Projeto SOS Mata Atlântica 18 Anos
Depoimento de Carlos Alfredo Joly
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 25 de Fevereiro de 2005
Realização Museu da Pessoa
Código de depoimento: SOS_HV044
Transcrito por Thaís R. Cechini
P/1 - Boa tarde, Joly. Você poderia falar seu nome completo, data e local de nascimento?
R - Bom, eu sou Carlos Alfredo Joly, nasci em São Paulo, no dia 10 de janeiro de 1955.
P/1 - E seus pais?
R - Meu pai era professor da USP [Universidade de São Paulo], um Botânico, uma pessoa já muito envolvida com natureza, Aílton Brandão Joly, nascido em Itatiba e professor aqui da USP, no departamento Instituto de Biociências da USP. Minha mãe era bibliotecária, mas mais se dedicou à criação dos filhos do que à sua atividade profissional, nascida aqui em São Paulo.
P/1 - E vocês moravam onde na infância?
R - Praticamente, desde que eu me recordo, a gente morava numa casa na Rua Hungria. A Rua Hungria, hoje auxiliada à Marginal, naquela época tinha apenas uma quadra asfaltada, algumas casas e a gente morava ali. Uma vida praticamente de fazenda. O pão era entregue por carroça, na frente de casa você tinha um matagal, depois um barranco que descia e o mato ia até a estrada de ferro, e depois o Rio Pinheiros, e do outro lado o Jockey Clube. Então, apesar de ter sido criado em São Paulo, fui criado nessa situação muito particular, em que a gente tinha uma vida como se fosse numa fazenda ou numa chácara, alguma coisa desse tipo. Era complicado para ir para escola, tinha que andar muito para chegar ao ponto de ônibus. Estudei, fiz o meu primário no Caetano de Campos, que era lá na Praça da República, então tinha que praticamente viajar até a Praça da República e depois voltar tudo, diariamente. Foi um período muito bom, eu acho que foi um período de muito contato com a natureza e também por causa do meu pai, que era botânico e tinha muito prazer em falar sobre a natureza, explicar, então...
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Depoimento de Carlos Alfredo Joly
Entrevistado por Beth Quintino e Rodrigo Godoy
São Paulo, 25 de Fevereiro de 2005
Realização Museu da Pessoa
Código de depoimento: SOS_HV044
Transcrito por Thaís R. Cechini
P/1 - Boa tarde, Joly. Você poderia falar seu nome completo, data e local de nascimento?
R - Bom, eu sou Carlos Alfredo Joly, nasci em São Paulo, no dia 10 de janeiro de 1955.
P/1 - E seus pais?
R - Meu pai era professor da USP [Universidade de São Paulo], um Botânico, uma pessoa já muito envolvida com natureza, Aílton Brandão Joly, nascido em Itatiba e professor aqui da USP, no departamento Instituto de Biociências da USP. Minha mãe era bibliotecária, mas mais se dedicou à criação dos filhos do que à sua atividade profissional, nascida aqui em São Paulo.
P/1 - E vocês moravam onde na infância?
R - Praticamente, desde que eu me recordo, a gente morava numa casa na Rua Hungria. A Rua Hungria, hoje auxiliada à Marginal, naquela época tinha apenas uma quadra asfaltada, algumas casas e a gente morava ali. Uma vida praticamente de fazenda. O pão era entregue por carroça, na frente de casa você tinha um matagal, depois um barranco que descia e o mato ia até a estrada de ferro, e depois o Rio Pinheiros, e do outro lado o Jockey Clube. Então, apesar de ter sido criado em São Paulo, fui criado nessa situação muito particular, em que a gente tinha uma vida como se fosse numa fazenda ou numa chácara, alguma coisa desse tipo. Era complicado para ir para escola, tinha que andar muito para chegar ao ponto de ônibus. Estudei, fiz o meu primário no Caetano de Campos, que era lá na Praça da República, então tinha que praticamente viajar até a Praça da República e depois voltar tudo, diariamente. Foi um período muito bom, eu acho que foi um período de muito contato com a natureza e também por causa do meu pai, que era botânico e tinha muito prazer em falar sobre a natureza, explicar, então eu desde moleque tinha coleção de borboleta, tinha coleção de aranhas, então, eram coisas, atividades, que me atraiam desde muito cedo. Tenho duas irmãs, minha irmã mais velha fez biologia também, mas acabou não atuando na área, foi atuar numa outra área, e minha irmã do meio trabalha com conservação de documentos, restauração e conservação em documentos na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Acho que é isso.
P/1 - Como era essa convivência familiar na sua infância?
R - Ah, acho que foi muito rica, porque quando eu tinha oito para nove anos, mesmo antes, sempre as férias a gente passava no litoral. Meu avô tinha uma casa em Ilha Bela, uma casa que ele comprou lá em 1940. Depois, quando eu tinha de oito para nove anos, meu pai construiu uma casa em Ubatuba, então a gente viajava todas as férias, depois que tinha casa em Ubatuba, praticamente a cada duas semanas a gente ia para lá, o que aumentava também esse contato com a natureza, com essas situações diferentes, a Mata Atlântica, manguezais, restinga, praia, costão rochoso. Meu pai trabalhava com algas, foi uma referência na área de botânica, escreveu a Flora de Algas do Brasil, então ministrava cursos de campo na base norte da USP, no Instituto Oceanográfico da USP, lá em Ubatuba. Eu acompanhava muito desses cursos, acompanhava as excursões, então sempre foi uma convivência com muito contato com a natureza e muito de aprender a respeitar a vida independente da forma a qual essa vida se apresenta. Quer dizer, ser vivo é um ser vivo e merece um respeito. Acho que isso foi uma coisa muito forte, muito importante na minha formação. Lógico que sendo três, a gente brigava para caramba, isso eu acho que é o natural de todas as famílias, mas até hoje a gente tem uma convivência muito boa, quando possível nos reunimos. Ano passado, na verdade na passagem de ano de 2003 para 2004, nós passamos lá em Ubatuba para comemorar quarenta anos de existência da casa. Daí reuniu a família toda, menos meu pai, que já faleceu em 1975. Então eu acho que o fato de a gente conviver, ter gosto de se encontrar e conviver até hoje, mostra que foi sempre um relacionamento muito... um clima muito bom.
P/1 - Logo que você acabou seus estudos, o colegial, já foi para faculdade?
R - Como eu disse, eu fiz o meu primário na Caetano de Campos, num curso experimental que o Caetano de Campos iniciou com a minha turma, depois eu vim fazer o ginásio. Eu sei que essas coisas parecem muito antigas, fazer primário, ginásio, hoje é tudo ensino fundamental, médio, mas enfim, o ginásio eu vim fazer no Vocacional Oswaldo Aranha. Quer dizer, de novo era uma escola experimental, com uma proposta diferenciada, que você passava o dia inteiro na escola, você tinha uma série de atividades que te permitiam desenvolver áreas do seu interesse, podia ser na área de ciências, podia ser na área de mecânica, podia ser na área de artes, enfim, você tinha um espaço e tinha orientação e condições para desenvolver. Era um projeto fantástico que também tinha um posicionamento muito crítico e nos colocava em contato com a realidade sem filtros, então a gente visitava favelas, bairros nobres, a gente aplicava o mesmo questionário em diferentes áreas, a gente visitava indústrias, visitava áreas do estado onde a atividade principal era pecuária, por exemplo, eu passei uma semana em Barretos com a escola. Tudo isso fazia desenvolver muito a crítica, o questionamento, o posicionamento de poder expressar a sua opinião e não aceitar verdades como coisas empacotadas que têm que ser compradas daquela forma e não podem ser alteradas, então acho que isso também foi uma coisa bastante importante. E já no vocacional, eu, junto com alguns colegas, a gente montou um clube de ciências, fazíamos uma série de experimentos, a gente tinha experimentos de nutrição de ratos, experimentos de coleção de diversos organismos, insetos, de uma maneira geral, desenvolvimento de foguetes, desenvolvimento de raio laser, a gente brincou praticamente de tudo, tínhamos um laboratório muito bom, tinha orientação e era muito uma situação semelhante ao que eu tinha em casa. Você tem a liberdade para fazer as coisas que você quer fazer, mas você é responsável por aquilo que você faz, então a escola reforçava muito esse tipo de coisa. Talvez em função disso e do aprendizado todo que eu tive em casa, eu participei do Cientista de Amanhã, que era uma iniciativa que estava começando ainda, estava sendo organizada e desenvolvia um projeto de estudo da população de dois mariscos lá da praia de Saco da Ribeira, em Ubatuba, na época de verão, na época de inverno, se flutuava a população, quanto aquilo representava, o quanto era concha, o quanto era proteína, o quanto aquilo representava em valor alimentar pro caiçara, que tinha aquilo como um item importante na sua alimentação. Então, entrar na biologia foi uma coisa muito natural, era uma coisa que eu já trabalhava, já gostava, já estava envolvido desde muito cedo. Saí do Oswaldo Aranha quando a experiência foi drasticamente encerrada por razões políticas. Em dezembro de 1968, a escola praticamente foi fechada, toda direção foi caçada e quando ela reabriu, em 1969, ela era uma escola tradicional, tinha modificado completamente o seu perfil, e eu então fui fazer o meu segundo grau no colégio Porto Seguro, que era exatamente o oposto. No colégio Porto Seguro você tinha um professor na sala de aula, que era a autoridade inquestionável, meu primeiro ano lá foi um ano bastante complicado, eu entrei em vários problemas por confrontar, por ter sido, vamos dizer, educado para fazer questionamentos, mas o Porto Seguro dava uma parte de conteúdo muito grande e na época tinha um professor de biologia, o professor Tábua, já falecido também, que permitia, estimulava a trabalhar, a pesquisar. Era uma pessoa que todas as férias de final de ano ele viajava pros lugares mais inóspitos e desconhecidos para nós na época, alguém ir para a Malásia, alguém ir para a Austrália, e aí ele voltava e, invariavelmente, em março ele fazia uma apresentação de “slides” e uma explicação. Então você conhecia outras realidades de outros países, outros sistemas, era uma coisa muito interessante, muito estimulante também. Esse envolvimento todo para mim foi natural, fazer o exame, fazer o vestibular para Biologia, para surpresa dos meus pais fui aprovado nos vestibular, minha também, mas na época mais deles do que minha. Fui aprovado e fiz minha graduação aqui no Instituto de Biociências da USP, em Ciências Biológicas.
P/1 - E isso foi em que ano?
