[Entrevista dividida em duas partes. Ambas incluídas no texto.]
Entrevista de Dora Henrique da Costa - Parte 1
Entrevistada por Lucas Torigoe
São Paulo, 16 de agosto de 2022
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV129
Revisado por Grazielle Pellicel
(00:14) P1 - Dora, a primeira pergunta é muito difícil: qual que é o seu nome completo, (risos) que dia você nasceu, em que cidade foi, por favor?
R - Aproveita enquanto não tem Alzheimer. (risos) O meu nome é Dora Henrique da Costa, eu nasci em Duque de Caxias. Na verdade, eu nasci em Colégio, um subúrbio do Rio de Janeiro, porque naquela época nascia-se em casa e não em hospital, e era a casa da minha avó paterna, onde nasceram todos os netos dela. Mas eu fui imediatamente para Duque de Caxias e lá eu fui registrada. Então, eu sou, meu registro é de Duque de Caxias, 13 de dezembro de 1942.
(00:54) P1 - Você nasceu em casa então? Como é que foi? Seus pais contaram para você?
R - Sim! Eu não vou me lembrar disso, né? Então, me contaram... Foi um parto acho que normal, né, porque senão não teria nascido em casa. Parto normal, uma criança normal, com três quilos, qualquer coisa assim. Foi tudo direito, pelo que contaram não teve nenhuma alteração, aí teve lá o pós da minha mãe tomando canja de galinha, tomando malzebier, que diziam que era bom para dar leite. Antigamente fazia-se isso, (risos) entendeu? Então, que a história que eu sei é essa, tá? Acho que não teve nenhuma anormalidade, não.
(01:39) P1 - E qual é o nome inteiro da sua mãe, Dora?
R - Lydia da Cunha.
(01:43) P1 - Fala um pouquinho da família dela então. Antes de falar dela propriamente, a família dela veio da onde?
R - Não, olha só, o meu avô, o pai dela era português de Trás dos Montes e a minha avó, mãe dela, era brasileira, filha de portugueses com brasileira, que por sua vez era filha de português com brasileira, como na época também era comum, né? A avó da minha bisavó...
Continuar leitura[Entrevista dividida em duas partes. Ambas incluídas no texto.]
Entrevista de Dora Henrique da Costa - Parte 1
Entrevistada por Lucas Torigoe
São Paulo, 16 de agosto de 2022
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV129
Revisado por Grazielle Pellicel
(00:14) P1 - Dora, a primeira pergunta é muito difícil: qual que é o seu nome completo, (risos) que dia você nasceu, em que cidade foi, por favor?
R - Aproveita enquanto não tem Alzheimer. (risos) O meu nome é Dora Henrique da Costa, eu nasci em Duque de Caxias. Na verdade, eu nasci em Colégio, um subúrbio do Rio de Janeiro, porque naquela época nascia-se em casa e não em hospital, e era a casa da minha avó paterna, onde nasceram todos os netos dela. Mas eu fui imediatamente para Duque de Caxias e lá eu fui registrada. Então, eu sou, meu registro é de Duque de Caxias, 13 de dezembro de 1942.
(00:54) P1 - Você nasceu em casa então? Como é que foi? Seus pais contaram para você?
R - Sim! Eu não vou me lembrar disso, né? Então, me contaram... Foi um parto acho que normal, né, porque senão não teria nascido em casa. Parto normal, uma criança normal, com três quilos, qualquer coisa assim. Foi tudo direito, pelo que contaram não teve nenhuma alteração, aí teve lá o pós da minha mãe tomando canja de galinha, tomando malzebier, que diziam que era bom para dar leite. Antigamente fazia-se isso, (risos) entendeu? Então, que a história que eu sei é essa, tá? Acho que não teve nenhuma anormalidade, não.
(01:39) P1 - E qual é o nome inteiro da sua mãe, Dora?
R - Lydia da Cunha.
(01:43) P1 - Fala um pouquinho da família dela então. Antes de falar dela propriamente, a família dela veio da onde?
R - Não, olha só, o meu avô, o pai dela era português de Trás dos Montes e a minha avó, mãe dela, era brasileira, filha de portugueses com brasileira, que por sua vez era filha de português com brasileira, como na época também era comum, né? A avó da minha bisavó era escrava e todas as mulheres escravas, filhas de escravos, foram tendo filhos com portugueses. Até a minha avó... A minha bisavó casou com o português, teve a minha avó, que casou com português, que teve a minha mãe que não casou com português. (risos) Então é uma família bem misturada, europeia por um lado, né, de Portugal, e descen... e afrodescendentes, mas que foram tendo filhos com portugueses e acabou que normalmente quase todos os descendentes da minha geração já não tinham essa marca tão grande, deve ter no sangue, mas não tem uma marca visual, étnica, da raça negra. Eu não sei mais hoje se você fala “preto”, “negro”, tô perdida, mas vamos lá. (risos)
(03:15) P1 - Me conta uma coisa, o seu avô e sua avó faziam o quê?
R - Meu avô veio para cá; ele tinha dezoito anos de idade quando ele veio e foi ser motorista de táxi. A história... de motorista de táxi para frente é que eu sei, não sei o que [é] que ele fez antes não, se ele foi ajudante de alguma coisa até virar motorista de táxi. E a minha avó morreu com 24 anos, já deixando quatro filhos. Teve tuberculose na época e morreu com 24 anos. Quando ela morreu, a minha mãe tinha sete. Veja, ela teve filho criança, né, porque se ela com 24 morreu, já deixou uma filha com sete, significa que ela teve filho com dezessete anos. E ela teve mais três filhos do meu avô. Já são todos falecidos.
(04:20) P1 - Seu avô, você conheceu ele?
R - Conheci! Meu avô, conheci. Eu já era casada e mãe de família quando ele morreu. Já tinha duas filhas, então, quando ele morreu.
(04:32) P1 - Conta um pouco da sua mãe então. Como é que ela era quando você era pequena? Quais são as lembranças que você tem dela?
R - Tenho muitas, (risos) muitas lembranças. Eu tenho lembranças bastante fortes da minha mãe, ela era uma pessoa muito decidida, né, muito lutadora, grande lutadora. Foi uma grande lutadora do movimento feminino, foi criadora... fundadora da União de Mulheres de Duque de Caxias, trabalhou na Federação de
Mulheres do Brasil, como Secretária Geral da Federação de Mulheres do Brasil, foi Secretária da Federação Internacional de Mulheres, que tinha sede em Berlim Oriental, e foi candidata a vereadora em 1900... nas eleições de 1958 pelo PTB. Na época, Roberto Silveira [era] candidato a Governador, também pelo PTB. PTB era um partido, na época, diferente do que ele é hoje, (risos) né? Não foi eleita. Tem uma história que eu acho deliciosa: porque com a participação da minha mãe no movimento feminino, ela viajou muito, ela foi a União Soviética na época, ela foi à China, ela foi a vários lugares e tinha ido ao Congresso Internacional de Mulheres... um deles foi em Copenhague, eu tenho até uma foto na foto desse, mil mulheres na foto. E quando ela foi candidata, ela começou a fazer campanha, de reunir gente, discussão, ‘não sei o quê’. Tinha na minha cidade uma escola que a gente chamava - não sei até hoje o nome dessa escola - Mate com Angu, porque a diretora dava de lanche para as crianças mate e angu, então a gente chamava de escola Mate com Angu. E a Diretora [se] chamava Regina. Essa Dona Regina também era candidata na mesma época da minha mãe, só que Dona Regina era candidata pela UDN, que à época era uma coisa bem reacionária. Então, numa das palestras da minha mãe na Associação Comercial, o PTB conseguiu lá o auditório da associação... eu tinha uns quinze anos nessa época... Ela fez uma palestra enorme sobre a importância do papel da mulher na política, usando relatos de todas as viagens dela, do que ela tinha visto na União Soviética, o que ela tinha visto de participação de mulheres em outros lugares. Quando terminou, abriram para a população presente fazer perguntas. Levantou um senhor bem humilde assim,bem simplório, e falou: “Queria só fazer uma observação. Dona Lydia, eu nunca pensei que mulher pudesse fazer política. A senhora me convenceu, vou votar na Dona Regina”. (risos) Então esse episódio eu acho muito interessante, porque foi uma coisa muito genuína, de uma simplicidade, uma transparência que comoveu até, apesar dele dizer que ia votar na Dona Regina. Que a minha mãe disse: “O senhor tem toda a razão de escolher uma mulher importante na Câmara dos Vereadores etc”.
(08:40) P1 - Mesmo que da UDN?
R - Mesmo que da UDN. (risos) Bom, isso ela não falou, não desse jeito. Mas, enfim, eu tava presente, por isso me lembro bem desse episódio. São coisas assim... me lembro também, a lembrança mais remota que eu tenho da minha infância é de quando eu tinha uns três anos de idade e o meu pai teve uma, fez uma cirurgia, que depois eu posso, quando falar dele, falar da cirurgia dele. O meu pai ficou internado e a minha mãe me levou para casa da minha avó porque ela ia ficar com o meu pai no hospital. E eu lá nos meus três anos, não tava entendendo o que tava acontecendo e eu acho, hoje, analisando, que eu me sentia muito ameaçada com a perda do pai, que ele sumiu! Ele foi para o hospital e não voltou. Então, quando a minha mãe ia na minha avó para me ver e para saber se tava tudo bem, levar roupa para lavar do hospital, quando ela saía, eu fazia um escândalo, mas um escândalo que a rua inteira participava. Ela ia embora e eu ficava gritando, minha avó segurando. Eu me lembro disso, eu tinha três anos de idade. É a remota ideia que eu tenho da minha infância, minha mais antiga assim. Isso não é contado não, isso é memória mesmo, eu vejo. Se eu quisesse, cinematograficamente, eu me vejo fazendo aquele escândalo. E a minha mãe ia e voltava, ia e voltava, e até minha vó dizia: “Vai embora! Não, deixa! Ela vai ficar bem!”, e ela voltava, ia e voltava. Então essa é a remota ideia que eu tenho, lembrança com a minha mãe.
(10:31) P1 - Agora, como é que... você fala um pouco que a sua mãe era muito decidida, né?
R - É, além disso, ela era mão de ferro dentro de casa. (risos) Ela era uma pessoa que tinha quatro filhas mulheres e era uma pessoa conservadora nos costumes, ela não era uma pessoa de costumes avançadíssimos. Não chegava a ser uma pessoa atrasada demais, mas ela era uma pessoa conservadora e achava que tinha que tomar conta daquelas quatro mulheres que ela tinha dentro de casa e que todas tinham que ser profissionais, tinham que estudar, porque essa era a luta dela. Para você ter uma ideia, uma colega minha da faculdade de Educação da UFF fez uma tese de doutorado no Departamento de História sobre o Movimento Feminino de 1946 a 1964 e o estudo de caso foi a luta e trajetória da minha mãe, o nome da tese dela é o seguinte: “Ordem na casa, vamos à luta”, que era o que definia exatamente o papel, digamos, daquelas mulheres que naquele momento lutavam pela participação da mulher, pela carestia... contra a carestia etc. E faziam a casa ter que funcionar, as filhas terem que estudar. Então era ordem na casa; depois da ordem na casa, vamos à luta. Muitos castigos levamos, Nossa Senhora! Era ela que castigava, não era meu pai, não. Meu pai não (risos) castigava ninguém, entendeu? Mas, era um certo oportunismo, porque ele sabia que ela tava ali, né, ela era a pessoa mão de ferro da casa, entendeu?
(12:16) P1 - E quais são, qual é o nome das suas irmãs, então, Dora?
R - Minhas irmãs eram mais novas: a segunda [se] chamava Lúcia da Cunha; a terceira, Lígia da Cunha. As duas são falecidas. E tem a minha irmã mais nova, [que se] chama Tânia da Cunha, que mora aqui em São Paulo, que vive em São Paulo desde sempre, já há sessenta anos, sei lá, cinquenta anos.
(12:39) P1 - Você é a segunda mais nova então, é isso?
R - Não, Tânia é a mais nova e eu sou a mais velha. (risos) Eu sou a primeira, depois tem Lúcia, Lígia e, por último, Tânia. E teve também uma prima, uma prima-irmã, que aos cinco anos foi morar na casa da minha mãe, na nossa casa, e que foi criada lá durante muito tempo pela minha mãe, que hoje até eu digo de brincadeira que eu tenho uma relação com ela que eu não sei qual é, porque ela é prima, mas ela foi para nossa casa. Ela é dez anos mais nova do que eu, portanto, quando ela foi morar na minha casa, ela tinha cinco, eu tinha quinze e quando eu casei, ela tinha onze, eu tinha 21. Eu fui morar em Curitiba e ela foi comigo morar em Curitiba, então ela virou minha filha. Então eu não sei bem hoje qual é a minha relação com ela, sabe, se é de mãe, se ela é filha, se é prima, se é irmã. Eu não sei. Mas, enfim, ela morou com a gente [por] muito tempo e foi a quinta “filha” da casa, digamos, também mulher, então.
(13:42) P1 - Fala um pouquinho do seu pai então agora, antes de ir para frente. Qual é o nome dele?
R - Meu pai, José Antônio da Cunha, era filho de portugueses... não, de português, meu avô, e de espanhola, minha avó. Essa minha avó era uma pessoa maravilhosa, que pena que já morreu, senão vocês teriam que entrevistá-la, (risos) porque ela era ponto fora da curva. Veio para o Brasil analfabeta, se alfabetizou sozinha e lia tudo! Acompanhava política, lia jornal, lia Graciliano Ramos, lia Jorge Amado, lia tudo. Nunca botou o pé numa escola, foi autodidata inteiramente, né? E era assim, a chefe do clã. Durante um tempo muito grande, a família inteira do meu pai fazia uma enorme referência a minha avó. Ela era especial. Se você quisesse ganhar alguém da família, tinha que agradar a minha avó. Agradando a minha avó, tava tudo bem, você tinha passaporte livre, entrada e saída na família. Mas se ela não gostasse, se não tratasse ela bem, você nunca ia botar o pé na família, (risos) entendeu?
(15:04) P1 - Seu marido então, não sei como...
R - Foi apaixonado pela minha avó! E a minha avó por ele. Ele virou uma pessoa amada pela minha família, embora pouco frequentando a família, porque a minha avó foi passar um período, uma semana, quando eu morava em Curitiba, na nossa casa, e ele a paparicou. Ele era muito sedutor, paparicou a minha avó todo tempo, ela voltou dizendo que eu tinha tido uma sorte enorme (risos) e, portanto, ele foi amado pela família inteira. Só por isso, porque ele nem convivia muito com a família, mas quando falavam dele, todo mundo falava: “Ah, não, ele fazia...”. Então a minha avó era uma figura, realmente os netos eram apaixonados por ela. Eu adorava minha avó, foi uma perda muito sofrida na época que ela morreu. Eu já era mãe, né? Meu pai com quinze anos trabalhava já. O meu avô, primeiro, ele era condutor. Sabe o que é ser condutor? Dirigia bonde, né? Não, ele era motorneiro. Porque eu acho que era assim, motorneiro era o que dirigia e condutor era o que cobrava. Pode ser que eu esteja enganada, mas acho que era isso. (risos) Ele dirigia bonde e a minha avó era dona de casa, teve seis filhos, então cuidou dos filhos a vida inteira. Ele trabalhava e ela cuidava da casa, como era mais ou menos comum naquela época. Então, meu pai, filho de português e espanhola, com quinze anos foi trabalhar em banco, foi bancário. Com quinze anos, ele foi um dos fundadores do Sindicato dos Bancários do Rio de Janeiro e com quinze anos, ele entrou pro Partido Comunista Brasileiro, que na época se chamava Partido Comunista do Brasil, vocês sabem? Então, foi um grande militante, sempre, né? Ele nasceu em 1915. Sua militância começa, portanto, em 1930. Em 1937, com o Estado Novo, os comunistas eram muito perseguidos e ele também, então andou fugido pelo estado do Rio, não sei o quê. Tem um episódio também que eu adoro contar dele. Ele se chamava José Antônio da Cunha, mas usava documentos dele próprio. Na época, não tinha nome falso, documento falso, não tinha nada disso. E ele foi de trem para o interior do estado, fugido, para ficar fora do combate. Lá para as horas tantas, a polícia entrou no trem e foi pedindo documentos, como ele estava sendo muito procurado, ele ficou pensando enquanto a polícia vinha nos vagões, ele falou: “Bom, se eu sair correndo agora, me entrego e podem até me matar. Se eu ficar aqui quieto e apresentar meu documento, vou ser preso”, ele ficou avaliando o que ia fazer, o que ia acontecer. Quando a polícia chegou nele, tava pedindo os documentos de todos, verificando e tal, ele meteu a mão no bolso, assim, na carteira, tirou, entregou dizendo: “André dos Santos”, olhando bem na cara do soldado e o sujeito devolveu sem ler. E assim (risos) ele não foi preso nesse momento. Foi preso em outros momentos. Não foi preso. Apanhou muito quando foi preso no Estado Novo, em função disso, ele teve problemas renais posteriores que deu origem a tal cirurgia falada anteriormente... Ele também teve cálculo renal, foi uma certa confusão. Operou, teve que operar, tiraram-lhe o rim, ele ficou só com um rim. Isso porque houve um acidente nessa cirurgia; esqueceram uma gaze na barriga dele. Na verdade, operaram por um motivo, esqueceram a gaze e tempo depois, ele teve que ser internado de novo, e aí sim perdeu o rim. A história foi essa. Então viveu a vida inteira com um ruim só. E essa foi a operação que ele fez quando eu ficava lá com a minha avó. Você vê que era, ele tinha... eu tinha três anos, ele era de 1915, isso aí era 1945, então você vê que ele tinha trinta anos, né?
(19:57) P1 - Muito jovem ainda.
R - Muito jovem! Ele morreu muito cedo, morreu com 48. Mas viveu esse período só com um rim, e também não era muito cuidadoso com ele, não, mas, enfim, (risos) pagou o preço.
(20:15) P1 - E como é que eles se conheceram, sua mãe e seu pai?
R - Você sabe que eu não sei, não sei como foi que eles se conheceram. Não é porque a minha mãe não morava naquele bairro, onde ele morava, a minha mãe não era bancária, (risos) entendeu? Então eu não sei, eu nunca soube, e eu acho que a minha irmã também não sabe. Por algum motivo, a gente nunca ficou sabendo como foi que eles se conheceram, entendeu?
(20:42) P1 - Você tem alguma suspeita?
R - Não, não tenho, porque a minha mãe se formou em contabilidade, ela foi contadora, ela trabalhava na cidade e almoçava sempre numa determinada pensão. Pode ser que tenha sido por aí, né, comendo a mesma pensão na época do trabalho, mas eu honestamente não posso afirmar. E tem uma história engraçada em relação ao meu pai, porque ele só foi se formar depois de casado e eu já tinha uns quatro anos, eu fui a madrinha dele na formatura. Foi um sucesso. Porque (risos) quando chamavam sempre naquela época, tinha - não sei hoje como é que é, com vocês aqui -, mas tinha o formando e sua madrinha para receber o diploma ou a formanda e seu padrinho, e quando chamaram o nome dele, eu levanto com ele, dentro daquele negócio, tudo, foi assim, um espetáculo, porque ninguém nunca pensou em levar uma filha de quatro anos (risos) de idade para ser a madrinha da formatura. E morava em Duque de Caxias. Eu desde que nasci, morei em Duque de Caxias, até 1962. Então toda minha adolescência, pré-juventude, juventude foi passada em Duque de Caxias.
(22:06) P1 - Como é que era a cidade nessa época da...?
R - Era um bang bang. Dito bang bang, né? Falavam: “Ai, Duque de Caxias, é lá o bang bang”. Tenório Cavalcanti, já ouviu falar? Tenório Cavalcanti era um alagoano que chegou a Duque de Caxias, era capataz de fazenda em Alagoas, chegou em Duque de Caxias e se fez em Duque de Caxias, se fez com uma certa força porque ele tinha hábito de capataz, (risos) então ele se fez e virou político na cidade. Construiu uma casa que chamava Fortaleza, porque ele botou o muro enorme escondendo a casa, você não via a casa, você só via o muro muito grande, e parecia que era um daqueles castelos medievais que tinha aqueles muros, né? Ela tinha isso, a gente chamava Fortaleza mesmo. E ele andava de metralhadora na cidade, que tinha até um nome, chamava Lurdinha. (risos) A gente sabia que era Tenório e sua Lurdinha. Tem um trabalho de Mestrado de um amigo meu, Israel Beloch, que é sobre ele, sobre a Lurdinha, sobre Tenório e a Lurdinha, sobre o personagem. E a cidade, então, ela era uma cidade... a gente não tinha muito esse medo da cidade, não, mas era famosa, né? Para você ter uma ideia, vou contar... Posso te contar um episódio, para te mostrar?
(23:42) P1 - Pode.
R - O meu pai foi trabalhar em Caxias - depois que ele saiu do banco, ele foi trabalhar em Caxias -, ele foi trabalhar com uma família chamada Vieira, era uma família importantíssima na cidade. Pra você ter uma ideia, até hoje tem um monte de ruas com o nome deles: é Rua Nilo Vieira, é Rua Manoel Vieira, é tudo Vieira. E eles tinham uma casa imensa, essa sim era enorme, mas não era Fortaleza, tinha uma entrada enorme, jardim, pomar, uma coisa enorme, e eles tinham uma imobiliária em Caxias. Meu pai foi trabalhar com ele, era empregado dele, e foi ficando amigo da família. O jovem da família deles, né, se apaixonou por uma mulher ‘vivida’, (risos) entendeu? E aí ele tinha uns 21 anos e essa moça tinha, deve ser uns trinta e poucos. Não era nenhuma velha, não, mas era uma mulher já conhecida na cidade, né? E ela era uma pessoa que tinha uma família não muito bem vista. Os irmãos eram tipo, hoje a gente diria sabe o quê? Tipo assim, miliciano. Hoje. Isso não corresponde àquela época, não. Mas eles eram assim, andavam armados. Essa moça começou a namorar esse rapaz da família Vieira, a família ficou desesperada e começou a querer convencer o rapaz a acabar com aquele namoro porque achava que a moça só queria era dar o golpe no baú. Isso foi um negócio na cidade, um escândalo na cidade, porque a família não queria e os irmãos ameaçavam, aquela coisa toda. O pai resolveu que ia mandar o filho viajar, como também era de praxe, né, tirar de circulação. Pois bem, o pai, fazendo isso, foi ameaçado pelos dois irmãos. Chamava Dantas essa família dela e a moça se chamava Olga Suely. Se vocês entrarem no Google, vocês perguntarem lá “Olga Suely”, vocês vão ver, devem tá lá narrados os acontecimentos que eu vou te dizer aqui. Então, Olga Suely... o Vieira foi à delegacia com o filho e pediu ao meu pai para ir junto, mas não me lembro o porquê, não sei se tinha alguma doença em casa. O meu pai não podia ir, ele levou o marido de uma filha, um genro dele. Foram os três na delegacia para pedir proteção das ameaças dos irmãos da Olga Suely. Pois bem, nessa delegacia, a Olga Suely entrou armada, matou o pai, matou o cunhado e feriu o rapaz. Isso foi um escândalo na cidade, entendeu? Ficou famoso. É por isso que eu te digo que se você entrar no Google, foi o crime da Olga Suely, que futuramente teve como advogado de defesa o Tenório Cavalcanti. (risos) Então ______ da cidade. (risos) O Tenório fazia aniversário no dia 27 de setembro, 27 de setembro, não sei se vocês sabem, é dia de São Cosme e de São Damião. Então a criançada ia pra rua pra ganhar doce, aquelas coisas todas, e era aniversário do Tenório, então o Tenório distribuía não doce para as pessoas, mas coisas para família, né? Como é que ele distribuía isso? Ele mandava uma notinha para todo o comércio: “Tenório Cavalcanti faz aniversário ‘lalala’, ficaria muito contente em receber as suas contribuições”, então as pessoas do comércio mandavam cobertores, colchas, lençóis, toalha de mesa, comida. Cada comércio mandava uma coisa. Ele juntava aquilo tudo e distribuía para a população como se fosse dele. Então: “Tenório Cavalcanti doa cobertores...”, as Casas Pernambucanas, as casas não sei o que mandavam tudo. Assim era o Tenório Cavalcanti, assim era Duque de Caxias nesta época. É evidente que não era só isso a cidade, né, mas isso era conhecido, ela era conhecida por essas coisas, né? No entanto, nós todos que fomos criados lá, estudamos lá, né, eu fiz todo meu curso ginasial lá em Duque de Caxias, primário, ginásio, minhas irmãs também fizeram primário, ginásio, tudo. Naquela época tinha ginásio e científico clássico, que hoje é ensino médio, né? Hoje não existe mais o ginasial, é o fundamental, né? Na verdade, a meninada se divertia, tinha baile todo fim de semana; eu ia à baile todo fim de semana. Minha mãe levava, ela fazia questão. (risos) Ela acompanhava, ela levava.
(29:36) P1 - Ela ficava no baile?
R - Sentada. Tinha que ter mesa, porque ela não ia para dançar e sim para nos acompanhar; alugava-se mesa. Tinham três clubes na cidade, os bailes eram alternados, né, o Aliança, o Recreativo e o Clube dos Quinhentos. Então tinha que ter mesa, a gente reservava. Quando começava a dizer: “Vai ter baile no Clube dos Quinhentos”, começava a saranda, eu e minhas irmãs, para alugar mesa, porque se não tivesse mesa, ela não iria, e se ela não fosse, a gente não iria. Então: “Tem que ter mesa, pra mamãe ficar sentada”. (risos) Ela sentava, conversava com todo mundo, levantava, fazia política nos bailes, entendeu? E a gente dançava, obviamente. Então, muito, muito. Era muito isso.
(30:21) P1 - Vocês dançavam o que naquela época?
R - Ih, teve baile com orquestra de Ed Lincoln, teve baile com orquestra de - como era o nome? - Waldir Calmon, teve baile com Orquestra Tabajara. Vocês já ouviram falar nessas coisas todas? (risos) Pois é, dancei com essa gente toda. Então, que mais? Bom, e como estudante, eu já nessa época comecei uma pequena militância na União Caxiense de Estudantes, que nós formamos nessa época. Isso foi na década de cinquenta.
(31:02) P1 - Na sua casa vocês respiravam política, imagino. Não?
R - Pois é, por isso é que digo que não tenho nenhum mérito, porque meu pai (risos) e minha mãe, foram pessoas que transmitiram um senso de solidariedade, um senso de humanidade muito grande, nós todas recebemos esse senso de justiça. A casa era uma casa aberta, meu pai fazia reuniões. Hoje eu sei que era até de Partido. Na época, era criança, sabia que tinha uns amigos do meu pai lá, né? Ele às vezes vinha de reunião com pessoas para jantar, chegava dois, três companheiros para jantar. Nós fomos a primeira casa da rua que teve televisão. O meu pai tinha carro, foi o primeiro sujeito da rua que teve carro. E aí também tem um episódio, porque todo sábado e domingo tinha futebol na TV, que hoje também tem, né, mas teve uma época que não tinha, antes de ter a TV a cabo, já não era comum ter futebol todos os sábados e domingo. Meu pai abria a casa, você não podem imaginar o que vinha, entrava para assistir futebol, porque era a única televisão do bairro. Então o pessoal vinha, ficava na janela. Quando saíam, deixavam ponta de cigarro e a gente ficava danada, que a gente tinha que varrer, limpar, fazer não sei o que, porque aquele monte de homens assistindo futebol. Teve uma época pré copa do mundo, eliminatórias... não sei se foi cinquenta isso, acho que foi, que teve. Eu era garota. Foi [em] 1954, talvez, porque eu já era maiorzinha. Brasil e Paraguai jogavam e a televisão pifou, faltou luz na hora. Papai era um aficionado, adorava futebol. Era Madureira o time dele, que já nem (risos) existe mais. Ele era Madureira. Então ele gostava mesmo era de ver o futebol. Quando aquilo aconteceu, faltou luz, o povo gritou, ele foi para o carro, ligou o rádio do carro e da rua, quando você chegava assim, você não via o carro: era gente em cima do carro, as portas abertas. Deu para ouvir jogo no rádio do carro, o futebol que tava, até a luz voltar, da televisão, tava interrompida.
(33:45) P1 - Como é que era essa essa rua sua? Qual é o nome?
R - Não, esse nome não existe mais. A rua era a Rua 19 de Março, número 260. Em... não sei há quantos anos atrás, há uns quinze anos atrás, nós quatro, irmãs, resolvemos voltar à Caxias para ir lá na nossa rua, na nossa casa. Fomos juntas. Quando nós chegamos, a gente não identificava direito, tal a mudança que tinha acontecido na rua. E a minha irmã, minha terceira irmã, Lígia, olhou e disse assim: “E casa era essa, olha os elefantinhos”, porque na época faziam os elefantes um de traseira para o outro nas construções das casas. E papai quando fez aquela casa, botou esses tais elefantinhos também, era a única da rua que era assim, e a gente identificou a casa que tinha sido remodelada pelo novo dono, ou pelos novos donos, não sei quantas pessoas tinham passado por lá, e a gente identificou pelos elefantinhos. Agora, no ano passado, foi 2021, início de 2021, a minha neta estava comigo no Rio, queria muito sair. A gente tava meio confinado ainda por causa do Covid, a gente não saía para nada e tal, e ela tava querendo dar uma saída, a aula era só online. E eu peguei o carro da minha filha, porque eu não tenho carro hoje, e botei ela no carro e falei: “O que que você quer fazer?”. Ela disse: “Vamos lá nos lugares onde você morou”, então ela quis fazer isso, nós fomos à Caxias. Quando nós chegamos lá, eu não achava a rua, porque a rua mudou o nome. É por isso que eu tô dizendo, ela era a Rua 19 de Março. E a casa tá muito mais diferente do que há quinze anos atrás, quando a gente identificou pelos elefantinhos, né? Mas, muito diferente, eu só localizei o local da casa por dois motivos: primeiro, porque ela era a segunda... tinha a rua perpendicular, uma esquina e a nossa casa. Na esquina, tinha um terreno que morava em umas pessoas e tal. Vou até contar daqui a pouco sobre elas. E a minha, a minha casa ficava, era a segunda e era o número 260 e tava lá “260”, foi aí que eu falei. A minha neta falava: “Foi aqui que você morou?”. Eu falei: “Não, (risos) não foi aqui que eu morei. Foi neste local que tinha a minha casa”. Se você olhar hoje, que é aquilo, e nossa fotografia da nossa casa, você vê que não tem nada a ver uma coisa com a outra casa. Nesta casa, e aí eu vou contar a história que Mauro falou para não esquecer de contar, nesta casa morávamos meu pai e minha mãe, as quatro filhas, a minha prima e a minha bisavó, que era avó da minha mãe. Essa minha bisavó era analfabeta, ela tinha assim uma cara meio de índia. Conforme eu falei, ela era daquelas descendências todos que vinha português e negro, português... ela parecia mais índia do que negra: pele morena, cabelo longo, liso. E ela era analfabeta, totalmente. Essa nunca aprendeu a ler, nem nada disso. E papai, que dava mesadinha para gente, dava para ela também, porque ela não tinha nada, os filhos dela moravam fora, ela morava com a neta que era minha mãe. Então, qual era a diversão da minha vó? Jogar no bicho. Sei até hoje todos os bichos, porque nós é que fazíamos o jogo, porque ela não sabia escrever, então a gente fazia. Sei isso direitinho por ordem alfabética os bichos, quais são, não sei que lá, cerca por cinco lado, cerca por sete, joga ali na dezena, na centena, joga no milhar. Não havia hipótese da gente ir a um enterro e voltar e não ter que dizer para ela qual era o número da cova, porque se não o fizesse, ela ficava muito chateada: “Como é que você vai a um enterro e não vê o número da cova?”, a cova era a coisa mais importante, porque ela jogava no número da cova. E assim nós é que fazíamos o jogo pra ela, e saíamos, íamos lá na banca jogar. Isso durou muito tempo, tanto que a gente, a Sônia, minha prima, essa é a que mais sabe tudo sobre o jogo de bicho, hoje, porque como ela ficou mais tempo ali fazendo, ela sabe tudo. Pois bem, um dia a polícia começou a fechar as bancas, né? Fecha, fecha e tal, bate polícia, prende, que nem fazia com camelô, fazia com negócio de jogo do bicho. E papai deu uma ordem: "Não quero as meninas mais indo fazer o jogo, proibido, ‘não sei o quê’". Minha avó ficou numa infelicidade. O que [é] que ela ia fazer? Ela não sabia ler, ela não podia sair de casa, que ela não sabia nem andar na cidade. Quem que ia fazer esse jogo para ela? Como que ela ia viver sem fazer esse jogo? Era a única diversão dela. Todos os dias a gente fazia o jogo e toda tarde, a partir de umas dezessete horas, ela ficava no portão esperando o vizinho desse terreno que eu te falei, da esquina, Seu Augusto, que era uma pessoa que trazia o resultado do bicho. Ele passava e só trazia o resultado. Seu Augusto não podia parar para tomar cerveja, não, porque quando ele se atrasava, ela brigava com ele: “O Senhor ficou até essa hora? Não veio, ‘não sei o quê’”. Bom, que fazer com essa velha? Papai, para resolver o problema, falou: "A senhora faz o seguinte, a senhora manda as meninas fazerem o jogo, quando eu vier em casa almoçar, eu levo o jogo, eu faço. Eu passo na banca e faço o jogo para a senhora. Não quero as meninas na rua, fazendo isso". Ela ficou feliz. Então ela fazia isso, e papai nunca fez o jogo dela, toda vez pegava o dinheiro dela, pegava tudo, botava numa gaveta. Quando ela dizia que ganhou, ele pegava aquele dinheiro e pagava. Ela jogava e ele guardava, e quando ela dizia... Ela ficava esperando ele de noite: “Olha, hoje eu ganhei!”, "Ah, eu não vi, amanhã eu vou”, e trazia o dinheiro. E assim ela morreu sem saber que nunca mais o jogo dela foi feito na banca, mas ela nunca deixou de receber quando ganhava. Essa história é sensacional, porque prova que você joga, joga, joga, um dia ganha, você já jogou mais do que ganhou. Nunca faltou dinheiro para pagar o que ela ganhava. Ela era paga com o próprio dinheiro dela, nunca faltou dinheiro para pagar o que ela ganhava. Mauro falou: "Não esquece de contar essa história".
