sei lá. “Já teve contato com alguma voz, alguma coisa?” “Eu tive”. E contei pra ela. “Então, se mude”. Eu contei a história pra ela. “A senhora não recebeu essas coisas que a senhora tinha que receber, mas a senhora vai receber de outro jeito. Ore por essas pessoas, elas estão sofrendo”. Eu cheguei aqui, comecei a trabalhar. Eu trabalhava no campo com os outros. Se tinha um trabalho ali, um família que precisasse, eu ia lá.
Eu tenho motor, tudo adquirido com as minhas coisas, meu trabalho. Terreno no interior eu tenho, tenho gado. O melhor hotel que tinha era o meu. Teve quarto que eu fiz, eram 16 quartos, fiz mais quatro, inteirei 20. Era o pessoal que vinha para explorar o negócio de ouro, diz que tem ouro aqui, acho que tem mesmo. Acabou que eu fiz os quartos, pintei, mandei fazer tudinho, mas ninguém entrou. Quando foi um belo dia, em 85, Dia dos Pais, segundo domingo de agosto, eu fui à missa de noite. Quando cheguei, tinha uma festa lá para um bairro e todo mundo foi para lá. Estava um menino lá, eu falei: “Fecha esse comércio, filho, tem pouca gente, pede licença pro rapaz que está bebendo, vam’bora fechar. E vamos lá no Bom Pastor”. Naquilo que ele fechou o comércio, começaram a bater na porta pi-pi. Era porta de ferro. Aí, ele disse: “Dona Lourdes, vamos orar a Deus, está caindo a frente da cidade”. Aí, correram e foram falar pro prefeito que a frente do Juruti estava caindo. Já tinha caído a primeira parte do cais. Foi tudo rápido. Levou uns três anos caindo, sempre caindo, todo dia caía um pedaço, ia desmoronando. A frente da água era muito forte lá. A água batia, não sei lá, aquilo é uma erosão, a força daquela água. Daqui uns tempos, Juruti ainda vai ficar uma represa, porque vem baixando aqui uma ilha.
Aí, a crise começou na minha vida. Eu almoçava e não jantava, ou então jantava e não almoçava. Era desse jeito. Filho não sabia por onde eu andava. Pegava o motor, lá onde eu sabia que estava dando dinheiro eu ia vender o meu produto. Era completar 150, 200 sacas de farinha e eu olha. Meu marido falava: “Lourdes, para”. “Eu nao posso parar, homem, tu é parado, eu não posso parar, não quero ver meus filhos sofrerem, eu quero sofrer, mas não quero ver meus filhos sofrerem”.
Eu não parava. Tinha gente que falava: “Mas essa mulher”. Eu não parava em casa, não. A pior coisa é você terminar as suas coisas, ficar de mão cruzada esperando que caia do céu, que não cai. Deus te ajuda, mas ajuda você trabalhando.
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