R - Eu entrei na USP em 1973 e me formei em 1976. Também foi um período, principalmente meus dois primeiros anos de USP, foi um período de um envolvimento muito grande, com retomada na reorganização do movimento estudantil, centro acadêmico, centro acadêmico da Biologia, que era a Sociedade Paulista de História Natural, tem uma sociedade na verdade, então muito envolvimento com as discussões, os questionamentos da própria Universidade e as facilidades que eram dadas aos estudantes. Muito mais do que um questionamento político, que também havia, evidentemente, mas era um próprio questionamento do dia-a-dia, de coisas que a gente achava importante, por exemplo, como é que você oferece um curso noturno de biologia e a sua biblioteca fecha às cinco horas da tarde? Se pressupõe que os alunos do noturno não consultam livros ou que a biblioteca não é necessária para eles. Então brigar para que você tenha um horário estendido, que você administre o horário dos funcionários de tal forma que você possa cobrir pelo menos, não até as onze horas da noite, mas pelo menos até oito horas da noite, enfim, alguma possibilidade dos alunos poderem retirar e devolver livros. Então era muito essa coisa de questionar o próprio funcionamento, o próprio curso que era oferecido, inclusive o currículo, o conteúdo, foi um período de bastante discussão, e como eu disse, principalmente nos dois primeiros anos. E ainda como aluno do segundo ano, em 1974 eu tive meu primeiro emprego na Associação de Defesa da Flora e da Fauna, que era a Adeflofa, organizada por Doutor Paulo Nogueira Neto, e eu fui ser o redator do boletim mensal da Associação. Uma associação que tinha ganhado certa notoriedade porque em 1973, ou início da década de 70, foi quando houve a primeira mobilização da sociedade civil paulista contra a construção do aeroporto internacional, que naquela época seria construído em Caucaia do Alto, uma reserva, hoje é a reserva do Morro Grande, e houve toda uma movimentação de que era uma área que deveria ser preservada, que não deveria se destinar à construção de um aeroporto, um empreendimento do porte de um aeroporto internacional. Depois, por várias razões esse projeto de construção acabou sendo derrotado na Assembléia, por causa da pressão popular que se mobilizou e conseguiu levar aos deputados essa preocupação e conseguiu com que os deputados não aprovassem o projeto. E o aeroporto acabou depois sendo instalado lá em Guarulhos, também uma área complexa para a instalação de um aeroporto, mas eu acho que, sem dúvida, do ponto de vista da conservação, Caucaia teria sido um desastre muito grande, a construção, a instalação do aeroporto lá. E a Associação de Defesa de Flora e de Fauna foi uma das associações que ajudou a mobilizar assim como outras entidades também mobilizaram. E eu acabei indo redigir o boletim da Associação, mas praticamente fiquei por seis meses, porque não conseguia dar conta das atividades todas que eu tinha que fazer: redigir o boletim dentro dos prazos que tinha que entregar, tinha jornalzinho do centro acadêmico para fazer, tinha muitas atividades, e acho que isso foi sempre uma característica, eu sempre me envolvi em muitas atividades e acabei não sendo capaz de cumprir com os prazos e acabei conversando com o doutor Paulo, e falei assim: "Acho melhor o senhor contratar uma outra pessoa para fazer o boletim". Na época também já se organizava a Associação Paulista de Biólogos, a APAB, em uma briga para a regulamentação da profissão de biólogo. Biólogo era um técnico de nível superior, não era um profissional que pudesse assumir responsabilidades, assinar laudos e coisas, então havia toda uma movimentação e eu estava bastante envolvido com isso também. E depois, no começo de 1975, meu pai adoeceu e aí as preocupações passaram a ser outras, e aí realmente eu já não dava mais conta do boletim da Associação também e acabei me afastando dessa função e acabei também modificando a minha própria relação com o curso, porque em agosto o meu pai veio a falecer, em agosto de 1975. E aí eu comecei a me preocupar, porque eu precisava me formar, precisava arrumar uma profissão, não dava para ficar dedicando tanto tempo para outras atividades, por mais importante que eu considerasse as atividades. E consegui me formar em 1976 e em seguida me mudei para Campinas, para começar o meu mestrado lá na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Isso foi uma decisão pessoal, eu não queria continuar na USP muito em função do meu pai ter sido docente lá, ter sido um expoente da USP. E, com o falecimento dele, acho que me traumatizou em relação à Universidade e eu realmente queria continuar meus estudos, mas em um grupo diferente, em uma situação em que a presença dele não fosse tão forte. Praticamente a minha turma foi a última turma para quem ele deu aula, eu ainda tive a parte de taxonomia de plantas, eu ainda tive aula com ele, ele foi um excelente professor. E acabei então me mudando para Campinas, continuei muito envolvido com a questão da regulamentação da profissão, que, aliás, teve um desdobramento bastante importante em 1976, 1977, quando o Congresso acabou aprovando uma regulamentação da profissão de biomédico, que é uma especialidade da área de Biologia. Então você estava regulamentando uma especialidade sem que o todo fosse regulamentado, isso certamente iria causar mais problemas ainda em relação ao mercado de trabalho dos biólogos, que teriam o seu mercado mais restrito. E aí houve uma movimentação muito intensa junto ao Congresso Nacional e em 1979 a gente conseguiu que o Congresso aprovasse uma regulamentação conjunta de biólogo e biomédico. Depois acabou se desdobrando e hoje são profissões diferentes, tem o conselho de Biologia e tem o de Biomedicina, mas aí eu já estava fazendo, na verdade eu estava concluindo meu mestrado. Foi um período de uma atividade bastante grande nesta área.
P/1 - Só voltando um pouquinho, você falou da questão do aeroporto de Caucaia do Alto. Como é que foi a movimentação nesse período? As pessoas estavam mobilizadas? A imprensa estava junto?
R - Bom, é difícil hoje você separar o que era conhecimento da época, do que é conhecimento que você teve por ler coisas que aconteceram na época, mas eu acho que foi a primeira vez, pelo menos, que eu me recordo que esta mobilização conseguiu atingir a imprensa, a grande imprensa. Então houve um posicionamento, o Jornal da Tarde, na época, que era inovador inclusive, como proposta de jornal, serviu de voz dessa mobilização toda. Os pesquisadores do Instituto de Botânica, que na época era um órgão da Secretaria da Agricultura, muitos deles também se posicionaram, os professores. Também é o primeiro momento em que você vê a Academia universitária, a comunidade científica se envolver com uma questão de conservação, de ver a importância de que aquilo não era um pequeno empreendimento que ia se instalar, que aquilo ia puxar o eixo de crescimento da cidade para aquela região como um todo e o impacto seria, não só do aeroporto, mas de toda a ocupação daquela área, que era uma área importante inclusive do ponto de vista de mananciais e não adequada, a topografia não era adequada. Não havia uma justificativa técnica convincente para que o aeroporto se instalasse lá. Eu acho que isso foi o que acabou levando à derrota do projeto, porque ninguém conseguia justificar porque, efetivamente, aquela região tinha sido escolhida. Então eu acho que isso foi assim, foi um primeiro movimento. Certamente o número de carros era muito inferior ao que você tem hoje na cidade de São Paulo, mas foi a primeira vez que se fez adesivo para se colocar em carro, em vidro de carro, chamando atenção para a Caucaia e a preservação, e foi vitorioso. Então eu acho que teve uma história muito interessante aí que acabou levando várias das pessoas a se posicionarem inclusive em relação a outras áreas, à criação de Parques, inclusive estavam sendo criadas boa parte das Unidades de Conservação, ou estavam sendo implementadas as que existiam. Eu acho que foi um momento em que se conseguiu transmitir à população e aos deputados uma preocupação com a conservação de uma área e o impacto que isso teria e a contraposição a isso não era uma proposta técnica justificável que dissesse: "Não, tem que ser lá por essas e essas razões". Não havia efetivamente um projeto, tanto que acabou depois se decidindo por construir em Guarulhos. Nesse meio tempo, entre a decisão por não se construir em Caucaia e construir em Guarulhos, a opção era fazer o aeroporto em Campinas, era transformar o aeroporto de Viracopos em um aeroporto internacional, razão pela qual a Rodovia dos Bandeirantes foi construída com aquele gigantesco canteiro central. Hoje é imaginável você fazer uma rodovia que tem na sua largura efetiva mais de três vezes a largura necessária para as pistas, porque a ideia era que ali no centro teria um trem de alta velocidade que ligaria São Paulo ao aeroporto. Depois, por outras razões políticas, acredito eu, acabou se optando por Guarulhos que também não é, evidentemente, a área mais adequada. Cumbica, em tupi-guarani, que significa "lugar da neblina", você escolher construir um aeroporto em um lugar que os indígenas chamam de "lugar da neblina", me parece uma coisa meio... Mas de qualquer forma, foi o que acabou acontecendo.
P/1 - E assim, você lembra de pessoas, assim, com quem você se relacionava nessa época? Que estavam ligadas a essas questões?
R - Ah, algumas pessoas do Instituto de Botânica, a doutora Sônia Dietrich, a doutora Noemy Tomita, professores lá da Universidade de São Paulo, a professora Nanuza, meu pai, evidentemente o doutor Paulo Nogueira Neto. Então eram pessoas que se envolveram mais nessa questão. O doutor Paulo acho que não se envolveu mais com a questão porque ele já estava assumindo a Secretaria Especial de Meio Ambiente, a SEMA, criada depois lá da reunião de Estocolmo, em 1972. E aí era um pouco difícil ele se manifestar enquanto pessoa, porque ele era sempre visto como manifestação do secretário, na época o equivalente a um ministério, então é uma situação um pouco mais complicada, mas certamente foram pessoas que se mobilizaram para mobilizar a população e mobilizar a Assembléia para votar contra o projeto.
P/1 - A década de 70 foi uma década muito rica em movimentos, tinha um cenário político complicado. Como é que era isso na Universidade? Como essas questões eram vistas pela Universidade? Essa questão ambiental. O que se discutia assim? Dava-se um olhar para este lado ou era uma coisa da ciência?
R - Era mais uma coisa da ciência. A questão da conservação ainda se revestia de uma vestimenta muito romântica, o debate, na época, o debate político colocava a questão da conservação como uma questão não importante ou uma questão secundária, que seria de uma classe mais privilegiada, que os trabalhadores certamente não estavam preocupados com isso. Então toda a Universidade, a Universidade de São Paulo aqui no estado, era certamente o maior foco de discussão política de movimentação e de questionamento do modelo político que a gente tinha. A participação do movimento estudantil era sempre uma coisa temerária, você sempre estava um pouco assustado, ou porque havia muita pressão, havia muita intimidação por atos, por palavras, por coisas que aconteciam... Eu tive colegas que foram detidos, que foram torturados, eu fui detido uma vez, mas não fiquei detido, foi daquelas detenções que eles levavam um monte de gente, mas não fiquei detido. Então a gente, vamos dizer, essas coisas eram muito fortes, eram muito presentes. E a questão da conservação não tinham o mesmo destaque, não tinham o mesmo envolvimento. A própria questão da regulamentação da profissão acabou sendo envolvida com uma conotação política, porque os biomédicos, apesar do curso de biomedicina ter sido criado na Escola Paulista de Medicina com um número pequeno de vagas para formar profissionais que pudessem atuar nas cadeiras básicas do curso de medicina... Porque o médico formado ele quer atuar como cirurgião, ele quer atuar como médico de pacientes, ele não vai trabalhar com anatomia humana, ou ele não vai trabalhar com fisiologia humana, então essas cadeiras eram muito carentes e o curso de biomedicina foi criado por essa razão. Mas acabou sendo uma válvula de escape para a demanda gigantesca de alunos interessados em fazer medicina, principalmente em escolas particulares, proliferaram os cursos de biomedicina e quando esses profissionais começaram a se formar, começou uma pressão muito grande para que eles fossem regulamentados. Então, quando a gente foi discutir as coisas em Brasília, você discutia com o líder do MDB, que era o Senador Itamar Franco e o Senador Franco Montoro, que eram lideranças que ouviram. E do outro lado você tinha a Arena, você tinha os representantes das escolas particulares e fazendo os seus "lobbies" todos e isso reforçava essa conotação política de tudo o que se fazia na Universidade. E a questão da conservação não ganhava esse destaque, não tinha essa importância no debate, o que não quer dizer que as pessoas não estivessem, de fato, preocupadas. Tanto que se mobilizaram e conseguiram impedir... Mas era uma coisa muito mais da ciência mesmo e a gente não tinha uma noção real da importância, a gente simplesmente sabia que era uma área recoberta por Mata Atlântica, de mananciais, quer dizer, você vai destruir isso tudo e isso certamente vai ter consequências para a própria urbanização da região e para a viabilidade de se manter a região. Então eu acho que os movimentos que começaram na época de conservação tinham muito esse viés de conservação, era uma coisa quase que intocável, era aquela questão quase remetendo à criação de Parques Nacionais para se preservar o ambiente intocável e aquela coisa. Os primeiros Parques aí são de muito tempo e tinham essa justificativa que na verdade vinha de fora, já permeava, vinha desde a criação lá dos Parques Nacionais nos Estados Unidos. Então era muito conservação da natureza. Eu acho que o próprio movimento ambientalista, aqui, se a gente pensar, na Fundação Brasileira de Conservação da Natureza fundada em 1950, quer dizer, ela era um espelho da UICN, a União Internacional para Conservação da Natureza, sempre preocupado com a questão da conservação. Não tinha ainda uma preocupação da importância do uso de ecossistemas, da importância de admitir e reconhecer a presença humana e o homem não como um modificador, mas também como um elemento que faz parte desse conjunto todo. Eu acho que naquela época era uma visão assim mais da conservação, sempre, para mim, para a minha formação, eu acho que teve uma importância muito grande. No final de 1974, dezembro de 1974, janeiro de 1975, eu participei do Campus Avançado que a USP tinha em Marabá. Era o projeto Rondon que tinha a história dos campus avançados e tinha o projeto nacional que se realizava em janeiro, que ia para uma determinada região, e eu fui para o Campus avançado da USP e, coincidentemente, naquele janeiro também o Projeto Nacional teve como sede Marabá, então foi uma convergência de esforços lá naquela região. Essa convivência, esse um pouco mais de um mês que eu passei na Amazônia, em uma região já no início de transformação, teve, sem dúvida, um impacto muito grande na minha formação, quer dizer, viver uma outra realidade. A gente se envolveu em diversas atividades lá em Marabá, desde trabalhar com o pessoal do então IBDF [Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal], que estava montando um viveiro para a produção de mudas e espécies nativas, imagina, isso em 1974, para a reposição de algumas áreas, impacto da construção da BR-170, da Transamazônica, até você trabalhar com população fazendo coleta de sangue para identificação de malária, exame de fezes, programa de rádio. A gente teve um leque muito grande de atividades lá. E é apaixonante você estar em uma floresta fantástica, uma região com a qual eu acabei voltando a ter muito contato dez anos depois, já professor da Unicamp, coordenador do programa de pós-graduação em ecologia. A gente por cinco anos ministrou uma disciplina de campo em colaboração com a Vale do Rio Doce e com o Museu [Emílio] Goeldi, na Serra Norte, na Serra dos Carajás, então a gente ia de Campinas para Marabá e de Marabá para Serra Norte, e eu revisitei aquela região depois de Serra Pelada, a própria instalação do Projeto Estrada de Ferro Carajás, enfim, foram dez anos de uma transformação muito forte, muito intensa e muito agressiva e destrutiva, e isso teve um impacto muito grande.