(41:16) P1 - Eu queria saber como é que foi a sua formação lá em Duque de Caxias. Tinha algum professor que te marcou, alguma matéria?
R - Sim, sim, sim. Tinha, claro. Eu tive, digamos, eu me lembro de quase todos... primeiro, Dona Terezinha foi a minha professora do curso primário, né? Não sei, nunca mais vi na minha vida, nem soube de Dona Terezinha, mas me lembro dela até hoje, uma pessoa muito interessante, magrinha, morena, toda muito elegante, e era professora da escola que eu estudava, que era o Colégio Duque de Caxias. Antes eu tinha passado também por uma escolinha dessas que é de casa, né, professora que trabalha numa sala que ela tem, Dona Hermínia, que foi uma figura muito marcante também, porque era de uma humanidade muito grande. E ela permaneceu, porque quando eu fui pro ginásio, no Colégio Duque de Caxias, Dona Hermínia era professora de trabalhos manuais, canto orfeônico, essas coisas. Então ela permaneceu desde o primário até o meu secundário, digamos assim, até o ginasial da época. Ela permaneceu como uma pessoa muito, muito humana, muito amiga dos alunos, mas sem ser boazinha; não era isso, ela era humana, né, tinha uma característica muito boa. Fiz o ginásio todo lá em Caxias, né, no Colégio Duque de Caxias, que existe até hoje, levei minha neta lá. Isso ela foi ver. Tá lá o colégio, cresceu, construíram um outro andar, não sei o que, mas tá no mesmo lugar e isso sofreu alterações maiores. Então terminei lá o curso ginasial. Professor de matemática, professor Cozzolino foi uma pessoa muito marcante, eu gostava muito de matemática. Professor Augusto era de línguas, ele dava tanto inglês quanto francês. Uma coisa horrorosa como francês, como inglês, para aprender, mas era uma boa pessoa. E tinha um professor de português também, Professor Celso, que era mais ou menos bom professor, mas com ele eu não tive uma grande intimidade. Professor Mira, de história. Ah, professor Abelardo. Professor Abelardo era de geografia, esse era uma pândega, porque ninguém respeitava. Era uma bagunça a aula do professor Abelardo, mas ele era muita boa gente, (risos) todos os alunos adoravam ele. Mas, aquilo, ninguém ficava reprovado, era tudo uma maravilha.
(44:07) P1 - E você tinha alguma coisa que você queria, alguma profissão já nessa época? Ou não? Como é que você pensava?
R - Eu pensava nas exatas na época. Não é tanto que depois eu fiz vestibular para Faculdade Nacional de Filosofia, curso de Física. Então eu fui aluna de Física, fiz Matemática e Física na Faculdade Nacional de Filosofia.
(44:31) P1 - Então você foi no científico, é isso?
R - Fui pro científico. E aí quando eu terminei o ginásio em Duque de Caxias, não tinha curso além do normal (curso médio para formação de Professor) nessa época. Foi [em] 1957 que eu terminei. Não tinha curso com continuidade, clássico, científico, só tinha escola normal. E eu, apesar de adorar hoje ser professora, e ter sido professora há trinta anos, não sei o porque lá, na época eu não queria fazer o curso normal. Acho que eu não queria ser professora de criança, acho que era isso. Não sei, mas não queria. Por influência de uma amiga da minha mãe, Branca Fialho, que era presidente da Federação de Mulheres do Brasil, de onde a minha mãe era secretária geral, ela sugeriu que eu fosse para um colégio no Rio, porque era um grande colégio, um bom colégio, que era o Colégio Andrews, e tinha a fama de bom colégio e tal. E eu fui de Duque de Caxias estudar em Botafogo, no Colégio Andrews. No início do meu curso no Colégio Andrews, eu fiquei na casa dela, que morava na Urca, mas quando foi no meio do ano, ela foi, viajou, foi para China e ia ficar seis meses fora. E aí eu não quis ficar lá na casa dela, eu fui, voltei para Caxias. Então eu acordava às quatro e meia da manhã porque o colégio começava às sete em Botafogo, né? Então hoje eu adoro dormir até às dez horas, mas eu durante muito tempo acordava às quatro e meia da manhã para ir para escola. Saía, ainda tava escuro, frequentava as filas de ônibus de lotação... era lotação. Geralmente, eu pegava lotação na Praça do Pacificador e ia até o Largo da Carioca, pegava um bonde - ainda peguei bonde - para Botafogo, saltava na porta do colégio.
(46:34) P1 - Agora, antes de eu continuar perguntando sobre os seus estudos, no caso, é uma dúvida um pouco, digamos assim, mais teórica, não sei, mas a sua mãe era militante feminista, o seu pai...?
R - Não, não. Minha mãe era militante do movimento feminino.
(46:55) P1 - Que tem uma diferença, então.
R - Tem uma diferença, entendeu? Que no futuro, isso lá pela década de setenta, aí já começa a recrudescer o movimento feminista. Para ela era uma coisa meio complicada, porque não era propriamente, digamos, o centro da luta dela, embora ela tenha assimilado muita coisa, e até morrer ela foi, participou de reuniões com as feministas, não sei o quê. Mas o movimento feminista, ele não é, ele tem origem nesse movimento feminino, claro, mas ganha uma dimensão diferente, né? No movimento feminista de libertação da mulher, aquele negócio que veio lá dos Estados Unidos, joga fora o sutiã, mulher... isso daí não era propriamente a linha do movimento feminino. Era como eu disse: "Ordem na casa, vamos à luta", entendeu? Então, o movimento feminista foi posterior.
(48:01) P1 - Entendi. Tinha uma intersecção com o comunismo ou o trabalhismo do PTB ou não? Como é que era essa divisão?
R - Não, não, não. Não tinha nada mais. O PTB na vida da minha mãe foi apenas quando ela foi candidata. Ela não era uma militante de partido nenhum, ela nunca foi filiada ao partido comunista, ela nunca foi filiada em um partido, a não ser nesse período das eleições que ela correu pelo PTB. Quando acabou a eleição, não ganhou, não sei o quê. Bom, saiu da coisa partidária, continuou no movimento social, né, chamado movimento social, que é o movimento feminino. Nessas organizações femininas e tal, ela participou bastante.
(48:46) P1 - Tá. E aí nesse movimento, em Duque de Caxias, mas também não só, como você falou, enfim, me conta um pouco para quem também não conhece. Vai ter...
R - O que é o movimento feminino?
(49:00) P1 - Sim. Como é, quais eram as demandas na época, as ações. Você falou que teve um tempo, uma amplitude internacional, né?
R - Sim, mas aí era assim, ó, participação da mulher na política, participação da mulher na vida profissional, mulher trabalhando, ganhando mesma coisa que homem, era luta, né? Até hoje não existe isso, mulher ganha menos em geral. Mas era uma luta contra a carestia, o aumento do custo de vida, pela educação para botar as filhas nas escolas, que mulher tinha que estudar, não podia ficar essa história de escola só para homem, não sei o que e tal. Porque [quando você] tinha filho homem, você encaminhava para escola; mulher vai ser dona de casa. Quer dizer, não precisa. Fazia curso primário para saber ler e escrever, mas não precisava pensar em carreira, né? Tanto que existiam poucas mulheres nas universidade, em geral, na época da minha mãe. Ela mesmo não foi para Universidade, ela fez um curso de contabilidade de segundo grau, que a gente - não sei como chamava na época -, clássico, científico, contabilidade, né? Ela fez o curso de contabilidade de nível médio. Então era uma lutadora muito grande nesse sentido, lutava com as camponesas, conhecia algumas pessoas que vinham do campo e que elas… com alfabetização das camponesas. Tinha que alfabetizar, participar, organizar. Sim, era por aí, organização do movimento. Em torno dessas palavras de ordem. Agora, o movimento feminista vem depois. disso daí eu tô te falando da década... foi candidata em 1958, né, o movimento feminista vem na década de setenta, depois de 1968 é que começa a recrudescer; apareceu o movimento feminista.
(51:05) P1 - E o seu pai depois do Estado Novo, ele parou de ser perseguido?
R - Não. O meu pai foi o seguinte: o meu pai foi candidato - eu acho que não falei isso - a vereador e grande lutador pela constituinte de 1946, e foi eleito vereador por Duque de Caxias em 1947.
(51:27) P1 - Pelo PCB?
R - Pelo PCB, mas foi cassado em seguida, quando o PCB entra na ilegalidade, acho que é maio de 1947, não sei.
(51:36) P1 - Pelo Dutra, né?
R - É. Entra na ilegalidade e os vereadores são posteriormente cassados, né? Então é na época que o Prestes é Senador se eu não me engano, acho que é. Então caçam os comunistas e meu pai, então, o partido vai para a ilegalidade. Mas o meu pai continua no Partido Comunista na ilegalidade, embora ele não fosse um clandestino do partido, porque ele tinha a vida profissional. Depois que a família Vieira se desmembrou toda lá, ele acabou tocando os negócios da família e depois acabou ele tendo uma imobiliária, então ele tinha uma vida legal. Ele vai sair do partido em 1958, com o racha do partido, depois das denúncias sobre o Stalin. Então o PCdoB vai para um lado, o PCB, né, permanece aquele. O nome do partido primitivo era o Partido Comunista do Brasil, com o… [em] 1958 é que você tem os que ficam, que são o Partido Comunista Brasileiro, e o Partido Comunista do Brasil é o PCdoB que tá aí até hoje também. Aí você tem Grabois, enfim, vários outros aí. Não é o caso aqui da gente ficar falando do racha. Mas o meu pai saiu do partido nessa época. Ele sai... e eu acho que ele sai até por uma uma coisa meio sectária, sabe? Apesar de toda a luta dele então, ele ficou muito caído, se sentiu muito traído com tudo, a impressão que me ficou. Tanto que em 1962, quando eu entro para o Partido, eu entro e ele fica me perturbando um pouco, não me criticando: “Ah, você vai entrar”, (risos) entendeu? Porque ele tinha saído e não queria mais saber de militância, do Partido, não sei quê. Ele tinha realmente... como ele morreu muito cedo, ele morreu em 1963, então foi pouco tempo, cinco anos na verdade que ele tava fora do partido.
(54:04) P1 - Você com vinte entrou então, é isso?
R - Entrei em 1962, com vinte. Entrei quando entrei na Faculdade. Aí entrei na base da Faculdade Nacional de Filosofia - Seção Física, porque a Faculdade Nacional de Filosofia era dividida nos cursos de História, Geografia, Química, Física... que mais? Matemática, Pedagogia. Então tinham todos esses cursos. Então cada curso desse tinha uma Seção, chamada “Seção”, ou seja, os comunistas desse curso se reuniam e o conjunto se reunia na Base da Faculdade Nacional de Filosofia.
(54:47) P1 - Isso, a FNF era no Rio de Janeiro?
R - No Rio de Janeiro. Eu, depois… me formei no Colégio Andrews em 1960, cursei o científico, né, porque eu era das Ciências Exatas, conforme eu falei, eu gostava das Exatas. E me formei no científico, passei um ano, me preparei para fazer vestibular, tinha muitas outras coisas para fazer e fui fazer o vestibular no final de 1961, entrei em 1962 na faculdade. Aí entrei na Faculdade de Filosofia e aí passei a militar na Faculdade, dentro do partido na faculdade, fui de CPC da Faculdade e do CPC da UNE, militei, assim, partidariamente. Fui secretária de finanças do Partido na Base, primeiro foi da Seção, aí como foi um sucesso a minha gestão financeira, (risos) eu fui para Base, pra Finanças na Base, trabalhei com Anita Prestes, que ela era secretária de Finanças do Comitê Universitário, se eu não me engano, se a memória não me trai, e ela como secretária de Finanças do Comitê Universitário reunia com as Secretarias de Finanças das diversas Bases Universitárias, e eu por isso trabalhei com ela em 1962. Depois eu fiz, fui Secretária de Organização, eu fui sendo elevada de posto, (risos) aí virei - até hoje eu brinco - “só Sec org”, entendeu? Quando começam a me amolar, eu fico: “Olha, tem que respeitar, porque eu sou ‘Sec. Org”’, eu sei organizar”. (risos) Não sou não, mas eu falo isso.
(56:51) P1 - E me conta uma coisa, você entrou no partido nessa época, você já tava casada, é isso?
R - Não, casei em 1963.
(57:05) P1 - Logo depois?
R - Conheci meu marido no partido. Aí conheci, ele era da PUC, na base da PUC, e eu era da Nacional de Filosofia, e ele foi do Comitê Universitário. Então, porque ele passou pelo Comitê Universitário, ele também às vezes aparecia nas outras Universidades, foi aí que eu o conheci numa reunião do Partido da Faculdade Nacional de Filosofia, da Base da Filosofia, e que ele foi como membro do Comitê Universitário do Partido. Sempre tinha um representante da hierarquia superior assistindo às reuniões, né? A gente chamava até de assistente. Então foi aí que eu o conheci.
(57:55) P1 - E como é que tava o horizonte político para quem era comunista no Brasil nessa época no Rio de Janeiro?
R - Olha, não tava ruim não, (risos) entendeu? Não tava, não tinha perseguição, a gente fazia política dentro da Universidade. Eu até brinco que a Faculdade Nacional de Filosofia, a gente chamava de República Socialista da Filosofia porque era muito grande, nós chegamos a ter perto de cem membros dentro da base. Há quem diga que foi até mais, entendeu, mas eu acho que foi por aí, uns cem membros. O que é bastante. E as lutas da UNE eram muito intensas, os CPCs atuavam, né? Nós atuamos no CPC, nas campanhas eleitorais em cima de caminhão. Ia para a rua em cima de caminhão, fazia peça com Vianinha, com Armando Costa… como é o nome do... Paulo Ponte. Como é que era o nome? Me fugiu agora como é que era o nome do outro que era...
(59:08) P1 - Ferreira Goulart?
R - Não, o Ferreira também, mas o Ferreira não era assim atuante direto, de ir pro palco com a gente, né? Mas, e a gente fazia subdesenvolvidos esquetes, não sei o que lá. Fazendo campanha fomos a Brasília, por exemplo, fazer campanha na Candangolândia. Isso pelo CPC, né? Mas isso era militância também. Quase todo mundo do CPC tinha algum vínculo com o Partido. Podia não ser membro do partido, tinha o que a gente chamava de simpatizante, as pessoas que não eram membros, que não reuniam, mas que eram simpatizantes. Tinham outras organizações, como AP (Ação Popular), por exemplo. E aí vinha gente da AP, que era um, digamos, não era um adversário necessariamente. E tinham outras militâncias... Betinho, nessa época. Eu não sei se é um personagem que vocês conhecem, né? Tudo era AP, né, Paulo Alberto... sabe quem é Paulo Alberto?
(1:00:21) P1 - Esse não.
R - Arthur da Távola, que foi deputado, senador, não sei o que, escritor; morreu. Mas eles eram todos vinculados à AP e não ao Partido. Quem mais? Então essa época foi uma época assim muito, até 1964, né, quando veio o golpe, foi uma época de muita efervescência. Teve um episódio... pra você ter uma ideia do que que era a República Socialista da Filosofia, eu já casada, isso no início de 1964, eu já grávida da minha primeira filha e militando na Faculdade, teve o pessoal da formatura aquele ano, turma de 1962, né? Isso era 1963, mas era a turma... não, era a turma de 1963... já não sei direito, porque eu tava grávida, minha filha só nasceu em 1964 e portanto não podia ser 1962. Mas, enfim, a turma que ia se formar geralmente fazia reuniões e escolhiam o Paraninfo, o Patrono da turma etc. Foi feito tudo isso e doze alunos resolveram não seguir a decisão e resolveram fazer uma formatura em separado convidando Carlos Lacerda, [então, Governador do Estado], para ser Patrono e convidando um diretor da Faculdade para ser Paraninfo, Eremildo Viana. Você já ouviu falar nesse personagem? O Elio Gaspari fala assim: “Eremildo, o idiota”, (risos) é baseado no Eremildo Viana.
(1:02:14) P1 - O próprio.
R - É, exatamente. Então Eremildo era o professor Paraninfo e o Lacerda, o Patrono. Isso a gente não podia admitir naquele momento, entendeu? Então, absurdamente, fechamos a faculdade, pusemos uma barricada na porta e ficamos dentro. Quando eles chegaram, a formatura ia ser na faculdade, quando eles chegaram, tava fechado, não podia entrar. E veja você, mais de duas horas ficou o Diretor da Escola, o ex-diretor, que era o Eremildo, os doze formandos, a família dos doze formandos e o Governador do Estado, que era o Carlos Lacerda, em pé na porta, para tentar entrar e a gente de dentro gritando: “Lacerda aqui não entra!”, (risos) entendeu? Você vê a loucura que era aquilo, né? Não entrou. Aí foi fazendo um mar de gente, porque todo mundo que passava: “O que tá acontecendo aí?”. Aí: “O Governador tá aí”, aí descia do ônibus. Aquilo foi enchendo, enchendo; no final, era uma praça, um monte de gente, conturbando, tava rádio, televisão, tudo filmando e a gente lá dentro: “Lacerda aqui não entra!”. E não entrou. Aí o exército veio, do Jango (João Goulart), o exército veio e negociou para ele sair. Porque estava difícil até eles saírem porque estava cheio de gente. Então, fez toda a negociação pra eles irem embora, e não entraram. E para você ver o que é esse país, porque eu sempre digo que não é para amador, eu morria de fome, porque eu tava grávida e tinha fome. Eu tava trancada dentro da Faculdade, não podia sair. Então eu por trás chamei um soldado e pedi para ir no Bob's comprar um sanduíche para mim e ele foi, (risos) entendeu? Veja você, dentro da Faculdade, fazendo essa confusão, eu peço pro rapaz, soldado: “Por favor, tô grávida, não sei o que lá”, dei o dinheiro e ele atravessou a rua, foi lá, trouxe o sanduíche pra eu comer dentro da faculdade, entendeu? Então... mas o Lacerda não entrou, impedimos a entrada. Pra você ver o clima que se vivia pré-1964.
(01:04:50) P1 - Tinha então uma, havia uma popularidade então da causa e havia uma margem para agir, é isso?
R - Sim, havia. Você... tô te falando que dentro da Faculdade Nacional de Filosofia, as Assembleias da Faculdade, nós ganhávamos largamente, entendeu? Eram Assembleias democráticas, enchia o salão nobre, nossos oradores, todo mundo ia para lá, os contra, os a favor iam falar e na hora da votação, a gente sempre ganhava, entendeu? Se vai ter greve, se não vai ter greve, se vai ter aula inaugural, assim ou assado, todas as questões que se colocaram para decisões. Eleição de diretório acadêmico, ganhamos também, então... já ouviu falar em Rubem César Fernandes?
(1:05:48) P1 - Não.
R - É porque ele é daquele Viva Rio. Sabe o que é Viva Rio? Ele é fundador do Viva Rio. O Rubem César dessa época, ele foi vice do Enilton Sá Rego no diretório acadêmico e ele era ligado ao Partido também. Então era uma ação muito forte, entendeu?
(1:06:09) P1 - E vocês tinham no horizonte que iria acontecer um golpe militar?
R - Eu não. Não, não. Podia ser que alguém tivesse, mas a gente achava que ia ter as reformas, que Jango ia fazer as reformas, né, e que a vida ia ficar muito boa. (risos) Gente, até porque, eu vou dizer uma coisa para vocês, foi muito bom ser jovem na década de sessenta, sabe, foi muito bom. Se você olhar bem tudo que surgiu nessa década, além dos grandes movimentos sociais, o 1968 na cultura, na música surgiram os Beatles, a música brasileira vai crescendo, Bossa Nova tá surgindo aí, né? Foi muito bom, muito bom. Foi uma época que foi importante, que fortaleceu muito as pessoas em geral, né, então foi muito legal.
(1:07:14) P1 - E vocês então tinham a expectativa de que o Jango ia então conseguir tentar a reeleição?
R - Eu tinha. Não sei se todo mundo. Já tô falando agora que eu achava que a gente tava no caminho certo, entendeu?
(1:07:28) P1 - E como é que foi o dia então, o primeiro de abril, 31 de Março, você se lembra?
R - Lembro. Então, primeiro teve o Treze de Março que foi o comício do Jango e eu fui proibida de ir, sabe? Fiquei muito furiosa porque eu tava grávida gente. Mas olha que maluquice, a gente faz cada maluquice, né? Mas eu queria muito ter ido e não fui, meu marido ficou histérico: “Você não vai, não sei o quê”. E aí pra não ter muita briga eu falei: “Tá bom, não vou”, mas fiquei comichada com aquele comício maravilhoso, não sei o que, no qual eu devia ter participado, como se a minha participação fosse, assim, fundamental.
(1:08:13) P1 - Na central, você tá falando?
R - Na central. Isso foi 13 de Março, né? Aí depois outras coisas foram acontecendo, tem um negócio lá do marinheiros, enfim, a história do Brasil, que seguindo... quando foi no dia 31, de madrugada pro dia 1º, que surgiu a história de que o Mourão tava vindo e que ia invadir o Rio de Janeiro, não sei o que, nós fomos todos para a Faculdade. Os estudantes em geral foram para os seus locais. E lá por tantas horas, a Faculdade estava cercada porque a gente havia impedido a entrada... veja, desde o impedimento. Aquilo ficou muito confuso porque a gente havia feito barricada, até aquilo desmontar... quando 1964 acontece, quando o golpe acontece, aquilo tá tudo ainda desestruturado, digamos assim, não tinha sido estruturado o suficiente. Porque essa história que eu contei do Lacerda foi no início de 64, digamos, fevereiro, março, no início, que era a formatura dos meninos de 1963. Então agora eu tô marcando, né? E a Faculdade ficou assim, os arquivos ficaram fechados, todas essas coisas ficaram fechadas. A diretoria, para retomar, tava complicado, o diretor da Faculdade precisava mandar arrumar aquilo tudo e veio o golpe. Então nós fomos pra lá e veio uma ordem que era para todo mundo seguir para o Caco. Caco era o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira da Faculdade de Direito na Praça da República, tá? Fomos todos. Então o pessoal da Faculdade de Engenharia foi pro Caco, o pessoal da Filosofia foi pro Caco, foi todo mundo, juntou um bando de estudantes lá.
(1:10:10) P1 - Uma ordem do PCB, é isso? Das cabeças?
R - Sim! Eu recebi do PCB, não sei... não foi só PCB porque tinha pessoas de outras organizações. Pessoal de AP por exemplo tava lá também. Eu sei porque minha cunhada era de AP e tava lá. Bom, fomos para lá, para a Faculdade. A ideia era concentrar todos os estudantes num lugar só. Eu não sei qual era a ideia posterior de juntar. Aí, o que aconteceu? O Lacerda mandou a polícia cercar o prédio e jogar gás lacrimogêneo. Foi um terror, porque o gás, não sei se você sabe, ele baixa. O gás não sobe, ele baixa, [por ser mais pesado do que o ar]. Então quando nós estávamos todos embaixo, uma corrida para subir pro quarto andar, porque lá era menos gás, o gás não chegava. Ficamos isolados lá no quarto andar da faculdade de Direito sem saber mais o que estava acontecendo, né? Ninguém tinha celular. (risos) Conforme eu tava dizendo, ninguém tinha nada para se comunicar. Eu sei que a polícia cercou o prédio e disse que dali nós não íamos sair. Aí nós ficamos lá em cima cercadinhos até que chegou o exército. Chegou o exército expulsando a polícia do Lacerda, dirigido... não sei se chama, o que chama, tropa ou regimento, (risos) que diabo que é. Um grupo de soldados chefiados por um Capitão chamado Proença. Eu não sabia à época o nome dele, sei hoje. O Proença chegou, chamou os líderes do movimento lá, conversou, não sei o que, subiu, juntou todo mundo, subiu numa mesa e falou: “Eu tenho ordem para matar, mas eu não vou fazer isso. Eu quero que vocês me ajudem a sair todo mundo daqui. Eu dou cobertura até a Presidente Vargas”. Se você conhece lá o Rio, a Praça da República, o Caco fica numa esquina, aí você anda pela, não sei o nome daquela rua, até que chega na Presidente Vargas. Ele falou: “Eu dou cobertura. Quando chegar lá, vocês vão embora”. Bom... “E vai sair de grupo de sete, e cada grupo vai ser acompanhado... vai fazer feito corredor polonês de soldado. Vocês estarão protegidos até ali”. Eu saí no primeiro grupo. Por quê? Porque eu tava grávida, (risos) entendeu? Eu e Flora Abreu, minha cunhada, que também estava grávida, saímos. Uma colega nossa, Nilda Alves, falou: “Tem duas grávidas!”. (risos) Aí o capitão falou: “Onde estão as grávidas?”, (risos) horrorizado, provavelmente, das grávidas estarem ali dando aquele trabalho. Aí nós aparecemos, ele falou: “Vocês vão sair no primeiro grupo”, e nós saímos, sete, né, nós duas, aí o meu cunhado saiu junto, porque a mulher dele tava saindo, e mais outras pessoas. Saímos a pé, chegamos na Presidente Vargas e fomos... sabe onde que é o edifício Balança Mas Não Cai no Rio de Janeiro? Sabe? Fomos lá para o edifício Balança Mas Não Cai, onde uma das pessoas do grupo tinha uma tia que morava lá. Então ficamos na escada, na escadaria interna, e aí ele subiu para pedir à tia para usar o telefone. E aí do telefone da tia, ligou-se para casa de um, para casa de outro, entendeu? E dali, cada um deu o seu rumo e tal, e eu consegui sair para casa do meu sogro e tal. Mas aí é outra história, como nós saímos de lá e fomos levados para casa do meu sogro. Então começamos aí a saber que o Jango já tinha saído, já tinha ido pro Uruguai, pra Porto Alegre, sei lá, pro Uruguai e que Brizola tava fazendo aquela campanha toda do... como é que chamou? Esqueci agora.
(1:14:43) P1 - Da legalidade?
R - Para a legalidade. Enfim, tinha gente que acreditava ainda que ia ser, dar a volta por cima, que o Brizola ia... mas aquilo foi esvaecendo, acabou no golpe mesmo, né, estabelecendo-se o golpe. Aí passamos a viver a chamada ditadura.
(1:15:06) P1 - Agora, nesses primeiros meses, era claro para vocês que ia ser uma ditadura? O que vocês pensavam: ia durar muito, ia durar pouco? Como é que era isso?
R - Não, nos primeiros meses era claro que foi um golpe, isso era claro, né? E era claro também que naqueles primeiros dias muita coisa aconteceu, de prisão de algumas pessoas e tal. Me lembro de um líder sindical, Batistinha, que era da Baixada, era ferroviário, e que nesse momento ele tava super perseguido, me lembro vagamente disso. Mas não me lembro assim da gente achar que ia durar 21 anos, entendeu? A gente sabia... primeiro que tinha aquela coisa do Brizola, né, que ele tava sempre alimentando durante um certo período de que ia se reverter o golpe, mas depois a coisa foi se consolidando enquanto um governo autoritário etc. que foi aos poucos ficando mais, digamos, forte, né, e a ditadura foi ficando mais seletiva, prendendo. Queimaram... no primeiro dia logo ‘queimaram’ a UNE, né? Agora, teve um apoio muito grande político, porque teve a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, não sei o que, aquele pessoal do ouro do Brasil, doando ouro. Então foi um movimento que teve um apoio popular contra todas aquelas manifestações sobre as coisas as quais a gente tava falando agorinha, né?
(1:16:58) P1 - Agora, como é que era, o que vocês, você, o seu marido, pensavam, sua família, andando na rua, por exemplo? Você via as pessoas como inimigas ou quem apoiava? Ou não mudou muita coisa?
R - Não, você sabe... olha, eu não identifiquei assim, pessoalmente, ninguém que apoiasse, então não tinha esse problema. Porque quando houve aquela passeata, aquilo era uma passeata da zona sul, localizado forte na classe média. A gente tava fora porque a gente estava lá no Caco, tava... não cheguei a ver e não conheço ninguém. Até hoje, nunca soube de ninguém que tenha participado desse movimento, embora muita gente tenha participado. Mas, pessoalmente, a gente não tinha, digamos, uma referência de alguém participando, então não teve essa coisa de inimigos assim não. Agora, como o passar do tempo, a gente... não era uma questão de inimigo, era uma questão de cuidado, né? Então você não falava com qualquer pessoa, você não falava no telefone qualquer coisa. Não porque você achava que aquela pessoa fosse seu inimigo total, mas era uma questão de cuidado para você se preservar e preservar outras pessoas que estavam próximas de você.
(1:18:27) P1 - E eu pergunto assim: você tava grávida da sua primeira...
R - Da minha primeira filha, Cristina, que vai fazer Livre Docência em Campinas no dia 24. (risos)
(1:18:40) P1 - Mas você tinha medo por ela?
R - Eu não. Eu era muito maluca, menino, não tinha medo de nada. Não tinha medo de nada. Se eu te contar outras coisas que eu fiz... eu não tinha medo de nada. Só, claro, que eu tinha todo cuidado. Ó, meu cunhado, [Alcir Henrique da Costa], foi preso; meu cunhado, já nessa época, já tinha saído do Partido. Ele já tinha saído do Partido e tinha entrado no PCdoB da época. Enfim, então ele foi preso. Ele foi preso assim, ele foi à casa de uma pessoa onde tinham duas moças que estavam sendo procuradas, uma coisa assim, que estavam na casa de um casal. Esse pessoal era do Pcbr e ele, [Alcir], era do PCdoB. Ele foi à casa dessas pessoas levar um material, qualquer coisa, para as meninas que estavam lá. Quando ele chegou, a polícia já estava; prenderam as pessoas da casa e ficaram lá dentro esperando ver quem chegava. Ao abrir a porta, a empregada ficou fazendo sinais, nervosa, não sei o que lá, ele percebeu que tinha alguma coisa, mas os caras logo o pegaram. Então ele foi preso... eu não sei te precisar, eu acho que isso era 1969. Não tenho certeza absoluta, mas isso é fácil verificar. Mas isso também não é muito importante. E ele ficou preso e eu ia todo dia na PE, onde ele ficou, levava minhas filhas, fazia o diabo, desafiava aquele pessoal todo. Então, muito, muito maluca. Quer dizer, eu era assim porque... não era maluca de rasgar dinheiro, (risos) mas era uma coisa assim que movia, muito forte, sabe, naquela direção de: “Quem é que pode ir lá cuidar dele?”. A mulher não podia porque tava sendo procurada, o meu marido, que era irmão dele, tava trabalhando muito, eu tinha tido uma cirurgia, tava em casa me recuperando da cirurgia, meu sogro, minha sogra, eram pessoas mais idosas e pouco experientes, não tinham tido nunca nenhuma militância de nada, eram pessoas muito assim até ingênuas e tal. Então quem podia ir era eu, então se é só eu, sou eu, entendeu? Eu raciocinava um pouco assim. Não é que eu era: “Ah eu tenho que... quem é que pode ir? Ninguém? Então eu tenho que ir” e eu ia, entendeu? Ia e não tinha nenhum medo. Tanto não tinha, que em uma determinada época da prisão, falaram que iam transferir os presos da PE pro Dops, não sei o que e tal, e que ia ter uma visita. Fomos todos. Aí eu convoquei a família toda: foram os irmãos, meu sogro, minha sogra. Foi todo mundo. Lá, chegando, tava assim de gente. Tinham jogado um panfleto na cidade pedindo justiça, não sei o que, eles resolveram que não ia ter visita porque a segurança deles, os policiais, estava ameaçada. Aí mandaram todo mundo embora. Aí eu falei para o meu marido assim: “Eu não vou, eu vou ficar”. Aí ficamos, o núcleo familiar de Alcir ficou. Todo mundo foi embora, daqui a pouco vem lá o - era major na época -, chamado Demiurgo, ó que nome. (risos) Veio Demiurgo com um chicote na mão, batendo no chão assim: “PÁ, PÁ, PÁ”. E disse... subiu na escada e falou que não ia ter visita nenhuma, não sei o que e tal, “E quem quiser, que me espere!”. Aí eu falei para o meu marido: “Isso é para mim”, (risos) entendeu? Isso era um recado, porque era eu que ia lá todo dia. Bom, ele foi embora, passou. Quando esvaziou, não tinha mais ninguém, só nós, ele veio e disse assim: “Vou levar essa moça comigo”. Eu levantei, falei: “Vamos”. Eu fui a única que viu Alcir, entendeu? Por quê? Porque eu era a pessoa que eu ia lá todo dia, não era... se outra pessoa tivesse fazendo isso, conversando e discutindo e brigando com eles, teria feito a mesma coisa. Então eu fui. Quando eu cheguei… foi muito interessante inclusive, porque quando eu cheguei, Alcir tava já no pátio, do lado de fora, tinha um soldado e o Major falou para o soldado assim: “Deixa eles vinte minutos. Depois de vinte minutos, vamos embora... vai embora” e o soldado se afastou e eu fiquei conversando com Alcir vinte minutos e ele me passou todos os dados que ele queria passar: quem tava sendo perguntado, porque ele tava sendo muito torturado. Não falou nada, mas quem é que tá sendo tudo perguntado, por quem que tão procurando, que querem saber, não sei o quê. E foi muito bom, porque quando eu saí dali, eu... meu marido tinha ficado esperando. Nós, eu falei: “Vamos tomar um café, não sei o que”, liberei meu sogro, minha sogra, eu falei que tava tudo bem e tal, e falei pro meu marido: “Olha só - eu repeti umas vinte vezes para não esquecer -, Fulano, Fulano, Fulano, Fulano”. Meu marido disse: “Esse Fulano, eu vou falar com o Nelson Levy”, que era uma pessoa interlocutora que só falava com meu marido nessa época por causa de Alcir. Foi falar com ele, chegou lá e disse: “Olha, Dora esteve com o Alcir e Alcir falou isso, isso e isso” o cara ficou, abriu o olho desse tamanho, era onde tava a minha cunhada. Nesse dia, ele perguntou: “Vocês tem lugar para botar a Flora?”. Aí o Ailton falou: “Sim”, não tinha nada, mas a gente tava doido para saber onde que ela tava, porque a gente tava com medo dela cair com duas crianças. “Muito bem!”, saiu eu... aí eu que nem tava, ele me ligou e disse: “Olha, precisamos de um lugar”, não me disse mais nada, eu já sabia. Fui a casa de uma tia que morava em um quitinete do tamanho disso aqui assim. Cheguei lá, falei: “Tia, tô precisando da tua casa”. Aí ela falou: “Tudo bem. Por quanto tempo?”. Eu falei: “Não sei, mas não vai ser por muito tempo, é para a gente poder organizar as coisas” aí ela saiu da casa, foi para casa de um irmão dela e eu levei Flora e as crianças para lá. Não podia mesmo ficar muito tempo, duas crianças e ela dentro daquele cubículo, sem sair. O que eu fiz? Fui à casa de uma tia no subúrbio e falei para ela: “Preciso da sua ajuda, Flora está precisando”. Essa minha tia tinha uma casa em Sepetiba, por isso que eu fui lá, e o marido dela era aposentado da polícia. (risos) Aí eu falei: “E como é que a gente faz?”. Aí ela disse: “Ó, não pode passar de um mês. Eu vou te dar a chave, você pode levar para lá e eu vou ficar durante todo o final de semana dizendo que eu não quero ir. Sem mim ele não vai. Mas no final de um mês, eu vou ter que ir, entendeu?”, assim foi feito, levei Flora pra Sepetiba. E nesse mês organizamos e levamos ela para uma fazenda em Friburgo e assim ela conseguiu ser salva, né, dessa confusão. Eu fiquei muito satisfeita de ter conseguido ficar lá, porque se eu não tivesse ficado, a gente não teria sabido nada disso, entendeu? Agora, não tinha outra pessoa ali, não adiantava, tinha que ser eu. Por isso que eu fui, não é por nenhum ato heróico, nem nada disso. É porque as circunstâncias vão te levando, né? Mas fui.
