Memória da Literatura Infanto Juvenil
Depoimento de Marilda Castanha
Entrevistada por Eduardo Barros, Thiago Majolo e José Santos
Parati 04/06/2008.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV015
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Carolina Mirabeli e Ligia Furlan
P/1 – Bom dia, Marilda.
R – Bom dia.
P/1 – Eu queria começar com a nossa pergunta de praxe, com você dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Marilda Castanha, eu casei e não mudei o nome, continuei com o mesmo nome para não ter trabalho de mudar documento. Ficou Castanha mesmo, que é do meu pai, a data de nascimento é 11 de janeiro de 64. Qual é a outra pergunta?
P/1 – Local.
R – Nasci em Belo Horizonte. E o que mais?
P/1 – É isso. Você conheceu seus avós?
R – Sim. Bom, eu conheci meus avós maternos; meus avós paternos vieram da Itália, eram imigrantes, “Castagne”, eles assinavam Pedro Castagne e Hermelina Balde. Vieram da região de Verona os dois, mas se conheceram no Brasil, numa fazenda, a fazenda Leopoldina. Eles casaram e depois foram para Belo Horizonte, meu pai é o caçula de uma família de nove filhos. Bom, então tem essa história; sempre teve esse imaginário fantástico na nossa família, do avô que veio de navio, dos avós que vieram de navio. E da família da mamãe eu conheci os dois avós, só que era o primeiro casal, não sei se o primeiro, mas foi um dos primeiros casais desquitados em Belo Horizonte. Vovô era militar, era autodidata e muito culto. Vem daí, do vovô, o prazer pelos livros. Vovô Calvino e vovó Alaíde, eu conheci os dois, mas eles não moravam na mesma casa, então o vovô sempre ia ver vovó, era apaixonado com ela, assim, mas separaram por uma situação... Vovó teve Parkinson muito nova, e a mamãe cuidava da vovó. A nossa relação com o idoso era quase simbiótica, a gente não sabia quem era a mãe e quem era a filha, porque a mamãe sempre cuidando da vovó e a...
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Depoimento de Marilda Castanha
Entrevistada por Eduardo Barros, Thiago Majolo e José Santos
Parati 04/06/2008.
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MLIJ_HV015
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Carolina Mirabeli e Ligia Furlan
P/1 – Bom dia, Marilda.
R – Bom dia.
P/1 – Eu queria começar com a nossa pergunta de praxe, com você dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Marilda Castanha, eu casei e não mudei o nome, continuei com o mesmo nome para não ter trabalho de mudar documento. Ficou Castanha mesmo, que é do meu pai, a data de nascimento é 11 de janeiro de 64. Qual é a outra pergunta?
P/1 – Local.
R – Nasci em Belo Horizonte. E o que mais?
P/1 – É isso. Você conheceu seus avós?