P/2 - E você contou que você foi redator da Adeflofa. Além dessa instituição, você recorda de alguma outra que também atuasse na área ambiental nesse período, ou seja, na década de 70?
R - A Fundação Brasileira de Conservação da Natureza, FBCN, a gente conhecia a existência, o próprio Centro Acadêmico da Biologia, como eu disse, era a Sociedade Paulista de História Natural e que também se envolvia com algumas dessas questões voltadas para a conservação. Mas não eram muitas não, realmente não eram muitas. Talvez o fato de a gente ter um regime militar muito fechado, canalizava todos os esforços e movimentações em tentar modificar essa situação de governo do país e talvez isso tenha empurrado um pouco a questão da conservação.
P/2 - E quando que ela começa a ter um destaque maior, começam a surgir mais instituições ligadas à questão?
R - Olha, eu acho que o segundo momento em que eu percebo que houve uma mobilização bastante grande, que a questão ambiental ganhou de novo um espaço, foi em 1986, com a criação da Fundação SOS com a primeira campanha do Fabio Feldmann para a Assembléia Nacional Constituinte, que eu acho que realmente houve uma mobilização bastante grande. Agora, eu também passei por um período que eu me dediquei de uma maneira muito intensa à minha própria formação, então eu saí da USP em 1976, comecei meu mestrado em 1977, conclui o mestrado no segundo semestre de 1979, praticamente semanas depois de defender viajei para o exterior para fazer meu doutorado, passei três anos no exterior e voltei no final de 1982. Então foi um período que eu passei também afastado dessa movimentação toda, muito envolvido com a questão da minha formação, mas logo depois que eu voltei um dos primeiros projetos que eu consegui apoio da Fapesp [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], já como pesquisador, foi um projeto para trabalhar na área da Serra do Japi, por uma solicitação, por uma necessidade do Condephaat [Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo]. A Serra havia sido tombada pelo Estado, mas você não tinha as informações para o tombamento, as justificativas para o tombamento elas foram muito baseadas na geomorfologia e no trabalho do Aziz Ab’Saber, você não tinha informações biológicas para dizer qual era a importância biológica daquela área do ponto de vista de conservação. Então a gente começou, juntamente com o já falecido professor Hermógenes de Freitas Leitão Filho, da Unicamp, a trabalhar o levantamento florístico, fazer a florística lá da Serra do Japi, e com isso poder produzir informações que permitissem ao Condephaat justificar o tombamento e não permitir que esse processo de revertesse. A Serra acabou efetivamente ficando tombada e agora é uma Área de Proteção Ambiental e hoje a gente vê bastante a importância. Houve uma vontade política naquela época, em 1982, 1983, de se impedir o crescimento de loteamentos de alto padrão que estavam começando a se instalar na serra e até hoje você tem as casas que estavam construídas, estão lá, tem estradas de acesso, mas as atividades são limitadas, hoje você não constrói mais nada lá no alto da serra. Mas era um órgão estadual que estava necessitando, não era uma entidade, não era uma Organização Não Governamental, era um órgão do governo que necessitava das informações e a gente achou que podia começar a trabalhar e gerar essas informações. E depois eu acabei estimulando outros professores lá da Unicamp a trabalharem. E aí, acho que na década de 90 já, saiu aquele livro da História Natural da Serra do Japi, que eu acho que é um marco do ponto de vista de reunir informações biológicas de uma determinada área. Então você tem desde a parte geomorfológica, capítulo do Aziz, a parte climatológica, até a parte da importância das espécies, de plantas e de animais que vivem na área. Mesmo, isso já em 1983, a gente já estando mais próximo dessas preocupações com conservação, porque apesar de não ser uma entidade, ser um órgão do governo, não sentíamos a presença tão forte das entidades. A virada, na verdade, eu acho que aconteceu em 1984. Em 1984 a SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência], a reunião anual da SBPC, teve como tema a questão das consequências, para a população, da poluição de Cubatão. Foi o foco da reunião anual, e aí eu acho que foi a primeira vez que você conseguiu reunir informações técnicas, sofisticadas, vindas de pesquisadores, com a questão de um impacto de poluição e, se do lado social havia uma preocupação muito grande com os impactos na saúde humana, que começavam a aparecer e eram terríveis, para quem trabalhava com vegetação, flora e fauna, havia uma preocupação muito grande com a conservação daquele entorno do anfiteatro... Porque o alto ali da Serra de Paranapiacaba, do ponto de vista biológico, a gente, na época, já sabia que era importantíssimo e que estava sob o efeito de toda aquela quantidade de gases e particulados que eram jogados na atmosfera pelo Pólo Petroquímico lá de Cubatão. Então eu acho que esse momento, de 1984, é que acabou gerando condições inclusive para a criação da SOS Mata Atlântica, para a criação da candidatura do Fabio. Mais ou menos nesse ínterim também, nesse período, houve uma mobilização muito grande em relação à Juréia. A Juréia tinha sido decretada como Estação Ecológica pela Secretaria Especial do Meio Ambiente, federal, porque era uma consequência da implantação de um conjunto de usinas atômicas que iam ser instaladas em Iguape, então, da mesma maneira que com a instalação de Angra, em torno de Angra se criou a Estação Ecológica de Tamoios, no entorno das usinas que iam ser construídas em Iguape, se transformou aquela área em uma estação ecológica. E aí já havia uma tendência da instalação das usinas nucleares não acontecer, havia uma possibilidade de, em função disso, a área deixar de ser uma Estação Ecológica, e aí houve toda uma mobilização em relação à defesa e à manutenção do “status” de Estação Ecológica de Juréia, que depois acabou se transformando em uma Estação Ecológica Estadual, uma boa parte incorporando o maciço lá de Itatins e enfim, toda uma área importante. Mas você não identificava isso, quer dizer, na época se criou uma Associação para a Juréia, aconteceram algumas organizações, mas nada efetivamente. Acho que foi um momento de aproximação do pequeno grupo de pessoas envolvidas com a questão da conservação com a universidade. A universidade começou a entrar nisso muito no sentido de gerar informações, gerar subsídios técnicos para a conservação. Eu acho que esse foi um período que, se não se cristalizou em Organizações Não Governamentais, acabou resultando que em 1986 você tivesse a movimentação para a criação de uma SOS Mata Atlântica, você conseguiu eleger um deputado federal que tinha uma plataforma exclusivamente voltada para a área de meio ambiente. A gente não pode esquecer que, sem dúvida nenhuma, a comunidade judaica de São Paulo ajudou bastante na eleição do Fabio, mas era um deputado com uma proposta ambientalista, vindo do movimento ambientalista, então, eu acho que, à partir dali as coisas começaram efetivamente a se cristalizar em ações mais perenes, em organizações mais em médio e longo prazo. Não era mais só a denúncia, era você denunciar, que eu acho que é um papel fundamental e que eu acho que deve sempre ter, mas você também poder embasar a sua denúncia, você não deixar que a sua denúncia caísse no vazio, você conseguir envolver pesquisadores, sejam instituições de pesquisa, sejam as próprias organizações, para gerarem as informações técnicas que dão respaldo àquela denúncia. Eu acho que isso foi o momento importante de mudança da preocupação com conservação dispersa, para atitudes mais completas, para atividades com objetivo mais definido.
P/1 - Você acha que nesse período a população, ela tinha mais clara as coisas que estavam acontecendo?