(1:27:44) P1 - E esses todos que estão envolvidos nessa história, eram do PCB na época ou eram de outras organizações?
R - Todos eram do PC... Não! Todos eram do PcdoB, só eu e meu marido do PCB. Todos os outros eram PCdoB. Depois, quando meu cunhado foi para o Dops, quem tava no Dops, lá, junto com ele? Gabeira. O Gabeira tinha levado um tiro, tinha sido operado e tal e tava lá. Conheci o Gabeira no Dops, entendeu?
(1:28:14) P1 - E que... você poderia... só que não constou ainda: qual que é o nome do seu marido?
R - Meu marido?
(1:28:19) P1 - E do seu cunhado.
R - Meu cunhado é Alcir Henrique da Costa, meu marido é Ailton Henrique da Costa. Ailton e eu ficamos ligados ao partido... diretamente ligado ao Partido (PCB) e indiretamente ligado ao Partido, porque depois de 1964, a gente muda a militância um pouco, porque a gente tinha filho, trabalhava, não sei o que, então tem uma certa mudança. Apesar disso, eu ia lá na PE. Tem um livro muito bonito de Alcir, que vocês não conhecem, que se chama “Barão de Mesquita 425 - A Fábrica do Medo”, que é sobre a época da prisão dele. Barão de Mesquita é a sede da PE no Rio de Janeiro. Depois ele foi preso novamente em 1971. E aí, bom, prenderam o meu marido, prenderam meu sogro, tudo por causa da minha cunhada.
(1:29:22) P1 - Por quê?
R - Sim, porque a minha cunhada era uma militante que estavam atrás desde sempre. Ela era de AP, passou pro PCdoB e eles estavam atrás, e a gente tinha conseguido driblar o tempo todo, né? Nessa época... não sei se tá meio confuso, mas nessa época eles moravam em Duque de Caxias, porque quando ele saiu da prisão, daquela prisão que eu tava narrando, eles não podiam morar assim publicamente, todo mundo sabendo o endereço, não sei o que, mas ele tinha que trabalhar, então ele foi trabalhar na Enciclopédia Britânica. O professor Antônio Houaiss empregou ele lá na Enciclopédia e a minha irmã Lúcia alugou uma casa no nome dela em Duque de Caxias para eles, então eles não apareciam como locatários, quem era locatário era ela. E eles moraram lá até a segunda prisão dele, que foi na Britânica. Então, ele voltava do almoço, foi preso no Hall, embaixo, no elevador, teve a ideia de gritar dizendo: “Me chamo Alcir, trabalho na Britânica, tal andar”. Gritou, começou a gritar: “Tô sendo preso, tarara!”. Uma Senhorinha subiu no elevador, mandou o elevador pra Britânica, chegou lá na recepção, falou: “Trabalha aqui um rapaz chamado Alcir?”, “Trabalha”, “Acabou de ser preso. (risos) Tá lá embaixo, acabou de ser preso”. Com isso, nós soubemos imediatamente da prisão, porque aí as pessoas da Britânica ligaram... eu não tinha telefone, eles ligaram para o meu vizinho. Tinha um grande amigo nosso que trabalhava lá, Israel Beloch, aquele que eu falei que fez o trabalho sobre Tenório, ligou pro vizinho; sabia meu endereço e ligou para o vizinho, falou com o vizinho um recado. O vizinho (risos) tocou na minha porta, eu abri e ele falou assim: “Ligaram... seu cunhado foi preso na Avenida Rio Branco - sei lá -, 492 - não lembro o nome”. Eu olhei para ele e falei: “Como?”, ele repetiu. Eu recebi esse recado: ”Seu cunhado foi preso na Avenida Rio Branco”, eu voltei... desci, entrei e falei pro Ailton: “Meu cunhado foi preso”... não! Mentira, desculpa. “Meu cunhado sofreu um acidente - não tinha nada de prisão, nós é... - sofreu um acidente na Avenida Rio Branco”. Eu falei: “Meu cunhado sofreu um acidente na Rio Branco?”. Aí meu marido, Ailton, disse rapidamente: “Alcir foi preso. Esse aí é o endereço da Britânica”. Ele sacou que era uma mensagem pro vizinho não saber que era prisão, veio com essa história de acidente. Aí saímos imediatamente atrás. Ele foi pra Marinha e eu fui para a PE. Pra localizar, porque a gente não sabia quem prendeu, né? E tinha sido preso na PE, novamente.
(1:32:50) P1 - Se não tivesse tido essa informação, provavelmente ele tinha sumido...
R - Não sei! Mas foi assim, na hora do almoço, a gente tava almoçando em casa, veio essa notícia, porque ele tinha sido preso na hora do almoço. Veio essa notícia, a gente saiu na mesma hora, dividimos. Ele falou: “Eu vou para Marinha, eu vou na Aeronáutica, você vai no Exército”. Cheguei no exército falando: “Tão... prenderam ele aqui”. O cara: “Não”, “Prenderam que eu sei!”, porque cada lugar que a gente chegava a gente dizia que sabia, que tinha certeza. Não tinha certeza nenhuma. (Meu brinco tá caindo, né?) Então, aí eu fui imediatamente pra PE, mas a gente afirmava também, chegou na Marinha dizendo: “Eu sei que tá aqui, que tive uma informação, não sei que tal”, a gente inventava que teve informação. E apareceu esse Demiurgo, né, e disse: “Você aqui de novo?”. Eu falei assim: “Eu quero saber do meu cunhado, não sei o quê”. Ele disse: “Não tá aqui”. Eu falei: “Tá! Eu sei que tá!”. Bom, finalmente, acabaram confessando que estava lá, mas que Ailton tava sendo muito bem tratado e que dependia do ministro... como é? Do General, do comandante lá no Ministério do Trabalho... no Ministério da Guerra. Aí eu fui para o Ministério da Guerra, fui pedir uma audiência com um comandante, [Gal. Fiúza], e fui recebida, muito bem recebida. Durante duas horas, eu aturei a conversa daquele senhor que tinha uma estante com Marx, Gramsci e outros, e que me disse a seguinte frase: “Eu quero a sua cunhada”. Eu falei: “Mas eu não sei da minha cunhada”. Ele: “Bom, se ela te procurar, você diz a ela o seguinte: que ela venha aqui falar comigo. Eu vou conversar, eu só quero conversar com ela. Aí eu digo a ela para ela se entregar para a gente poder fazer um depoimento oficial. E dou 24 horas para ela decidir - se em 24 horas ela não voltar, eu faço, peço a prisão preventiva dela”. Falei: “Mas eu não sei onde que eu vou encontrar a minha cunhada. Como é que... o senhor tá me dando uma tarefa. Se eu encontrar, eu vou dar o seu recado, mas não sei dela”, “Não, mas dê meu recado, eu garanto que em 24 horas ela não será perseguida. Depois de 24 horas, se ela não voltar, eu peço a prisão preventiva”. Falei: “Tá bem”. Saí, fiquei sentada um pouquinho na sala de espera, tomando fôlego depois daquelas duas horas. Tomei cafezinho, tudo, com aquele moço. Aí o Demiurgo apareceu, tava lá, olhou e falou: “E aí?”, “Eu falei com seu chefe”, “E o que que ele disse?”, “Ele me disse isso assim, que a Flora pode...”, “Se ele tá dizendo que garante, é porque ele garante. Eu não garantiria”, foi o (risos) recado que ele me mandou logo de cara. Ele ficou meu amigo! Meu cunhado tinha a tese de que ele tinha se apaixonado por mim, sabe, de... (risos) Eu dizia: “Não é possível!”. Eu falei: “Não, eu chego lá e trato ele direito e ele me trata direito”., Nessa hora tava o pessoal da escola de samba de carnaval, da Liga das escolas de samba, negociando os sambas do carnaval lá no ministério e eu fiquei sentada para ouvir a negociação que eles estavam fazendo, o que podia, o que não podia sair no samba, não sei o quê.
(1:36:27) P1 - Como é que era isso?
R - Ah, o pessoal da Liga lá discutindo com o militar os sambas das escolas que... as letras tais que podiam falar nas certas coisas, então eu fiquei ouvindo. Quer dizer, negociavam mesmo.
(1:36:54) P1 - Palavras, coisas assim?
R - Palavras, temas. Qual é o tema, se pode, se você não pode. Enfim, eu saí de lá e a gente foi tentar logo. Sim, aindaí nesse dia o Gal Fiúzza me diz a seguinte pérola: “Garanto que o seu cunhado está sendo muito bem tratado. Ele não vai ter nenhuma tortura física, só psicológica. (risos) A gente quer que ele seja desestruturado. Quando ele se desestruturar, ele vai falar. Quando a pessoa se desestrutura, ela fala”, falou assim na minha cara. E eu tendo que ver e balançar a cabeça: “Sim, sim”. (risos) E de fato ele não tinha sido torturado fisicamente, ele tinha ficado preso num quarto com ar condicionado, nu, sem comida, sem água, sem nada e, de vez em quando, entrava uma voz tentando negociar: “Quer um copo d'água? Quer um cigarro? Quer não sei o quê? Você pode ajudar e pode ganhar isso, pode fazer” e assim foram dez dias. Aí a gente conseguiu negociar, ele saiu. Porque aí eu falei para o cara: “Mas, olha só, como é que... por que você tá prendendo ele, se vocês querem ela?”, “Não, porque ele vai falar”, “Ele não vai saber. Não adianta, a essa altura ninguém sabe dela” aí eles acabaram soltando, mas com o compromisso de se apresentar no Mistério toda segunda-feira. E nesse intervalo de uma segunda-feira para outra, a gente tirou ele do Brasil. Aí ele saiu com a minha cunhada e tal, e pronto.
(1:38:58) P1 - Vocês sabiam, no fim, onde ela tava?
R - Sabiamos, sabiamos. Tava difícil, minha irmã tinha alugado a casa no nome dela.
(1:39:09) P1 - E ela sabia que tava...
R - Eu não sabia o endereço, entendeu, porque eu nunca quis saber o endereço. Mas eu sabia que a minha irmã sabia, porque a minha irmã que alugou. E a minha irmã não tinha participação política nenhuma.
(1:39:23) P1 - E agora, ela, a Flora, sabia que o Ailton tava...
R - Que o Alcir tava preso? Sabia. Foi avisada imediatamente. Não, enfim, são coisas... aí quando eles saíram... então, agora eu vou contar uma historinha também levinha: (risos) eles saíram, foram para o Chile. Eles saíram pelo sul, né? Eu não vou contar a saída deles, porque senão a gente não vai ter como saíram, né? Tem, tá contado, no livro tá contado. E foram inicialmente para o Chile. Isso é novembro de 1972. Eles foram para o Chile e perceberam logo que a situação no Chile tava complicada - você vê que o golpe no Chile foi em 1973 - e resolveram sair do Chile, não ficar no Chile. Foram para o Peru. Eu fui ao Peru... as crianças ficaram com a gente, eles saíram sem as crianças. Eram duas crianças, uma tinha oito anos, acho que era isso, e o outro seis, era mais ou menos da idade da minha filha nessa época. Ele só. A menina tava com oito anos, eu acho. E aí nós ficamos com as crianças e tal, foram e se instalaram e eu fui ao Peru levar dinheiro para eles, que o meu sogro mandou, e levar uma série de informações. Mas, enfim, eu também falei como tava a situação, conversei com eles e tal. E eles queriam muito que as crianças fossem. Eles resolveram que iam ficar lá no Peru e queriam muito que as crianças fossem e tal. Eu falei: “Bom, vamos ver”, as crianças não tinham passaporte, as crianças não tinham documento, que eu vou fazer? Eu falei: “Vamos tentar”. Voltei. Quando eu cheguei em casa, conversei com o Ailton: “A gente tem que dar um jeito de tirar essas crianças, mas as crianças vão ter que sair legalmente, não vão sair clandestinos. Eu vou no juizado de menores” e fui no juizado de menores. Alípio Cavallieri era o nome do juiz. Pedi uma audiência - eu fui sozinha - e contei a história: “Meus cunhados foram num congresso... foram convidados para fazer um trabalho, as crianças estão comigo e agora eles pedem para mandar as crianças. Como é que eu faço? Não sei o que, vim aqui pro senhor me ajudar. Aí ele falou assim: “Cadê a carta que eles pedem para mandar as crianças?”. Eu falei: “Eu não trouxe, eu não sabia que o senhor ia me pedir isso”. Falou assim: “Então amanhã... como é que essas crianças vão?”, “A minha irmã, que tá disposta a ir, levar, não sei o quê”, “Então amanhã você vem com a carta, com as crianças e com a sua irmã”. Falei: “Tá bem”. Fui para casa, escrevi uma carta enorme de três páginas... eu tinha uns papéis assinados por eles, em branco. Escrevi, escrevi, contei um monte de história do congresso, história de como é que (risos) tava lá, pintei o diabo. Aí, no final, eu boto: “Por causa disso tudo, a gente queria que trouxessem as crianças, não sei o que, vê como você pode resolver”e eles assinavam, os dois. Botei aquilo dentro de um envelope e falei: “Bom, tenho que chegar lá e dizer que o envelope eu rasguei”, né, porque como é que eu ia com uma carta sem envelope. E lá fui eu com as crianças e com a minha irmã e com a carta. Quando cheguei, Cavallieri me diz assim: “Ah, essas são as crianças? Onde que vocês vão?”. Aí as crianças: “Ai quero ver meu pai e minha mãe!”, ”Onde que eles estão?”, “Tão no Peru”, “Com quem? Quem é essa aí?”, “Ah, essa é a tia Lúcia”, “Ah, vocês vão com ela? E cadê a carta?” aí eu peguei a carta. Falei: “O senhor desculpa, o envelope eu tinha jogado fora porque eu não sabia que eu ia precisar, não sei o quê”. Aí ele pegou a carta e tinha três páginas. Aí ele disse assim: “Não quero ler assuntos familiares, mostra só o parágrafo onde tá escrito que é para mandar as crianças” aí eu dobrei tudo (risos) e ele parado. Ele olhou aquilo: “Muito bem, pode guardar” e paft deu o passaporte das crianças e autorização e não sei o que pras crianças viajarem. Elas viajaram. Dois anos depois, uma amiga minha tava na França e a menina dela também tinha que ir para lá; e o marido também tinha conseguido sair do Brasil e tal, e a menininha dela tava com a avó aqui. Eu vim ao Brasil. Morava já na Europa, mas vim ao Brasil. Aí ela falou com a avó... com a mãe, né, dela: “Fala com Dora, que ela (risos) tem o caminho para você arranjar para trazer a menina”. Ela falou comigo, eu falei: “Olha, vamos lá”. Chegou lá, quando ele abre a porta e me vê com ela e com a neta, ele diz assim: “Você outra vez?”. (risos) Aí eu: “Não! Eu não sabia que era o senhor. Olha, eu falei para ela: ‘Se a senhora tá com problema, vamos lá. Porque se for o Dr. Cavallieri, (risos) ele vai resolver’, entendeu? Eu não sabia que era o senhor. Imagina que coincidência, não sei o quê” e de fato ele resolveu e a menina viajou. Mas eu não sabia que ele ia me reconhecer assim, entendeu, porque já tinha uns dois anos. E ele: “Ah, você de novo” pronto, vai me identificar como o quê? Transportando criança para fora do Brasil. Eu tive que fazer um show, né? “Não, eu sabia que o senhor ia resolver, não sei o que e tal”. São historinhas.
(1:45:31) P1 - E como é que foi para, nesse meio tempo, você falou tanto do seu cunhado, da sua cunhada, e para você, a sua família, as suas filhas, chegou uma hora que eles cercaram vocês também? Você falou que seu marido foi preso, como é que foi?
R - Não, meu marido foi preso por causa do irmão. Na verdade, ele foi preso de manhã, ele tava no trabalho, e o meu sogro foi preso à noite, em casa. A minha sogra chegou lá na minha casa e falou avisando, de madrugadinha ela tocou a campainha lá, que o meu sogro tinha sido preso, que estavam atrás de Alcir, não sei o quê. Foi aí que eu saí de casa. Eu tava doente, então ele foi trabalhar e eu falei para ele mandar recado para uma amiga minha pelo telefone, falei: “Liga para ela, diz para vir para cá, que eu tô precisando dela”, porque eu não sabia. Ela chegou lá, e eu falei: “Olha, pode ser que a polícia venha aqui, porque já prendeu o meu sogro”. Ainda não tinha prendido Ailton. Ela: “Não, tudo bem e tal”. Eu falei: “Olha, eu vou sair de casa, queria que você me ajudasse, não vou ficar aqui. Eu vou passar lá no trabalho do meu marido, avisar para ele que eu pensei, pensei, pensei, e vou sair de casa”. Quando eu cheguei lá, ele já tinha sido preso. Aí eu falei: “Bom, então agora vou direto na PE”. Quando eu cheguei na PE, eu andava de quatro, entendeu, porque eu tinha tido uma cirurgia em que eu tomei uma anestesia raquidiana, que tinha feito um efeito, subiu. Foi uma chatice que eu fiquei alterada. Durante um mês, tinha que ficar deitada. Não podia andar, não podia levantar. E eu fui de quatro porque não dava para ficar em pé direito. Entrei lá e foi um sucesso, né, chegar uma mulher de quatro, andando assim na PE, foi o maior sucesso. Aí o cara veio e o Ailton já tinha sido solto, entendeu? Aí já tinha... ele foi preso assim, só. E meu sogro também já tinha sido solto, mas Alcir tava lá. Então toda essa discussão ocorreu, ele foi preso aí. Isso se refere a primeira prisão de Alcir. ... Mas retroagindo a 64, o Ailton tinha sido expulso da PUC em 1962, porque ele estava pichando “Viva o quadragésimo aniversário do Partido Comunista Brasileiro” eles estavam, ele e o Alcir, o irmão, e outras pessoas, pichando na cidade e foram presos, e foram expulsos da PUC. Eles eram, todos os dois, alunos da PUC. Foram expulsos da PUC. E aí nós fizemos um movimento muito grande para que eles fossem readmitidos numa universidade pública. Alcir, conseguimos fazer com que ele entrasse na Filosofia, porque ele era da sociologia. Mas o Ailton era da engenharia na PUC, e a Nacional de Engenharia não conseguiu fazer ele entrar na faculdade. E ele tinha feito um concurso pra Petrobras, tinha passado, mas tinha que ter o diploma. Faltavam duas cadeiras para ele prestar a prova e não conseguiu. Aí foi trabalhar num escritório de consultoria, né? Isso tudo, 1962, 1963. Ele começou a trabalhar no escritório de consultoria e tentando resolver a vida profissional, quer dizer, a Vida Universitária, né, diploma e tal. Veio 1964, ele trabalhava nessa empresa, nessa consultoria. Aí, o que que acontece? Ele tava trabalhando... a Marinha tinha, sabe, aquele rádio goniômetro, que é um aparelho que mede onde tem aparelho de rádio transmitindo. Ele trabalhava num escritório de pessoas de esquerda, um dos caras inclusive tinha sido do Partido Comunista e eles eram meio que assessores do Rui Braga... do Ney Braga. Ney Braga era o governador do Paraná, que estava no golpe, né, mas ele era um civil. [Na verdade, ele tinha sido militar; estava reformado.] Ele estava, ele apoiou que nem outros civis apoiaram, mas ele não era um facínora, um ditador, e ele queria fazer um movimento, um desenvolvimento do Estado do Paraná, ele era governador, e essa equipe estava ajudando, então tinha uma comunicação com o Paraná. Um sábado à tarde - meu marido ia muito para o escritório trabalhar sábado, domingo; trabalhava sempre -, ele estava trabalhando lá. Chamava SPL essa empresa, Serviço de Planejamento, e a Marinha bateu, bateu lá e disse: “Tem um rádio aqui”. O rádio tava desligado, não estava em funcionamento.. Ele tava sozinho no escritório. “Tem um rádio aqui”. E falou: “Não sei disso. Eu não sou, eu sou um funcionário. Não sou daqui, não sei o quê”. Você vê que 1964 ainda não era tão truculência, porque eles não revistaram. Disseram: “Vamos voltar segunda-feira”. Foram embora, ele saiu do escritório. Ele esperou ficar mais tarde, saiu, foi à casa dos chefes e falou: “Olha só, a Marinha foi lá para pegar o rádio”. Aí eles foram para o escritório e desmontaram o rádio todo, tiraram o rádio de lá, não sei que tal, para quando na segunda-feira a polícia chegar, não ter rádio nenhum. Mas isso fez com que o chefe dele começasse a ficar preocupado com a presença dele, porque se eles começassem a especular o escritório, iam descobrir que tinha ali um sujeito que tinha sido expulso da PUC por estar pichando (risos) “Viva o quadragésimo aniversário do partido comunista”. Isso [foi] em 1962, quando ele tava pichando era os 40 anos. Foi fundado em 1922, né? Aí começaram a querer resolver, mas não queriam mandar ele embora. Era um pessoal legal, de esquerda, mas começaram a se sentir ameaçados, que o escritório poderia sofrer com isso. Eles, por causa da assessoria ao Ney Braga, tinham uma sede do escritório em Curitiba. E aí começaram a propor para o Ailton a se transferir para Curitiba. Eu, grávida, né? Um dia eu vou lá... e o Ailton dizia: “Eu não vou convencer a minha mulher de ir para Curitiba nem morto, porque ela não vai querer ir para Curitiba, não sei o quê”, eu não ia querer mesmo. Um dia eu fui lá encontrar com ele, ele já tinha saído. Toquei a campainha lá na empresa, o chefão abriu a porta. Quando ele me viu grávida, tava gravidíssima nessa época, né? Aí ele: “Ah, minha senhora, não sei o quê”. E foi muito engraçado que eu olhei para ele e falei: “Eu te conheço, você foi colega da minha mãe, você já foi na minha casa em Caxias”. Aí pronto, fez-se, estabeleceu-se a ligação total. Era mesmo, ele tinha ido. Chamava-se Zacarias Sá Carvalho e ele tinha se formado lá, tinha sido colega da minha mãe e uma das vezes que minha mãe fazia aquelas reuniões amplas em casa, ele foi e eu me lembro dele. Me lembrei dele. Bom, aí ele me fez sentar e me convenceu a ir para Curitiba: as vantagens, o salário que eles iam pagar, a gente ia sair do olho do furacão - isso era 1964 - até a situação se estabilizar, que quando se estabilizasse, a gente voltaria e não sei quê. E bom, ele me convenceu que, de fato, dada as circunstâncias, era uma boa. Fui embora para casa, quando eu cheguei em casa, falei pro Ailton: “Vamos para Curitiba?”. (risos) E ele: “Ahn?”, (risos) “Eu acabei de falar longamente com o Zacarias, ele me convenceu”. E assim, nós fomos para Curitiba, para sair do furacão no Rio de Janeiro. Fomos morar em Curitiba, trabalhando, ele trabalhando na empresa. Então, a minha filha nasceu em Curitiba.
(1:55:01) P1 - Sua primeira filha?
R - A minha pri... Todas as duas. Eu morei lá, todas as grandes alegrias da vida foram feitas em Curitiba. Então nasceram em Curitiba. Nasceu em Curitiba dia 23 de Julho, quando... a gente tava sempre programando ir pro Rio de Janeiro passar Natal com a família, não sei o quê. Um frio, Curitiba! Eu não tava acostumada com aquilo e tal. Mas, enfim, eu era uma criança, eu tinha 21 anos, tinha uma de onze que tava comigo (risos) lá, entendeu, e tinha um bebê... não, a de onze veio depois, nessa época nem tava lá ainda, mas veio depois. Tinha um bebê, então era uma vida assim: não tinha amigos, não tinha ninguém, né? Pro Partido isso foi muito bom, porque nós passamos a ser pessoas que quando eles precisavam ir lá - as pessoas que a gente conhecia, né, foram vários -, ficavam hospedadas, não sei o que, numa casa que ninguém conhecia em Curitiba. Ledo engano! Um belo dia, em dezembro, Cristina já com quase seis meses, o Ailton sai do almoço - ele ia almoçar todos os dias em casa -, eu sozinha com o bebê em casa, toca a campainha e qual não é minha surpresa? Que o sujeito... dois homens na minha porta e dizem assim: “Dr. Zacarias pediu para senhora nos acompanhar”. Zacarias era o nome do chefe do Ailton, (risos) conforme vocês viram. E eu assim: “Meu marido acabou de sair daqui, não falou nada do Doutor Zacarias”. Até cair a ficha que era Zacarias delegado e não aquele Zacarias, chefe dele, e aqueles dois eram dois policiais que estavam me prendendo em Curitiba. Aí eu falei: “Eu não posso ir, tenho um bebê! Como é que eu vou? Só se eu levar”, “Não, não pode levar”, “Então não vou”. Aí começou a discussão e eles acabaram dizendo pra eu levar, porque eles tinham ordem de me levar. Bom, aí eu levei um tempão, arrumei um monte de fraldas, mamadeira, não sei o que, e lá saí eu com aquele moisés (nome dado ao saco especial para carregar criança), né, com a minha filha.
(1:57:27) P1 - Eles esperaram na porta ou dentro?
R - Na porta! Eu não deixei entrar, não. Falei: “Ah, não, vocês esperem por favor”, tive que deixar a porta aberta. Desci com a criança: “Muito bem”. Quando cheguei... a Cristina era uma criança muito simpática, bebê de seis meses. Quando eu cheguei na Delegacia... eu com 21 anos, com o cabelo aqui assim, sabe, aquela pessoa absolutamente (risos) inofensiva - Chegamos, né? - e um bebê no colo, o delegado ficou enlouquecido: o que ele ia fazer comigo? Ele começou a dizer: “Eu tenho que mandar você para o Rio de Janeiro, eu vou mandar você para o Rio de Janeiro”. Eu falei: “Olha só, eu não vou para o Rio de Janeiro com seus, com esses seus policiais”, eu tô te dizendo que eu era maluca. Falei: “Eu não vou com esses, porque eu não vou pela estrada com esses homens. Você vai me mandar, então me manda de avião”. Aí começou uma discussão, aí ele liga para o Rio, volta para lá. E aí disse assim: “Você vai ficar presa lá em casa”, “Não!”, “Não vou deixar você aqui na Delegacia, você vai ficar presa lá em casa”. Eu falei: “Eu não vou mesmo! Eu vou ficar aqui na delegacia, mas na sua casa eu não vou. Não sei quem é o Senhor”. Aí ele: “Mas estou lhe dizendo... toda proteção, tô querendo lhe proteger”. Eu falei: “Beleza, mas eu não posso confiar, não quero saber. Eu fico aqui com a minha filha, não se preocupe”. Aí ele foi para lá e voltou, voltou. Ele voltou e disse assim: “Eu quero te fazer uma proposta: você vai ficar presa em casa, prisão domiciliar, segunda-feira você se apresenta e eu vou falar com o Coronel lá do Rio, porque o Coronel Montezuma, foi ele que me deu a ordem de te prender e vou combinar com ele como é que você vai”, porque era o inquérito na Faculdade Nacional de Filosofia, que tinha começado a abrir os arquivos e acharam um monte de coisa, acharam meu nome, não sei que lá, por isso que eles tinham olhado atrás. Falei: “Tá bem”. Aí ele falou: “Eu vou mandar o motorista lhe levar em casa”. Eu morava na Rua 15 de Novembro e o trabalho do Ailton era na Rua 15 de Novembro, aí quando eu entrei num carro lá com a menina, com a Cristina, ele falou: “Leva essa moça na casa dela”, aí não falou o endereço. Quando bateu a porta do carro, eu falei pro motorista: “É Rua 15, número tal”, dei o número do escritório. Bom, isso já era seis, sete horas, eu fiquei horas lá. E cheguei sete horas da noite no escritório, com a filha, dizendo: “Estou vindo da delegacia”, ninguém sabia. Veja bem, eu fui presa sozinha com a criança, quando o marido chegasse em casa, não tinha mulher nem filha, (risos), entendeu? Ele não sabia. Escafedeu-se. Aí foi aquela confusão no escritório. Um dos técnicos, grande economista Luis Carlos Leme - [Esse moço se suicidou.] -, muito legal, ele era uma pessoa ótima, mas eu acho que ele teve, tava muito deprimido, sei lá. Ele era um economista, um técnico conhecido e tal. Aí ele tinha, ele ia voltar para o Rio, ele tinha uma passagem de avião. Naquela época podia transferir, hoje não pode, mas ele passou a passagem para mim e eu embarquei de avião dali mesmo com a minha filha e ele foi de ônibus com meu marido, pegaram o ônibus aquela noite mesmo, na sexta-feira, chegaram de manhã no sábado. Eu cheguei de noite, né, fui direto para casa da minha mãe e sábado de manhã o Ailton chegou. Segunda-feira, eu me apresentei diretamente ao Montezuma e não lá na Delegacia.
(2:01:49) P1 - Em Curitiba?
R – Não, no Rio de Janeiro. Me apresentei para fazer meu depoimento. Aí fiquei... o Ailton foi comigo, mas não podia participar, ele ficou fora, embaixo, esperando. Foi no MEC - Ministério da Educação e Cultura, que era o local onde eram feitos os depoimentos. Foram umas cinco horas mais ou menos, e eu fiquei, portanto, indiciada no no Inquérito da Filosofia. Bom, voltamos depois pra casa, cumpri, tal, nunca mais falei com aquele (risos) delegado, nunca mais quis saber. Algum tempo depois, eu diria que um ano depois, dois anos depois quase, já com o nascimento da minha segunda filha, que é a Tânia... Essa, na casa de quem eu tô aqui. O SNI me barrou num concurso que eu fiz para a Caixa Econômica. Na hora de tomar posse, eu não podia tomar posse. Aí o sujeito, diretor lá na Caixa Econômica em Curitiba, me fez uma sugestão: “Vá ao Secretário de Segurança e peça silêncio”, sabia que existia isso? Eu fui pedir uma audiência ao Secretário de Segurança para que fosse permitido silêncio, para eu justificar pedido de silêncio.
(2:03:14) P1 - O que significa isso?
R - Ele dizia que sabe que o SNI me pediu, mas que ele faz silêncio desse assunto e eu posso tomar posse, entendeu? É um ato legal isso, existe, é jurídico. Eu não sei te explicar mais. Eu sei que tinham me orientado e eu fui. Fiquei lá esperando, tal, chegou a minha vez de ser atendida. O secretário era um homem jovem inclusive. Quando eu entro na sala do secretário, quem é o chefe do gabinete dele? Doutor Zacarias! Quando ele (risos) me viu, ele: “Você!”. (risos) Eu falei: “Eu fui direto para o Rio, me apresentei ao Montezuma, por isso que o senhor não ouviu mais falar de mim” e o Secretário olhando como quem diz “pronto, que é isso?”, né? Aí ele falou com o Secretário lá, não sei o que lá, e eu falei: “Vim aqui porque eu fiz um concurso para Caixa Econômica, passei, mas não posso tomar posse porque eu tô impedida, que o SNI não deixou”. Aí o cara, conversaram lá, e o delegado agiu ao meu (risos) favor, entendeu? E disse que ele podia fazer silêncio, que eu era uma pessoa séria, (risos) entendeu? Aí fez silêncio e eu assumi, fui funcionária da Caixa Econômica Federal lá em Curitiba.