R – Sim. Bom, eu conheci meus avós maternos; meus avós paternos vieram da Itália, eram imigrantes, “Castagne”, eles assinavam Pedro Castagne e Hermelina Balde. Vieram da região de Verona os dois, mas se conheceram no Brasil, numa fazenda, a fazenda Leopoldina. Eles casaram e depois foram para Belo Horizonte, meu pai é o caçula de uma família de nove filhos. Bom, então tem essa história; sempre teve esse imaginário fantástico na nossa família, do avô que veio de navio, dos avós que vieram de navio. E da família da mamãe eu conheci os dois avós, só que era o primeiro casal, não sei se o primeiro, mas foi um dos primeiros casais desquitados em Belo Horizonte. Vovô era militar, era autodidata e muito culto. Vem daí, do vovô, o prazer pelos livros. Vovô Calvino e vovó Alaíde, eu conheci os dois, mas eles não moravam na mesma casa, então o vovô sempre ia ver vovó, era apaixonado com ela, assim, mas separaram por uma situação... Vovó teve Parkinson muito nova, e a mamãe cuidava da vovó. A nossa relação com o idoso era quase simbiótica, a gente não sabia quem era a mãe e quem era a filha, porque a mamãe sempre cuidando da vovó e a gente cuidando também. Bom, acho que estou me alongando muito. E aí vem a história do vovô, que é a história dos livros. Ele chegava lá em casa sempre com uma revista em quadrinhos, colocava a gente na perna dele e falava: “vem cá, vamos fazer palavras cruzadas”, e era um avô que sabia de tudo. Estudava Esperanto, estudava e falava de Psicanálise, mas ao mesmo tempo... E de cultura popular, eu herdei até os livros dele, fiquei com os livros de cultura popular do vovô. E tem a história do filho caçula dele, o meu tio, definitivamente, foi o grande incentivo da gente na leitura. O tio Zeno, que a gente chamava de tio Nego, e o tio Nego morava conosco; era uma casa que morava a vovó, que tinha Parkinson, mais o tio Nego e mais três tias, todos na casa da gente, com papai, mamãe e duas irmãs. E o tio Nego era um grande... Para você ter uma ideia, o armário dele era enorme, e uma porta era de roupa e as outras cinco portas eram de livros, livros e revistas do Cruzeiro e Fatos e Fotos. Então eu lembro, por exemplo, aquela foto do Guimarães Rosa, o tio Nego tinha aquela revista e depois... Nem está mais com a gente. Então várias coisas que... Por exemplo, arte, eu vi assim, primeiro na revista O Cruzeiro; então eram coisas que eu ficava vendo encantada... Reproduções de Leonardo da Vinci eu vi na Revista O Cruzeiro. Então a gente começou a ver isso a partir do Tio Nego.
P/1 – Deixa só eu recuar um pouquinho no tempo. Eu queria que você falasse o nome dos seus pais e a atividade deles.
R – Eles estão vivos, mamãe chama Zilda Lopes Castanha, e papai Henrique Castanha. A mudança dos nomes é porque vovô foi naturalizado na época da segunda guerra, ele trabalhava na Prefeitura de Belo Horizonte, aí do Castagne passou a Castanha. Mas voltando na mamãe e no papai, os dois nasceram em Belo Horizonte. O que mais você perguntou?
P/1 – Profissão deles.
R – Mamãe costureira, os dois têm o quarto ano primário. A mamãe parou de estudar para cuidar da vovó, mamãe tinha 13 anos quando vovó teve Parkinson, e as outras irmãs foram trabalhar, foram ajudar, e mamãe ficou cuidando da vovó. E foi por causa da doença mesmo que eles se separaram, o meu avô e minha avó. Bom, o que mais... O papai era funcionário público da prefeitura de Belo Horizonte, e ele era o que não gostava muito de ler, mas é uma figura folclórica até hoje, ele tem casos assim... A gente viveu uma infância que... Você imagina, três pessoas doentes na casa. Porque tinha a vovó com Parkinson, uma tia com Parkinson e esse tio Nego, maravilhoso, super marcante na vida da gente, que era uma das pessoas mais sensíveis que eu já conheci, e que tinha um diagnóstico de esquizofrenia, mas era a pessoa mais carinhosa com a gente.
P/1 – Marilda, então você tinha uma casa grande. Onde ficava essa casa?
R – Fica ainda, meus pais moram nessa casa; é uma casa que tem de tudo, tem uma jabuticabeira, tem o quartinho, que era o quartinho de costura da mamãe e que depois virou meu atelier, está lá, foi o meu primeiro atelier. A casa está lá.
P/1 – Que bairro que é?