R - Olha, eu não sei. Eu acho que para a população ainda se passava muito aquela ideia romântica trabalhada. Como é que se trabalhou isso? Se trabalhou apontando para diferentes situações, espécies símbolo, bandeiras que você pudesse sensibilizar a população com a conservação daquela espécie, então, que tivesse um apelo emocional. Eu acho que isso teve um efeito de difundir muito essa questão da conservação. Não acredito que as pessoas tivessem uma preocupação, um conhecimento mais aprofundado da importância da preservação, era muito mais uma coisa de apelo emocional que foi dirigido e que teve certo sucesso. Também foi um período de transformações, a gente saiu de um período de um regime militar para uma primeira eleição de governador, depois para eleições de uma Assembléia Nacional de Constituinte, que também foi um período de ebulição e de transformações bastante importante. Desde aquela época a gente discutia, e eu acho que essa discussão é infindável, o papel da educação ambiental e como você atuar com isso. De uma maneira simplista, na época ainda do regime militar, se imaginava que podia-se criar uma matéria obrigatória como era a Educação Moral e Cívica, que a gente tinha que obrigatoriamente fazer, estudo de problemas brasileiros, no curso universitário você tinha que fazer obrigatoriamente. Pensava-se em criar uma educação ambiental, que é uma coisa obrigatória, e tinha uma outra filosofia, que se contrapunha a essa, que achava que essa preocupação ambiental tinha que permear todas as disciplinas. Eu acho que essa foi o que acabou efetivamente acontecendo, hoje está muito mais presente, ainda é falha, sem dúvida, mas eu acho que hoje ela está muito mais presente. Ela é diferenciada em estados onde já se sobrou muito pouco em termos de conservação. Se era possível em 1986 você eleger um deputado ambientalista em São Paulo, você certamente não elegeria alguém com plataforma ambientalista no Pará, ou no Acre, ou no Amazonas, onde você ainda tinha áreas extensas de florestas. A questão era muito mais da ocupação de atividade que desse uma rentabilidade econômica, era outra a visão. Em São Paulo, em parte, que tinha passado por todo um processo de devastação, começava a se preocupar efetivamente com conservação. Então os dados que a gente está concluindo, um livro que deve sair acho que agora em março, que é o mapeamento dos remanescentes de vegetação nativa do estado, é o único estado que vai ter, está efetivamente mapeado na escala um para cinquenta mil, existe uma versão “on-line”, que é a base cartográfica para o programa Biota e a gente está publicando, então isso permite que a gente faça algumas análises. E uma dessas análises é sobre a nossa área florestal, as florestas nativas foram destruídas principalmente no ciclo do café, de 1840 a 1950, praticamente a grande devastação que a gente teve nas nossas florestas. As nossas áreas de Cerrado, até 1960 o estado tinha quase noventa por cento da sua área original de Cerrado. Cerrado era considerado um solo não próprio para a vegetação, o impacto era de expansão urbana, era de queima de estada, mas não havia uma ocupação com uma outra atividade. De 1960 para 2000 nós destruímos praticamente tudo, hoje o estado tem menos de um por cento da área de Cerrado, menos de um por cento e esse um por cento está em “oito mil e quinhentos” fragmentos, tudo manchinhas pequenininhas. Deveria ser o contrário, você imagina que o processo de devastação anterior vai te ensinar que não é esta a forma. Não, a gente continua e acelera. Porque aí o que não tinha acontecido em um período de cem anos, cento e vinte anos, nós, com os Cerrados, fizemos em um período de quarenta anos, então é complicado.
P/2 - Nesse início da década de 80, você disse que aí foi quando surgiram instituições de maior porte, maior entrada na mídia. A partir disso, como que se deu a sua relação? Como é que você chegou a essas pessoas, como é que se deu esse “link” entre você e o movimento ambiental?
R – Eu, vamos dizer, nunca perdi o contato com as pessoas que atuavam na área de conservação. Tinha contatos diferentes, profissionais, ou do tempo da graduação na USP, ou anterior, inclusive a isso. Mas sim, em 1984, na SBPC conheci algumas pessoas, foi a primeira oportunidade também que eu vi, pelo menos, uma apresentação do Fabio Feldmann sobre a questão. Ele era advogado lá da Associação das Vítimas da poluição de Cubatão, naqueles debates onde tinha um mundaréu de gente, nós tivemos o primeiro contato. Depois eu voltei a ter contato com o Fabio em 1986, quando ele estava iniciando a campanha dele e ele, a convite de amigos em comum, foi à Campinas para apresentar a plataforma dele. E eu fui assistir a apresentação, me identifiquei demais, porque eu, trabalhando em uma disciplina de ecologia vegetal, depois envolvido lá com o projeto primeiro lá na Serra do Japi e depois me envolvendo com um projeto em área específica de formação com a vegetação típica de mata ciliar, do ponto de vista de como é que ela sobrevive ao período natural de inundação... Se você inunda uma área, o solo fica saturado com água e não há oxigênio para a raiz das árvores que estão lá. Como que nesses períodos essas árvores sobrevivem? Quais são os mecanismos que elas têm? E estava procurando áreas aqui no estado para trabalhar e comecei a verificar que era muito difícil você achar áreas, bacias ou regiões onde você tivesse áreas extensas de mata ciliar, apesar de protegidas pelo código florestal desde 1934, na verdade pelo código das águas, foi a primeira proteção que elas tiveram. De fato foi uma proteção que não foi efetiva, então você teve uma ocupação das áreas. Então, junto com isso, o retorno à Serra do Carajás, à região de Marabá em 1983, inclusive, anualmente, por cinco anos a gente passava o mês lá naquela região. Também, vamos dizer, tinha reacendido toda a questão com a preocupação, com a conservação e os contrastes que a gente via nas diferentes áreas. Então eu sempre colocava isso nas minhas disciplinas da ecologia vegetal, desde que fui contratado na Unicamp, e para os alunos de graduação eu sempre colocava essa situação, mostrava a questão da ocupação, da devastação, o processo que tinha acontecido em São Paulo, o trabalho clássico do Mauro Vitor mostrando a destruição das áreas florestais, enfim, eram conteúdos que eu trabalhava bastante, a questão da poluição de Cubatão, o impacto que tudo isso tinha. Então, vamos dizer, houve uma identificação muito grande com a plataforma do Fabio enquanto candidato. E, nesse meio tempo, eu já tinha participado como sócio fundador da criação do SOS Mata Atlântica, passando uma procuração para o Fabio me representar. O professor Hermógenes havia falecido e não podíamos vir à São Paulo no dia da criação e nós mandamos uma procuração para o Fabio nos representar, porque fazíamos questão de estar participando da iniciativa que foi bastante bem divulgada, pelo menos para as pessoas que trabalhavam [na área]. E a gente, pelo contato com o pessoal do Condephaat, estava acompanhando. Então houve essa aproximação e, a partir desse momento, eu sempre estive trabalhando muito próximo ao Fabio, eu fui assessor dele durante a Assembléia Nacional Constituinte, escrevendo as justificativas para o capítulo de meio ambiente. Evidentemente que não tinha a menor experiência em redação jurídica, mas a gente escrevia. Eram várias pessoas, Randau Marques, Capobianco, o Carlos Nobre, eu e diferentes áreas, e a gente redigia, porque tudo, na hora que você colocava, na verdade eram diversos artigos que acabaram se transformando em um único artigo com vários incisos, com parágrafos e vários incisos. Tudo aquilo tem que ser justificado, tudo aquilo tem que ser negociado. Sempre que possível eu ia para Brasília, passava alguns dias lá fazendo esse trabalho e também fazendo um trabalho de trazer as propostas que estavam sendo apresentadas para a Assembléia Nacional Constituinte, para discussão do meio acadêmico. Então participamos, a SBPC tinha um programa de reuniões em vários lugares, eu fui a praticamente em todos os Estados da região Sudeste e Sul debater o capítulo de meio ambiente, fizemos eventos na Unicamp, trouxemos pessoas de diferentes áreas para falar, aí houve uma aproximação muito grande com todas as pessoas envolvidas. Eu acho que foi um período de esforço concentrado muito grande em relação a conseguir, efetivamente, colocar uma parcela pelo menos das nossas preocupações na Constituição. E aí terminado, concluído o trabalho, a Constituição pronta, havia a necessidade de elaboração de projetos de lei, porque a constituição não é auto-aplicável, tudo é necessário para ser regulamentada pela lei. Então você diz lá que a Mata Atlântica é patrimônio nacional conforme lei, e você tem que ter uma lei que diz que atividades são permitidas, qual é a área de abrangência que vai-se considerar essa denominação “Mata Atlântica”. Vai-se considerar só a mata de encosta? Vai-se considerar todas as fisionomias de mata? Muda completamente a escala que se está trabalhando. Foi um período de redação e apresentação por parte do Fabio, de vários projetos, transformar o estudo de Impacto Ambiental, que era uma exigência do Conama de 1976, que estava previsto no capítulo de meio ambiente, fazer uma lei que fosse mais ampla, que fosse melhor do que a própria resolução do Conama e que tivesse um valor jurídico maior do que a resolução de um conselho. O projeto Regulamentação da Mata Atlântica, o projeto de Sistema Nacional de Unidades de Conservação, quer dizer, todas essas coisas foram gestadas depois de concluído o capítulo de meio ambiente. Então o período de 1988 a 1992, se a gente for olhar a data inicial da maioria dos projetos de lei nessa área, são todos de 1990, 1991, 1992, barra alguma coisa, foram todos apresentados nesse período. E, logicamente, isso não eram atividades solitárias, envolviam discussão com muita gente, gente já nas Organizações Não Governamentais ou em Instituições, o pessoal do Florestal, o pessoal da USP. A gente reunia e tentava conseguir justificar da forma mais convincente possível e mais tecnicamente correta a apresentação desses projetos. Então terminou o primeiro mandato do Fabio, ele se candidatou à reeleição, teve todo o trabalho para reeleição, de novo, você entra em contato com várias pessoas, campanha é uma coisa que você conhece muita gente também, e sempre tive essa atividade enquanto acadêmico, nunca, vamos dizer, assumi uma função ou uma atividade mais presente em nenhuma das Instituições. Então eu, vamos dizer, sou sócio do SOS desde a fundação, ajudo, escrevi capítulo de vegetação para o primeiro livro de Mata Atlântica que a SOS publicou, mas não estou lá no dia-a-dia da SOS, o meu envolvimento sempre foi na Academia mesmo, até final de 1994. No final de 1994, quando o Fernando Henrique foi eleito, o Covas foi eleito para São Paulo, o Fabio foi convidado para ser secretário do meio ambiente de São Paulo e desde ele ser convidado, até um pouco antes de ele ser convidado, é que eu comecei a trabalhar com ele em um projeto para a Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo. Então, logo que ele assumiu eu fui para a Secretaria, me afastei formalmente da universidade e assumi a coordenação responsável por todos os Institutos ligados à Secretaria do Meio Ambiente, o geológico, o botânico e o florestal, com todas as Unidades de Conservação e na montagem do Programa Estadual de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade, que é o Probio-SP. Desculpe, voltando um pouco atrás, na verdade na década de 90, a ONU convocou a reunião que vinha se realizar em 1992 no Rio de Janeiro. A decisão política de fazer essa reunião em 1992 e ela ser no Rio de Janeiro, foi tomada em 1990. Então aí também houve a participação na discussão das convenções que estavam sendo elaboradas, principalmente com relação à Biodiversidade, também se discutia muito, mas daí eram outras pessoas que estavam muito mais envolvidas com a Convenção de Climas. Antes da reunião do Rio, aconteceram quatro reuniões preparatórias. Os textos das Convenções chegaram prontos ao Rio de Janeiro e basicamente foi um momento em que houve assinatura das Convenções pelos chefes de Estado e que depois ainda dependiam da ratificação dos seus respectivos parlamentos para elas entrarem efetivamente em vigor, então também houve essa discussão. O Fabio estava participando dessa discussão em audiência nacional e a gente, por carona, a gente acabava participando, escrevendo, justificando, estudando, lendo a respeito, aprendendo. Fui, participei da Eco-92 como representante da Unicamp, como uma Organização Não Governamental, com todas as limitações possíveis. Aquela coisa de você ter que tirar a “senhazinha” para poder entrar na sala e assistir reunião, mas você estava ali no burburinho do que estava acontecendo. Eu acho que foi um momento, na minha leitura, tanto a Constituição de 1988 para o Brasil, como as duas Convenções principais, de clima e de biodiversidade, assinadas em 1992, não seriam assinadas hoje. Eu acho que elas foram um avanço teórico conceitual, de instrumento gigantesco para a época que elas