(2:04:37) P1 - E vocês voltaram quando para o Rio?
R - Já vou falar, mas antes eu vou te contar que duas vezes eu fui pedir emprego em Curitiba, uma das vezes foi na, um concurso que tinha na Codepar, que era a Companhia de Desenvolvimento do Paraná. Eu tava grávida da minha segunda filha. Tinha uma fila para inscrição, era para fazer uma prova, um concurso, tal. Na hora que eu cheguei para ser atendida, com aquele barrigão - minha filha nasceu com quatro quilos e 750 gramas, você imagina o tamanho que eu tava, já tava quase perto de nascer -, a mocinha que tava atendendo vira e diz assim: “Desculpe, mas nós não aceitamos pessoas casadas”. Aí eu olhei para ela e falei: “Quem falou para você que eu sou casada? Não sou casada, sou mãe solteira”, ela ficou tão desesperada. E fiquei irritadíssima, porque eu falei: “Olha só - depois eu falei -, por acaso eu sou casada, mas que história é essa de que não aceita pessoas casadas?”. Isso não aconteceria hoje, né, mas isso eu tô falando de 1966. Olha como é que avançamos, né? Bom, aí eu fiquei com essa ‘peste’, não podia mesmo porque eu era casada, não podia me inscrever. Aí abriu um concurso para estatístico da Hermes Macedo. Hermes Macedo é uma loja de ‘negócio’ de pneu, de não sei o que, de carro, não sei se vocês conhecem, lá de Curitiba. Chamava Hermes Macedo, nem sei se ela existe. Fiz a prova, era toda de código, você não identificava as pessoas. Aí tirei primeiro lugar, recebi um telegrama elogioso, não sei o que, para eu me apresentar. Quando eu me apresentei, que viram que era mulher, não aceitaram, disseram que não estavam empregando mulheres. Pensaram que era homem. Até para tirar primeiro lugar, devia ser homem mesmo, né, porque mulher não iria (risos) tirar em prova de estatística. Tirei, me classifiquei e não levei, porque aí era uma empresa particular, não era nem serviço público. Então, aí fiquei em Curitiba trabalhando na Caixa Econômica. Me formei, voltei a universidade, fiz de novo vestibular e me formei em 1968, era o final do curso, em economia. Aí eu me formei em economia e resolvemos voltar para o Rio, já tava de bom tamanho, mas justamente tava aquela confusão, não sei o que e tal, mas a gente já não tava mais aguentando ficar em Curitiba, as filhas crescendo e a família aqui, no Rio. Resolvemos.... Viemos ao Rio antes, compramos um apartamentinho, desses financiado pelo BNH, lá em Niterói, que era onde a gente, onde foi possível comprar, e: “Vamos mudar!”. Ele trabalhava, né, e eu cuidei da mudança. No dia 13 de dezembro de 1968 a minha mudança saiu. Eu, alienadíssima, fazendo mudança, mudanças, o homem da mudança dentro de casa, nós tínhamos combinado de sair para jantar para comemorar o meu aniversário, (risos) que era nesse dia. Aí saiu a mudança toda, tomei banho, não sei que lá, me chega o Ailton correndo correndo: “Vamos, vamos, corre! Vamos sair, vamos sair!”. Eu fiquei: “O quê? Pera aí, o que é?”, “Não, eu explico depois, eu explico depois”. Saí trotando atrás porque ele queria, o banco tinha que fechar, todo o nosso dinheiro tinha que sair do banco. Eu falei: “Mas o que que tá acontecendo?”. Tirou o dinheiro, botou tudo, sentou e falou: “AI-5. Vai ter, você vai ver hoje o AI-5”. Eu: “Ahn?”, “Vai ser a leitura do AI-5”, tinha tido essa informação e vai fechar banco, vai fechar não sei o quê. Aí a gente não tinha mais casa em Curitiba, (risos) a mudança já tinha saído, as filhas já estavam no Rio com a minha mãe, tiramos meu dinheiro do banco. E eu falei: “E agora?”, aí não tinha clima para jantar fora, né? Fomos para casa de um amigo, eu me lembro, comer macarrão ao alho e óleo - jamais esquecerei daquele macarrão -, ligado no rádio ouvindo a leitura do AI-5. Era a hora de não voltar pro Rio, (risos) mas a gente já tava tudo pronto. Voltamos em 1968, fomos morar em Niterói. Depois saímos de Niterói, aí foi outro lance. O que você quer perguntar? Porque eu não sei.. eu sei por onde eu vou, mas... (risos)
(2:09:34) P1 - Não, é justamente se puder dar um panorama de como é que tava, então, os seus colegas. Você já falou bastante sobre isso, mas vocês voltaram para o Rio então no, nas portas do AI-5, como é que tavam as organizações? Vocês ainda conversavam com todo mundo do Rio?
R - Sim, sim, com algumas pessoas sim. Quer dizer, com os amigos, né? Não, não, a gente não estava mais militando naquilo que a gente pode chamar, em cédula. Não, não era mais. A gente tava na retaguarda sim.
(2:10:11) P1 - E os companheiros eram mais do PCB, PCdoB?
R - Mais do PCB. Alguns eram, tavam que nem nós, também assim na retaguarda. E, bom, meu cunhado era do PCdoB, mas foi a partir daí, depois ele foi preso em 1969, depois em 1971. E é isso, na verdade eu tinha várias pessoas que a gente frequentava e que nos frequentavam. A partir daí... depois a gente mudou para o Rio e a nossa casa era uma casa que era frequentada pelas pessoas, algumas pessoas da clandestinidade. Por quê? Porque elas não podiam ir a qualquer lugar, então sabiam que sexta-feira à noite pode chegar que nós já chegamos do trabalho, estamos em casa e vamos passar o fim de semana e enfim. Então algumas pessoas sabiam: “Ah, vamos lá na casa de Dora e Ailton”. Se não tinha onde ir, vai na casa (risos) de Dora e Ailton. Até se encontravam algumas lá, né, ficou sendo uma casa assim meio, digamos, frequentável, mas não era uma coisa, não era mais, a gente não tinha... o Ailton foi trabalhar e eu fui fazer um curso na Fundação Getúlio Vargas, depois, em 1971, eu entrei no mestrado na PUC, fiz um mestrado, que acabei que não terminei porque - aí vai chegar no que você tá muito interessado - eu tive a meningite. Eu não pude terminar o mestrado. Terminei depois, mas nessa época... entrei em 1971, aí tinha três anos de crédito de não sei que lá e depois a dissertação, eu fiz os créditos, mas antes de fazer a dissertação, eu tive meningite. E aí eu só vou retomar a dissertação em 1977, mas já no exterior.
(2:12:15) P1 - O mestrado em economia também?
R - Não! Eu não suporto essa área de economia. (risos) Não, eu gosto, mas eu gosto de trabalhar com a economia social. Eu trabalho com economia política e educação. Eu fui fazer um curso da Fundação Getúlio Vargas de Planejamento Educacional, era um curso meio tecnocrático e tal, mas eu enfrentei, e aí fui fazer o mestrado em educação e fiz uma dissertação trabalhando com a ideia de que todo mundo diz que a educação não é planejada, é uma bagunça, isso e isso, e eu, mostrando que não, que é verdade que a lei, as leis de educação são tão restritivas e tão normativas que obviamente aquele é um planejamento... não é um planejamento: “Custa isso, leva aquilo”. Não é isso, mas é uma coisa que te diz, controla, é controlado nacionalmente pelo MEC: as escolas particulares tem que ter um currículo, tem que ter uma carga horária, tem que ter... É uma forma de planejar.
(2:13:27) P1 - Mas antes de você falar de você contraído essa doença, é justamente aquela questão: havia essa notícia? Vocês sabiam disso, que havia uma epidemia?
R - Não, olha só, a meningite começou a grassar, a crescer e a população, pelo menos aquela que via televisão, que lia jornal, porque nem todo mundo, né, sabia disso. Esse pessoal começou a ser informado de que existia uma epidemia de meningite. Criança de escola que teve meningite, a escola fechava e você ficava sabendo, os teus filhos não podiam ir para escola, você ficava sabendo que teve um caso de meningite e assim foi crescendo. A televisão dava, o Jornal Nacional informava, que nem a gente hoje vê o negócio de Covid, de tantas pessoas contaminadas, tantos casos, não sei o quê. Mas, vários casos não foram computados, tal como Covid, vários casos não foram computados, vários casos não chegavam... Quem era que centralizava isso? Era o Ministério da Saúde, era o governo federal. Então saíam os dados que eram permitidos sair. Eu me lembro na época o nosso médico dizer isso: “Os médicos não estão sabendo a quantos anda a questão da meningite. A gente não está sabendo direito o que tá acontecendo com a meningite, a gente só sabe assim: uma pessoa teve, uma pessoa morreu, e a gente não sabe o que é que teve”. Eu me lembro que quando eu tive a meningite foi uma coisa muito interessante, porque a gente, nós fomos passar um 1° de Maio... aí tô eu e as crianças em Friburgo e eu voltei dirigindo. Quando eu cheguei, eu tava com muita dor nas costas e eu comecei a dizer: “Nossa, mas eu acho que estou muito velha! Uma estradinha de três horas no máximo, eu já tô toda doída”, mas a coisa foi passando. Ailton tinha um trabalho em Recife, ele tinha que ir para Recife e eu tava dando aula nessa época na Uerj, era uma professora contratada da Uerj. Nunca fui dos quadros da Uerj, quadro mesmo eu fui da Federal Fluminense, que eu fiz concurso e tal, mas da Uerj não. Mas eu era professora contratada. Comecei a dar aula e começou a me dar dor de pescoço e eu falava para os alunos assim: “Eu acho que eu tô com torcicolo”, sabe assim? A negação que você mesmo fazia da própria doença. Por quê? Porque passavam pra você a imagem de que era uma doença que pegava os pobres, que pegava o pessoal da periferia, que pegava... sabe? E eu não acreditava que eu pudesse ter meningite, óbvio, então eu continuava achando: “Tô com torcicolo, tô com dor nas costas”. Até que eu fiz um almoço na minha casa e convidei três pessoas. Eu tava sozinha, Ailton tava em Recife, eu tava com as crianças, num dia de semana as crianças foram para escola e eu fiz um peixe na minha casa. E nesse dia, antes até, anterior, a minha filha tava vendo jornal nacional, a pequenininha, que na época era pequenininha, que hoje é grandinha, ela falou assim: “Mãe, tem meningite, não sei o sei o quê”. Eu disse: “Desliga essa porcaria, aqui ninguém vai ter meningite não!”, (risos) porque eu não queria que elas ficassem tensas. Eu falei: “Não, desliga! Ninguém vai ter meningite aqui. Vamos dormir, vamos não sei o quê”. Bom, dia seguinte, as pessoas foram almoçar lá em casa, eu fiz um peixe. À noite, eu tinha uma reunião de trabalho no Colégio Souza Leão. Quando eu cheguei na reunião, eu tive uma sensação assim “eu não estou aqui”, sabe, “eu tô fora do meu corpo”. É uma sensação estranhíssima. Eu olhava as pessoas, as pessoas falavam, eu tava: “O que é isso?”, sabe, que nem essa cena de cinema que você vê aquela coisa assim. Aí eu fui embora para casa, pedi licença que eu não tava me sentindo bem, fui para casa, jantei e comecei com uma dor de cabeça. Gente, vocês não sabem o que é a dor de cabeça da meningite. E eu não achava que eu tava com meningite. O que eu resolvi? O peixe tava ruim, lógico! Eu não queria estar com meningite, então o peixe tava ruim. Passei a noite, eu tomei sete comprimidos de dor de cabeça aquela noite, eu não sei como é que eu não tive um troço por causa disso. E eu não podia, não conseguia, aí passei mal, vomitei, não sei o quê. Eu tinha nessa época uma empregada que vinha todo dia. Ela chegou, quando ela me viu na cama, ela falou: “Eu levo a senhora ali no posto de saúde”. Eu não podia pisar de tanta dor, aí eu falei: “Não, faz o seguinte, liga para Dona Zulma - era uma amiga minha que morava no mesmo condomínio -, porque ela almoçou aqui ontem, que eu quero saber se ela também está passando mal, entendeu, porque eu acho que aquele peixe que a gente comeu tava estragado”. Ela ligou, Zulma veio, Zulma chegou, me olhou, disse: “O que que é?”. Eu falei: “Você não tá sentindo nada?”. Ela falou assim: “Não, tive nada”. Eu falei: “Então liga para o Marcos, [meu cunhado, marido de minha irmã Lígia], liga...” enfim para as outras pessoas, para ver se... todo mundo bem e eu aquele traste na cama, sem poder abrir o olho, sem poder nada. Aí ela falou: “Vou ligar para o médico”. Aí eu falei: “Não, não ligue para o médico não, porque tem que clarear um pouco esse quadro, eu tô com uma dor de cabeça”. Ela brinca comigo até hoje dizendo: “Se fosse para clarear, ia escurecer de vez”. (risos) Mas, ela não me atendeu, ela ligou para o médico e ele foi lá. Quando ele chegou lá, ele só mandou sentar na cama, eu sentei, botar as pernas assim. Ele só fez assim na cabeça, quando ele fez assim, eu dei um berro, porque foi uma dor daqui até lá embaixo. Aí nessa hora eu falei: “Estou com meningite”. E ele falou: “Doeu tanto assim?”, “Doeu”. O que tinha acontecido? Eu tinha tomado a vacina, conforme eu disse para vocês, mas as vacinas, primeiro que não tinha vacina, não chegava a vacina, a gente não ouvia dizer que ia ter vacina, nem se a meningite podia tomar vacina ou não, se existia vacina. Nada disso era propagado. De repente chegou uma vacina, né, que era para meningite B. Eu também não sabia na época que tinha meningite A, B e C. A população, quando chegou essa vacina, a população foi toda correr para tomar vacina. Eu fiquei em fila para tomar vacina, tomei a vacina. Isso, antes. Eu tomei a vacina, dei vacina nas minhas filhas achando que estaria seguro, e por causa disso também, eu já não achava que eu tava com meningite, porque eu tinha tomado a vacina. Só que eu não tinha tomado a vacina para o tipo de meningite que eu tava tendo.
(2:21:21) P1 - Agora, é só uma coisa, o governo ou qualquer Instância pública tinha esclarecido isso, que existiam várias vacinas?
R - Não! Eu tô te dizendo que nem eu sabia, ninguém sabia.
(2:21:35) P1 - Ah sim, mas é que você não sabia, [mas] poderia...
R - Não, não! Não tinha, não se falava na televisão que tinha mais de um tipo. Para quem o governo iria esclarecer? É pela imprensa, que a imprensa divulga. Eu via todo dia Jornal Nacional, eu lia o jornal, eu tinha nessa época JB, chegava na minha casa, eu lia o jornal, nunca vi que tinha meningite A, B, C. Nunca vi dizer assim: “Fulano morreu de meningite A” ou “Morreu de meningite B”, entendeu? Nessa época eu não via isso, portanto ninguém ouvia, porque eu era uma pessoa de certa forma que me inteirava das coisas, né? E só ouvia de vez em quando que morreu empregada de não sei quem, morreu criança de escola, e a coisa foi crescendo na verdade, aquela frase foi crescendo. Não chegou ao grau do Covid, né? Eu acho que não chegou a ser uma epidemia tipo Covid, não chegou a isso, mas foi uma coisa que foi crescendo. E eu achava que eu não ia ter meningite. Por que eu ia ter meningite? Eu não andava em companhia de ninguém... não tinha, né? Não sei de onde peguei, também não sei, só sei que peguei. Enfim, então, eu sei que eu fui internada nesse dia, chamaram a ambulância, mas eu não queria ambulância, acabei indo de táxi. Eu fiz uma confusão danada. Me internaram numa Casa de Saúde ali na Laranjeiras, Bento Lisboa, chamada Casa de Saúde São Sebastião. Não é o Hospital São Sebastião, que ficou sendo foco de internações de meningite, é uma Casa de Saúde. O meu médico botou o laboratório de plantão, laboratório que ele conhecia, ficou me esperando no hospital, me fizeram a punção do líquido da coluna e ele saiu pessoalmente com aqueles tubos de ensaio cheio de líquido amniótico e foi para o laboratório durante a noite, de manhã já tinha o resultado, o tipo de meningite... Não, nem tinha o tipo, tinha a quantidade de bichos que eu tinha no líquido lá, entendeu? Aí eles começaram a fazer um tratamento. Eu fiquei um mês internada, tomei muita cortisona, fiquei desse tamanho e interrompi, inclusive, minhas atividades. E depois de um mês eu fiz quatro punções nesse período, uma por semana, para ver se o tratamento tava agindo até ficar no nível satisfatório para poder ir para casa. Depois de um mês fui para casa, passei um mês de cama em casa ainda, aí com complicações eu acho do medicamento, eu tinha suores noturnos, tinha essas coisas que eu acho que não era mais da doença, mas era a quantidade de cortisona que eu tinha tomado, não sei o quê. Nessa fase, a gente começou a ver, por exemplo, a irmã do Franco Montoro morreu em 48 horas, foi uma notícia que veiculou. Mas não veiculou, não viu no jornal não, a gente soube pelas redes que não eram da época, rede social, mas de gente que conhecia. Que eu também não sei se o Franco Montoro botou isso no jornal, porque muita gente escondia. Você tinha todos os fenômenos: o governo escondia que tinha a epidemia, as pessoas tinham medo de dizer que teve alguém que teve meningite, porque os outros podiam começar a discriminar, então foi um movimento muito ruim. E depois deixou muito medo. A gente, eu, aí quando eu peguei, quando eu vi que eu tava com meningite, eu falei: “Vou morrer”.
(2:25:44) P1 - Era isso que se falava na época?
R - Muita gente morria, então eu falei: “Pronto, agora ferrou”. Fiquei internada, fiquei desesperada quando me internaram, porque nesse dia que eu tava mal, quando as minhas filhas chegaram da escola, eu mandei para casa da minha amiga, entendeu, não quis nem que elas ficassem em casa... Mas, eu não sabia nada, que meningite o que, eu tava mal, não podia ficar com elas. Quando eu fui internada, que já era de noite, eu levei os travesseiros da minha cama, olha só, para elas não usarem. Se elas viessem para casa, podiam usar meu travesseiro. Aí eu já sabia que eu devia estar com meningite, o médico já tinha ido lá, já tinha feito esse teste. E eu já tava desconfiada, ainda ia fazer o exame, mas eu já tava desconfiada, então já levei e fiquei. Quando meu marido chegou do Recife, eu tava internada, eu tava absolutamente sem visitas, né? A minha mãe ficou comigo lá no hospital o tempo todo e eu tenho uma tia, tinha uma tia que era enfermeira, que também ia muito lá, quase todo dia. Por que ela iria? Porque ela achava que eu tava ferrada e que a coisa ia ser tão... ficava indo todo dia, sabe aquela atenção assim: “Como é que tá hoje? Como é que foi?”. Mas com o passar do tempo, eu fui reagindo ao tratamento e, bom, saí sem sequelas, eu digo, (risos) mas com, muito inchada, cabelo mudou, pele mudou, tudo mudou depois da meningite, entendeu? Tudo mudou. E continuava a gente sem maiores informações, mas aí já com muito medo, já ficava com muito medo das filhas, porque tem que tomar cuidado, eu não sei onde que eu peguei, eu não sei como é que tá isso. E o nosso médico dizia: “Os médicos não sabem, escondem as estatísticas”. Então eu te digo hoje, honestamente, pelo que eu vivi na época, que pelas informações, ninguém sabe direito quantas pessoas tiveram, nem morreram naquela época com meningite, a não ser as pessoas que a gente conhece; como o Mauro sabia que eu tinha tido. Mas, eu não sei, ninguém sabe quantas pessoas foram atingidas, porque as estatísticas eram falsas.
(2:28:14) P1 - E o governo ainda escondia. Por que você achava?
R - Corria que era pra não ter pânico na população né, que não era, que era para a população não se revoltar, porque não tinha vacina. Corriam esses boatos, mas eu não sei porquê, aí é o meu achismo. Não teve uma explicação. Você vê que o médico que você entrevistou disse que tava tudo bem, tudo sob controle, que o governo controlou tudo. Não foi isso que ele falou? Então! Mas quem tava vivendo nas cidades... eu não sei nem quais foram os locais que... acho que São Paulo foi maior índice de contaminação, mas eu não sei nem te dizer, por exemplo, Rio, Minas, não sei, Belo Horizonte, Nordeste, eu não sei, não sei te responder, porque não tinha essa estatística segura. Depois eu não sei se foi recuperado, porque também, depois a minha vida ‘rodou’ para outro lado e eu não fiquei mais preocupada. Logo depois da meningite, eu saí do Brasil, porque... isso foi 1973, 1974, a meningite; eu saí em 1975, na verdade. Então é uma coisa que foi muito ruim, foi um período tenso e a gente sabia, a partir de um determinado momento, que tudo que se falava era mentira, quer dizer, não era a verdade, não era a total verdade. Não é que era mentira, [só] não era totalmente verdade.
(2:29:49) P1 - Isso é uma censura... quando a gente fala censura na ditadura, a gente imagina: “Ah é uma peça ou é um”...
R - Não, não! Teve essa coisa na medicina também, na... tinha médico, provavelmente esse médico aqui, que nem os médicos de hoje que falam que a cloroquina resolve, não sei o que, tinha também. Mas muitos médicos diziam isso, inclusive esse nosso médico que era bastante conceituado lá no Rio, ele falava: “Nós, médicos, não sabemos, não temos os dados suficientes para saber o grau de, né, comprometimento com a doença”. Sei que tem muita gente que ficou com sequela, né? Que nem Covid também né, algumas pessoas ficaram com sequelas, outras pessoas... eu tive três vezes Covid, cara. Repara, (risos) sou uma sobrevivente nessas coisas, entendeu? Três vezes Covid. Eu conheço poucas, a maior parte que eu conheço já teve até duas vezes, mas três!? Eu tive uma em novembro de 2021 e uma em janeiro de 2022, quer dizer, uma em cima da outra quase. Só que cepas diferentes, foi a delta e depois a omicron, entendeu?
(2:31:15) P1 - E me conta uma coisa, quais são os sintomas, então, na meningite que você teve? Qual que foi...
R - Eu tive isso: primeiro eu tive uma dor no pescoço, que eu achava que eu tava com torcicolo, uma dor nas costas e uma dor no pescoço. Eu fazia assim, doía, não sei o quê. Tava dando aula e falava: “Tô com uma dor de pescoço”. Depois, muita dor de cabeça, uma dor de cabeça, assim, enlouquecedora. Tô te dizendo, tomei sete comprimidos. Porque como ela não baixava nada, eu tomava uma, daí em uma hora, uma hora e meia, não baixou nada, eu tomava outro, e assim eu fui, digamos, de dez, onze da noite até sete da manhã, eu tomei uns sete comprimidos. Na época era Commel o comprimido que eu tomei, que tinha em casa, entendeu? Eu tomava pela minha conta e risco. E depois enjoo, vômito também tive.
(2:32:13) P1 - E o tratamento, como que era lá na UTI?
R - Cortisona... não fiquei em UTI, fiquei num quarto isolada, não tinha visita, fazia a tal da punção uma vez por semana, exame de sangue com frequência. O medicamento era antibiótico e cortisona, muita cortisona, que eu nem sei te dizer com que dosagem, porque eu tava meio fora do ar. Na primeira semana, tava muito fora do ar. Engraçado, no primeiro dia quando fizeram a primeira punção, a minha cabeça diminuiu a dor, que eu tava com muita dor de cabeça, aí melhorou a dor. Então, quer dizer, o fato de tirar o líquido, deixou de pressionar tanto, que melhorou um pouco a dor, eu podia até dormir. Mas fiquei ainda na primeira semana totalmente fora do ar, assim, sem papo, sem conversa, sem nada. Depois eu fui retomando, né, mas não saía da cama para nada, não ia ao banheiro, não tomava banho, nada. Era tudo na cama, entendeu?
(2:33:20) P1 - E você achou que você ia morrer em algum momento?
R - Achei. No primeiro momento, eu achei. Quando eu vi: “Tô com meningite! meu Deus, ferrei-me!”, mas depois quando... depois quando fez-se a punção, que a dor melhorou um pouquinho, que eu dormia, eu acho que eu comecei a ficar um pouquinho mais confiante. Porque quando a dor não passava com sete comprimidos, eu falei: “Não, não vai ter jeito, aqui o negócio é brabeira”. Então, aí você tem essa, esse tratamento é um tratamento... eu não sei se é o tratamento oficial hoje para falar a verdade, porque isso foi, veja bem, 1974, né? 1973, 1974. O Surto foi 1973, 1974, a minha meningite acho que foi 1974, não tenho certeza absoluta do mês, mas foi por aí. E eu já tava ‘agraçando’ a meningite, quando eu peguei. Não fui a primeira a pegar, entendeu, como eu fui quase do Covid. O primeiro Covid que eu tive foi maio de 2020, não tinha vacina, não tinha nada. Então eu fui logo das primeiras. Mas a meningite não, ela tava ‘agraçando’. Tanto que quando veio a vacina, eu fui tomar achando que tava resolvido: “Pronto, tomei a vacina”, entendeu?
(2:34:43) P1 - E a forma de transmissão na época, vocês tinham informação que hoje vocês sabem, que a gente sabe que é correta ou não? Como é que era isso?
R - Não se falava muito disso de evitar contágio, entendeu? Eu não me lembro dessa, desse tipo de campanha que nem na Covid teve, de certa forma: usar máscara, passar álcool em gel. Não me lembro de nada disso na época da meningite. Me lembro de que tinha sim [que] isolar a pessoa que tava com meningite, sobretudo nas escolas foi: “caso de meningite na escola tal” aí suspende as aulas durante uma semana, não sei o que e tal. Mesmo quando a criança ficava boa, você mantinha as aulas suspensas por um período que eu não me lembro mais se era uma semana ou dez dias, o que era. Por exemplo, na escola das minhas filhas ninguém teve, então não suspenderam as aulas, mas várias escolas suspenderam as aulas. Aqui em São Paulo eu sei que foram muitas, no Rio também. A gente não tinha informação, realmente não tinha, a informação era aquela que queriam. Até hoje a informação é a que querem que você receba, não só do Governo, como da Imprensa, como de tudo, a notícia que você ouve, se você for pesquisar por trás, de repente você descobre que não é bem aquilo ou que tem outras coisas que explicam, que a notícia que você ouve é uma. Isso, eu não estou falando de fake news, tô falando da notícia que é veiculada na grande mídia, não sei o que e tal, é a notícia que querem que você saiba. A forma de dar notícia também tem tudo a ver, né? Eu tenho uma amiga que trabalhou muito no Globo, exatamente com análise de como você dá notícia. Por exemplo, você falar que o “MST ocupou as terras” é uma coisa, que “invadiu” é outra coisa. Então dependendo de como você dá notícia [para] o leitor, “invasão” é uma coisa diferente de “ocupação”, né? Então essas coisas a gente não sabe. E na época da meningite, que lá se vão grandes anos já, porque, veja, em 1974. Quantos anos tem aí? Vocês que fazem conta rápido. (risos) Esses detalhes...
(2:37:11) P1 - 48, não? 58.
R - Sim. Pois é, você veja, você tá querendo que eu saiba desses detalhes todos, eu não vou saber. Não, mas é porque a gente viveu, mas não foi uma coisa, digamos assim, não foi feito a Covid, de norte a sul, de leste a oeste com a mesma intensidade. Foi uma coisa, digamos, mais São Paulo, Rio, talvez Belo Horizonte e...
(2:37:43) P1 - Mais centros urbanos, né?
R - Maiores centros urbanos, nas periferias. A maior parte foi na periferia, né? E tinha uma história também, que era o seguinte, eu lembro disso: a doença dava na periferia, mas como a periferia vinha frequentar a não periferia, aí significava que quem trazia a doença era o pessoal da periferia. Olha que crueldade. Quer dizer, invés de você tratar a doença, discutir, imunizar, ensinar como se proteger, você logo acusa quem traz a doença. Então você começa a cortar, você não quer juntar porque assim você tá se protegendo. Isso tinha muito também: “Não vá aqui, não vá ali no... não tenha empregada em casa, porque a empregada vem de lá, porque não sei o quê” e por aí vai, né?
(2:38:43) P1 - Então foi uma espécie de negligência.
R - É. Foi, foi mesmo, que também “se morresse pobre, não tinha importância”, né? Mas quando morreu a irmã do Franco Montoro em 48 horas, acho que a coisa complicou um pouquinho.
(2:38:57) P1 - Não tinha como esconder, né, mais assim também.
R - Não, não só não tinha como não esconder, como: “Ó, tá pegando vocês, hein. (risos) Tá pegando todo mundo, cuidado aí!”. Porque, veja bem, todo mundo tá vulnerável, né, porque enquanto estivesse lá na periferia, na favela, “isso não tem nada a ver com a gente”, né? Tinha um pouco essa visão, tanto que até eu disse: “Nós não vamos ter meningite!”. Veja bem, não foi por causa de nenhum preconceito, mas é porque eu tinha certeza que era uma coisa que não chegava na gente.
(2:39:34) P1 - Geograficamente, nem...
R - Geograficamente. Era mais na baixada, não era na Zona Sul; a gente mora no Rio de Janeiro, a gente morava na Zona Sul. Então, nessa época eu morava no Humaitá, na Rua Cesário Alvim, ali no Humaitá. Então não era, não iria chegar lá.
(2:39:59) P1 - Agora, você, quando veio a pandemia do Covid, lembrou da meningite ou não?
R - Sabe que não me deixou... Não.
(2:40:10) P1 - Não veio.
R - Não, não. Eu fiquei, quando eu peguei, (risos) olha, eu no início daqui dessa doença, eu primeiro comecei a achar esquisito todo mundo... eu tava na Europa, todo mundo já falava nisso, vim no dia 10 de fevereiro, já tinha gente de máscara no meu voo. Eu tinha ido visitar meus netos, porque eles moram fora, quase todos, só uma que mora aqui, tenho cinco. Aí eu voltei e falei: “Gente que absurdo também, que exagero”, claro que a gente estava ouvindo que tinha doença, mas para mim ainda tava, assim, na China, (risos) não sei, poucos casos na Europa. Alienação, né, porque eu tava visitando neto. E quando eu entrei no avião, falei: “gente”, umas dez pessoas de máscara. Eu falei: “Que gente mais histérica, né?”. Bom, quando eu cheguei no Rio de Janeiro... aí cheguei 10 de fevereiro. No dia 12 de março eu tava em uma Assembleia do Sindicato lá da UFF. E aí eu comecei a ver algumas pessoas que não queriam falar no microfone. Dia 12 de Março. Eu falei: “Gente, o pessoal tá um pouco exagerado”. Minha filha, que dá aula em Campinas, me ligou e me disse o seguinte - eu tava na Assembleia -: “Mãe, tão suspendendo as aulas em Campinas, vão fechar a Faculdade”. Eu falei: “É? Já?”. (risos) Ela disse: “É, eu vou ficar em São Paulo na casa da minha tia, porque daqui uns quinze dias deve abrir, não vou para o Rio”, ela veio para casa da minha irmã que mora aqui, aquela que eu falei que é mais nova. E aí eu fui para casa, comecei a pensar, não tinha nada em casa. Depois eu falei: “Quer saber, eu vou fazer umas compras, porque se tiver que fechar alguma coisa, né, e tal”. Aí fui no mercado, fui roubada, meu celular, levaram meu celular. Quando eu me dei conta, eu falei: “Bom, eu não posso ficar presa sem meu celular” e fui pra loja da Vivo para comprar um celular. Quando eu saí, eu peguei um Uber. Quando eu entrei no carro, o homem disse assim: “A senhora se incomoda de ir de janela aberta”. Aí eu falei: “Não, eu não me incomodo, mas tô achando esquisito, porque já são dez horas da noite, aqui no Rio de Janeiro todo mundo diz que tem que andar de janela fechada, não sei o que e tal”, “Não, minha senhora, é que eu sou do grupo de risco, eu sou cardíaco, eu tenho diabetes”. Aí eu falei: “Ah, é?”. Aí falei: “Nossa, o troço tá ficando sério”. (risos) Aí eu fui para casa neste dia 13 de Março e não mais saí de casa durante dois meses praticamente, não saí mais. Eu ia, fazia compras pela internet, eu botava os saquinhos dentro da água com sabão. Eu não fazia nada. Eu tive que ir no dia 30 de Abril, uma coisa assim, eu tive que ir no banco para resolver um problema. O celular era novo, eu não tinha conseguido resolver, mas eu podia resolver no caixa eletrônico, então eu esperei domingo, que não ia ter ninguém no caixa eletrônico, para ir. Quando eu fui, eu me fantasiei tanto, máscara, era lenço, não sei o que lá, que uma amiga minha viu a foto e disse assim: “você vai assaltar o banco?”, (risos) porque eu saí na rua achando que tem um bicho aqui atrás de mim, sabe? Quando eu cheguei no banco, não tinha ninguém. Eu fiz lá o que eu tinha que fazer, voltei, tirei aquela roupa toda, botei no sabão lá, tomei banho, lavei a cabeça, lavei tudo. Era assim que eu estava, histérica. De repente, não sei de onde, nem como, eu peguei Covid. Passei mal, passei mal, com angústia. Começo da minha Covid, foi uma coisa que eu não costumo ter, mas uma angústia muito grande. Sabe aquela coisa assim: “O que é que tá me acontecendo?”. E fiquei sem dormir, toda assim confusa, sabe? Até que dormi. Acordei com febre. Quando eu liguei para o meu cunhado, tenho um cunhado médico, ele falou: “Olha só, toma uma novalgina". Aí começou a me controlar pelo telefone e eu comecei... começou a aparecer coisa. Aí eu tive tudo que vocês possam imaginar: tive diarreia, tive enjoo, tive... só não tive falta de paladar. O resto, tive tudo! Dor no corpo, dor no pulmão! Que não é dor nas costas, dor lá dentro mesmo, você sente dor. Até que... isso foi num domingo. Começou na segunda, eu tava assim na quarta-feira, eu liguei - eu tenho uma sobrinha que é pneumologista e trabalhava com o Covid -, ela falou: “Vai fazer o teste”. Eu não queria ir não, porque eu achava que eu tava tão protegida: “Que história é essa de teste?”, “Bom, tia, se você não fizer o teste, não tem diagnóstico. Sem diagnóstico, não tem tratamento. Não sei o que você tem”. Isso tudo pelo telefone. Aí eu fui fazer o teste: deu positivo. Aí sim, aí eu fiquei com medão, aí eu fiquei sozinha mesmo. Porque na meningite eu ainda fui para o hospital, fiquei com a minha mãe. Mas eu fiquei sozinha dia e noite, dia e noite. Meu medo maior era noturno, porque todo mundo dorme e você fica lá, passa mal. Tinha falta de ar, abria a janela, fazia exercício respiratório, não sei o que e tal. Mas aí depois do sexto, sétimo dia, você já começa a estar, se acostumou com a doença: “Bom, vai ser assim, vai passar e tal”. E eu não tinha... depois eu tomei duas vacinas... três vacinas! E tive de novo. Depois de três vacinas. Enfim, então, a meningite ela teve um pouco, uma similaridade com as coisas que ocorreram agora. Cada um no seu tempo, cada uma com seu tipo de governo, cada uma... mas, foi uma coisa que teve essa similaridade, entendeu? Você pode fazer uma analogia entre uma coisa e outra e ver que quem tem o poder da comunicação, pode manipular o tempo todo e você não sabe direito o que tá acontecendo. Até os próprios médicos reclamam disso, entendeu? Eles começaram a ficar desconfiados por causa dos seus próprios clientes, mas eles não tinham certeza como é que a coisa tava acontecendo.