foram assinadas. Hoje a gente tem uma noção das consequências, não só a gente tem uma noção como todos os grupos econômicos, todas as atividades econômicas nas quais essas legislações têm um impacto ou tem uma consequência, estão muito mais presentes hoje, porque sabem a necessidade que terão de serem muito mais cautelosos nas suas atividades. Por exemplo, nas atividades industriais, você ter que tratar efluentes, você ter que tratar o que você está jogando na atmosfera, quer dizer, isso, evidentemente, vai encarecer o teu processo ou vai exigir um desenvolvimento de técnicas novas e enfim, eu acho que essas forças hoje, elas são muito mais fortes do que elas foram em 1988 e 1992. Eu acho muito difícil, e a prova está em que, apesar de todas as mudanças de governo, apesar de hoje a gente ter no governo uma das pessoas mais identificadas com a questão da regulamentação da Mata Atlântica que é o João Paulo Capobianco e que, portanto você poderia ter todo o peso do governo, ainda assim o projeto de Lei da Mata Atlântica não foi aprovado, continua tramitando no congresso desde 1992. Por quê? Porque fere interesse de madeireira, porque fere interesses da construção civil para as áreas de ocupação e enfim. Eu acho que hoje, dificilmente aqueles textos seriam assinados. A Convenção da Biodiversidade eu acho que tem essa mesma característica. A Convenção de Clima é só a gente ver o que é que aconteceu com o Protocolo de Kyoto. Dos dez anos iniciais de Kyoto, praticamente precisamos de seis anos para entrar em vigor, para conseguir um número suficiente de assinaturas correspondente. Então eu acho que seria muito difícil você conseguir aprovar essa legislação e essas Convenções. Eu acho que quando a gente foi, quando o Fabio assumiu a Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, qual foi a decisão? A decisão, na área ambiental, foi considerar a Agenda 21 como um instrumento de planejamento do Governo. O Covas assumiu uma Agenda 21 para o Estado de São Paulo e o Fabio tentou pegar algumas áreas e criar programas, então o Programa de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade. Aí você já está falando em uso, não é mais só aquele olhar da conservação, mudou todo o conceitual que estava por trás disso, criou o Programa de Mudanças Climáticas para o Estado, criou um programa de ONGs. Ele criou uma série de programas, por quê? Porque a Secretaria do Meio Ambiente é uma colcha de retalhos, são várias instituições que tiveram origens completamente distintas e que em um dado momento foram reunidas em uma Secretaria de Estado. Então você tem a Cetesb [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo] trabalhando na questão da poluição, que tinha sido fundada com uma companhia que era realmente uma autarquia independente, que de repente tinha que responder a um secretário. Você tinha os Institutos de Botânica e Florestal que estão na Secretaria da Agricultura e que foram para a Secretaria do Meio Ambiente quando ela foi criada. O mesmo decreto que criou a Secretaria do Meio Ambiente já transferiu e transferiu o geológico também, então as pessoas nem se conheciam, nem se conversavam. Acho que mesma coisa aconteceu quando se criou o Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis], você juntou o IBDF com a SEMA [Secretaria do Meio Ambiente] e as pessoas passaram a estar trabalhando em uma mesma Instituição sem nenhum trabalho prévio de conhecimento, de reconhecimento e tal. Então eu acho que a ideia do Fabio foi criar programas que seriam coisas transversais, no Pró-bio a gente montou um conselho onde todos os Órgãos e Secretarias estavam representados, então você discutia, debatia, fomos fazer várias atividades. Fizemos o primeiro “workshop” de Cerrado, foi a primeira avaliação da situação do Cerrado do Estado de São Paulo, foi feita em 1995, antecedeu aos seminários, aos “workshops” nacionais. Os "workshops" que foram feitos de Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, em Campos Sulinos, que foram organizados pelo Ministério do Meio Ambiente e ONGs, a gente usou aquela metodologia em 1995. Porque a decisão de fazer esses seminários estava tomada desde 1992, só que ninguém agilizou. A coisa definitivamente não aconteceu e a gente achou que no Estado de São Paulo poderia acontecer. E realmente fizemos, definimos as áreas prioritárias, fizemos um “workshop” que juntou Itesp [Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo], MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], ONGs e Academia para chegar em um consenso de quais eram as áreas que precisavam prioritariamente e que deveriam ser conservadas. Então foi um movimento na sequência, em 1996. O Pró-Bio, eu já não estava mais no Pró-Bio, já era coordenado pela Ciça, Maria Cecília Wey de Brito, fez a lista de espécies ameaçadas no Estado, o Estado não tinha oficialmente uma lista de animais ameaçados, mas essa atuação mostrou também uma coisa que foi ficando muito clara vindo da universidade para a Secretaria. Que era o fato de que onde você já tinha informação suficiente, vários grupos de pesquisas diferentes, universidades, institutos trabalharam com Cerrado por algumas décadas... Então, quando nós fizemos "workshop" em 1995, você tinha massa crítica e um conhecimento suficiente para tomar a decisão de quais eram as áreas críticas. Agora, naquilo que dependesse de gerar a informação, se a gente precisasse complementar, justificar melhor aquelas áreas críticas, fazendo melhor um detalhamento, algumas áreas a gente colocou lá como pouco conhecidas, você estimular inventários, pesquisas nessas áreas, você percebia uma retração na comunidade científica. A comunidade científica, o pesquisador, ele não está preparado, ele não está disposto a entrar em um projeto, em um programa que seja governamental, independente de quem é o governo. Porque governos mudam e uma linha de pesquisa você não muda de uma hora para outra, então, quando você tem a sua linha de pesquisa, se o que você está fazendo você pode gerar coisas que também interessam à conservação, à uma Secretaria de Meio Ambiente, tudo bem, mas você não vai modificar, não vai. Isso ficou muito claro na Secretaria e eu percebi também que o meu papel, eu acabei me envolvendo mais com a burocracia. Então você administrar três Institutos de pesquisa era, no início do governo Covas, o Covas com aquela decisão de reduzir a folha de pagamento e de cortar vários convênios, a Secretaria do Meio Ambiente e todos os guarda-parques eram contratados via um convênio que chamava-se Baneser, e tinha que... Era um grande guarda-chuva que abrigava de tudo. E o Covas simplesmente cancelou o convênio, da noite para o dia a Secretaria perdeu todos os guarda-parques. Ele não fez um levantamento de quais eram, não, ele cortou o convênio, essa decisão assim era linear e indiscutível. Então ficou complicado nesse início, foi bastante desgastante. E aí depois, principalmente depois do “workshop” do Cerrado, eu achei que eu podia contribuir muito mais fora da Secretaria do que lá dentro daquela coordenação, montando um programa de pesquisa em conservação ou estimulando essa discussão, que tinha bastante gente nas universidades, interessadas em trabalhar com essa questão, mas não vinculadas a programas do Governo. E foi quando eu comecei a organizar o Biota-Fapesp. Foi uma discussão que foi levada primeiro para a Coordenação de Ciências Biológicas da Fapesp, aí isso foi levado para a diretoria científica, para o professor Perez, na diretoria científica. O professor Perez achou que era interessante ouvir a comunidade de pesquisadores, convidou cerca de cem pesquisadores, a primeira reunião lá na Fapesp para saber da ideia, se a Fapesp poderia, deveria ter um papel, um programa desse tipo ou não. A opinião unânime foi que a Fapesp poderia ter, e aí a gente começou a estruturar, se criou um grupo de coordenação composto por doze pesquisadores de diferentes áreas de pesquisa, diferentes organismos, diferentes instituições, que de 1996 a 1999 organizaram a informação já disponível sobre a biodiversidade do Estado. Fizeram os primeiros mapas para constatar a situação de fragmentação, usando mapas do SOS Mata Atlântica para área florestada, usando mapa do “workshop” de 1995 para as áreas de Cerrado, mas vendo como é que a gente poderia aperfeiçoar aquilo em uma escala que a gente pudesse trabalhar melhor. Os diagnósticos do conhecimento acabaram gerando uma série de sete livros que foram publicados pela Fapesp. Tem um livro de micro-organismos, tem um livro que vai de fungos macroscópicos a plantas superiores, têm um livro de invertebrados marinhos, invertebrados de água doce, invertebrados terrestres, vertebrados, e um que faz uma avaliação das Unidades de Conservação, do ponto de vista da infra-estrutura que elas ofereciam à pesquisa. Não fomos discutir a questão fundiária, nem se ela está implementada direito ou não. Tem laboratório? Tem condições de se usar? Tem alojamento para pesquisador? Qual é a situação que ela oferece? E as coleções biológicas do Estado de São Paulo, os museus, museus de zoologia, os herbários, coleções de microrganismos, coleções de plantas, jardim botânico, que é uma coleção viva de plantas, bancos de germoplasma; o volume sete faz uma avaliação da infra-estrutura de conservação “in situ” e “ex situ”. E estimulamos os pesquisadores a apresentarem projetos de pesquisa, foram apresentados dezoito projetos de pesquisa de grande porte para a Fapesp e esses projetos passaram por todo o processo de avaliação técnica lá na Fapesp e começaram a ser aprovadas no final de 1998, começo de 1999. Aí então a diretoria científica achou que a gente tinha demonstrado que a Fapesp poderia ter um papel de aglutinar a comunidade científica em cima disso, já tínhamos feito o diagnóstico, tínhamos começado a produzir os mapas, tínhamos criado, decidido que a gente ia usar a internet como meio de comunicação, que todos os dados eram públicos, de acesso público, porque são gerados por instituições públicas, e em março de 1999 a Fapesp criou o programa Biota-Fapesp, que realmente reúne os pesquisadores que atuam nessa área. Então, de lá para cá a gente, acho que agora a gente está em condições de fazer o que o novo coordenador do Biota-Fapesp, que é o professor Ricardo Rodrigues, da Esalq [Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”], se propôs, que é produzir um mapa de áreas prioritárias de conservação no Estado. Se o Estado tiver recursos, e possivelmente vai ter recursos em função das compensações ambientais, onde eu preciso ampliar o meu sistema de Unidade de Conservação? Onde eu preciso criar novas Unidades de Conservação? Onde eu posso estimular a iniciativa privada a criar RPPNs [Reserva Particular do Patrimônio Natural]? Como é que eu posso melhorar isso se eu tenho a opção, se eu tenho o recurso? Nas Áreas de Cerrado pouquíssimas áreas são protegidas, como é que a gente pode fazer para melhorar isso e identificar algumas áreas onde você precisa de uma aplicação de recurso para recuperar?. Então, matas ciliares é uma coisa que precisa ser recuperada no estado, não é só conservar o que existe, você precisa recuperar. Os fragmentos de Cerrado, você precisa estabelecer corredores conectando para você poder ter áreas maiores e poder manter a fauna de médio e grande porte, que é praticamente impossível de se manter nos fragmentos que você tem hoje. Então acho que hoje a gente está em condições de fazer isso. Há uns seis anos, o programa foi criado em 1999, hoje ele envolve quinhentos pesquisadores, doutores, de diferentes instituições no Estado de São Paulo, mais cerca de cento e cinquenta pesquisadores de outros estados e do exterior e quinhentos alunos de pós-graduação. Então você tem um universo de mil pesquisadores trabalhando em uma forma padronizada, utilizando uma ficha padrão, inserindo os seus dados em um banco de dados e uma base cartográfica digital do estado hoje, os seus municípios, as suas manchas urbanas, os seus remanescentes de vegetação, as suas Unidades de Conservação, estradas, drenagens. Você constrói o mapa da maneira como você deseja, cruza essas informações, então eu posso ver a distribuição espacial das espécies, posso ver áreas que são mais ricas em espécies, as informações e tal. Então lá, que eu acho que é o único estado que tem isso, o modelo está sendo usado por outras regiões e por outros estados, porque é difícil você montar essa estrutura, agora, ela pode certamente ser aplicada para outras regiões. E eu acho que vai ser a principal ferramenta de planejamento para o Estado de São Paulo. Então, quando a gente vê o planejamento feito pelo Governador Geraldo Alckmin, ele já usa essa base cartográfica para fazer algumas das decisões de ampliações, de vetores de desenvolvimento e coisa e tal. Eu acho que a gente está começando a chegar ao patamar que a gente queria lá em 1988, que é você entrar não mais como um apêndice, mas um documento burocrático que tem que ser preenchido em datas, em dia com as exigências ambientais, mas mais como uma ferramenta de planejamento do desenvolvimento do Estado. Você ter um outro modelo econômico para o estado e para o país.