(2:47:06) P1 - Só vou fazer uma última pergunta então e aí a gente continua na próxima vez que você voltar aqui.
R - Se vocês quiserem, essa semana eu tô aqui, toda ela.
(2:47:16) P1 - É, não, eu precisaria ver na verdade com o pessoal do museu, né? Mas com certeza a gente vai fazer uma parte dois, assim, logo quando dá, né? Mas só voltando um pouco, você disse que começou muito pela TV, é isso, as informações, e pelo rádio?
R - Sim! É, porque qual é a forma de você ter... até a Covid foi parecido, né, você também fica sabendo que tem um caso de Covid, que teve um caso, do mundo, a Organização Mundial da Saúde vinha todo dia dizer: “Calma, não é ainda, não é pelo...” até dizer que era uma pandemia, você fica se informando pelos meios de comunicação.
(2:48:01) P1 - Assim, mas nos anos setenta, da meningite, foi também assim.
R - Exatamente assim, só que não tinha Organização Mundial da Saúde. Tinha, era o Jornal Nacional e o JB e o Globo, jornais que circulavam, né? E as pessoas, que uma fala: “Menina, soube que na casa do fulano teve alguém que teve meningite”, “Ai, é mesmo? Será que a empregada que trouxe?”, porque sempre tinha essa conotação ainda.
(2:48:31) P1 - Mas assim, você não lembra de vim uma autoridade ou uma leitura de caso?
R - Não teve nenhuma autoridade, que eu tenha visto e que alguém tenha comentado e que tenha noticiado isso. Vou até fazer essa pesquisa, porque eu não fiz essa pesquisa (risos) antes de vir pra cá. Mas eu não tenho noção, não sei quem era. Veja bem, não sou capaz de te dizer. Eu sei quais eram os presidentes, mas eu não sei. Quem é que tava no ministério da saúde nessa época? Que eu não sei. Se eu soube na época, eu já esqueci. Não vinha ninguém que nem o Mandetta vinha pra falar do Covid e depois mesmo esse idiota do Queiroga. Mas não tinham uma coisa oficial, entendeu? “Está na hora do horário oficial da notícia da meningite”, dentro do jornal ou fora do jornal, nunca ouvi falar.
(2:49:27) P1 - Entendi.
R - Se tiver alguém que saiba, é bom até esclarecer, mas eu nunca vi falar. Esse médico disse que vinha, a televisão e o rádio? Não sei o que lá.
(2:49:37) P1 - Disse que era uma beleza, que todo mundo sabia. Foi tão positivo que até eu... eu não entrevistei ele, mas eu... até é uma, é do acervo do museu, de noventa e tantos, a entrevista. Mas foi tão positivo que...
R - Você acreditou que foi...
(2:49:52) P1 - Não. Eu achei tão positivo que eu falei: “Só pode ser mentira”. (risos)
R - (risos) Pois é, porque, veja bem, se fosse uma coisa assim positiva até tava registrado quanto positivo e alguém teria lembrado agora, no momento: “Lembra da meningite? Foi assim, foi assado. Agora tá sendo diferente”, ninguém lembrou disso, ninguém lembrou da meningite nesse momento. Não me lembro disso também. Acho que não, acho que não teve. Por isso que eu volto a dizer: os médicos reclamavam que eles não estavam sendo informados, que dirá a população. Portanto, Conselho de Medicina, não sei o que, todos os canais com os médicos, e mesmo com a população, não estavam sendo acionados para isso. Eu acho que não.
[Início da Parte 2 da entrevista]
Entrevista de Dora Henrique da Costa - Parte 2
Entrevistada por Lucas Torigoe, Mauro Molin e Cristina Konder
São Paulo, 22 de agosto de 2022
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1295
(00:18) P1 - O que aconteceu depois, então, quando você sarou, digamos assim, da meningite?
R - Levei muito tempo pra sarar. Quer dizer, da meningite propriamente dita, eu fiquei um mês internada, foi um mês direto - já expliquei - na Casa de Saúde São Sebastião, sozinha, sem poder ter visitas porque... Mas eu tive a meningite virótica, eu não tive a bacteriana. Isso eu expliquei. E tinha tomado a vacina errada, inclusive, eu tomei a vacina que veio, mas não tinha nada a ver com a meningite que eu tive. Porque havia mais de um tipo de meningite e as poucas vacinas que chegaram, foram meningite B, se eu não me engano, e eu tive outra coisa, que eu não sei se foi A ou a C, acho que foi a C porque a A era bacteriana, mas eu não tenho nenhuma segurança disso. Aí, como eu tomei muita cortisona nessa época, fiquei ‘moonface’, fiquei enorme. Quando eu tive alta, fui para casa, passei uns dois meses que eu tinha uma coisa enlouquecida de suor, passava muito mal à noite, levantava, tomava banho, trocava de roupa, porque era uma coisa impressionante, e fiquei de repouso em casa durante dois meses. E, com isso, o próprio projeto do mestrado, no qual eu estava, se atrasou um pouco porque eu tinha passado esse período todo ausente. Tava no mestrado da PUC, né? E aí eu, esse projeto foi um pouco retardado, digamos assim. E nós começamos... de qualquer forma, meu marido sempre tinha vontade de fazer um curso no exterior, ele sempre quis, sempre queria fazer e tal, e a situação... contei que eu vim de Curitiba no dia do AI-5, né, no dia do meu aniversário. Aí desde então que a gente tinha planos de sair. Com o cerco, né, da ditadura, sobretudo o Partido Comunista, a partir dessa época começou um cerco maior, nós começamos a ter vontade mesmo de sair. Muita gente tava saindo e a gente teve muita vontade de sair, e começamos a organizar uma saída, pedindo a inscrição nas universidades. Obviamente escolhemos ir pra França, que onde muita gente tava indo nessa época, e fomos, nos inscrevemos na universidade de Grenoble. Nós tínhamos estado na França no, um ano anterior com, pra férias... contato com as pessoas, tinha alguns amigos que já estavam exilados. No caso, Antônio Carlos Peixoto, por exemplo, que era nosso amigo, já estava lá. E nós tinha... o Ailton tinha ido conversar com o sujeito chamado (Inace Vax?), que aconselhou que ele fosse fazer o doutorado na universidade de Grenoble. Enquanto isso, pra explicar porque Grenoble e não Paris, como muita gente foi. Então pedimos a inscrição na universidade etc., fomos aceitos, fomos pra universidade de Grenoble, ele fazendo doutorado e eu fazendo mestrado, um novo mestrado na verdade, que eu fiz na França, eu terminei na França e depois eu terminei no Brasil um pouco mais tarde. Já estávamos com esse plano, já tínhamos esse aceite, aí pedimos bolsa, tivemos bolsas num primeiro momento: eu tinha uma bolsa da Capes e ele do Cnpq. Bom, estávamos organizando a ida para o final do ano mesmo, porque o ano letivo lá começa em outubro, né, então...
(04:13) P1 - Foi em 1975?
R - Isso, já era 1975. Então começamos a organizar a vida nesse sentido, dois dias... qual foi o dia que morreu o Herzog? Acho que é 20 qualquer coisa, não sei, 25. 25 de outubro, né? Uns quatro dias ou cinco dias antes, teve uma reunião na minha casa, comigo, com umas pessoas aqui de São Paulo, eu não me lembro o nome de nenhuma delas porque a gente também não gravava muitos nomes e também não sei se me deram o nome verdadeiro. Então não era muito, né? Então, aí sim, quem levou essas pessoas da minha casa foi o Aloísio Teixeira, que era uma pessoa, era ligada ao partido, né, o Aloísio Teixeira pediu para ele fazer uma reunião lá, me chamou para participar e ficamos a tarde toda discutindo na minha casa. Eu morava nessa época na Rua Cesário Alvim, ali no Humaitá, e quando eles foram... não, mentira. Eu morava na Rua Araucária, Cesário Alvim eu morei depois. Quando eles foram, vieram embora, quatro ou cinco dias depois houve a morte do Herzog. E meu marido ficou agoniadíssimo porque aquelas pessoas todas eram vinculadas, eram jornalistas vinculadas ao Herzog. Aí ficou achando que poderia dar algum problema, serem presos e acabarem na minha casa, então nós mandamos as crianças pra Buenos Aires, onde estava já o meu cunhado, exilado. Ele ainda tinha que ficar trabalhando, mas saiu, saímos de casa, eu viajei pra França e ele ficou ainda para terminar e só viajou um mês depois.
(06:06) P1 - Só uma coisa antes de você continuar, vocês souberam do assassinato do Herzog como?
R - Não sei, as pessoas falaram, né, todas. Não sei te dizer concretamente como é que foi a fonte, sei que foi rápido, se soube rápido. E aí eu viajei imediatamente, aí que eu fui arrumar... eu é que fui arrumar casa em Grenoble, procurar casa, não sei. Quando eles chegaram, aí já tinha apartamento alugado, carro comprado, todas essas coisas. Mas nós nunca conseguimos receber a bolsa, porque imediatamente na nossa chegada, as bolsas foram canceladas. Tem um episódio até engraçado que eu recebi uma carta da Capes, já em Grenoble, em que falava uma série de coisas, mas dizia assim: “Sua bolsa foi cancelada, não é concedida pelo penúltimo parágrafo da carta de concessão”. E eu fiquei durante um tempo: “Mas o que é isso? Por que não foi?”. Finalmente o meu marido disse assim: “Não é melhor olhar a carta de concessão, para ver o que é esse penúltimo parágrafo?”, e o penúltimo parágrafo dizia que não tinha, que precisava da autorização do SNI para que as bolsas fossem mantidas. Aí a gente descobriu que tinha sido cancelada, e a dele foi imediatamente depois. Então ficamos lá sem bolsa. Aí nós tínhamos comprado um apartamento na planta, financiado antes de viajar para França. Já tava a gente correndo aqui no ano de 1975. Fomos pra França, aí vendemos o apartamento que não estava pronto ainda, mas vendemos. Vendemos pro meu sogro, que passou a nos mandar dinheiro para França e comprou o apartamento. E o Ailton foi trabalhar na França, ele conseguiu trabalhar na empresa que ele trabalhava no Rio de Janeiro, que tinha um escritório de representação em Paris, aí ele foi depois trabalhar em Paris, o motivo pelo qual nós começamos a pensar em sair de Grenoble e morar em Paris. Era mera questão financeira, de imediato. Esse período, a nossa chegada em Paris, se dá dezoito meses da chegada em Grenoble. Ele já tinha ido a Paris várias vezes pra trabalho e tal, mas aí acabou, acabaram propondo para se fixar em Paris e a gente foi para Paris, e ele ficou vinculado a empresa ainda, fazendo uns projetos lá. Ele era economista, fazendo uns projetos que, ligados à África, Angola. Embora ele nunca tenha ido lá, mas, enfim, ele fazia os projetos, e tinha uma pequena equipe que trabalhava, lá, em Paris.
(09:02) P1 - Você continuou estudando então, mesmo sem bolsa?
R - Sim, a gente... ele continuou, ele fez o doutorado, que ele foi na verdade defender. Nós fomos pra lá, enfim, em maio de 1975, ele defendeu a tese no início de 1980, bem no início de 1980. Ele foi, defendeu e nós voltamos em 1980. Voltamos quando terminou o doutorado, o trabalho lá também já tava terminando, a empresa tava fechando esse escritório e a gente não tinha emprego lá. Nós não éramos exilados, não tínhamos o status de exílio, então nós voltamos, tomamos a decisão de voltar. E também todo mundo tava voltando, já era a época que já tinha tido... desde 1978, 1979, muita gente tava voltando.
(09:51) P1 - E como é que foi pra você, as suas filhas, como é que foi o cotidiano durante esse tempo? Mudou muito? Vocês se adaptaram ou não?
R - Foi mais ou menos. Se adaptaram sim, as minhas filhas se adaptaram tanto que ficaram, casaram com um francês. (risos) Todos os meus netos são franceses, todos eles são franco-brasileiros, nascidos lá ou aqui... todos nasceram lá, não tem nenhum que tenha nascido aqui. E casaram com franceses, então se adaptaram de certa forma. Mas elas eram crianças quando a gente foi, né? A minha filha mais nova nasceu em 1966, quando a gente foi, em 1975, ela tinha nove anos. Mas foram pra escola, depois foram, fizeram o secundário, né, voltaram... a mais nova, a Tânia, ela voltou antes, ela realmente se adaptou menos, ela queria voltar, queria voltar pro Brasil, acabou voltando e ficando com a minha mãe, ela veio acho que em janeiro pra pegar o ano letivo, que começaria em fevereiro, pra pegar no Brasil esse ano letivo. E nós só voltamos em abril, então nesse período ela morou com a minha mãe. Mas a mais velha quis ficar, né? Quando a gente voltou, Cristina, ela não queria voltar de jeito nenhum, tinha quinze anos, já tinha um namorado, não queria voltar de jeito nenhum. Ficou, mas três meses depois que a gente voltou, ela começou a achar bom, né, reencontrar a casa do papai, da mamãe etc. e acabou voltando também. Mas ela, num primeiro momento, quis ficar, não quis sair.
(11:36) P1 - Agora, de 1975 a 1980, vocês continuaram tendo contato com os militantes aqui no Brasil? Como é que tava o partido nessa época?
R - Ih, como é que tava o partido é difícil falar, porque, veja bem, a nossa militância parti... desde de 1964, eu já tinha te falado, quando a gente foi pra Curitiba, que a militância foi de retaguarda, a gente não era mais... a gente trabalhava, estudava, era uma vida totalmente legal, com o filho pequeno e tal. Então nós não tínhamos uma militância, digamos, ativa, no sentido de, né, fazer tarefas e tomar certas, participar de reuniões, nada disso. Mas nós tínhamos uma militância meio de, que eu chamo de retaguarda, né, contei que em Curitiba várias pessoas foram, passaram por lá, aí a gente hospedava. Então tinha tudo isso. Isso aconteceu também um pouco na França, né, a gente não ficou ligado organicamente nem ao Partido Comunista Brasileiro, nem o Partido Comunista Francês, como muitas pessoas inclusive se vincularam ao PCF, mas nós não fizemos isso. Mas nós tínhamos contato, digamos, com o partido via algumas pessoas do partido que ficaram, que eram próximos, alguns que eram amigos, né, muito amigos e, portanto, pessoas que nos frequentavam e pessoas que a gente, podendo, tava sempre ajudando a fazer alguma coisa. É nesse sentido inclusive que tem, se enquadra a saída do Giocondo, que eu já mencionei por alto assim pra vocês. Eu tinha trabalhado com a saída do meu cunhado, contei pra vocês... não contei os detalhes não, porque eu disse que tava no livro, né? (risos) Mas tem... porque já tem o livro. E a saída do Giocondo foi mais ou menos na mesma linha, a saída do Giocondo, nós, o Zé Salles, que era do comitê central, da executiva do partido, era muito amigo do meu marido, né, e por tabela era amigo meu também, ele foi a Grenoble e discutindo que havia uma necessidade de retirar o Giocondo... isso, era 1976. Porque o cerco tava sendo grande, ele tava clandestino, totalmente, e outras pessoas tinham sido assassinadas nesse processo, né? Eu até esqueci o nome de um rapaz que tinha sido assassinado nessa época. Mas, enfim, aí o Dias, tava cada vez ficando mais difícil manter, né, o Dias, e ele totalmente sem contato com o partido, sem nada, ele já tava fora da possibilidade de se locomover muito, então o Salles veio com a proposta de que havia uma necessidade de tirar, tentar tirar o Dias, né? Eles chamavam de resgatar, resgatar o Dias da saída, de tirar do Brasil. E eu topei. Quer dizer, foi uma discussão, uma noite inteira de discussão, (risos) meu marido tava no programa de doutorado, eu não estava, eu tinha terminado o mestrado, não entrei em programa de doutorado nenhum, eu estava mais liberada, né, ele tinha mais compromissos lá, e eu, a única coisa que eu combinei com Salles é: ninguém do partido pode saber que nós estamos com esse plano. Quando a gente fala ninguém, nunca é 100%, né, então, por exemplo, Prestes devia saber, mas eu pedi a ele que não dissesse que era eu que vinha. Vai saber que tá sendo feita essa operação, mas não sabe por onde, nem com quem.
(15:54) P1 - Por que isso?
R - Posto que o Zé me dizia que ele era a pessoa que tava na cabeça da operação e que ele tinha combinado com o Prestes que iria organizar e não necessariamente precisava estar dando conta de com, como, com quem etc. Você fez uma pergunta.
(16:15) P1 - Por que você não queria o seu nome?
R - Porque eu gosto da minha pele. (risos) Por quê? Porque se começasse muita gente a saber, a gente não controlava quem sabe quem, não sabe, portanto, eu poderia estar correndo algum risco maior, né, que eu acho que eu não corri nenhum, eu realmente acho que foi uma operação no qual não teve risco de ninguém, né? Mas, por isso, a gente manteve, a outra pessoa que sabia dessa operação era o Armênio. Por quê? Porque ao vir ao Brasil, o Dias também podia não querer saber de mim, né, e eu tinha que ter todo um processo de como que a gente vai chegar no Dias. O Dias estava clandestino, como vai chegar? Então a primeira etapa foi eu sugerir, a gente queria ter um amigo que mora até hoje na França, que não tem, nunca teve nenhuma militância, não tinha nem amigos do partido aqui no Brasil, nada disso, que ele viesse, a gente pagasse uma passagem para ele vir contactar, descobrir se uma pessoa que saberia chegar ao Dias ainda trabalhava no mesmo lugar que sempre trabalhou. Era uma moça que trabalhava num consultório médico. Essa, ela era assistente, ajudante, não era enfermeira, mas era uma pessoa que trabalhava no consultório médico. Essa pessoa na verdade vem a ser a filha da caseira da mulher na casa de quem o Dias ficava. Então precisava saber primeiro: Ela existe? Essa moça trabalha no mesmo lugar? Porque se não souber, por aí que a gente vai poder chegar nele, né? Então mandamos esse nosso amigo, que veio ao Brasil e foi ao consultório, que a gente tinha o endereço do consultório e foi tentar localizar. Deu o maior azar. Tem umas coisas que acontecem nesses processos, né? No dia que ele foi, a moça tava doente, então não tava lá. Aí ele me mandou uma notícia, e eu também já te falei como é que a gente se comunicava, né, que não tinha telefone e era posto telefônico. Então a gente tinha essa comunicação: ele ligava pro posto telefônico em Grenoble, e o posto tinha um mensageiro que ia na nossa casa, avisava “uma ligação do Brasil”, aí eu ia lá no posto e fazia ligação e falava com ele. E ele ficou muito aflito porque ele tinha família no, em Santa Catarina, então ele foi para Santa Catarina, foi lá, ela não estava, aí ele achou: “Não, a pessoa que vocês queriam não está mais lá”. Mas a gente começou a desconfiar: “Pode ter sido azar. Só foi uma vez, vai que...”, então ele foi para Santa Catarina, mas ele ia voltar para Paris pelo Rio de Janeiro, aí pedimos para ele voltar lá e aí a moça tava lá. Então foi até bom ter pedido para ele voltar, porque aí localizou que a moça trabalhava lá. Ela não sabia quem era ele, ele só perguntou se ela era fulana e tal, e voltou dizendo: “Ela trabalha lá”. Então já era um dado: como chegar no Dias? Tinha que ser através dessa moça. E aí eu vim pro Brasil. Na verdade, eu vim pela Argentina, porque o Salles foi pra Argentina, ele foi se fixar na Argentina, ele não vinha ao Brasil. Ele ia ficar na Argentina e também porque era da Argentina que ia ser montada a saída do Dias. Passaporte, tudo isso, ia ser feito na Argentina. Bom, então eu vim pra Argentina. Quando eu cheguei, já tinha tido o golpe na Argentina, né, o Videla e tal, aí tem umas coisas assim que é bom que a gente não esqueça: quando eu saltei no aeroporto, desci do avião, do avião até o aeroporto, propriamente dito, era condão polonês de policial com arma assim, todos os passageiros passavam naquela coisa. Mas como eu tava na Argentina, eu não tava no Brasil, e como ninguém na Argentina sabia quem eu era, eu tava tranquila. Eu só passei naquilo, como todos os passageiros, passei, mas observei que a situação ali tava complicado. Eu tinha o meu cunhado que morava na Argentina, mas eu não fui procurá-lo. Não estive, nem soube da minha ida à Argentina nesse período. Encontrei com Zé Salles e montamos, né, eu vou, disse a ele: “Eu vou entrar no Brasil, vou para casa de uma pessoa determinada, uma amiga minha, e vou montar tudo. Mas também você não precisa saber como é que eu vou montar” e ele também não sabia. (risos) Tinha que ser assim, porque eu tava, realmente tinha, sabia que era uma coisa muito... perigosa? Não era bem o caso, mas enfim. Mas era tenso! Não sabia também se eu iria conseguir, se o Dias ia atender, então quanto menos gente saber disso, melhor. Quanto menos gente souber disso, melhor. Bom, aí tinha que ter uma fotografia de passaporte. Olha, tinha que ser, o Dias tinha que ser fotografado. Como fotografar? Como fazer? Então iam me dá lá na Argentina uma foto de uma pessoa, de um argentino, de um passaporte, para eu trazer como modelo, porém, eu fiquei com medo de trazer uma foto de um argentino, que era alguém do partido argentino. Falei: “Não, eu vou fazer uma foto de passaporte minha”, então entrei numa loja, numa coisa de foto lá, e pedi “foto para passaporte”. Porque é diferente, na Argentina, é meio de lado assim, sabe? Então eu fiz um filme daquilo, pedi ao moço para fazer várias cópias, porque eu tinha, queria ter certeza de que tava com o modelo correto. E aí eu vim com minha foto, portanto não tinha que, não tava com medo de que se alguém visse na minha bagagem, sei lá, não sabia se a pessoa que iam me dar era conhecido ou não era conhecido, então eu entrei com a minha foto. Cheguei no aeroporto e fui direto para casa dessa minha amiga. Quando eu cheguei na casa dessa minha amiga, ela não estava e a empregada estava trancada, não tinha chave, e eu fiquei na escada do prédio, porque eu falei: “Vou esperar ela chegar” e ela não chegou. (risos) Então eu passei a noite naquele maldito… um frio danado, fiquei sentada naquelas escadas, com dinheiro na bolsa porque eu tinha trazido o dinheiro para alugar carro, fazer coisas que precisasse, então não quis andar pela rua, não quis pegar o hotel, não quis fazer nada disso, fiquei lá na escada. Aí, seis da manhã o porteiro veio limpando tudo, me encontrou na escada. Quando eu vi que ele tava... eu tava no segundo andar, quando eu vi que tinha, tava subindo para limpar, eu fiquei em pé, porque eu falei, eu fiquei... e eu falei para ele: “Eu tô aqui, tô esperando. Cheguei de viagem, não sei o quê”. Ele me levou para casa dele: “Não, a senhora não fica aí, vem para cá e tal”, então eu fui para casa dele. Ele me deu uma cadeira do papai, sabe essas cadeiras assim daquelas de dentista, que tinha na casa dele, e eu dormi na casa do porteiro com a minha maletinha até umas oito e meia, sei lá. Nove da manhã, ele foi me chamar, que a minha amiga tinha chegado. Aí eu fui... e ela não sabia quem é. Ele falou: Ttem uma amiga sua que chegou de viagem, ficou aqui na escada, não sei o que” aí eu apareci. Bom, o que que eu queria? Primeiro, essa pessoa era uma pessoa muito minha amiga, primeira coisa, não era uma militante, né, não tinha no vínculos maiores partidários, então, portanto, ela não era uma pessoa visada, ela era uma pessoa amiga da família do Dias, da filha do dias, então é amiga... a filha do Dias era madrinha da filha dela, então elas eram pessoas muito próximas, né, e portanto ela teria todo interesse em ajudar. Não tinha nada que fazer com a filha do Dias não, que eu não queria nem que ela soubesse de nada. Mas era uma pessoa que podia saber: “Não, não é um estranho que eu tô pedindo para ela ajudar, é uma pessoa que ela conhece”. Bom, e dali eu montei, pedi a ela para ligar para minha irmã para mim... Tá interessante isso?
(25:35) P1 - Tá! Continua, por favor. (risos)
R - (risos) Então, porque tem detalhes que eu fico, eu vou falando dos detalhes e depois não... pois bem, então eu liguei para minha... pedi a ela para ligar para minha irmã, dizendo: “Tem um assunto muito importante para falar com você, por favor vem aqui”, minha irmã foi. Minha irmã tava grávida inclusive, quando ela chegou lá... minha irmã Lúcia. Tá no livro, tá no filme. Vocês viram o filme? Não? Porque tem o filme também, tem a vida do Giocondo lá. Aí a Lúcia veio, quando chegou, me encontrou: “O que você tá fazendo aqui?”, “Pois é, eu tô precisando de vocês”, porque ela e o marido, meu cunhado, é médico - ela já é falecida, mas o meu cunhado é vivo ainda -, ele é médico e ele tava trabalhando, estavam, tinham um apartamento pequeno no Rio, e tinham um apartamento em Volta Redonda, porque ele tava trabalhando numa casa de saúde também em Volta redonda, que nem médico, três dias aqui, dois dias ali, e essa coisa. E eu sabia disso, né, então a minha proposta era um bom lugar pra botar o Dias, era na casa da irmã em Volta Redonda, que tirava, né, tudo do caminho. Assim foi feito, ela... bom, aí eu falei... meu cunhado era aficionado em fotografia, ele tinha os negócios, depois eu dei, comprei pra ele, aí eu falei: “Olha, vou precisar tirar fotos do Dias, quero levar o Dias, deixar lá, e quero tirar fotos pra trazer pro passaporte”, né? Enfim, ela topou, aí falou com o marido, ele topou, fez uma lista do que eu precisava comprar dessas coisas aí, ó, de luz, de não sei o que, para fazer a tal foto do passaporte e me emprestaram um carro, que eles tinham nessa época dois carros, porque ele ia trabalhar em Volta Redonda e ela trabalhava aqui. Então me emprestaram um carro. Bom, então parte daí do episódio estava montado, agora precisava o mais importante: (risos) era chegar no Dias. Porque até ali... aí eu telefonei pra moça do consultório médico, pedindo, que eu queria muito falar com ela, que eu tinha um assunto muito importante pra tratar, não sei o quê. Eu já não me lembro detalhes do que eu disse para convencer essa moça a me encontrar, eu sei que ela foi se encontrar comigo, a gente foi tomar um lanche na City Rio, acho que chamava assim, um negócio de leiteria que tinha ali na Cinelândia, no Rio. E eu falei para ela: “Olha, o que eu tô querendo, eu tô aqui porque eu vim para contactar o Dias”. Ela olhou para mim como se eu fosse um ET: “Que isso? Eu sei lá quem é, não sei o que, e tudo”. Eu falei: “Você sabe, mas eu sei que você tem mesmo que dizer que não sabe. Mas eu tô aqui lalala”. Aí ela disse que não sabia, que não queria saber, que não tinha nada a ver com isso, lalala. Falei: “Olha só, eu tô com essa revista Veja, dentro dessa revista tem três cartas para o Dias, você entrega essas cartas a ele”, “Não, não vou entregar. Não vou levar, não quero saber, não sei o que é isso”. Aí eu falei: “eu vou embora e vou deixar a revista aí na mesa, você vai ficar responsável”. Saí, deixei ela lá com aquela revista na mesa. Ela obviamente pegou a revista e levou a revista. Nessa revista tinha uma carta do Armênio falando coisas que só ele e o Dias sabiam, inclusive apelido de família de um e de outro e não sei o que e tal, o Armênio assina com o nome que ele era conhecido na família e tal, tinha uma carta do Zé Salles também assinada como Marcelo, que era o nome que ele usava, e tinha uma carta minha, sem assinatura, dizendo que eu estava no Rio, que eu vim a pedido do Marcelo para ajudar etc. e que eu queria encontrar com ele pra expor a ele as minhas ideias e tal, e que eu marcava três pontos de encontro: um eu me lembro que era na praça que tem Rocha Miranda lá no subúrbio do Rio, o outro era em frente à faculdade Gama Filho, na Piedade, e o outro eu não me lembro. Eram três possibilidades: A, B e C. E na carta eu dizia: “Basta você me mandar dizer qual é a letra, A, B ou C”. No dia seguinte, eu liguei para moça, (risos) daí ela me disse: “Ele mandou dizer que é B”. (risos) Ela tinha levado e ele tinha lido as cartas e tal. Era em frente à Gama Filho, ele escolheu... ele era danado também, né, porque ele escolheu bem num lugar bem movimentado, em frente a aluno entrando e saindo, não sei o quê. E eu fui de carro. Tinha dito na carta: “Onde você escolher, eu vou chegar de carro tal, carro assim, assim, assim” dei lá todas as características. E aí quando foi o horário combinado, seis horas, eu cheguei com o carro, ele tava em pezinho com um embrulhinho embaixo do braço. Abri a porta, ele entrou, aí é que ele disse: “eu não sabia quem era, mas eu achei que podia ser você”. Bom, aí passei a rodar com ele explicando o meu plano: “Olha, o plano é você ir para Volta Redonda blablabla”; como ele topou, a gente tocou a estrada para Volta Redonda. Nesse dia mesmo, não voltamos pra atrás.
(31:28) P1 - Só uma coisa, como é que ele tava? Quando você chegou, falou que ele tava com um embrulhinho.
R - Ele tava com um embrulhinho, porque ele não sabia qual que era o plano, nem o que era pra fazer, então nesse embrulhinho tinha uma escova de dentes, provavelmente uma cueca, provavelmente uma coisinha, mas era um embrulhinho, um pijaminha, uma coisa assim. Ele não tava com bagagem, com mala, com bolsa, com mochila, com nada disso, era um embrulho, parecia quase uma grande marmita. Ele tava... com papel pardo, aqueles embrulhinhos mesmo assim. E tava bem, tava a figura boa dele. Bom, aí nós fomos para Volta redonda, minha irmã já tava lá, já tava mais... tudo combinado, que eu ia pegar ele e ia direto se ele topasse. O meu cunhado por acaso tem... O Dias era um homem baixo, tinha também o olho meio claro e tal, e meu cunhado tem esse tipo, é bem baixo e tem o olho claro, então ele virou o tio do meu cunhado lá no apartamento. Ele não saía de casa, ele era muito disciplinado, não sei o que, mas caso alguém soubesse, ouvisse, ele era o tio que tava hospedado lá. Passamos à noite tirando as fotos, ele, o meu cunhado arranjou um canto, uma cortina, que tinha que ter um fundo branco, não sei o que, e passamos a noite tirando foto de tudo que foi posição do Dias para poder depois achar qual era a foto que tava boa pro passaporte. E aí eu vou... e ele me falando um monte de coisa, um monte de coisa que eu não podia esquecer. Essas coisas era danada, né, porque você não pode esquecer e não pode escrever também; Aí ele falou um monte de coisa, de recado pra eu levar, porque eu ia voltar no dia seguinte, eu não ia ficar no Brasil. Eu deixei ele lá, saí de lá de manhã no mesmo dia já com o voo marcado pra Buenos Aires e me deixei com ele montado o seguinte: essa minha amiga ia pegar, ia entrar em contato com ele, porque ele a conhecia, era amigo da família etc. e a minha irmã também levaria recado para ela. E ela iria à Buenos Aires pra conhecer as pessoas que viriam de carro buscá-lo, que ele saiu de carro. Então ficou tudo combinado, eu voltei pra Buenos Aires, combinei com minha amiga, ela foi à Buenos Aires, conheceu a pessoa, o casal que vinha dirigindo e tal, entrar aí e ficou aguardando. Aconteceu, eu não me lembro mais qual foi o fenômeno, que ia ter alguma coisa em Volta Redonda, que o Geisel ia estar presente e começou a movimentação muito grande de policiais, não sei quê. Segurança, né, preparatório da visita do Geisel. Paralelamente, como a minha irmã estava grávida... Isso, portanto, era mês de fevereiro, por aí, porque meu sobrinho nasceu em 27 de Março, então isso era final de Fevereiro, início de Março. Eu não sei qual foi o episódio, não sei se o Mauro vai lembrar de que episódio é esse, que nessa época, 1976, o Geisel ia para Volta Redonda comemorar alguma coisa que eu não sei o que foi. Eu sei que o Dias, muito preocupado com isso, falou para minha irmã: “Eu vou sair daqui”, pediu a minha irmã, que a minha irmã vinha muito ao Rio, né, para trazer ele. Veio. Quando chegou na Avenida Brasil, ele falou: “Para aí”, ele saltou num ponto lá qualquer e sumiu, né? Minha irmã não sabe para onde, não sabia para onde, e ele disse: “Eu entro em contato com a pessoa” ele já sabia quem era a pessoa que ia fazer isso. Ele disse: “Eu entro em contato”. Então, [de] dois em dois dias ele telefonava para essa minha amiga para saber se o pessoal da Argentina chegou, não chegou, até que um dia tinha chegado, o casal também fez contato com ela: “Estamos no Rio” e tavam no hotel. E aí ele ligou, marcaram todo o encontro e ele foi... eu tinha comprado, eu tinha levado todas as medidas de roupa dele e aí... isso foi o Zé Salles que fez no Buenos Aires, comprou uma mala de roupa pequena, mas uma mala de roupa argentina, com a numeração dele, para ter uma mala de roupas dele. Aí ele... o casal chegou, tava o casal e uma senhora pra viajarem como se fossem dois casais viajando com mala, com tudo, e assim eles foram, chegaram em Buenos Aires de carro. E depois de Buenos Aires, eles foram para Genebra. E depois, em Genebra, nós fomos buscá-lo no aeroporto, eles foram até Grenoble. O Dias tinha um filho que morava em Lyon, e ele foi para casa desse filho. O Armênio foi lá em Grenoble para falar... ele ficou na minha casa, ele ficou lá na nossa casa. E assim foi essa aventura na saída dele, que ninguém realmente soube... quer dizer, soube tudo depois que ele já tava aqui. Essa história só foi contada, sei lá, quando eu já tava na UFF, que fez o depoimento do livro quando essa minha amiga, que queria porque queria fazer um livro e aí pegou o livro da saída do arquivo, da saída do Dias, e outras coisas mais e outras pessoas, inclusive, Marli Viana, que teve vinculada à saída do arquivo, a Zuleide Faria de Melo também é outra pessoa, tem depoimento delas no livro.
(37:32) P1 - Você queria perguntar algo antes de... não? Para quem você tá contando essa história... tá no livro, mas para quem for assistir, né, no Museu da Pessoa...
R - Vai ter interesse em saber do livro. (risos) Vai querer saber do livro, né, se tiver interesse. Sim, fale.
(37:56) P1 - Mas enquanto não adquirir...
R - “Enquanto eu não pego o livro”, não, até porque não deve estar muito fácil, não, acho que tá edição esgotada. Esgotou e eles não refizeram.
(38:05) P1 - Mas você pode só contextualizar de novo quem era essa figura do Giocondo Dias [e] o que tava em jogo ali? Se _____...
R - O Giocondo Dias, nessa época, ele era o secretário geral do partido, aqui, né, porque o Prestes tava fora e ele era o secretário geral do partido no Brasil, então ele era uma pessoa, como dizia, era a Taça Jules Rimet do, se pegasse o Dias, pegavam o secretário geral do partido, por isso era tão importante impedir... não só por isso, mas isso era um motivo importante de impedir que ele fosse pego pela ditadura, né, porque aí seria realmente... Então ele era essa pessoa, secretário geral. Sob a secretaria geral dele não vou falar não, (risos) aí já é outra discussão, porque aí a gente já entrar em uma questão de discutir as posições dentro do partido, não sei o que, mas aí é outro caminho, né?
(39:08) P2 - Mas uma coisa pode ser dita, eu acho. Por que ele aceitou esse caminho para sair e não alguma tentativa por via da estrutura do partido?
R - É porque, também como eu, ele gostava da pele dele, ele sabia que as coisas estavam muito complicadas e que tava muito infiltrado. Tinha gente dentro do partido, tinha infiltração que a gente não sabia de onde era, quem era. Depois, futuramente, a gente descobriu até que tinha gente do comitê central que era infiltrado, né? O caso do Melinho, que a gente só foi... que saiu na Veja acho que em 1992, sei lá, que saiu na Veja, era um sujeito do comitê central. Então o Dias sabia disso, ele era macaco velho, ele sabia que o pescoço dele tava em jogo e que quem entregasse iria ter, né, iria ‘subir aos píncaros’. Então ele se resguardou completamente, ele tava isolado dentro do Brasil, ele não tinha mais contato com o partido. Ele era o secretário geral do partido, mas não tinha mais contato com o partido, né, ele ficava lá naquela casa que eu nem sei onde é, sei que é no subúrbio, mas eu nunca soube. Ele ficava lá naquela casa, que aquela senhora cuidava - ela já faleceu também -, ela cuidava, enfim, ela lavava, passava, cozinhava e ele ficava lá. E essa moça, filha dessa senhora, trabalhava e às vezes trazia algumas notícias que ela sabia da rua, porque ela também não tinha contato com o partido, nenhum. Esse era o motivo dele não aceitar não querer... tanto que eu tive que fazer isso. Armênio escreveu uma carta, mas não uma carta como Armênio Guedes, porque isso ele não iria aceitar, ele ia achar que podia ser uma montagem. Então quando veio a história do Armênio, de coisas lá da Bahia que eles viveram, que depois da... familiar, não sei o que, aí já era mais complicado que uma infiltração tivesse tanto conhecimento. E aí depois tinha junto a carta do Marcelo e junto uma carta minha falando uma porção de coisas para ele ter segurança de que ele conhecia a pessoa que tava falando, né, que era eu, porque ele já tinha estado na minha casa, então ele sabia que eu era amiga do Zé. Então, se tinha uma carta do Armênio, tinha uma carta do Zé e tinha uma carta minha... ele não sabia, não tinha certeza, tanto que quando ele entrou no carro, ele disse: “Eu achava que era você. Eu fiquei... então eu acertei, eu achei que era você”. Ele não tinha certeza quem era essa pessoa, mas ele resolveu arriscar, porque era muita segurança que tava sendo dada.
(42:05) P1 - Era a única forma de convencer ele a sair.
R - De convencer ele a sair! Tanto que ele quis se encontrar num lugar público, ele não, eu achava que ele ia querer um lugar discreto, sei lá, tanto que eu falei, acho que era Praça 8 de não sei quanto, não lembro mais o nome da praça, em Rocha Miranda, e eu falei isso também porque ele sabia que o meu marido era de Rocha Miranda, então eu falei: “Então vou escolher uma praça em Rocha Miranda, que é mais um dado para ele”, né, podia ter falado outra praça no Rio de Janeiro, mas falei Rocha Miranda por isso. Então ele, quando ele viu toda... juntou tudo isso. Ele não era nenhum bobo, ele juntou tudo isso e resolveu arriscar, mas não quis arriscar no lugar deserto, ele quis arriscar no lugar público e num lugar... e eu também botei um lugar bem movimentado, né, porque podia não ter tido essa ideia, mas eu botei. Eu tentei subúrbio sempre porque eu sabia que ele devia estar pelo subúrbio. Como não era fácil ele tá se locomovendo, então eu botei subúrbio, e por outro lado também porque era talvez menos visado, né, marcar um local no subúrbio e tal. Enfim, deu certo, ele escolheu e a moça... deu certo porque a moça levou a revista. Se a moça não levasse a revista, ia morrer ali, porque ninguém sabia quem estava escrevendo aquelas cartas e também ninguém, não sabia para quem era aquelas cartas, né?
(43:34) P2 - E a mulher dele, tava aonde?
R - A mulher dele morava no Rio de Janeiro, morava. A Lourdes morava com as filhas, com Ana Maria e a Jade. Nessa época, a Jade acho que já era formada ou tava se formando em medicina, acho que ela não era formada ainda não, Ana Maria trabalhava na Rede Ferroviária Federal. Eu sabia da vida dele porque essa minha amiga, que se chama Zuma, era muito amiga da Ana Maria, tanto que a Ana Maria era madrinha da filha dela, então, e a mulher do pai da Zuma, do Alberto Passos Guimarães, era muito amiga, tinha sido muito amiga porque nessa época a Zulmira já tinha morrido, mas tinha sido muito amiga da Lourdes, mulher do Dias. Então eram duas famílias que transitavam, entendeu, que vieram do nordeste, um veio de Alagoas, o outro veio da Bahia, o Alberto Passos Guimarães foi do partido, militou junto com Dias. Então eram, era uma coisa muito... e eles eram pessoas absolutamente ilegais à família, ele já não vivia com a família há muitos anos, né? Ele via a família esporadicamente, combinando. Nessa época, nunca mais, já tinha... Tanto que depois, que ele chega lá, ele vai à Moscou, ele vai lá reunir com o partido e tal, aí já não sei, mas ele volta para Lyon e as meninas organizam a ida da Lourdes pra Lyon, e eles se encontram na casa do filho, em Lyon, que é onde a Lourdes morre. Porque ela tinha um problema muito sério de coluna, o filho levou num médico lá na França, não sei o que lá, o médico disse que aquilo era fácil, resolvia, operava, não sei o que, e ela se animou e operou, e morreu na cirurgia. Foi pesado para ele, ele sofreu muito com isso, né? Eu recebi... eu morava em Grenoble, o filho morava em Lyon, quando eu recebi o telegrama - foi o Zé que passou o telegrama - dizendo “Lourdes morreu”, nós pegamos o carro e fomos para casa do Gilberto, chegando lá, o Dias estava arrasado. Arrasado! Realmente. Porque era um momento que ele tinha reencontrado, né, que tava pensando o que ia fazer, porque ele continuava sendo um homem de aparelho, mas ela agora, ela era uma pessoa aposentada já, uma senhora, então ela tava lá na casa do filho, então eles estavam já pensando como é que iam organizar, se ela ia ficar, se ela ia voltar, como é que ia ser, quando acontece esse acidente médico, né?
(46:34) P1 - E que história é essa de arquivo que você falou, que foi resgatado também?
R - O arquivo do Astrogildo. O arquivo do Astrogildo, e juntou o arquivo do Morena.
(46:48) P2 - Eles sabem quem é Astrogildo e quem é Morena?
R - Eu não sei, hoje eu trouxe o livro... ah, o livro não tá aqui, (risos) tá na bolsa.
(46:54) P1 - O Astrogildo Pereira?
R - Foi fundador do Partido Comunista em Niterói, em uma célula (risos) em Niterói, numa casa, eles fundaram o Partido Comunista em 1922... 1922? Então tá fazendo agora quantos anos?
(47:11) P1 - Cem.
R - Cem anos de fundação do Partido Comunista. Tá aí o livro. Não tá? Tá sim. Pode fuçar. Posso mostrar até a página do livro. Enfim, o que que aconteceu? Esse arquivo... aí a história do arquivo todo tá contada no livro, ela tem uma parte muito grande da qual eu não participei. Eu tirei ele do Brasil, mas quem guardou e salvou esses arquivos foi Zé Sales e Marli na verdade. Aqui, ó, mostra aí o livro. Então, o Astrogildo tinha um arquivo muito grande lá, que foi parar na mão do partido, na época, depois que ele morreu. Nem sei se foi antes, se ele doou. Mas esse arquivo tava na mão do partido, tinha uma parte política, jornais, não sei que, e tinha uma parte literária. Então esse arquivo, ele fica muito tempo... Quando é que morreu o Astrogildo, você sabe?
(48:13) P2 - 1964 ou 1966.
R - Por aí, né? Então, eu tirei o arquivo daqui em 1978, 1979 - 1979 acho, [no] início - que ele viajou... eu despachei ele, né? Mas até lá, até eu pegar o arquivo, ele passou primeiro um período em São Paulo. Tava com o partido, aí veio, tava muito forte a ditadura e tal, eles resolveram guardar numa casa e tem toda uma história. O arquivo foi guardado numa casa, a Marli dizia, com outro nome, dizia, era Sônia, dizia que era aeromoça, alugou uma casinha, não sei o que, era aeromoça, então não ia lá todo dia porque ela tava viajando sempre tal, tal. Era a história que contava. E tinha ao lado uma oficina, acho que era uma oficina, uma coisa assim, e o Zé tinha comprado um carro nessa oficina. Eu sei que a história toda é que um determinado dia eles viram que a polícia bateu lá na casa, né, com uma conversa... os detalhes disso tá aí no livro, tá? Com uma conversa de que era o Detran e aí queriam saber do carro. Em uma... Não. Teve um momento que o Zé foi seguido, o Zé tava com esse carro, dirigindo com outras pessoas também do partido, e percebeu que tava sendo seguido. E no que ele percebeu, eles fizeram meio que um malabarismo, não sei o que, conseguiram driblar. Mas nesse momento ele disse: “Esse carro tá fichado. Porque eles estavam seguindo o carro, então esse carro tá fichado. Vão chegar no arquivo, porque vão atrás de onde que veio o carro, ver quem vendeu o carro e vão acabar chegando no arquivo”. Pois bem, chegaram no arquivo, mas tinha um tempo para isso, não era, não iriam chegar no dia seguinte, mas chegaram no arquivo, os caras tocaram lá, a senhora abriu a casa e na casa da pessoa que alugava o quarto, sei lá, não sei como é que era essa instalação, dizendo que era o Detran. E aí a moça: “Não, Detran - que [estava] perguntando do carro -, não sabemos. Aqui quem mora é uma aeromoça, não sei o que e tal”. E a filha da dona da casa tinha um problema no Detran para resolver, falou: “Ah, que bom, Detran! O senhor pode me explicar”. Fizeram os caras entrar, serviram cafezinho, bolo, não sei o que, os caras foram embora e aí a Marli foi, eles disseram: “O Detran teve aqui para saber de um carro”. Marli falou: “Isso não era Detran coisa nenhuma” e conseguiram tirar o arquivo de lá.
(51:02) P3 - Que tamanho era?
R - Era grande. Era grande, porque eu tirei o arquivo não literário, só, porque o literário foi parar na casa de um sujeito chamado (Buzinski?)... existe (Buzinski?)? Eu depois vejo o nome, eu tenho o nome dele aqui. Não tava com a Marli, eles limparam, arrumaram e separaram, não sei o que lá, e o tal literário tinha ido parar na casa desse, dessa pessoa. E... que eu não conheço. E aí eles conseguiram tirar o arquivo todo e levaram pro Rio, o arquivo, de carro, e aí foram, contactaram essa Zuleide Faria de Melo, que também tá no livro, a Zuleide guardou esse arquivo no subúrbio, lá numa casa. Aí vivia dizendo que tava dando mofo, que tava ficando, que tava úmido, essas coisas todas. Quando eu vim ao Brasil, eles queriam tirar o arquivo, perguntaram se eu topava, falei assim: “já tô mais ou menos calejada”, enfim, ainda fiz essa brincadeira. Tirar o arquivo é mole, porque tirar o Dias foi muito mais complicado. Mas tirar o arquivo... Aí...
(52:20) P1 - Só uma coisa, eram caixas e caixas?
R - Malões! Não, primeiro lá nessa casa eram caixas, caixas de papelão, não sei o quê. Então, o que eu fiz? Meu cunhado, meu santo cunhado, que já tinha participado de uma coisa... “Vai botar outro? Bota o mesmo”, né? Crimes... são o mesmo, pra fazer o mesmo crime. Alugamos uma kombi - na verdade, ele dirigia -, a Zuleide eu conhecia, aí eu fui à casa da Zuleide primeiro, combinei com ela. Ela me conhecia. Aí, bom, foi tudo assim, não teve muita coisa de ilegalidade, clandestinidade: “Zuleide, eu vou levar, vou tirar o arquivo, vou pegar porque tá dando problema na sua casa e tal”. Aí eu nem sei mais, não sei ir na casa onde eu fui tirar o arquivo, honestamente, eu esqueci do endereço, porque a gente esquecia, né, de propósito dessas coisas. Então eu fui com o meu cunhado, alugamos uma Kombi e tiramos aquelas caixas todas e levei para? Caxias! Que lá morava o meu cunhado com a minha irmã, estavam morando em Caxias nessa época. Já tinham saído de Volta Redonda, tavam morando em Caxias. Já tinha nascido meu sobrinho, né, em 1976, já tinha nascido uma outra filha. Eles moravam numa casa em Caxias e eu cheguei com aquelas caixas todas e falei: “E agora?”. Aí começamos a limpar, porque tinha muita coisa suja, sei lá, poeira, e limpamos aquilo tudo. Eu fui numa loja na Rua da Carioca e comprei uns malões, uns malões grandes, e botamos, limpamos e botamos naftalina, para, né, e arrumamos os malões. Aí eu falei: “E agora? Agora vamos ter que despachar esses balões”. Por que despachar? Podia guardar o arquivo assim, mas ele tava, primeiro, tava morto lá, né, segundo, que nós tínhamos alguns amigos na Itália que tinham ligações fortes também com a Fundação Feltrinelli e o Feltrinelli tava interessado nos arquivos e disseram que limpariam, organizariam, microfilmariam e dariam um tratamento aos arquivos. Então passou-se uma coisa de muito interesse para todo mundo, para o partido e para todo mundo, que o arquivo fosse liberado. Então eu fui à Expresso Mauá, que era um negócio de mudança, e falei lá com o sujeito o seguinte: “Tô morando na Europa, fui para lá, tô há muito tempo, fui estudar, mas vou ficar, quero levar os meus livros. Queria despachar. Como é que é, como é que não é?”. Aí, bom, fizemos tudo, o cara falou: “Pode levar”. Eu falei: “Eu vou botar em malão, arrumar e tal”. Aí eles disseram... Aí eu falei: “Mas eu queria que se ‘cintasse’, porque vai viajar, pode haver algum acidente, abrir e tal, algum problema”, aí eu fiz, despachei tudo como se fosse meu, com o meu nome, meu material e foi para Gênova, foi para o porto de Gênova. Ele me disse: “Vai para o porto de Gênova, não sei o que e tal”. E aí eu falei com os nossos amigos lá de Milão, que ia chegar em Gênova e dei o endereço deles de Milão para contactar quando chegasse. Bom, aí o Expresso Mauá foi lá, em Caxias, ‘cintou’ os malões todos e despachou como se fossem livros meu, minha biblioteca, entendeu?
(56:10) P3 - ____ tinha livro ____?
R - Tinha livro também.
(56:12) P3 - ________
R - Não, tinha muito livro também. Tinha livro, mas era livro de política, de coisa, não tinha... o literário mesmo, Machado de Assis, essas coisas, não tava não. Bom, mas eles não viram que tinha, eu já tava com o malão limpo, fechado, arrumado, eles chegaram, os trabalhadores do Expresso Mauá passaram, ‘cintaram’ aquilo ali, puseram o meu nome com uma tinta e tal, e foi. Junto, eu aproveitei, quando, já que eu tava aqui para uma coisa, eu contactei a família do Morena, que também tinha um arquivo, né? Tinha livros até mais por causa também do Morena, que tinha mais livros. Aí eu fui à casa da mulher do Morena - o Morena tava lá no exterior -, eu fui à casa dela e conve... não conhecia, me apresentei, tudo, e falei: “Eu queria saber se você não tem interesse de mandar os livros pro Morena, não sei o quê”, ela tinha, que ela tava doida para se livrar daquilo, que ela morria de medo que tivesse coisas muito perigosas, como ela falava. Então eu entrei numa sala, uma sala toda assim arrumadinha, tinha uma cortina enorme, quando ela abriu a cortina, era uma estante, entendeu? Quando você chegasse, você não via que tinha a estante ali, era uma estante. E aquelas coisas da estante, todas, segundo ela, era o que tinha dele, o arquivo. Aí nós juntamos tudo: por que que vai levar um e não vai levar outro também lá na mesma leva? Aí levamos. Arrumamos, meu cunhado ajudou, foi também buscar. Tudo dirigindo Kombi, porque não podia ser em carro, que era muita coisa. Aí foram os malões. Bom, “Entregou à Feltrinelli, eu não tenho mais nada a ver com isso”. Teve uma coisa engraçada, que em 1992 os malões voltaram, os arquivos voltaram. Eu vi no jornal: “Chega no Brasil os arquivos de Astrogildo, não sei o que, veio para Faculdade de São Paulo, para Faculdade Nacional de São Paulo... como é que chama? ‘Fenesp’? Fe..;
(58:23) P1 - Unifesp?
R - Unifesp. É Universidade Federal do Estado de São Paulo... isso mesmo, Unifesp. Aí quando, acho que foi 1994, se eu não me engano, eu tô quietinha em casa, toca uma pessoa da Unifesp me convidando para ir na inauguração dos arquivos.. Eu falei: “Eu hein, que isso, não tenho nada a ver (risos) com isso não. Por que você tá me convidando?”. Aí ela falou: “A senhora não é Dora Henrique da Costa?”. Eu falei: “Sim, sou, mas...” Aí ela disse assim: “O seu nome está nos malões que chegaram aqui”. (risos) E tinha fotos dos malões com “Dora Henrique da Costa”, eles tinham ido atrás de quem era a Dora Henrique da Costa, me descobriram e aí telefonaram para me convidar para ir na inauguração, e eu não querendo ter nada a ver com aquilo. Mas tão lá as fotos do malão, tudo. Eu fui na inauguração, a Erundina era prefeita, que ela tava lá, aí fui homenageada, (risos) essas coisas, essas bobagens “porque você tirou o arquivo e tal”. E aí o arquivo do movimento operário tá lá na Unifesp com fotos do malão com o meu nome. (risos) No dia da inauguração, estava. Não voltei lá, não sei se continua lá, mas aí tava lá todo o arquivo arrumadinho, catalogado, que a Feltrinelli arrumou tudo, microfilmou e mandou os originais e a microfilmagem, estão todos aí.
(59:55) P1 - Mas ele, eles voltaram pro Brasil com os mesmos malões, é isso?
R - Não, mas é que deve ter foto... Aí eu não sei porque na inauguração só tinha as fotos dos malões, mas quando eles chegaram lá em Gênova tiraram fotos também, então não sei de onde tiraram essas fotos, mas foi porque tinha o nome na foto, senão eu acho que nem seria contactada pra aquilo. Mas quando viram o nome, falou: “Quem é essa pessoa? Que é uma pessoa desconhecida”, aí começaram a catar quem era. Acho que falaram com a Marli e a Marli é quem disse quem era, que deu meu telefone e aí eu acabei vindo parar em São Paulo na inauguração. A Marli veio também. Vim eu, Marli e Ramon, que é o marido da Marli. Estávamos aí. E aí teve discurso da prefeita, tudo. Foi uma solenidade bonita, com aperitivo, coquetel, não sei o que, inauguração do arquivo operário.
(1:00:54) P1 - E antes da gente fazer uma pausa, conta para quem não conhece, quais seriam, vamos dizer assim, os destaques desses arquivos. Que se não fosse você e trabalho de tantas...
R - Não, olha só, você tinha ali jornais do movimento anarquista, por exemplo; que era uma coisa que ele tinha bastante. Tinha jornais ditos subversivos da época, não me lembro os nomes dos jornais, é de todo movimento, do movimento anarquista, do movimento operário, tinha muita coisa. Tinha resoluções de reuniões de partidos de não sei o que, tava lá. Era, tudo isso tinha nesse arquivo, entendeu? Era bastante coisa. Tanto que foi mais de um malão, né? Não sei se foram dois ou três malões isso, e o do Morena também foi.
(1:01:52) P2 - Roberto Moreno, né?
R - Roberto Moreno, é. Eu tô falando Morena, mas é Roberto Moreno, que faleceu lá na Europa inclusive.
(1:02:01) P3 - Ele era do comitê central também?
R - É, ele era do comitê central. Ele teve internado em Moscou... ele tava com câncer, ele teve internado em Moscou, depois ele foi para Praga, ele pediu para ir para Praga porque ele vivia mesmo em Praga. Depois que ele foi pra Moscou pra fazer o tratamento do câncer. Foi pra Moscou. E aí quando ele já tava bem ruinzinho, ele pediu para ir para Praga, para voltar para Praga, e ele morreu em Praga. A mulher dele foi para lá e ele morreu em Praga. Não sei se depois o corpo veio, isso eu não acompanhei. Eu sei que eu me lembro da morte lá quando foi em Praga. Eu estive com ele no hospital em Moscou, que é um outro episódio (risos) da minha vida, que assim, umas maluquices que a gente faz na vida. Mas, enfim, e eu tive, fui internada em Moscou, fiquei um mês internada em Moscou para fazer uma cirurgia.
(1:03:01) P1 - Que ano?
R - 1978. Por isso que eu sabia também, que eu tive com ele lá no hospital em Moscou. Foi, eu operei lá e ele tava fazendo tratamento no Hospital, entendeu? Eu me lembro, achava ele muito engraçado, porque como nessa época só tinha eu de brasileira lá nesse hospital, então a gente ficou muito próximo, porque... e ele tava bem fragilizado por causa da doença. Então ele ia fazer radioterapia e ele saía, ele chegava no meu quarto lá e abria a porta e dizia assim: “eu vou na (tóbica?)”, ele achava (risos) que ele ia na (tóbica?). (risos) Ele falava sempre assim. Quando ele queria ir para Praga... tudo bem, ele resolveu que ele iria, não sei o quê. Aí ele foi desesperado falar comigo que o sapato não tava entrando. Ele tava com o pé muito inchado, o sapato não entrava. Aí eu falei: “Vai entrar! Vai entrar!”. Aí os russos começaram a achar que era melhor ele não ir, porque ele não tava bem, e ele ficou desesperado com essa ideia. Ele queria ficar morando em Praga, entendeu? Aí eu falei: “Vai sim, Moreno”, peguei, cortei o sapato dele, sabe, em cima, para o pé entrar. Ele amarrava um pedaço, mas o pé ficava de fora, assim. Para ele poder, eu cortei aquilo. Não queriam deixar ele sair porque não tinha nem sapato, sapato não entrava, ele tava muito inchado e eu cortei o sapato dele para ele ir para Praga feliz da vida. Ele foi, ainda viveu bastante tempo lá. Tanto que quando eu vim, em 1978, que eu peguei, final de 1978, o arquivo, acho que logo depois a mulher dele foi. Não sei que ano ele morreu, não sei se tô fazendo alguma confusão de data, é por aí. Ele deve ter morrido por aí.
(1:05:06) P1 - E você tava com o que, que você precisou ir até Moscou fazer uma cirurgia?
R - Eu tava com um problema de útero, eu tinha que fazer uma cirurgia e eu não tinha seguro saúde na França, era muito caro e por outro lado, para vir fazer no Brasil, eu não tinha seguro saúde no Brasil. (risos) Além disso, tinha passagem, pra vir fazer no Brasil tinha que pagar passagem, então eu tava sem querer saber o que eu iria fazer. Me ofereceram se eu queria fazer em Moscou, eu achei bom na época. Hoje acho que eu não iria, mas naquela época eu achei bom. Aí eu fui, mas aí cheguei lá, os russos foram cuidadosos, eu fiz todo tipo de exame que você possa imaginar. Pra operar o útero, eu fiz até exame de vista. (risos) Exame de tudo. Botei o pé lá: “Vamos examinar”, entendeu? Enfim, então aí tem as peripécias, mas foi uma experiência.
(1:06:06) P1 - Dora, me conta... quando vocês se fixaram em Paris, na França, me conta um pouco sobre quem mais estava lá. Quem... como é que...
R - Você quer que eu fique dedo duro agora? Falar de quem tava lá? (risos)
(01:06:22) P1 - Como é que era a comunidade, digamos assim, dos exilados? Como é que... vocês conversavam?
R - Não, veja bem, comunidade de exilados já não sou capaz de falar, porque tinha muito exilado, então eu não sei como é... eu falo dos meus amigos exilados, aí é diferente. Então tinha sim, eu tinha alguns amigos, até eu citei um, o Antônio Carlos Peixoto, que tava lá já desde antes de 1974, tinha ido antes. Em Paris, quem mais tava lá? Mauro tava lá em Paris. Agora, tinham aqueles que eram exilados e os não exilados, que também circulavam por lá. Por exemplo, Flávio tava lá e não era exilado, tava estudando, né, que é um outro amigo nosso; Felipe, Flávio, Paulão, essa gente toda tava lá e não eram exilados propriamente dito. Tava o Armênio, o Armênio sim era exilado.
(1:07:23) P2 - Cristina.
R - Cristina tava lá... É! Cristina, mas eu conheci Cristina só um tempo depois. Cristina tava lá. Bom, tava Zuleica, tava lá. Tô falando das pessoas com as quais a gente convivia.
(1:07:40) P3 - Aloysio.
(1:07:40) P2 - Aloysio.
R - Sim, o Aloysio Nunes Ferreira tava lá. Bom, Luizito virou filho do meu marido inclusive. Eu brinco que Luizito era filho do Ailton, porque o Ailton brigava com o Luizito: “Não, não faça isso! Faça aquilo!”, “Não fala assim com ele não, que ele não é teu filho”, “É meu filho!”, (risos) entendeu? Então eu tenho essa brincadeira que até hoje eu chamo o Luizito de “meu enteado”, eu falo: “Você é meu enteado, você não é meu filho não”.
(1:08:07) P2 - Você falou do Luiz Hildebrando?
R - Não, não falei do Luiz Hildebrando.
(1:08:12) P2 - ___________
R - É, falei Luizito, mas Luizito era filho, é filho de Luiz Hildebrando. Quem mais que tava lá que era amigo da gente, que circulava?
(1:08:24) P2 - Cecília.
R - Cecília! Bom, claro, Cecília do Armênio. Cecília, a Vera tava lá porque a Vera desde sempre tava lá com o Aloysio, depois tava lá, continuou, morou lá. Quem mais? Gente, assim, que eu digo, exilado...
(1:08:44) P3 - Oswaldo.
R - Osvaldo! Mas eu também conheci mais tarde o Oswaldo. O Oswaldo não chegava a ser uma pessoa que tava todo dia...
(1:08:52) P2 - Tem que dizer quem é.
R - É. Oswaldo era frei. Oswaldo, né, era um padre dominicano que foi ligado ao Marighella aqui, né? Tem até um filme, chama “Batismo de Sangue”, que conta a vida dele... vida dos quatro padres que estavam com Marighella naquela época. O Betto e o Oswaldo, mas o Betto eu não conheci lá não, só conhecia o Oswaldo. Quem mais? Não tem mais ninguém assim que…
(1:09:25) P3 - _________
R - Milton Temer. Olha, você vê que eu não tô me lembrando de quem tava lá.
(1:09:31) P2 - Carlos Nelson, eu lembro.
R - Não, mas Carlos Nelson tava em Bolonha. Carlos Nelson...
(1:09:35) P3 - ________
(1:09:35) P2 - Foi pra lá.
R - Foi pra lá. É, mas Carlos Nelson a gente foi à Bolonha inclusive...
(1:09:41) P3 - _________
R - ...esteve com o... o Leandro tava na Alemanha também, foi para lá depois, né? Mas o Carlos Nelson, a gente chegou até ir à Bolonha, a estar com ele em Bolonha. Tinha o pessoal de Paris... de Milão também, né, o Mauricinho, o Marcos Del Roio, essas pessoas que tavam em Milão, mas que não chegavam, não foram morar em Paris. Esses não foram morar em Paris.
(1:10:07) P1 - Vocês frequentavam a casa do outro? Vocês se ajudavam? Como é que era isso?
R - Frequentava, claro, mas eu acho que frequentavam mais a minha casa, (risos) entendeu? Por quê? Porque era uma casa, digamos assim, organizada, no sentido de que tinham duas crianças, duas filhas que iam pra escola, que não sei o que. Quem tava... eu nunca fui pra casa do Armênio e da Cecília, eles é que iam para minha casa, né? A gente fazia Natal na minha casa, tinha a Glorinha... lembra da Glorinha? Glorinha tava na, nesse Natal, quando eu começo a lembrar do Natal, aí eu já me lembro de outras pessoas, que iam todos, inclusive o pessoal de Milão ia pra Paris pra passar Natal e Réveillon, e era na minha casa. Então, essa....
(1:10:58) P3 - _________
R - ...essas pessoas...
(1:11:00) P2 - _________
R - O quê?
(1:11:01) P2 - Ivan Ribeiro.
R - Não, Ivan não frequentou lá. A gente frequentou muito Ivan aqui, mas lá... ele não morava em Roma, gente?
P? - _________
R - Então, gente, o Ivan não estive com ele não. Enfim, e tinha o pessoal que circulava lá, mas que não era, né, o pessoal... Por exemplo, Carlos Eugênio, né, mas eu não era propriamente, nunca foi meu amigo, digamos, nunca frequentou a nossa casa. Tinham outras pessoas lá que agora não tô me lembrando. Como é o nome? (Quartin?)! (Quartin?) também tava lá, mas também não era, né? As pessoas que frequentavam muito a minha casa, a nossa casa, eram pessoas que foram ligadas, ou que eram ligadas ao Partido Comunista Brasileiro. Vou falar qual é o partido, né? E as pessoas que estavam lá fazendo cursos e tal, e que também frequentava. Eram mais essas pessoas do que propriamente exilados em geral, entendeu? Então.