P/1 - Enquanto você estava falando eu estava pensando que se desenvolveu muito, não vou falar só de Estado de São Paulo, mas vou falar do Brasil, nessa questão científica, acadêmica, houve um desenvolvimento e o Governo deu uma maior atenção para isso. Mas essas informações, como é que você vê? Todo esse conhecimento, ele consegue chegar à grande população ou ele fica uma coisa muito restrita e as pessoas não sabem o que está acontecendo?
R - Eu acho que ele fica restrito. Parte da culpa é de quem gera a pesquisa, as linguagens são muito diferentes, e, em minha opinião, o fato de você não conseguir fazer uma relação imediata de causa e consequência, torna muito difícil você levar essa preocupação para a população. Por exemplo, você mostrar, demonstrar para um produtor rural que se ele mantiver a mata ciliar ele vai ter um ganho, não é uma área de terreno que ele está perdendo, que ele não pode cultivar, porque ele não consegue ver, é uma coisa lenta, você destrói a mata ciliar, você aumente o processo de erosão, você começa a assorear os rios e dez anos depois, quinze anos depois começa a ter inundações, começa a ter catástrofes. Aí é que as pessoas vão se dar conta de que lá atrás elas tomaram a decisão errada. Eu acho que isso é a razão principal de você não conseguir fazer chegar essas informações para a população. Quando você discute a construção, digamos, de uma nova hidrelétrica, você teria que colocar claramente que se eu, para o meu conforto, vou precisar consumir mais energia, porque eu tenho mais equipamentos eletrônicos, porque eu quero ter um ar condicionado e ficar na temperatura; eu tenho que saber que essa minha opção vai implicar na inundação daquela área, na destruição daquelas áreas de mata, daquelas áreas que vão ser inundadas, da fauna que está lá. Então o que é que você faz? Você faz aquela operação de resgate cinematográfica quando está inundando, passa a impressão para quem está assistindo que todos os bichos estão sendo salvos. Pouquíssimos são salvos e quando são salvos o que fazer com eles? Você vai libertá-los, vai soltá-los em uma outra área? Você vai causar um impacto em uma outra área, porque está transferindo, aumentando de uma maneira muito súbita a população de determinados animais, e isso vai causar um desequilíbrio na outra área. Então agora você não pensa nisso, você pensa na tua decisão de conforto. Eu, individualmente, vou consumir mais energia porque eu quero ter todas essas modernidades que me são oferecidas e todo o conforto que me é oferecido hoje. Então essa distância entre o impacto aqui e a consequência desse impacto, eu acho que se torna muito difícil. Por dez anos, de 1986 a 1996, eu trabalhei na Bacia do Rio Jacaré-Pepira. O Rio Jacaré-Pepira é o rio que nasce lá na Serra de São Pedro, na Serra de Itaqueri e corta o centro do Estado de São Paulo. Passa por Brotas, passa por Dourados, Dois Córregos, e vai desaguar lá no Tietê hoje, vai desaguar lá em uma represa. E foi a primeira bacia onde os prefeitos se uniram em um consórcio, o Consórcio do Jacaré-Pepira foi um modelo para a criação dos Consórcios de Unidades de Gerenciamentos Hídricos que eu tenho hoje no Estado. Hoje o Estado está dividido em grandes, em duas unidades de gerenciamento, são os consórcios que tem. O modelo disso começou lá no Jacaré-Pepira, eram treze prefeituras reunidas ao longo do rio, preocupadas em conservar o rio, e a gente entrou na história, porque a gente se propôs a recuperar a mata ciliar, a estudar os remanescentes que tinha, fazer levantamento florístico, coletar sementes, produzir mudas, usar a mata original como modelo e replantar mudas em áreas que deveriam ser, que são Áreas de Preservação Permanente mas que tinham sido ocupadas por atividade agrícola em um primeiro momento, em uma decisão espontânea dos proprietários. Ninguém foi obrigado, apesar de que legalmente isso poderia ter sido feito, foi discutido e foi feito em comum acordo com os proprietários, então foi um laboratório de aprendizado enorme. A gente fez muitas coisas erradas, aprendeu muita coisa, vamos dizer, a parte acadêmica, foi um período que basicamente doze alunos de mestrado meus e seis alunos de doutorado trabalharam lá. Levei gente de outras áreas a trabalharem, a gente gerou muita informação, a gente teve uma atuação bastante presente junto das prefeituras, mesmo com as mudanças, porque prefeito muda, entra prefeito novo, alguns eram favoráveis, outros não eram favoráveis, davam apoio, não davam apoio, mas se foi negociando ao longo desse período todo um trabalho. Não é a toa, quando a gente fala isso parece uma coisa pretensiosa, mas não é. Essa mobilização das prefeituras, o envolvimento que a gente teve lá, o trabalho que foi feito com escolas, o trabalho que foi feito com os proprietários, a gente montou um sistema de fazer medir de fato, não com dados teóricos lá na propriedade das pessoas, o quanto você perdia de solo por erosão em uma área coberta por mata, em uma área coberta por pasto e em uma área nua. Então, quando você mostra que em uma área nua, naquela região você perde quinze toneladas de solo por hectare e na área de mata não chega a meio quilo, o cara está lá, ele vai lá coletar com você, ele viu você coletar os dados, ele viu a diferença. Então isso tem um efeito didático enorme, isso mobilizava as pessoas a participarem. Então hoje, quando você pensa em um lugar no Estado de São Paulo para você ir fazer “rafting”, para você ir fazer passeio de canoa, para você usufruir de um rio que não é poluído, que rio você pensa? O Jacaré-Pepira. Brotas virou o centro do turismo nesse tipo de coisa, porque está no meio, porque é onde está mais “encachoeirada”, onde tem mais coisas. Foi consequência direta? Não, mas foi consequência da preocupação que permeou as prefeituras, que permeou a discussão. Hoje as áreas de mata ciliar estão muito melhores? Estão muito melhores, muitos proprietários deixaram, mesmo áreas que não foram replantadas, elas naturalmente se regeneraram. Então, o rio passou a ser a principal fonte de renda do município. Se você olhar na década de 80, de 1985 a 1995, pegar esse período de dez anos e olhar qual era a principal fonte de ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] das prefeituras, em Brotas era a usina, era a plantação de cana, depois a atividade pecuária e depois comércio e outras atividades. Hoje é turismo, é pousada, é empresa que faz esportes radicais, é a principal fonte de ICMS do município. Então mudou, essa mudança de modelo econômico que eu acho que a gente precisa ter para o Estado, que a gente precisa ter para o país. Então é devagar? É devagar, mas está avançando. A gente pode tentar acelerar essas coisas e aí eu acho que falta um pouco de políticas tanto no Estado como no Brasil, a gente ainda não consegue fazer isso muito bem. Dentro, por exemplo, do programa Biota-Fapesp, a gente tem uma preocupação muito grande com isso, então em 2002 a gente produziu junto com o a equipe do Canal Azul, direção do Lawrence Wahba, a gente produziu uma série de quatro vídeos de meia hora de duração para a TV Cultura, e foi a Semana de Meio Ambiente da TV Cultura, foram os vídeos do Programa Biota, um vídeo que fala um pouco do programa, das ferramentas que foram desenvolvidas e estão sendo utilizadas, um vídeo que fala de Cerrado, um vídeo que fala de Mata Atlântica e um vídeo que fala de água, seja marinha, seja água doce. Então isso depois foi reprisado várias vezes pela Cultura, tentando chegar a uma população maior. Tem consequência? Tem, se você vê o número de “hits” de visitas à página do programa depois da apresentação dos dois primeiros episódios, dobrou. E quando eu falo dobrou, passou de trezentos e cinquenta mil para setecentos mil. Não estou falando que dobrou de cinquenta para zen, então é uma coisa expressiva. No ano passado a gente fez uma exposição fotográfica, dividimos em módulos didáticos, um módulo como se você estivesse chegando no estado de São Paulo pelo litoral hoje e fazendo o caminho que os Bandeirantes fizeram. Então, primeiro em um ambiente marinho, o que você vai encontrar, costão rochoso, praia, depois um módulo de Mata Atlântica, depois um módulo urbano; depois usamos um módulo de água doce para conectar com o interior e um módulo final de Cerrado, são cinquenta e quatro painéis. A gente ficou com essa exposição um mês no Espaço Cultural do Citibank na Avenida Paulista, um espaço nobre, e depois a gente re-transformou os painéis e ela se tornou itinerante. Ela esteve no SESC Interlagos por um mês, no SESC Itaquera por um mês, no SESC Ribeirão Preto por um mês, no SESC Campinas por um mês e no SESC São José do Rio Preto por um mês e hoje ela está definitivamente incorporada, está montada e incorporada ao acervo da Estação Ciência da USP, aqui na Lapa. Então são maneiras de você tentar chegar a um outro público. Por que o SESC? O SESC tem todo um programa de visitação com escola, já tem toda uma rede articulada que consegue fazer com que isso funcione, produzimos um material didático que acompanha, os textos são simples, usando mais a imagem, mapas, sempre mapas localizando onde as pessoas estão no estado, onde é que é Mata Atlântica, onde que é Cerrado. Eu acho que teve um parque grande, agora precisa aumentar isso muito. Eu acho que do lado da Academia falta ainda aprender essa linguagem, que eu acho que é um papel que boa parte das Organizações Não Governamentais bem estruturadas está capacitada a fazer, a capacidade de atingir um público fora do ambiente universitário que a SOS Mata Atlântica tem é enorme. E o que é que a gente pode fazer? A gente pode trabalhar em conjunto, a gente pode produzir as informações técnicas, vocês transformam isso em uma linguagem que seja mais acessível e usa os veículos e você sabe que são veículos que funcionam para chegar às escolas. Os vídeos, a gente fez cópias dos vídeos e distribuiu para quinhentas escolas do estado de São Paulo. É muito pouco, mas era o que a gente tinha recurso para fazer, com toda a liberdade das pessoas poderem duplicar e passar adiante se quisessem. Os livros, os sete volumes que a gente fez o diagnóstico também, nós distribuímos quinhentas cópias disso para as escolas públicas e outras trezentas nas universidades e para os próprios pesquisadores que trabalham. Eu acho que com muito pouco recurso adicional, com muito pouco esforço adicional do governo, seja estadual, seja federal, eu acho que a gente poderia avançar muito mais rápido nessa mobilização, nessa conscientização e importância. Preocupa-me muito que isso, em áreas onde você ainda tem percentuais significativos de cobertura florestal, principalmente na Amazônia, você esteja repetindo o modelo que você usou de ocupação do Sudeste, do Centro-Oeste e agora você está utilizando lá. Quando aquela população tomar consciência, você já vai estar com a tua paisagem totalmente fragmentada.
P/2 - E nesses dezoito anos de SOS ela desenvolveu diversos programas, diversas campanhas. Eu queria saber se existe alguma que tenha chamado a sua atenção por um motivo específico, alguma que tenha te marcado de alguma forma.