(1:12:11) P1 - Vocês tinham trinta a quarenta anos, a maioria de vocês? É isso?
R - Por aí. Acho que era por aí, né, trinta, quarenta anos. Olha, eu...
(1:12:23) P3 - Eu não lembro, mas era por aí.
R - É. Eu tinha menos de quarenta, eu sei, nessa época. Porque eu me lembro... É, eu vim pro Rio, tava o Gugu, o Luiz Gonzaga... Como é que é o nome dele? O Gugu, que era de Milão? Acho que é Luiz Gonzaga.
(1:12:43) P3 - ________
R - Ahn?
(1:12:45) P3 - ________
R - Eu acho...
(1:12:46) P2 - Luiz Gonzaga, que foi casado com a Cristina Duarte.
R - Isso, exatamente! É Luiz Gonzaga. Eu me lembro que quando eu voltei, eu fiz até uma festa de aniversário meu na casa da Cristina e do Gugu, que ainda estavam casados nessa época. Então, mas o Gugu também era de Milão, não era... mas eles iam para Paris para o Natal, eram as festas que tem foto de todo mundo que você quiser de Natal lá na minha casa, isso eu tenho, (risos) entendeu? Mas fora disso, já era bastante, né? Tinha uns que, como diz a Cecília: “Às vezes voltando da casa de Dora e Ailton, passava no relógio da (Gergovi?), tava marcando quatro, cinco da manhã”, (risos) entendeu, que eles iam muito para lá e a gente ficava conversando. Antônio Carlos era outro que não saia, vinha, conversava lá a madrugada inteira.
(1:13:51) P1 - E vocês ficaram numa única casa em Paris ou vocês se mudaram muito também?
R - Não, em Paris só em uma única casa.
(1:13:57) P1 - E como é que ela era? Vocês lembram do endereço?
R - Lembro! Vandecis de Rungis. (risos) 26, Vandecis de Rungis, ali no (13M?), o bairro, né? Perto do Parque Montsouris, perto da Cité Universitaire, perto do metrô Glacière. Me lembro bem. (risos) Então, Nilda tava lá também, João Guilherme, Nilda, essas pessoas é que estavam lá nessa época.
(1:14:30) P3 - ________
R - Não, esse eu não conheci.
(1:14:36) P2 - A Nena.
(1:14:36) P3 - A Nena.
R - Ah, a Ne... bom, o Zé, né? Mas o Zé andava pra lá e pra cá, ia pra Grenoble, ia pra Paris, ia para tudo que é lugar. E a Nena, que foi casada com ele. Eu conheci a Nena casada com o Zé. Então, essas pessoas... era muita gente, você viu quantas pessoas a gente já falou aqui que estavam sempre frequentando? Quando eu fui presa aqui no aeroporto, quando eu voltava, dessa vez que eu vim tirar, vim pegar o arquivo, não sei o que, eu fui presa no aeroporto, na saída. Então...
(1:15:14) P3 - Que ano era?
R - Ahn?
(1:15:16) P3 - Que ano?
R - Isso foi em 1978, 1979. Quando eu vim ao Brasil, eu não vim pra tirar o arquivo. Eu vim ao Brasil e aí como eu estava aqui e tinha essa história do arquivo, a gente resolveu fazer isso.
(1:15:30) P3 - _________
R - Aí eu vim com o Ramon porque eu queria vir ao Brasil e o Ramon vinha conhecer as filhas da Marli. Aí nós viemos juntos, viemos pela Air Maroc, que inclusive fizemos pausa em Casablanca e ficamos 24 horas, porque a Air Maroc fazia assim: ela saía da Europa inteira, juntava em Casablanca e fazia o voo pro Brasil. Então nós chegamos num dia e o voo só era no dia seguinte, ficava por conta da companhia no hotel, tudo isso. Então eu vim nessa época. Quando eu voltava, isso tem até, saiu até um artigo no jornal...
(1:16:09) P3 - _________
R - Fui presa no aeroporto. Por quê? Sabe Deus! Eu cheguei no aeroporto com uma bolsa cheia de presentinhos, não sei o que, bilhetinhos para quem tava lá, que eu tava levando das famílias. Aí tava minha família, minha mãe, minha irmã, meu sogro, tavam, foram me levar no aeroporto. Me despeço, despachei as malas, entro. Quando eu boto o passaporte, o cara começa, olha o passaporte e olha para mim, olha para o computador, olha o passaporte... aí ele começou a olhar, olhar e eu fiquei: “Que diabo é isso?”. Aí ele me perguntou: “Como é seu nome de solteira?”. Aí eu falei: “Dora da Cunha”. Aí ele falou: “Então é a senhora mesmo - e saiu -, me acompanhe”, só que ele saiu daquelas casinhas “me acompanhe pra cá” e eu fui pra lá, pra dar aquela bolsa lá para minha mãe, né? Cheguei, peguei aquela bolsa, falei: “Fica com isso aí, que eu tô sendo presa”. Aí, na verdade, ele veio atrás de mim: “Não senhora, me acompanhe, me acompanhe”, mas eu já tinha passado a bolsa para ela e acompanhei. Cheguei lá embaixo numa área do aeroporto, tinha lá um negócio...
(1:17:26) P3 - Que aeroporto que era?
R - Ahn?
(1:17:28) P2 - Galeão.
R - Galeão. Eu ia, tava embarcando pra Europa.
(1:17:34) P3 - Tava voltando então?
R - Tava voltando. É, eu tinha vindo, fiz as coisas e tava voltando. No que eu estava voltando, me pegaram, aí eu fiquei lá e veio o delegado lá, e não sei que, eu falei... e eu criando caso: “Que é isso? Meu, a minha mala já foi. Eu tô aqui, eu tô viajando para minha casa”. Enfim, aí apareceu um cara da Air Maroc lá perguntando se tinha algum passageiro lá, porque você vê que ele já tinham um hábito de fazer isso, né, aí eu falei: “Eu”. Aí ele falou: “A sua mala vai estar lhe esperando em Milão”, porque o meu voo era pra Milão. Por quê? Que nessa época o meu marido fazia tese de doutorado e tava morando em Camino, que é um lugarejo perto de Trino Vercellese, que é outro lugarejo da Itália, onde uns amigos nossos tinham casa e ele queria ficar isolado pra fazer tese, não sei o que, ele tava lá. Então eu ia pra Milão pra ficar uns dias lá com ele. Bom, eu sei que não se esclarecia porquê eu tava ali e eu acabei tentando ver o arquivo, fichário do sujeito, perguntei para ele: “Mas por que e tal?”. E eu olhei, eu era a única Henrique da Costa... naquela fila tava lá Dora Henrique da Costa, aí tava assim “estudante subversiva”. Eu já não era mais estudante (risos) há muito tempo, aí eu falei: “Isso tá confuso, não sei o quê”. Tem até um episódio depois que eu vou contar, que eu acho interessante, que marca o tempo, né? Aí depois de muita confusão, ele disse que eu tinha... eu perdi o voo e que eu tinha que me apresentar, então, na Polícia Federal. Eu tinha falado com a minha mãe quando eu entreguei essa bolsa, eu falei logo pra ela: “Liga pro Modesto, diz que eu tô sendo presa, porque eu não sei o que vai acontecer”.
(1:19:36) P3 - ____ Modesto da Silveira?
R - Modesto da Silveira.
(1:19:40) P3 - Advogado de…
R - Isso, ele era advogado de presos políticos. Na verdade, não foi ele que foi comigo depois, foi o Marcelo Cerqueira, que era outro advogado, né, de político, de prisão política. Aí eu fiquei lá, o cara acabou dizendo: “Pode ir para polícia, tem que se apresentar na Polícia Federal, não sei o que, na segunda-feira”, isso aí era uma sexta-feira, perto do carnaval. Por isso que eu sei que era início do ano, perto do carnaval. Aí eu saí de lá. Como eu tinha dito para minha mãe que era a polícia federal que tava me prendendo, porque era polícia do aeroporto, eu falei: “A Polícia Federal está me prendendo, fica com essa bolsa”, eles foram para a Polícia Federal da Rua da Assembleia na Praça Mauá, porque eles acharam que eu podia ser... eu não sei o que eles foram fazer lá. Meu sogro, por sorte, meteu a mão no bolso e me deu um dinheiro, porque eu não tinha dinheiro nenhum mais, tava embarcando. E por sorte ele me deu esse dinheiro. Bom, aí o sujeito me liberou para eu ir embora, mas que eu me apresentasse segunda-feira na Polícia Federal. Aí eu mandei tocar para Polícia Federal da Praça Mauá, porque eu sabia que o pessoal tinha ido para lá. E eu cheguei lá, tava um fuzuê porque a minha mãe tava lá fazendo a maior confusão: “Minha filha foi presa! Eu quero saber da minha filha!”, não sei que lá. E o delegado de lá dizia: “Mas como é o nome da sua filha?”, eles acharam que era prostituta, (risos) porque foi presa na Praça Mauá, quem é que tava ali? (risos) “E como é o nome da sua filha? Que tinha umas moças aqui presas. Mas como é o nome da sua filha?” (risos) Até escla... aí eu chego, né? Eu chego de repente e todo mundo: “Ah! Ué, tá aqui e tal”. Bom, na segunda-feira, eu me apresentei na Polícia Federal com o Marcelo Cerqueira. Aí, no caminho, eu fui andando com Marcelo e Marcelo vai me instruindo andando no meio da rua e perguntando, eu falei: “Fui à Moscou”. Ele: “Eles sabem, não nega”, foi me dizendo as coisas que se me perguntassem. Aí foi uma coisa muito constrangedora, porque quando eu cheguei na Polícia Federal, o Marcelo não podia entrar comigo para eu prestar meu depoimento, ele teve que ficar esperando do lado de fora e eu fiquei ‘nuinha’, tiraram a minha roupa todinha umas mulheres lá, marcaram todos os meus sinais, nas costas, no braço, na perna, tudo, tudo, foi marcado num esqueletozinho que eles têm lá, marcaram quando eu tinha sinal, se eu tinha cicatriz, não sei o que e tal. Aí depois veio o tal do interrogatório e no interrogatório o que eles queriam saber era exatamente o que que eu fazia em Paris, quem frequentava (risos) a minha casa em Paris, o que era discutido em Paris, entendeu? Era tudo em relação ao pessoal que tava lá. E eu tinha já sido instruída pelo Marcelo, falei: “Não, claro, tem muita gente que vai na minha casa”, “Mas quem?”, “Os meus amigos. Assim não sei, várias pessoas e tal”, “Mas o que discutem? Discutem política?”. Eu falei: “Lógico, discutem política. Quem é que não discute política hoje em dia? Todo mundo discute política”, “Mas que política?”, “Política, política do mundo, não sei o que e tal”. Bom, acabei sendo liberada, não teve... mas fiquei lá fixada, né? E meu cunhado que tinha sido preso, dizia de brincadeira assim: “Você sabe que você é a única subversiva da família? É a única que tá lá, né?”, (risos) porque na lista eu olhava e não tinha Flora, minha cunhada Florita, não tinha Alcir, que era o meu cunhado. Não tinha ninguém, só eu! Aí eu ia embarcar na outra sexta-feira. Fui na Air Maroc, a Air Maroc me deu uma passagem, não paguei outra. Quando foi na quarta-feira, eu falei: “Quer saber? Isso pode dar uma confusão”. Aí, o que eu fiz? Fui pro... peguei essa minha amiga Zuma, peguei o carro do meu cunhado e fui para o aeroporto e falei para ela: “Você fica sentadinha aí, que eu vou fingir que eu vou embarcar. Se tiver algum problema, se eu sumir, não voltar, você espera uma hora e meia mais ou menos, senão liga pro Marcelo, entendeu? Você fica aí”. Bom, eu fui e me apresentei, botei o passaporte. Quando eu botei o passaporte, aconteceu tudo igual: Olha pra lá, olha pra cá. Eu falei: “Sou eu mesma!”. Já fui logo dizendo: “Sou eu mesma, Dora da Cunha, não sei o que, tal, tal”, “Ah, a senhora me acompanhe”. Eu acompanhei, já entrei lá cheia de moral, né, porque eu já tinha feito tudo isso, aí eu podia... Falei: “Isso aqui tá uma bagunça! Como é que pode? Eu já fui na Polícia. O senhor não me mandou ir na Polícia? Eu já fui, já prestei depoimento, já me fizeram isso, isso. O que você tô fazendo... se eu fosse embarcar hoje, tava perdendo a passagem. Novamente, meu embarque vai ser na sexta-feira, mas eu vim hoje pra testar”. Aí quando eu estou lá, aparece o filho de grandes amigos meus nunca disse esse menino não teve nada a ver com política, aí eu olhei, falei: “Bruno, o que você tá fazendo aqui?”, nunca esse menino teve nada a ver não teve nada a ver com política, não teve nada, né? Aí o delegado falou assim: “Você conhece ele?”. Eu falei: “Ó, (risos) conheço, mas ele não tem nada a ver com nada, eu boto minha mão no fogo”. Ele olhou pra mim e falou: “Não sei se acredito”. (risos) Aí eu falei... uma discussão, aí o Bruno não sabia, ele tinha dezoito anos, o que tava acontecendo. Ele tava vindo do Peru e foi preso quando ele chegou. Eu perguntei: “Seu pai e sua mãe sabem que você está chegando?”, não, ninguém sabia. Quer dizer, esse menino ia ficar lá. Discussão pra lá, discussão pra cá, eu falei pro delegado: “Vê a filiação”, pois era outra filiação. Eles tavam pegando o Bruno Fernandes que tinha uma filiação lá que eu não sei qual era e esse menino era Bruno Fernandes filho de Almir e lalala. Aí eles, ficou todo sem saber o que fazer, né, porque como é que vai... eu falei assim: “Esse menino não tem nada a ver, vocês tão pegando a pessoa errada”. Sorte do tal Bruno Fernandes que nessa altura deve ter escapado, porque já (risos) tinham pego o Bruno Fernandes, né? O verdadeiro já tinha escapado, o que eles queriam. Bom, e assim só na sexta-feira quando eu embarquei de novo, aí eu já tava cheia de moral, já cheguei e já fui falando: “Não, meu nome tá aí no computador? Mas eu já fui, já fiz, já aconteci”. Não sei se... passei e viajei. Mas aconteciam essas coisas, né, naquele Galeão. Não sei quantas pessoas podem ter entrado pelo cano, né, ali na chegada, na saída e tudo mais.
(1:26:44) P1 - E qual que foi o outro episódio que você falou que...
R - Esse da volta, né, que eu voltei de propósito lá, quer dizer, eu fui num dia, depois eu voltei lá, eu voltei de propósito para testar. Se eu ficasse, eu perdia a passagem novamente, a Air Moroc não ia ficar me dando passagem toda a vida, né?
(1:27:04) P1 - Agora, em 1980 você se organiza para voltar de vez.
R - Então, em 1980 meu marido defendeu a tese dele lá de Grenoble, a tese dele de Doutorado, e nós...
(1:27:15) P1 - Sobre o que que era a tese de doutorado dele? E a sua de mestrado, que você fez lá?
R - A tese de doutorado dele é um pouco complicada. Vou explicar. Ele trabalhava com o estudo de caso do Porto de Suape. Suape é um Porto lá em Pernambuco e ele fazia uma tese mostrando que não era positivo construir aquele Porto. Eu não sei como é o nome que ele deu agora, que eu esqueci, porque tá em francês inclusive, mas era um estudo muito grande sobre a questão metodológica de análise das viabilidades. E era por aí a tese dele. E...
(1:27:58) P3 - Era porto de quê?
R - Suape? Porto de... tá lá funcionando, né?
(1:28:03) P2 - ________
R - O porto existe, de exportação. É porto de... porto mesmo, de importação, exportação, lá em Pernambuco, né?
(1:28:10) P1 - É o caso dos tubarões.
R - É, que surgiu a história dos tubarões lá. Exatamente. Ah, tá vendo, Suape ele conhece! (risos) Exatamente, os tubarões adensaram, começou a chegar muito tubarão depois da implantação do Porto de Suape.
(1:28:30) P1 - E o seu mestrado?
(1:28:30) P2 - E sua tese de mestrado?
R - Minha dissertação de mestrado foi o seguinte, na época falava-se muito... eu defendi, acabei defendendo depois, tá? 1977 eu defendi, mas eu, por causa da meningite, eu tinha parado e tal. Na verdade, era uma história… seguinte, eu tava num curso num planejamento de educação, o mestrado, o viés era planejamento da educação, e havia todo um folclore de que educação não é planejada, é uma bagunça, que, enfim, nesse país o Ministério da Educação não tem bons planejadores, não sei o que lá, e o meu trabalho no mestrado é exatamente mostrar que não, que é um dos setores mais planejados e mais controlados que tem na sociedade brasileira. Não como um plano... até tem plano de educação, não sei o que lá, mas você tem a lei, as leis de educação, que dizem tudo, com a escola particular, a escola pública, carga horária, o que tem que ensinar, como que deve ser. Você não pode ter uma escola fora daquele jeito, daqueles cânones todos decididos pelo MEC, né? Então, eu trabalho com três setores: transporte, habitação e educação, para mostrar que a educação era muito mais planejada do que, digamos, transporte, que é o setor que todo mundo sabia que era planejado. Você tem Plano Rebouças, Plano não sei o quê, planos aos montes que também nunca saíram do papel, então, portanto, não era tão planejado, assim, historicamente. E a educação sempre foi, né? Desde os jesuítas, eles sempre pegaram sabendo o que que eles queriam fazer, então não era uma coisa assim bagunça, não, não era. Isso era o meu trabalho de mestrado.
(1:30:17) P3 - E o outro?
R - O doutorado? Tese do doutorado? A minha tese de doutorado é sobre, assim, pensar e repensar sobre o desenvolvimento, esse foi o título que eu dei. Quer dizer, o que é desenvolvimento, como é que, o que o desenvolvimento... o que você... o que é crescimento, o que é desenvolvimento, né, e que modelos você pode imaginar para você ter um novo desenvolvimento.
(1:30:49) P1 - Mas, agora, o doutorado foi nos anos noventa?
R - Não, o doutorado (risos) foi tardio. Foi em 2006 que eu defendi a tese. Bom, por quê? Então voltando historicamente, voltei em 1980, nós voltamos em 1980 pra cá. Em 1981 eu me vinculei ao doutorado da PUC, né, eu entrei no doutorado da PUC e comecei a fazer os cursos e tal. Isso em, foi um pouquinho depois de 1981. Voltei em 1980, isso foi em 1982, por aí, início de 1983.
(1:31:24) P1 - Vocês voltaram, foram...
R - Voltei. É, voltei, fui trabalhar, não sei o que, tal, mas entrei para o doutorado. Trabalhei no Senac, que eu trabalhei muito tempo no Senac...
(1:31:35) P1 - Dando aula?
R - Não, trabalhei no setor de planejamento do Senac, no Senac nacional, não no Senac estadual, regional. Trabalhei no nacional. E aí fui para o doutorado na PUC. Mas aí, em 1985, meu marido ficou doente... quer dizer, apresentou, diagnosticou-se a doença. E aí eu parei tudo e foram dois anos - ele morreu em 1987 - em que, na verdade, eu não fiz nada. Não trabalhei, não estudei, não fiz nada. Fiquei muito em função, né? Ele veio, fez cirurgia em São Paulo. Teve um câncer de pulmão, fez cirurgia em São Paulo, depois fomos para os Estados Unidos, passamos um ano nos Estados Unidos, também lá não fiz nada. Ele foi até vinculado à Universidade de Illinois e, portanto, nós fomos para Urbana primeiro, por causa disso. Quer dizer, fomos à Nova York para ele fazer exame de saúde etc., nós ficamos um ano nos Estados Unidos, ele fazendo acompanhamento, mas morando em Urbana, no estado de Illinois, onde tem a Universidade de Illinois. Depois fomos pra Pa... pra Nova York, onde ele teve internado no Memorial Hospital e tal. Então foram dois anos absolutamente fora do ar.
(1:33:11) P1 - Você sai do Brasil pra um tratamento...
R - Pra um tratamento que era recomendado, quimioterapia... não, a quimio ele fez depois. Radioterapia, não sei o que, era de melhor qualidade. Tem um monte de histórias aqui meio negativas em relação à (risos) São Paulo, com o exame de radioterapia que ele fez aqui, sabe, que fez um exame... hoje eu acredito que o médico deva ser melhor do que era na época. Mas, enfim, ele fez uma radioterapia, mas depois apareceram outras coisas e acho que foi aí que nós fomos para os Estados Unidos. E lá, quando ele teve que fazer uma radioterapia, o médico de lá pedia o plano da radioterapia feita anteriormente. Por quê? Uma radioterapia que você faz, inclusive era pulmão, pode atacar a coluna e você pode ficar paralítico, né, você pode ter problemas sérios se você não fizer isso com muito critério. E ele tinha feito aqui a radioterapia para... que o tratamento dele antes da cirurgia foi recomendado fazer uma radioterapia para diminuir o tumor, não sei o que, para poder operar. E aí o médico de lá dos Estados Unidos, que era na verdade um colombiano, Dr. Lanaris, falou: “Eu faço a radioterapia, mas eu quero o plano do que já foi feito, quanto de ‘radio’ ele já tomou e em que qual foi o ângulo, qual foi isso, qual foi aquilo” e não tinha nada disso. Aí começou uma discussão, todo dia, com o médico daqui. Ele ligava pro médico e falava: “Olha só, o médico quer o plano, você não pode me mandar qual foi o plano da radioterapia? Não sei o quê”. O médico em vez de mandar, dizia o seguinte: “O que esses americanos tão pensando? Tão pensando que aqui é tupiniquim? É claro que eu fiz, claro que fiz direito!”. Bom... “Não, ele quer saber se protegeu a minha coluna”, “Claro que protegi!” Bom, isso foram umas cinco ligações. Aí um dia ele falou no telefone: “Sabe por quê? Porque quando eu abaixo o pescoço, eu sinto trincar até lá embaixo na minha coluna”, aí mudou do lado de cá. Aí vou falar uma impropriedade, que aí ele disse assim: “Ah, Ailton, então você está fodido, eu não protegi direito a sua coluna”, (risos) entendeu? Aí foi aquele pânico. Bom, mas fomos lá para o médico e falamos isso para ele: “Olha, não tem plano na verdade”. Aí o cara disse: “Bom, vamos estudar” e fez uma radioterapia e não lesou a coluna, entendeu? Então essas experiências médicas foram horríveis. Posso até contar, não sei se é o caso, do Rio também, fez a cirurgia, depois teve uma... Como é que chama? Broncoscopia. Mas, enfim, então ele foi até... nós saímos de lá em 1987, março, chegamos aqui no Brasil dia 22 de março de 1987 e ele morreu 7 de Abril. Então esse período foi um período que, de fato, eu fiquei em função de ir de uma cidade para outra, de um médico para o outro. Enfim, veio pra São Paulo, foi pra Urbana, fui pra Nova York. Assim fi... quando ele morreu, eu fiquei meio no ar na verdade, né, porque é uma coisa muito interessante, você passa dois anos cuidando de uma pessoa, depois você fica meio sem saber o que você faz da vida, sabe, assim? Isso acontece, você fica assim: “E agora?”. E foi Leandro Conder me botar no trilho novamente. Ele, nessa época, tava na PUC, soube que eu tinha abandonado o doutorado da PUC lá atrás. Eu tinha na verdade trancado a minha matrícula, porque quando eu fui para os Estados Unidos com o Ailton, eu pedi pra trancar a matrícula. E foi uma procuradora minha que foi lá trancar, porque eu não podia, eu já tava lá nos Estados Unidos, já vi logo que eu não ia voltar e tal. Ela foi lá e trancou a matrícula. E eu não sabia nem o que que ela tinha feito, trancou, acabou e tal. Aí o Leandro, tinha uma professora lá, Regina... como era o nome da Regina? Regina de Assis! Regina de Assis era, tava coordenando o programa, aí o Leandro me levou lá e falou: “Essa moça, ‘passou’ uma jamanta em cima dela - me lembro dessa frase dele - e agora a gente tem que ajudar ela a ‘levantar’”. Aí a Regina falou: “Mas como é que é isso e tal? Bom, vamos ver o que aconteceu”. Por sorte, a menina tinha feito um processo, a moça que tinha ido lá cancelar minha matrícula... eu acho que eu tinha pedido pra cancelar e ela trancou. Eu não sei bem qual foi o processo que aconteceu, que eu tinha possibilidade de reabrir, porque já tinha passado não sei quanto tempo, mas eu tinha ainda a possibilidade de reabrir. E aí reabri a matrícula. Comecei... retomei o doutorado na PUC, isso já em 1980... final de 1988, início de 1989. Porque ele morreu em 1987. Isso já é 88. Aí aconteceu uma coisa... Bom, primeiro... em 1987 ele morreu... É, em 1988 eu voltei para o doutorado e em 1989 eu tava desempregada, totalmente. Eu não saía muito de casa, para não gastar dinheiro.
(1:39:24) P1 - Só uma coisa, e as suas filhas?
R - Minhas filhas, olha, nessa época as duas ainda moravam na França. Na verdade, quando o meu marido morreu, a mais velha já morava na França há muito tempo, já era casada praticamente. A mais nova morava comigo quando ele morreu, mas em 1988 foi para Europa fazer curso de teatro. Ela é artista, ela é atriz, foi fazer curso de teatro na escola de teatro lá. Ela já tinha, tava trabalhando aqui em algumas coisas, aí foi, foi para lá e lá ficou. De lá, ela só voltou doze anos atrás na verdade.
(1:40:07) P1 - Você tava sozinha.
R - Eu tava sozinha, né? Eu ficava quietinha dentro de casa, porque eu tinha uma pensão de viúva, e tinha um apartamento próprio, que o apartamento... sim, porque aquele apartamento que a gente vendeu para o meu sogro, acabou sendo da gente de novo quando meu sogro morreu. Na partilha lá das coisas, resolveram que era melhor que o apartamento que já tinha sido comprado pelo Ailton voltasse para ele etc. Então eu morava nesse apartamento na Visconde de Albuquerque, onde tem o assalto, e dali é que eu fui para o doutorado. Mas eu ficava muito porque tava financeiramente precária minha situação. Aí foi rolando até início de noventa, [quando] me arranjaram um emprego aqui em São Paulo, na Secretaria do Menor...
(1:41:05) P1 - Antes só de você continuar, me conta uma coisa. A gente falou tanto de ditadura e exílio e leva e arquivo pra lá, como é que foi pra você e pro seu marido e pra sua família, a anistia e o processo de redemocratização? Como é que vocês sentiram isso? Que vocês pensavam sobre isso à época?
R - Olha só, quando a gente voltou, já tava num processo de abertura muito grande, né, e já tava numa coisa de muita felicidade, de eleição, de Diretas Já, todas essas... a Diretas Já já é 1986, né? Não. 1985?
(1:41:43) P2 - 1984.
(1:41:44) P1 - 1984.
R - 84? Não, eu tava nos Estados Unidos quando votam. Eu tava...
(1:41:50) P2 - Foi em 1984.
R - É?
(1:41:52) P2 - É. Aí depois tem o colégio eleitoral, que é em 1985.
R - O que será que teve em 1986? Que tenho até uma carta da minha irmã falando que fizeram vigília a noite inteira para votação no Congresso. Não sei, não me lembro mais, mas houve alguma coisa. Eu morava em Urbana, eu me lembro de ter recebido essa carta. Bom, mas enfim, 1984, Diretas Já, essa campanha... é verdade, eu fui ao comício das Diretas Já, agora... Foi ali na Presidente Vargas, eu fui lá, e como fui também numa comemoração, negócio de AI-5, que tavam todos lá. Todos, que eu digo, é Brizola, Lula, Ulisses, tavam todos lá. Então já tava esse clima no país. Nós voltamos em 1980, já não era o clima, né, pesado da ditadura, muita gente já tinha voltado e a briga agora era pelas Diretas Já. Então foi uma coisa mais, menos tensa, digamos assim. Me lembro que quando o Ailton foi à Brasília quando teve a eleição do Tancredo. Foi quando a eleição?
(1:43:07) P2 - Janeiro de 1985.
R - Então, ele foi à Brasília, teve a eleição de Tancredo, a eleição direta, aí o Tancredo acaba não assumindo porque tem aquele episódio todo da doença, não sei o que, e morre e Sarney vira o presidente. Então...
(1:43:25) P1 - Vocês não pensavam mais tanto na, enfim...
R - Sair? Voltar pro exterior, essas coisas? Não, não. Nesse momento não passou na cabeça mais não, estávamos todos já reconstruindo o país, trabalhando pela democracia, pela abertura, né, pela Anistia, essas coisas todas. Os grupos, a sociedade se organizando em grupos, cria esse Tortura Nunca Mais. Tem essas, esses movimentos todos lá no Rio de Janeiro. Eleições, depois, de Governador, né, a gente tem. Brizola foi em 1982, né? Então. Aí, já 1982, Brizola é eleito governador do Rio de Janeiro. Então já é todo um clima bem diferente.
(1:44:11) P1 - Tava com problemas, com outros problemas que não esse.
R - Ahn?
(1:44:17) P1 - Tava com, tocando outras...
R - Tava com outras, mas outras preocupações de participação de, na vida pública, política, cidadã, né? Aí sim, tinha muito.
(1:44:28) P1 - E o partido pensou em se recompor ou não, ou... Prestes volta pro Brasil.
R - Aí eu já não posso ser a pessoa mais indicada para falar nisso, porque o partido existe até hoje, né? Passou, teve os rachas todos, o Prestes saiu do partido. Mas eu nunca mais frequentei nenhuma reunião do partido. Tenho meus amigos, mas é como dizia o Armênio, que era um comunista avulso, né? Eu acho que tem hoje por aí muito comunista avulso, (risos) que não tem mais vínculo partidário. Tem muita gente ainda comunista, mas comunista avulso, não comunista partidário, entendeu? E aí não, realmente, a militância foi muito em movimento social, né, teve muito, algumas pessoas foram militar no feminismo, no movimento feminista, né, outras pessoas foram militadar no Tortura Nunca Mais. Enfim, foram organizações que foram surgindo.
(1:45:35) P1 - PT também?
R - PT é muita gente, né? Claro, alguns entraram no PT, como Carlos Nelson, Leandro, Milton Temer, foram todos para o PT. Depois eles saíram para o Psol, saíram do PT para o Psol, mas eles foram, passaram pelo PT. Aí tem as eleições, a eleição do Lula, a campanha do Collor e Lula, que o Collor ganha. Depois tem a saída, o impeachment do Collor ganha. Todo esse clima.
(1:46:06) P1 - Que é quando você, em 1990...
R - Que eu venho para São Paulo, para a Secretaria do Menor, e trabalho na Secretaria do Menor. Eu vim acho que no meio de... até 1991... quer dizer, até 1992, na verdade, eu trabalho lá. Mas no final de 1991... Mas eu mantive o meu apartamento do Rio na verdade. Eu vim para São Paulo, eu tenho essa irmã, essa minha irmã que mora em São Paulo, aí eu ficava na casa dela, mas ela tinha filho, marido, papagaio, cachorro, né, então toda sexta-feira eu... às vezes, toda eu não digo, mas 80% das sextas-feiras eu saía do trabalho, da secretaria, que era ali na Bela Cintra, ia para rodoviária, pegava um ônibus e ia para o Rio. Passava sábado e domingo no Rio. Quatro da manhã eu pegava um ônibus na segunda-feira, voltava e ia direto para secretaria, isso eu fiz muito. E uma das vezes quando eu cheguei no Rio, eu tinha uma secretária eletrônica que ficava lá ligada 24 horas, tinha um professor da PUC, que aí eu tinha novamente abandonado, porque eu vim para São Paulo, abandonei de novo. Falei: “Ah, eu não vou nunca fazer esse doutorado”. Aí tinha um professor lá da PUC, Professor Carmel, ele telefonando para mim e dizendo assim: “Dora, vai ter concurso na UFF, você faça porque você vai passar” aí eu senti tanta firmeza nele que eu resolvi fazer, (risos) entendeu, porque eu mesma não sabia. Fui naquele fim de semana, telefonei para São Paulo, para minha chefe, pedindo que eu não vinha trabalhar na segunda-feira e fui pra UFF pra ver o edital, essas coisas todas do concurso, né, pegar programa e tal, e voltei para São Paulo já com tudo na mão e fiquei estudando, preparando o concurso até... trabalhava de dia, chegava cedo em casa, saía do trabalho correndo para casa e ficava estudando até meia-noite e tal. E fui fazer o concurso, passei. Passei em segundo lugar, na verdade. Eu tive uma dificuldade muito grande na prova de currículo, porque com essa confusão toda “moro em São Paulo, moro aqui”, tinha muita coisa que eu não comprovava de currículo, artigo que eu tinha escrito quando eu tava no Senac, que eu nem sabia mais onde que eu ia achar, coisas assim. Então não podia botar lá no currículo, porque se você não comprova, você, né? Mas aí passei, passei em segundo lugar e assumi em Maio de 1992.
(1:48:53) P1 - Cadeira do quê?