R- Eu acho que a campanha, quer dizer, o trabalho que o SOS desenvolveu na região do Lagamar, lá na Foz do Ribeira, certamente foi um dos que eu mais, não me envolvi diretamente, mas me beneficiei das informações que estavam geradas, que gerou uma empatia muito grande. Eu uso as imagens, os vídeos, o material produzido pela SOS, em aulas, seja de graduação, seja de pós-graduação, foi uma das atividades que mais me marcou. Outros processos, por exemplo, a criação da Reserva da Biosfera que não foi assim na fase inicial um envolvimento direto de nenhuma Organização Não Governamental, mas foi o fruto da reunião delas. Então você criou uma rede que produziu as informações. Na época eu fazia parte do comitê brasileiro do programa “Man and Biosphere”, no Cobramar, onde fez o projeto final de submissão a UNESCO, da proposta de criação da Reserva da Biosfera, que acabou sendo efetivamente criada e implementada e hoje outras estão sendo criadas. Então eu acho que também essa capacidade de mobilizar ao longo de toda a Mata Atlântica, não só em São Paulo, mas em outros estados, eu acho que é outra característica que eu acho muito importante na SOS. E as reuniões técnicas, a participação do SOS, por exemplo, no “workshop” de definição de áreas prioritárias de conservação de Mata Atlântica e Campos Sulinos, teve uma atenção fundamental na definição dessas áreas. Então eu acho que essa permeabilidade, a SOS não tem muito problema em pedir e conseguir apoio de pesquisadores de outras ONGs, de mídia quando necessário fazer uma mobilização em cima de alguma denúncia, alguma coisa imediata, tem acho que essa capacidade. E uma outra característica que eu acho que foi uma solução fantástica, que garantiu a sobrevivência inclusive da SOS, foi vislumbrar a possibilidade de fazer a associação com Bradesco Visa e ter o cartão de fidelidade, porque isso gerou um fundo permanente. Você tem recursos, você consegue projetos, você consegue apoio de fora. Mas você tem que ter, na hora que essas coisas todas faltam, você tem que ter uma capacidade de sobrevivência. E eu acho que a SOS, através dessa parceria, conseguiu essa capacidade de sobrevivência, que permitiu a ela se fortalecer, estar presente e se tornar um canal de projetos.
P/2 - Em sua opinião, quais são as perspectivas para a Mata Atlântica, com base nisso tudo que você falou até agora? São positivas, são assustadoras? Como é?
R - Olha, a gente vê a repetição do processo que aconteceu aqui em São Paulo, se a gente olha para o sul da Bahia, por exemplo, e você acompanha o desaparecimento da cobertura florestal nativa nos últimos cinquenta anos, ela foi tão intensa. Se você fizer isso para o Paraná, ou se você fizer isso para Minas Gerais, você vê que o processo foi muito rápido. Eu acho que a gente está chegando a um ponto onde os remanescentes são tão poucos, a demonstração da importância biológica e da importância que a Mata Atlântica tem já está muito consolidada, mas ainda assim você não vê políticas positivas, você não vê políticas de ampliação, de estabelecimento de corredores. Você vê uma série de propostas, eu acho que tem muito esforço sendo feito nessa direção, mas ainda tem pouca coisa concreta. Eu acho que quando essas iniciativas começarem a dar resultados, talvez o efeito didático dela permeie mais as decisões, mas ainda são coisas que são assim inacreditáveis. Você estar construindo uma hidrelétrica que vai inundar uma das mais importantes florestas remanescentes de araucária, uma coisa insubstituível, e ainda assim você vai inundar, você vai construir a hidrelétrica. A barragem está construída, está basicamente esperando autorização, e agora que a barragem está construída você vai negar a autorização para enchimento do lago? É muito difícil que isso venha a acontecer. Então você não vê uma coordenação das atividades dentro desse universo que a Mata Atlântica cobre. Eu acho que a gente está chegando a um ponto de irreversibilidade de alguns processos. Estou começando um projeto de pesquisa que talvez devesse ter se iniciado há dez anos, mas a gente está propondo, está começando a trabalhar com essa questão agora. Aqui no Estado de São Paulo vamos dizer que você já tem toda uma conscientização da importância, eu acho que as taxas de derrubadas, as taxas de remoção da cobertura vegetal nativa, diminuíram no estado, acho que a gente realmente entrou em uma situação onde esse realmente não é mais o principal impacto. Agora, a gente tem um processo em andamento de aquecimento, de aumento de temperatura, isso é um processo, eu acho que é uma coisa, de novo, como a escala de tempo que as coisas acontecem são muito longas, você não consegue ver causa e consequência. Mas quando a pessoas falam assim: "Não, porque o protocolo de Kyoto, se for ratificado e entrar em vigor vai impedir o aquecimento". O aquecimento está acontecendo, ele não é uma coisa que vai acontecer, ele pode se acelerar, mas ele já está acontecendo. Então, se a gente pensar nos últimos cento e cinquenta anos, a gente teve um aumento médio de 0,7 graus na temperatura, não é desprezível. Qual vai ser a consequência disso para a distribuição de espécies de Mata Atlântica ou espécies de Cerrado. Se a gente tiver um aumento médio de temperatura de um grau e meio, o que é que de fato vai acontecer com essas populações? A gente tem ferramentas de modelagem que hoje permitem você fazer algumas previsões, são ainda grosseiras, os próprios dados climáticos para o Brasil ainda são limitados, mas isso quando consegue fazer alguma coisa. A gente está começando um projeto para entender qual é o papel da Mata Atlântica nessas ciclagens de longo prazo do carbono, se ela é um sorvedouro, se ela é uma fonte de carbono, e o que é que já aconteceu de modificação de padrão e o que é que está acontecendo. Modificação de padrão, se você olha a média de precipitação de chuva no município de Ubatuba nos últimos quarenta anos, ela não mudou, ela está mais ou menos no mesmo patamar. Só que aqueles dois mil e oitocentos milímetros estão sendo concentrados em períodos muito mais curtos, você tem chuva intensa muito mais pesada e que no final vai te dar aquele mesmo total, mas você tem meses de seca. É uma região de uma mata que depende de uma grande quantidade de água. Você vai para setembro, outubro do ano passado, e a região estava toda seca. Aí você olha, “não, mas está chovendo a mesma coisa”, só que está cada vez mais concentrada, está cada vez em períodos maiores. Então, a chuva concentrada é desastrosa, porque provoca deslizamentos mesmo em áreas intocadas de mata, era um processo natural você ter, agora, com o impacto humano, isso aumentou muito, e depois você tem períodos de estiagem muito prolongados. Qual é a consequência que isso tem para a vegetação? Muda o período de floração, consequentemente, se muda a floração, vai mudar a estrutura dos que dependem da floração como recurso, as abelhas, os beija-flores, as borboletas, enfim, os animais que polinizam, se eu mudar o período de chuva, será que eles acompanham esse sincronismo? Como é que essas coisas estão acontecendo? Você está perdendo espécies por causa disso, espécies que são típicas de áreas mais elevadas e mais frias. São Paulo, os remanescentes de araucária que a gente ainda tem lá em Campos de Jordão, que a gente tem lá na Serra da Bocaina, será que com essas mudanças de temperatura eles vão desaparecer? Você encontra araucárias jovens, você encontra em uma área ocupada pelas araucárias e você vai lá e você vê germinada, indivíduo jovem, estrutura de população, em algumas áreas você não vê mais nada. Por quê? Não tem um dispersor, mudou a temperatura, o que é que mudou que não está regenerando? E se não regenerar, quando essas árvores atingirem a maturidade elas vão morrer, porque não tem nenhum espaço de tempo qualquer e não vão ser repostas. Então eu acho que aqui a gente ainda tem consequências não mensuráveis das atitudes que a gente tomou no passado e que em alguns casos a coisa do aquecimento é um processo que continua. Então qual é a perspectiva? Eu acho que a perspectiva tem que ser de você fortalecer as Unidades que você tem, de você estabelecer corredores conectando. E isso pode ser estabelecido usando a própria mata ciliar, quer dizer, usando a áreas que são de preservação permanente. Você não precisa desapropriar, você não precisa indenizar, você só precisa permitir que aqueles corredores se restabeleçam ou inclusive plantar, se for o caso. Mas o que acontece se você toma essas decisões no nível de Estado e você não tem decisões semelhantes em outros Estados mais ao sul ou mais ao norte? Eu acho que a gente tem que ter a perspectiva de que é possível você fazer um esforço para diminuir a sua perda, mas você não pode imaginar que você não vai ter perdas, isso vai acontecer, então o que a gente tem que fazer é minimizar isso, reduzir isso ao mínimo, de preferência com políticas que sejam políticas nacionais. Então, para mim, é inaceitável que a gente ainda não tenha uma lei que defina as atividades que são possíveis, permitidas na área de Mata Atlântica, que você ainda esteja com um projeto de lei apresentado em 1992 tramitando nesse sentido. Eu acho que a gente precisa desses instrumentos legais, porque eles são importantes. E o trabalho do convencimento, que eu acho que, como eu já disse antes, a questão da conscientização, a gente ainda peca. É para desanimar? Bom, então se a gente vai ter perda e se a gente não fizer nada, essas perdas certamente vão ser muito maiores. Então eu acho que a gente tem que ter uma atitude pró-ativa de tentar reduzir ao máximo essas perdas que a gente vai ter e conseguir manter os processos. Isso é a coisa mais importante, a evolução é um processo, não adianta você querer ter coisas estanques, isoladas, porque elas estão momentaneamente ali, mas elas vão se perder, elas vão acabar desaparecendo se você não conseguir manter polinizadores, se você não conseguir manter dispersores, se você não conseguir manter um processo de dinâmica acontecendo nessa área. Qual é o impacto que vai ter, quais são as compensações que eu posso exigir e acabou? Está construído, estão implementadas, as compensações, eu fiz. Só que hoje, está se fazendo estudo de impacto ambiental, a legislação está exigindo, para o funcionamento. Porque você tem a rodovia, você tem tráfego, você tem poluição, você tem impacto sonoro...
P/1 - Nós estamos chegando ao fim. Tem alguma coisa que nós não perguntamos e que você gostaria de falar, de retornar?