R - Economia política e educação. Aí eu fiz concurso, passei e fiquei militando aí na Instituição, né, foi uma militância institucional, no sindicato, Sindicato dos Professores lá. Então foi, a minha vida, digamos assim, política, passa a ser institucional, ligada à UFF e ligada ao Sindicato dos Professores. Aduff que chama lá, Associação dos Docentes da UFF, ligada ao Andes - Associação Nacional dos Professores de Ensino Superior. Então, foram vários congressos, então foi uma vida aí toda dedicada mesmo à profissão. Foi uma das boas coisas da minha vida, eu descobri que eu adorava! Fiquei muito furiosa quando vi que tinha que me aposentar. Quando me aposentaram, eu não queria me aposentar, não tinha nenhuma vontade. E aí se me chamassem para voltar hoje, eu voltaria.
(1:50:03) P1 - Você se aposentou quando, Dora?
R - 2012, quando eu fiz setenta anos. Na época era setenta. Eu vou fazer oitenta, já falei, (risos) né? Quando eu fiz setenta, eu fui aposentada praticamente.
(1:50:16) P1 - Compulsoriamente.
R - Porque com setenta anos você aposentava. Hoje é 75. Na época rolava uma uma história de que ia passar para 75, mas que estavam esperando o Ayres de Britto se aposentar para provarem no Supremo os 75 anos. Eu não sei se isso é verdade, [se] isso rolou. E depois que ele se aposentou, de fato passou a 75 anos. Hoje, já é 75 a aposentadoria. Mas eu me aposentei com setenta e eu trabalhei lá...
(1:50:51) P1 - Vinte anos.
R - É... não, um pouquinho mais, né? 1992... Ah, é, vinte anos, mas eu tinha dez anos outros, por isso que graças a Deus me aposentei integralmente, que eu tinha trinta anos já de profissão, que eu tinha dado aulas na UERJ, eu dei aula na Cândido Mendes, mas isso tudo como contratada. Fora desse período, antes do período. Aí, em um determinado momento, logo depois que voltei da França, eu trabalhei no Ministério da Indústria e Comércio, trabalhei na UERJ como contratada, eu trabalhei como contratada na Cândido Mendes, na faculdade. Sempre ligada mais à área de Economia política e educação, a partir daí.
(1:51:40) P1 - Vamos falar um pouquinho, então, da UFF.
R - Maravilha. (risos) Adoro. Morro de vontade, eu adoro meus alunos, adorava meus alunos.
(1:51:50) P1 - É exatamente isso que eu ia perguntar. Teve alguma turma ou alunos que te marcaram mais durante esse tempo todo? Você lembra...
R - Vários! Tem alunos que tão na vida até hoje, nunca vai sair...
(1:52:03) P1 - Difícil escolher até, né?
R - Não, eles é que me escolhem, de certa forma, (risos) mas eu... porque é muita gente, né, eu não lembro dos nomes de muitos alunos. Eu sei que foram meus alunos, mas eu não lembro porque é muita gente que você... agora, tem aqueles que ficam ali no teu pé, que te amolam, que vai atrás, que vai pra tua casa, que vai fazer monografia, que pede pelo amor de Deus pra você ajudar e aí vira amigo, entendeu? Isso tem. Tem mais de um aluno que aí vai almoçar, chama para almoçar. Tem um aluno que mora em Xerém e que convida para almoçar lá. Não sozinha, eu, mais outras professoras. Faz um grupo de pessoas, vai fazer encontro. Também faço... não, agora com a pandemia não fizemos nada, mas antes da pandemia também fazia, alguns alunos, meia dúzias assim, que iam sempre à minha casa e tal. Tive uma experiência muito positiva na UFF, eu gostava muito de dar aula, gostava muito da disciplina que eu ministrava, né, gostava muito. E aí também nós tivemos um período muito rico de discussão, por exemplo, de mudança de currículo, do curso. Era o curso de pedagogia, né, então a gente fazia... chama Faculdade de Educação, né? Teve muitas reuniões, discussões, assembleias pra discutir o currículo da instituição. E nesse processo, muita briga também, né, claro, mas nesse processo todo, o currículo que tá ainda vigente, embora ele já tenha sofrido alguma modificação, da minha época, nós criamos no currículo uma coisa chamada Atividade Cultural, coisa que não tinha nos currículos anteriores. Tinha muito essa discussão de que os alunos que vão para universidade pública são ricos, então, os alunos da universidade, pagar a universidade, trabalhar para que a universidade seja paga é uma coisa ‘sopa no mel’ para algumas pessoas, mas para quem tava lá, lidando, sabia que isso tudo não era bem assim, né? Os meus alunos... a minha experiência com esses meus alunos, eram alunos adultos, hein, e tavam na universidade. Eu levei aluno no teatro municipal, eu levei aluno à museu, eu levei, que nunca tinham ido. Eu fiz essas coisas, andar pelo Rio de Janeiro, olhar a arquitetura, descobrir certas coisas, a história dos prédios; não sabiam, nunca viram. Cinema? Era ‘plim plim’, da Globo, né? Aquele negócio só que... até porque, família, não sei, é caro você sair para ir ao cinema, pegar a condução. É caro! E as pessoas não tinham dinheiro, né? Então eu tinha, tinha aluno que acordava às três da manhã para fazer empada e vender lá no sinal antes de ir para faculdade, coisas assim que a gente quando tá lá com o pé na realidade, você vê que não é bem assim a história, né? Pode ser que seja assim em alguns cursos até que te exige, por exemplo, medicina talvez tenha gente que tenha mais possibilidade de não precisar trabalhar para estudar porque... embora muitos trabalham. Mas você tem um curso que é quase o dia inteiro, tem uma série de circunstância. Mas os cursos, os demais cursos, não, não é. Pelo menos na universidade federal que eu andei, não foi... eu trabalhei na UFF, mas eu conhecia outras e não era assim. Os alunos, certos cursos, inclusive, os alunos eram bem classe média baixa, né? E aí a gente inventa... aí nós botamos essa coisa no currículo que foi assim uma coisa revolucionária, porque isso não tinha nos currículos e a UFF passou a ser, esse curso passou a ser um curso referência, entendeu, e abrimos um curso, uma frente avançada, em Angra dos Reis. Por que em Angra dos Reis? Porque o PT ganhou as eleições em Angra dos Reis, na prefeitura, e nós conseguimos convencer que eles tinham que participar, que a UFF entraria com os professores, né, mas que a prefeitura tinha que participar com alguma coisa e participou dando alojamento para os professores, refeição para os professores que estavam lá e o local onde a gente daria aula. Isso era meio chatinho, porque era uma escola, uma escola de criança, tinha desenhinhos na parede, não sei o quê. A gente recebia alunos da universidade para trabalhar num ambiente que não era propriamente, né, montado para aquilo, era um curso... na verdade, esse curso, a gente pensou para a rede municipal, né, que tinha muita gente trabalhando, muitos jovens que trabalhavam, davam aula para primeiro grau, não sei o que, e que não tinham diploma universitário. Então nós trabalhamos. Eu acho que quase todos os professores de Angra dos Reis são formados pela UFF, quase todos. Não posso dizer tudo, porque eu não sei, né, não conheço tudo, mas muitos alunos da rede a gente tinha. Então eles trabalhavam à tarde e à noite - o curso era noturno - a gente trabalhava dando aula. Eu dava aula às vezes duas vezes por semana lá em Angra. E aí nós começamos, quando eu digo nós, um grupo de professores, né? Particularmente, eu trabalhei muito com uma amiga minha, que é uma pessoa muito interessante, muito capaz, sabe, muito sensível, chama-se Lea Calvão, e nós trabalhamos, nós criamos um curso de cinema na UFF. Mas não é curso de cinema pra formar nada, porque isso tem, tem lá o Iacs, que é o curso pra formar diretor, roteirista. Acho que só não forma ator, não sei. Nós criamos um curso pra fazer os nossos alunos verem filmes, discutirem filmes e ampliar o horizonte. Por isso que a gente ia ao cinema, teatro, levamos a museu, isso tudo com esses alunos que eram alunos da Atividade Cultural. Todo semestre a gente tava lá. Teve dias da gente ter sessenta alunos numa sala assim, gente sentando no chão porque era o, foi... deu até inveja, sabe, assim? Briguinhas internas, não sei o quê. Porque a gente fazia exposição dos alunos, eles tinham que fazer um caderno sobre como é que foi essa atividade e tal. E a coisa foi muito engraçada porque quando começou, primeiro eu falei que eu não trabalhava mais daquele jeito, porque quando (risos) eu tava, voltasse das férias, eu só ia trabalhar se fosse assim, cinema. Falei cinema porque eu gosto de cinema, podia falar outra coisa, mas falei cinema. Viajei, passei férias com as minhas filhas, fui pra França e tal, quando eu voltei a coordenadora me chamou e disse assim: “Como é que você tá pensando nesse curso de cinema?”. Eu falei: “Curso de cinema? Não tô pensando”. Aí ela falou: “Mas já tem quarenta alunos inscritos”. Eu falei: “Jesus, como é que vai ser isso?”, eu falei cinema... E aí comecei a me preparar pra esses quarenta alunos e tal. E comecei tateando, nunca tinha feito isso, né? E aí foi muito engraçado que no final do curso, uma aluna, no relatório da aluna veio assim: “Foi muito, uma experiência muito boa esse curso. Começou assim, a gente não tinha a menor ideia para onde a professora estava indo. (risos) ‘O que será que ela vai fazer?’ (risos) Mas a coisa foi ganhando corpo, ganhando corpo e foi muito bom”. Aí eu falei: “Não é que essa menina tem razão?”, eu entrei na sala de aula fingindo que tava dando um curso, que eu não sabia para onde que ia. E finalmente nós ficamos quinze anos trabalhando com isso, além das nossas disciplinas, né? Então, essa minha amiga dava aula de educação e trabalho e eu dava aula de Economia política e educação. E aí a gente exigia dos alunos o seguinte: “Podemos ter alunos de vários anos aqui, né, e nós vamos discutir as questões teóricas que vocês estudam lá no curso, vocês vão aplicar quando vocês forem ver o filme, entendeu?”. Várias questões, não só a coisa da emoção, né, que não necessariamente você precisa fazer nenhuma discussão teórica, basta você... mas entender, porque eles, muita coisa eles não entendiam, né, então começaram a ver. Não gostavam de filme nacional, achavam que filme nacional era tudo ruim, aí a gente começou a apresentar alguns filmes: “Olha, são uns filmes que a gente... vamos ver alguns filmes e tal”. Muito bom! Os relatos que eu tenho, nós escrevemos um artigo, ainda não publicamos, eu e essa minha amiga...
(2:01:47) P1 - Sobre essa experiência.
R - ...sobre essa experiência. Tem já uns quarenta... não sei, a gente, não acho que ninguém vai querer publicar. (risos) Nós escrevemos, entendeu? É uma experiência muito interessante porque eu hoje tenho clareza que é importante você trabalhar com arte em todos os níveis, mesmo no... a não ser que você esteja, lógico, né, quando você tá na Europa que os alunos desde pequenininhos já têm acesso a tudo isso, mas aqui, não. Eu tenho uma irmã, tinha uma irmã, que ela faleceu, que dirigia uma creche pública, semi-pública, em Búzios, e ela trabalhava com uma ideia semelhante, né, então ela, chegava a criançada, chegava na creche, tava tocando música clássica, tava tocando música brasileira de, entre aspas, qualidade, né, e todo ano no final do ano tinha um projeto que eles faziam, um projeto com um tema qualquer, todo mundo participava. E foi um sucesso, no final todo mundo em Búzios queria ir pra aquela creche, e não tinha vaga, né?
(2:03:02) P1 - Agora, em 2006, você finalmente, então, terminou o doutorado.
R - Então, aí depois que eu tava na UFF, ficou todo mundo me cobrando: “Afinal...”, porque eu entrei como professora assistente, porque eu não tinha doutorado. Aí ficou todo mundo cobrando, cobrando, e um dia eu falei: “Eu vou terminar isso”. Também tem uma coisa: lá na UFF, eu não sei se é assim todas as outras universidades, você podia fazer assim, você vai professor auxiliar de ensino - isso não existe mais hoje, mas existia na época -, você passa depois de tanto tempo, você faz relatório lá, passa para assistente, aí assistente um, dois, três, quatro. Aí sempre tem um aumentozinho de salário, não sei o quê. Aí, de assistente, você passa pra professor adjunto. Hoje você tem até uma categoria de professor associado, tá? Então aí você tem um acréscimo de salário. Eu fui assistente um, dois, três, quatro; parei. Eu podia ter ido adjunto, mas com um salário um pouco menor, porque tinha adjunto com o doutorado, adjunto sem doutorado. Eu comecei a achar que era ridículo aquilo, que eu não ia, eu fiquei muito tempo como assistente. Alguém um dia me disse assim: “Mas que burrice, você podia ter ido”. Eu falei: “Não, mas eu não acho justo, não sei o quê”, “Então faz o doutorado”, “É, vou fazer”. Aí eu fui fazer o doutorado, retomar doutorado. E aí, bom, eu comecei tudo de novo. Já tava trabalhando na UFF, já tinha outra ideia. “Bom, então eu vou fazer na USP”, aí venho fazer... até abriu um concurso, eu vim fazer o concurso, me candidatei lá na entrevista, a Maria Victoria gostou da minha proposta, não sei que lá, falou que queria ser orientadora.
(2:04:58) P1 - Maria Victoria Benevides.
R - Ela foi a minha orientadora por isso. Tinham dez professores lá ouvindo os projetos dos alunos, não sei o que, e ela logo sugeriu que eu pudesse ficar com ela, e eu também não tinha porque dizer não, falei: “Tá bom”. E aí vim, fiz o doutorado com a Maria Victoria na USP. Passei um ano na França depois, no Instituto da América Latina, fazendo uma bolsa sanduíche e voltei em 2006, eu defendi a tese. Aí passei a professora adjunta, entendeu? Mas eu consegui, me aposentei como professora associada nível um; que tem até nível quatro. Professora associada nível um.
(2:05:44) Você se aposentou em 2000...
R - 2012. Foi quando eu fiz 70, né? Nasci em 42.
(2:05:50) P1 - E como é que foi a vida depois de se aposentar?
R - Chata. (risos) Ah, eu me divirto, faço coisas, mas eu gosto mesmo é... durante muito tempo, até hoje, de vez em quando, mas agora mais raro, durante muito... que agora os alunos não me conhecem mais, né? Os alunos que entraram, não tem dez anos, doze anos isso... não, dez anos isso. Então os alunos que saíram, que estavam fazendo monografia, tavam entrando quando eu saí, muitos ainda acabaram na minha mão, eu mesmo trabalhando de graça, ou seja, não tô... não é de graça porque eu tenho a minha aposentadoria, portanto eu sempre acho que não é de graça, mas eles ligam, pedem pra ajudar na monografia, não sei o que e tal, e você se mete. Mas isso também foi... eu continuei no sindicato durante um tempo, até pouco antes da academia, quando eu tive na diretoria do sindicato lá da UFF. Mas é um sindicato meio pesado, meio sectário, (risos) difícil um pouco, mas um pessoal muito legal. Antes, pouco antes da pandemia, eu já tava meio afastando de lá porque, fazendo outras coisas, e aí não voltei mais ao sindicato, mas tenho contato com eles até hoje, eu tô na lista lá, me mandam umas coisas, mas eu não, nunca mais fui em nenhuma reunião. Bom, hoje também não tem nem porquê ir, porque eu não tô na diretoria, não tô em nada. Mas tem assembleias, né, de vez em quando sou convocada. Até vou a assembleia de vez em quando, porque, pra ver o que que tá acontecendo, senão eu vou ficar desligada, né, da coisa, quais são as reivindicações que eles tão tendo, tal. Eu, de vez em quando, faço, participo ainda, e participo também no núcleo de estudos que se chama Estudos de Dados de Trabalho e Educação, entendeu? São coisas que eu faço, ser parecerista da revista Trabalho & Educação, mas nada como dar aula, nada como ter contato com os alunos e brigar com eles e discutir, não sei o quê. Nada, (risos) entendeu? É muito bom, muito bom. Eu recomendo, faz bem à alma. Faz bem, é verdade. A gente acha que vai cansar... e teve época que me cansou muito. Teve época que eu dava aula de manhã e de noite, teve época que eu fui coordenadora do curso. Então, faleceu o coordenador, aí até resolverem que ia ter, pediram se eu podia assumir interinamente pra novas eleições. Só que era por dois meses e eu fiquei um ano como coordenadora. E eu acordava seis, cinco, cinco e meia, sei lá, tinha que estar sete horas na faculdade, porque eu dava aula das sete ao meio dia, e dava aula de seis às dez e meia, então eu... e ficava na coordenação a tarde toda, então eu muitas vezes dormi no carro. Eu acabava a aula, subia na coordenação, botava meu almoço lá na geladeirinha e avisava pra minha secretária: “Vou dormir. Se tiver algum ‘pepino’, você me acorda. Se não...”, aí eu ia para o carro lá no estacionamento, dormia uma hora e meia, por aí, depois voltava, almoçava e trabalhava na coordenação. Aí cansava um pouquinho, mas nada de, nada grave. Sábado e domingo recuperava tudo.
(2:09:30) P1 - E me conta uma coisa, como é que foi a... como é que foi não, como é que tá sendo a pandemia para você? Como é que foi num dos começos...
R - Menino, não fala não, eu tive três vezes covid. (risos)
(2:09:41) P1 - Você contou pra gente. (risos)
R - Três vezes, rapaz! Então, mas tem gente que já teve três vezes, eu não sou a única não. Ando por aí, de vez em quando eu fico sabendo que tem alguém que teve três vezes. Não é tão comum, mas existe. Não, olha só, quando veio a pandemia, quando houve o fechamento, não sei o que, eu fiquei absolutamente isolada. Isolada mesmo, na minha casa. Eu não ia na rua nem, não ia fora para botar nem o lixo; eu botava o lixo na porta e o meu porteiro, que também trabalhava tudo de máscara, de não sei que lá, ele vinha, recolhia tudo e eu não tinha contato. E peguei! Compras eram pelo telefone, internet, não sei o que e tal, e peguei. Então eu não posso... aí fazia, eu tinha muito medo. Nessa primeira etapa, eu tive muito medo. Aí eu fazia exercícios respiratórios quando eu tinha falta de ar, eu tinha uma janela grande, eu abria, ficava a madrugada fazendo exercício respiratório para ficar calma, para respirar melhor, não sei o que lá. Bom, passou. Aí passou, eu achei que eu tava: “Bom, tá bem, já tive. Pronto, agora já tive, não vou ter (risos) mais, acabou”, não era verdade. Mas eu tomei as vacinas, tomei três vacinas e tive a tal da Delta, quando ela andou por aí. Aí eu já tava circulando, porque eu tive, eu fiquei com sequelas pequenas, mas fiquei, e eu tinha que fazer uma fisioterapia, então eu ia no negócio da fisioterapia. E era um negócio grande, com muita gente. Todo mundo de máscara, mas era fechado, ar condicionado, não sei o que e tal. Acredito que eu peguei ali. Acredito. Mas aí peguei. Aí fiquei, dessa vez fiquei também muito mal.
(2:11:43) P1 - Que foi a Omicron então?
R - Não, essa é Delta. A Omicron foi leve. (risos) A Omicron... (risos) A Omicron eu comecei, eu tive uma febrinha, tive uma dorzinha de cabeça, mas não parei de fazer nada, também fiquei, sempre a gente fica dentro de casa, né, porque, pra não contaminar ninguém, mas ali eu não tava mal, podia até sair se eu quisesse, mas eu não saía só por uma questão de não contaminação. Mas essa terceira foi tranquila. E de lá para cá a gente circula, né, de máscara. Espero que não tenha... A minha sobrinha que é pneumologista e que trabalha... trabalhou e trabalha ainda de frente com essa história de covid, ela diz o seguinte: 90% das pessoas hoje que tem covid, que estão internadas, que chegar a ter que se internar, não tomaram vacina. Esse é o depoimento dela. 90%. Claro que tem um caso ou outro, enfim, uma pessoa mais vulnerável, sei lá. Mas 90%, pode ver que não foi, é gente que não foi vacinado. Então eu tenho esperança, né? Eu digo que eu já tomei cinco doses, porque eu tomei a Astrazeneca, depois eu tomei a Pfizer, depois eu tomei a Pfizer e aí quando eu fui tomar a quarta perguntaram: “Qual que você quer?”. Falei: “É assim? Posso escolher?”, “Pode”, eu olhei o que que tinha, Janssen, tomei a Janssen. A Janssen não vale por duas? Que era dose única. (risos) Tomei cinco doses! Por que cinco? Se ela era dose única. Eu falei: “Agora eu tô, cinco”...
(2:13:29) P3 - Agora tão fazendo as pessoas que tomaram Janssen, tomarem de novo.
R - Ah, pois é, mas já tem tempo, pra quem tem tempo. Mas no início era assim: tomava duas doses da Astrazeneca e uma dose só da Janssen. Aí eu falei: “Então tomei cinco doses”. Não sei, espero não ter mais nada.
(2:13:49) P1 - _______, como é que tão suas filhas hoje?
R - Minhas filhas tão ótimas, meus netos idem. Netos lindos! Já viu neto feio? Conhece algum? (risos) Categoria inexistente. Neto não é feio por definição. Então, a minha filha mais velha vai fazer livre docência agora na USP... na Unicamp! Ela é professora da Unicamp. Voltou da França, fez concurso, passou em segundo lugar também. Não passou em primeiro lugar, passou em segundo lugar por questões de currículo também. Ela passou em primeiro lugar na prova de aula, primeiro lugar na prova de arguição, não sei o que, e na hora do currículo ficou pra trás aí na soma dos pontos.
(2:14:41) P1 - Que Instituto que ela tá, Dora?
R - IEL - Instituto de Ensino Linguísticos. Ela trabalha com teoria da literatura. Mas ela fez o doutorado lá na França e agora vai fazer livre docência. E tá bem, tá trabalhando, mora lá em Campinas. Tá morando agora em Campinas, já morou no Rio. Mora em Campinas e vai ter que trabalhar muito ainda para se aposentar.
(2:15:11) P3 - _________
R - Ahn? O que? A Cristina tem três filhos. O mais velho tem 32 anos... Quantos anos você tem?
(2:15:20) P1 - Trinta.
R - Você podia ser meu neto. (risos) 32 anos. Ele tá fazendo... ele fez, ele tem uma carreira muito bonita. Não sei o que ele vai fazer depois da vida, mas ele fez um negócio na França que se chama École Normale Supérieure, que é fora do circuito universitário, eles chamam les grandes écoles, né? Parece que são cinco que tem lá. Aí é tudo um curso mesmo para elite, aquilo ali é para formar a elite pensante e dirigente do país. Não vai ser o caso dele não, que o negócio dele é outra coisa. Mas ele fez concurso, entrou e fez todo o curso lá, com isso, ele pode fazer inclusive cursos onde ele quer, ele ganha para isso, sabe? A École Normale Supérieure dava um salário e dava instalações. Por isso que eu digo, é formação da elite mesmo. Quando ele terminou a École Normale, ele foi fazer o programa dele de doutorado, aí ele teve no Brasil... ele adora o Brasil, então ele teve no Brasil já várias vezes, e nessa fase da École Normale, ele teve um convênio com a Ufrj, ele veio, passou um ano aqui, fez uma espécie de Mestrado aqui, uma coisa assim, voltou para lá e carrega os títulos, carrega as coisas, entendeu? Vai fazendo um currículo, compondo um currículo. Ele agora tá num programa de doutorado em que ele está, o estudo é um doutorado assim na, digamos, intersecção da filosofia, da sociologia, da antropologia, uma coisa assim, e aí o trabalho, o estudo de caso dele é a Favela da Providência no Rio de Janeiro. Então ele tá trabalhando como é que é a inserção dos movimentos da favela na sociedade, na urbanidade, uma coisa... eu sei que é uma coisa por aí, é a tese dele. Ele deve estar defendendo no início do ano que vem. Então, ele hoje dá aula como professor visitante de vez em quando, chamado para dar aula, mas não tem emprego, né, porque vai lá contratado professor substituto... professor visitante, desculpa. Professor substituto é aquele professor que você contrata, ele não é concursado, você pode ter um ano no máximo renovável. Aqui no Brasil é assim, renovável por mais um ano. Depois disso você perde o emprego, não pode ficar, ou faz um concurso. Mas como não tem concurso, não tá abrindo concurso no mundo, então ele não fez nenhum concurso. Ele foi chamado, já deu aula. Enfim, agora eu acho que ele tá na fase de desemprego, tá no chômage lá e terminando o doutorado. A irmã dele, minha neta querida, chama-se Sônia, ela mora... tá casada, mora em Lisboa, fez um curso na (Sans Paul?), se formou, trabalhou um ano na África, na Costa do Marfim com políticas de saúde na questão dela lá, e abandonou tudo e ela hoje é professora de yoga. (risos) Tem um ateliê de yoga e dá aula, curso, faz o workshop no mundo inteiro. Já foi para o Laos, já foi... ela agora mesmo tava não sei onde aí. Viaja, passa vinte dias dando curso nesses lugares todos e tal, mas tem o ateliê dela em Lisboa. O marido dela também vai pela mesma linha, dá aula de meditação. Não sei como é que é esse negócio, eu acho que dar aula de meditação... eu falei: “Como é que é dar aula de meditação?”, mas dá. Até já comentei isso com Mauro uma vez. Não é, Mauro? Eu falei: “Aula de meditação? Vou meditar”. (risos) É que é isso. Bom, mas enfim, feliz da vida, tá lá. Ele também é um amor de pessoa, gosto demais dele. E a minha neta mais nova dessa minha filha, ela entrou agora, tá com dezessete anos, na faculdade de medicina. Passou o (baque?) brilhantemente, não sei o que fiquei e tal, e já tá indo morar sozinha em Paris, já conseguiram alugar lá um estudiozinho para ela e ela vai trabalhar lá na universidade, na área. Já fez curso de pequenos socorros, essa coisa toda. Adora esse negócio de medicina. Não sei como é que pode também, mas ela adora. Então, essa é minha filha, né, que morou na França, se formou na França, tudo, toda a vida dela é muito ligada à França, né, marido francês, os filhos nasceram lá então ela tá... se aposentou lá e veio fazer o concurso aqui, entendeu? Queria ter uma experiência de viver aqui um pouco, que ela vive lá há muitos anos, né? Ela veio, nós fomos para lá, elas eram crianças, depois nós voltamos, ela ficou, depois ela veio e ficou aqui uns dois anos, voltou para lá, pra universidade, e ficou lá o tempo todo. A outra, Tânia... Essa minha filha é a Cristina. Essa é Tânia. Tânia fez um curso de atriz, né, conforme eu falei, um curso de artes lá e trabalhou na França, fez filmes, fez teatro bastante e tal, tem duas filhas, né, uma mora em Barcelona... você vê como é caro visitar neto, né? Olha bem. Barcelona, ela faz curso de psicologia, trabalha, dá aula de inglês, de francês, porque ela fala muito bem as duas línguas, e tá lá, vai terminar o curso dela de psicologia e não sei o que ela vai fazer da vida. Mas é solteira ainda, tem 26 anos. A outra tá com dezoito anos, mora em São Paulo. É a minha neta do brechó. Mora em São Paulo e tá terminando agora o ensino médio, vai passar o Enem e vai fazer um vestibular, segundo ela, pra USP. Não sabe ainda direito se vai fazer história, se vai fazer arquitetura e urbanismo. Não sabe, ela tá meio perdida nessa história. Falei: “Vai estudando, depois que você fizer o Enem você decide”. Mas a área dela não é nem da saúde nem das ciências exatas, portanto qualquer uma outra coisa aí que ela decida, né? E a minha filha, ela foi casada com um francês, depois que ela se separou do marido, ela precisou muito trabalhar; ela largou a profissão de atriz, né? Ela tinha feito novela na Globo, não sei que e tal, quando tava no Brasil, quando veio para o Brasil, mas largou tudo e virou professora de francês. Ela dá aula de francês para sobreviver. Aí casou de novo, como ela tá agora numa situação mais estável financeira, ela tá voltando a ter projetos na área do teatro. Ela tá agora entrando na... não é concurso que chama. Como é que chama?
(2:23:18) P1 - Audição?
R - Não, é pra fazer, concorrer a financiamento, não sei o quê. Enfim...
(2:23:24) P1 - Edital.
R - É, tá entrando em vários editais, Sesc não sei o que das quantas e tudo. Eu sei que ela tá trabalhando nisso, propostas disso, de tradução de peça, montagem de peça, não sei o que lá. Ela tá com um projeto nessa linha, entendeu? Então, tá, a família tá bem.
(2:23:42) P1 - E você?
R - E eu tô aqui, né? (risos) Já falei, tô procurando emprego. Você tem algum para me dar? Eu tô doida para trabalhar, eu não aguento essa vida de não trabalhar. Sabe, eu acho essa vida muito chata, de não trabalhar. Você gosta, Cristina?
(2:24:02) P3 - Adoro!
R - Ah, pois é. Eu queria muito que fosse assim, eu queria adorar, porque aí eu ia fazer um monte de coisa, né? Só precisava ter um pouquinho mais de dinheiro para poder fazer (risos) tanta coisa que eu gostaria, um monte de viagens que tão programadas. Eu tenho uma viagem programada na minha cabeça faz tempo pra ir ao Marrocos, mas eu quero ir para o deserto. As minhas filhas dizem que vão me deserdar, porque só pode ser maluquice. “Vai andar de camelo?”. Falei: “Vou, vou andar de camelo. Qual o problema?”. Passar uma noite no deserto acho que vai ser uma experiência, mas, enfim, não há dinheiro para isso, entendeu, esses projetos todos. Se você quiser roteiros de viagem, eu tenho vários. Vários! Mas quando você vai fazer custos, (risos) aí a coisa enrosca, entendeu? Então, já tive sonhos assim: “Eu vou morar três meses na Itália. Vou fazer um projeto de morar três meses na Itália, vou aprender mais italiano, falar italiano, não sei o quê”, também precisa de uma certa... não tem quem financie, (risos) entendeu? Então, eu não sou auto financiável nesses projetos, então vai ficando por aí. Moro no Rio de Janeiro... claro, tenho muitos amigos, mantenho vários contatos, participo de várias lives de não sei o que hoje em dia. Moderno isso, né? Eu tenho horror, mas é o que tem. A gente não pode reclamar não, é o que tem e tem que fazer o que tem. Faço reunião por internet, não suporto, mas faço. Acho que a gente fica tudo deformado. É verdade. Mas enfim... é mais fácil presencial, entendeu? Eu acho mais interessante. Mas vamos tocando, né?
(2:25:59) P1 - Infelizmente tenho que fazer a última pergunta agora, que é pelo tempo, né...
R - Que seja uma pergunta boa, né? Porque a última pergunta não vai me botar na parede. (risos) O que é? Qual é a última pergunta?
(2:26:13)P1 - Não, só perguntar como é que foi para você esses dois dias que você me contou um pouco da sua história aqui.
R - Engraçado. Foi interessante, foi engraçado. A primeira sobretudo foi muito engraçada, não é, que a gente se divertiu. Acho que foi muito interessante. E a minha filha diz que tá com olho nisso, entendeu, porque essa minha filha há três anos atrás ela me chamou e disse assim: “Mãe, você vai fazer oitenta anos - essa coisa de lembrar, né? -, vai fazer (risos) oitenta anos, a gente tava querendo fazer uma entrevista com você pra depois montar um volume para você no dia dos seus oitenta anos, se você quiser você dá pros seus amigos”. Falei: “Tá maluca? Eu vou fazer nada disso, não sei o quê”. Não fiz, aí ela ficou irritadíssima achando que eu tenho má vontade, que não sei o quê. Eu falei: “Não, vou fazer nada disso, não sei o que e tal” e foi. Eu tô fazendo um negócio que eu não sei se eu vou conseguir, que é a história da minha família, entendeu? Porque eu tenho família que veio de Portugal, que veio da Espanha, que teve escravos. A família tem tudo isso. Para os meus netos, a minha ideia é fazer um negócio porque como vocês não conheciam Tenório Cavalcanti, eles não sabem nada da família também. Então eu me... porque tem histórias assim, “a árvore genealógica”, não é isso que eu quero fazer, eu quero saber de onde veio, o que fez, como foi, quais eram as posições que essas pessoas tinham e tal. Então eu resolvi que eu ia fazer isso e que eu não ia fazer depoimento nenhum. Bom, ela ficou irritada e tal. Agora, outro dia ela me disse assim: “Muito bom isso que você tá fazendo, porque depois vou entrar em contato com esses meninos e vou pedir para eles...”, assim. (risos) Eu falei: “Ah, mas não pode não, porque isso aí é patrimônio do museu, (risos) não pode não”. Acho que foi bom, mas foi uma coisa prazerosa, né, digamos. Foi uma coisa prazerosa, não teve nenhuma tensão maior, nada disso. Claro que eu deixei de contar uma porção de coisa, algumas conscientemente, outras inconscientemente. (risos) Mas foi bom, acho que foi bom. E o que que vocês acharam? (risos)
(2:28:41) P1 - Vocês querem perguntar alguma coisa?
R - Não, tô...
(2:28:44) P2 - Não, não ______
R - Pode perguntar.
(2:28:48) P2 - ____ foi maravilhoso. Só, a única coisa que vai ter que fazer é, na transcrição, completar os nomes.
R - É, porque eu vou falando como se todo mundo soubesse quem é, né? Exatamente. Não sabia o Tenório Cavalcanti, por que que vão saber quem é Modesto? Tem que saber! (risos)
(2:29:10) P2 - _____ essas pessoas.
R - É verdade, isso aí tem que fazer mesmo.
(2:29:15) P1 - Eu adorei. Pela minha parte, eu posso dizer que eu adorei.
R - Que bom! Que bom! Não foi cansativo para vocês?
(2:29:21) P1 - Não!
R - Não foi... (risos) obrigada você! Que bom, que bom. Então... ótimo.
Recolher