R - Eu acho que a maior parte das coisas eu falei. Eu acho que eu falo demais, mas acho que as coisas, elas são efetivamente conectadas, pelo menos para mim elas sempre foram muito associadas. Eu acho que ao longo de toda a minha carreira eu mantive um equilíbrio entre a atividade acadêmica, que é a atividade de pesquisa, que é a atividade de gerar a informação, que é a atividade de formar recursos humanos e capacitar gente para atuar nessa área, de nuclear grupos de pesquisa em outras instituições, que eu acho que, sem dúvida, é a maior contribuição que eu posso dar, que é a capacitação de pessoal. Mas consegui compatibilizar essa atividade acadêmica com a atividade ambientalista, com a atividade de conservação. Quer dizer, reunindo objetivos onde era possível reunir e me dedicando mais a uma atividade e mais à outra em dados momentos. E também com uma atividade que é tão importante quanto as outras duas, que é a atividade política, que é a atividade de articulação, é a atividade de você colocar diferentes atores atuando em uma mesma meta, com o mesmo objetivo, então eu acho que o programa Biota- Fapesp é um exemplo disso, você conseguiu reunir pesquisadores que estão fazendo aquilo para o que foram treinados, aquilo que elas gostam de fazer. Ninguém está dizendo para eles trabalharem com um outro organismo, em uma outra região, eles fazem aquilo que eles estão fazendo, só que fazem de uma maneira coordenada, geram informações de uma maneira padronizada, de tal forma que aquela informação gerada por aquele grupo e colocada em um contexto maior, também pode ser utilizada por tomador de decisão, também pode ser utilizada para você implementar políticas de conservação. E o desdobramento, quer dizer, em 2003 a gente criou, dentro do programa Biota-Fapesp, uma perspectiva de utilização desses recursos naturais de uma maneira sustentável. A gente criou, da mesma maneira que a gente tinha reunido pesquisadores, que são os pesquisadores que fazem um inventário, que fazem um levantamento, que fazem a revisão taxonômica, que estudam a questão da fragmentação, em diferentes escalas estão trabalhando, com o pessoal que faz bioprospecção, com pessoal que trabalha com química de produtos naturais... Então conseguimos reunir nessa comunidade de pesquisadores do Estado, apresentamos uma proposta assim, “Olha, estamos com inventários de biodiversidade. Será que isso aqui não serve de base para vocês estarem fazendo a pesquisa de prospecção?". Por que a prospecção é uma coisa que pode dar Sustentabilidade? Porque a não ser que você esteja trabalhando com fitoterápicos ou pH, o que significa que você está usando uma parte da planta para uma determinada finalidade, fazer um chá, fazer uma infusão, então aí, efetivamente envolve coleta e você aí teria que domesticar ou cultivar, para evitar um impacto de coleta, mas quando você fala em fármacos, quando você fala em indústria de cosméticos, quando você fala em indústria farmacêutica, quando você fala em indústria de controle de pragas, quase tudo é sintetizado. Então, o que é que você faz com prospecção? Você vai lá e identifica moléculas na planta que têm atividade anti-inflamatória. Então aí você isola aquela substância, você faz a estrutura molecular dela e aí o químico, o que é que ele vai fazer? Ele vai, pega aquela estrutura, e ele sabe como ele pode mexer, ele vai usar aquilo como modelo e ele vai modificar aquilo, vai colocar radicais, vai colocar de tal forma que aumente aquela atividade anti-inflamatória. Quando ele tem sucesso nisso, você não vai mais depender da planta para coletar, você vai produzir aquilo sinteticamente. Então, qual foi a nossa proposta? Bom, aqui no Estado a gente faz praticamente todas as etapas iniciais da pesquisa, mas a parte mais cara da pesquisa, que é quando você tem as substâncias identificadas, já tem a capacidade de sintetizar para você fazer todos os testes pré-clínicos, para você efetivamente conseguir colocar uma coisa no mercado, nenhum grupo de pesquisa tem recurso para poder fazer isso. E nem é papel deles, realmente é papel da indústria, nacional, multinacional, é papel da indústria. Então, por que não fazer essas parcerias assegurando dois princípios básicos, as patentes são nossas, independe de quem, com quem é a sua parceria, no final você vai ter uma patente brasileira, você vai ter “royalties” sendo pagos para o Estado brasileiro e independe de que nível isso estiver de utilização, se não a gente não tem nada. Boa parte dos remédios de hipertensão que se usa, modernos, que são utilizados hoje, são baseados em veneno de jararaca, trabalho feito na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP de Ribeirão, Instituto de Biologia da Unicamp e Instituto Butantã. De quem é a patente? Nenhuma delas é nossa, nenhuma delas é nossa. Isso acontece por quê? Você publica, que é o resultado ideal do pesquisar, ele publicar um “papper” em uma revista internacional e aí alguém de fora olha para aquilo e diz assim: "Mas isso aqui pode trazer, eu posso...". Já tinha se identificado que tem essa atividade, mas só que você não tem o dinheiro para fazer toda essa parte de teste, então você perde as patentes. Então, o princípio é: "A patente é nossa, a patente é brasileira”. E o segundo princípio da rede de bioprospecção é que qualquer produto que chegar ao mercado, uma parte dos “royalties” tem que ser investido em conservação, de preferência no local de origem do material que você coletou. Se é uma espécie de Cerrado, se é uma espécie de Mata Atlântica, uma parte dos “royalties” vai ser investido. Então é preciso criar os instrumentos econômicos para isso, é preciso agilizar, criar um Fundo Estadual do Meio Ambiente, mas que você tenha controle de que o recurso é vindo, para que esse dinheiro seja canalizado. É a única forma que a gente tem que desenvolver, tem que trabalhar, mas o princípio é fantástico. Nós colocamos isso para a comunidade de pessoas que trabalham com química de produtos naturais do Estado, nós imaginamos que seria como a gente propôs a fase inicial do Biota, ia ter talvez dezoito, vinte e cinco propostas no máximo. Inscreveram-se cinquenta e oito grupos de pesquisa para trabalhar. Aí nós unimos esses grupos, criamos grupos para conversar, tem muita gente que está trabalhando com conhecimento parecido e então se junta e faz um projeto maior. E hoje eu vim a São Paulo porque a gente fez uma reunião com os primeiros sete projetos já aprovados pela Fapesp dentro dessa rede, para começar a fazer a estrutura de um banco de dados, que, evidentemente, não pode ser um banco de dados público como é o Biota. São informações sensíveis, são informações que têm que ter certo sigilo no seu trato, então tem uma série de coisas que são diferentes, mas você está começando a estruturar essa etapa. Eu acho que pode vir a dar uma sustentabilidade para a ferramenta econômica, que possa auxiliar nessas iniciativas, que eu acho que o Governo do Estado precisa começar a tomar de recuperação. Não é só conservação, precisa recuperar algumas áreas e conectar essas áreas. Então, de novo, eu acho que o os exemplos estão aí. Poderia se começar um programa desses em nível nacional? Poderia, mas falta iniciativa. Na verdade o que eu percebo nessa área é que é uma área de intersecção de interesses de diferentes Ministérios que, ao longo das últimas décadas, têm estado com grupos políticos diferentes. Então não são Ministérios, e em nenhum momento você tem uma coincidência de interesses entre Ministério da Ciência e Tecnologia, Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Agricultura, você sempre tem grupos diferentes. Então, aqui no estado foi a Fapesp, é um órgão da Secretaria de Ciência e Tecnologia, mas quem deveria ter feito isso é a Secretaria do Meio Ambiente. Não importa, a gente, por algum tempo trabalhou dizendo: "Ah, idealmente essas informações vão ser usadas para conservação". Agora está na hora delas serem usadas e há interesse da Secretaria de Meio Ambiente, do Governo do Estado, dos outros órgãos envolvidos, em passar a utilizá-las, então não importa quem é o pai, importa é que aquilo frutifique e que realmente estabeleça a possibilidade de mudar o modelo de desenvolvimento do Estado. Se a gente conseguisse pensar em uma estratégia dessas para a Amazônia, se conseguisse mostrar que aquela floresta... É claro que a gente sempre fala: "Ah, é uma riqueza em potencial". E nunca sai do potencial. Se você não transformar o potencial, não começar a transformar o potencial em real, você não vai ter recursos para conseguir conservar. Então eu acho que você tem que mostrar que, de fato, aquilo não é só potencial. E eu acho que a gente tem conhecimento, tem grupos de pesquisa, tem capacitação técnica para estar fazendo isso, e eu espero que a gente não tenha que chegar ao ponto de ter apenas sete por cento da Amazônia para a gente começar a colocá-la como uma área tão prioritária quanto a Mata Atlântica e o Cerrado.
P/1 – Carlos, como é que você vê a Fundação hoje? Qual é a importância que ela tem?
R - Eu acho que a Fundação poderia ter um papel mais importante, acho que está faltando um pouco mais de articulação com outros setores, principalmente com setores acadêmicos, para otimizar algumas capacidades que a Fundação tem. Eu acho que a Fundação, ela se capacitou, ela passou a ser gestora de alguns projetos importantes que a gente já falou agora a pouco, mas eu acho que quase todo o esforço dela está em gerenciar os seus próprios projetos, as suas próprias iniciativas. Talvez uma discussão mais ampla com os setores acadêmicos pudesse ser muito benéfica. Ao mesmo tempo em que eu falo isso eu me penitencio, porque faz dois anos, pelo menos, que a gente, dentro do grupo de pesquisadores do Biota, a gente vêm discutindo a necessidade que a gente tem de fazer uma reunião com as principais Não-Governamentais da área ambiental do estado e apresentar o que o programa faz. Porque é aquela coisa, as pessoas sabem mais ou menos, elas sabem que existe um programa de pesquisa, mas na hora de mostrar as ferramentas e ouvir a apresentação de projetos que elas estão desenvolvendo… E certamente a gente vai achar muitos pontos em comum e muitos pontos onde os esforços podem ser somados. E a gente sempre é atropelado pela agenda, sempre um incêndio que ocorre ou alguma outra coisa que você cobre, a gente precisava estar sentando com esse pessoal e fazer uma discussão, fazer uma apresentação realmente do ponto que a gente está hoje em relação a isso. Então, se eu participo dos eventos da Fundação, do ano passado, na inauguração da exposição, boa parte da cúpula da Fundação está lá, quer dizer, isso é coisa de eventos, mas você não senta para conversar de fato de trabalho, discutir e ver possibilidades e tal. E eu acho que essa avaliação que o SOS está fazendo, ao chegar aos dezoito anos, é muito importante. Pode indicar estratégias, possibilidades, parceiros e principalmente fortalecer parcerias que já existem.
P/1 - E o que é que você espera da Fundação, o que você imagina para a Fundação daqui a dez anos?
R - Daqui a dez anos, daqui a vinte anos, daqui a... (risos) Eu acho que um estágio, uma mudança de paradigma no sentido de que é preciso ter uma participação, um mecanismo ou uma competência de participação de fato no planejamento do desenvolvimento do país e do estado. Não pode ficar nessa coisa de episódios, na coisa da denúncia, ou mesmo dos projetos que vêm sendo desenvolvidos, mas que não penetram em todos os setores a ponto de serem ferramentas consideradas na hora da decisão. E eu não sei por que é que isso não acontece, não consigo vislumbrar qual é a solução para isso, mas eu acho que o papel da SOS é tímido em relação à participação efetiva na tomada de decisão. Ele está presente na crítica, ele está presente em vários momentos, mas eu acho que a gente tinha que estar presente na formulação e isso precisa ter mudança dos dois lados. Precisa ter a abertura de governo para que isso aconteça e a maturidade de você estar participando e, consequentemente, você dividir louros e fracassos. Mas eu acho que é importante você mudar esse paradigma.
P/1 - Carlos, você quer deixar um recado para o SOS nesses dezoito anos?
R - Eu acho que o recado é esse. Eu acho que a gente precisa, talvez, fazer essa avaliação crítica e identificar. E aí é como eu disse, acho que não vejo nenhuma solução mágica. Eu acho que o discutir, ampliar os círculos de discussão, ter uma participação mais efetiva da comunidade acadêmica, se aproximar um pouco mais, não serem só membros eméritos que estão lá nos Conselhos, de fato, as pessoas entenderem e serem capazes de articular isso. E isso eu acho que passa por um processo de renovação de perspectivas, estratégias, pessoas, lideranças, que eu acho que é uma coisa que falta e aí não é nenhuma crítica à SOS Mata Atlântica. Eu acho que, de uma maneira geral, falta essa renovação no movimento ambientalista. Sempre que a gente vai fazer algum evento, a gente tem alguns ícones lá do passado, que a gente vai buscar, mas não apareceram ícones novos, não tem, o Almirante Ibsen, o doutor Paulo, eu acho que teria que ter uma renovação. Como fazer isso, como você estimular isso, talvez nesse processo de auto-avaliação do SOS, isso é mérito, mas talvez fosse interessante ampliar um pouco. Não consegui participar do evento aqui em janeiro por problemas de saúde, mas eu acho que foi o início de um processo desse tipo. Ou as pessoas juntam ou dizem: “Faz dezoito anos que nós estamos trabalhando, fazendo. E aí? O que é que a gente pode colocar em perspectiva?” Eu acho que o fato de parar para se perguntar isso já é um bom começo. Agora não pode só fazer o evento e... Tem que ter consequência.
P/1 - Você quer falar mais alguma coisa?
R – Não, eu acho que chega.
P/1 - Então nós agradecemos muito por ter vindo dar o seu depoimento.
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