R – Bairro Santa Efigênia, bem próximo. Antes, quando a mamãe... Era um bairro de chácaras, porque há 60 anos... Ela mora nessa casa há mais de 50 anos, pode pôr 60 anos numa boa, e era uma casa com muitas situações surrealistas ali dentro. Um belo dia apareceu um cachorro numa gaiola, aí você imagina, o cachorro era insano, o cachorro não parava quieto, aí botaram ele dentro de uma gaiola; era uma coisa muito maluca. Papai tinha uma coisa... Criava galinha. Ele tinha um negócio de... Como é que fala? Olha só as imagens, acho que todas essas imagens foram ficando na minha cabeça mesmo, papai tinha um negócio para ninguém pegar ovos velhos, ele escrevia o número de cada ovo, o número do dia, e ai de quem pegava. E isso é recente, até bem pouco tempo atrás. Então eu tenho umas coisas assim, umas imagens... Escrever em ovo eu lembro do Bartolomeu, que escrevia em parede. Lá em casa, escrevia em ovo, anotava, e cada ovo tinha uma numeração.
P/1 – E irmãos, você tem irmãos?
R – Tenho duas irmãs, eu sou a do meio... Fala também um pouquinho delas?
P/1 – É, fala o nome delas e...
R – É a Marinês Castanho e a Marilene, tudo com “M”. A Marinês é Psicóloga e a Marilena também fez Artes, ela é ceramista.
P/1 – De que as meninas brincavam nesse casarão lá em Santa Ifigênia?
R – Muito de casinha, de desenhar, a gente adorava fazer roupas de bonecas. Minha mãe era costureira, então a gente fazia roupas de boneca. E tinha uma brincadeira que hoje eu não vejo mais, que era boneca de papel. A gente comprava a boneca de papelão grosso e depois a gente criava as roupas, a minha irmã mais nova... E isso era desenho. Aí você cria as roupas e faz aquela dobrinha pra... Isso a gente ficava horas e horas, e o que mais que a gente brincava?
P/1 – Vocês brincavam mais entre vocês? Ou tinha uma turma também com meninos e...
R – Tinha pouco, tinha primos. Todo final de semana os primos, porque era casa de vó. Então em casa de avó vêm todos os primos nos finais de semana, esportes a gente sempre... Meu apelido era “taioba”, para você ter uma ideia. O negócio era ler, estudar, desenhar; então esporte nós sempre fomos as péssimas, daquelas da bola passar e “ui, sai de perto”. Isso era mais atividade. A gente brincava mais de fazer coisas, mais essas brincadeiras de meninas mesmo; se bem que papai levava sempre a gente... Ah, tinha um jogo de botão, porque papai adorava, papai adora futebol, eu estava esquecendo do jogo de botão.
P/1 – Vocês jogavam botão?
R – Jogávamos, não lembro mais... E papai tem até hoje as peças da infância dele, ele guarda numa mala, fica em cima do guarda-roupa.
P/1 – Então não era muito na rua, vocês ficavam brincando mais em casa?
R – Não era muito na rua, a brincadeira era dentro de casa. O quintal era grande, é grande, é um quintal grande, então era mais dentro de casa mesmo.
P/1 – Vocês tinham bichos? Relações com animais?
R – Tinha, tinha papagaio, tinha cachorro. E era isso, era mais boneca, ler, brincar, desenhar.
P/1 – E no mundo das histórias, seus pais contavam histórias para vocês?
R – Não, mamãe não era muito de contar histórias, não. Uma tia, a tia Ruth, que também morava com a gente, é que era contadora de história. Mas tinha um negócio assim, sexta-feira da paixão era o dia que eles gostavam de contar história de assombração, na sexta-feira da paixão; iam uns tios pra lá contar essas histórias de susto. “Ah, porque eu vi uma alma penada”, “fulana chamou, virou, não tinha ninguém”. Eu não lembro mais das histórias, mas eram essas coisas meio assim, meio assustadoras, bastante assustadoras.
P/1 – E na sexta da paixão?
R – Na sexta da paixão. Deixa eu lembrar mais coisas de histórias... Esse tio que contava pra gente, pegava os livros e saía contando, e o avô.
P/1 – Então ele tinha um interesse muito grande por leitura?
R – Por leitura.
P/1 – Do que ele gostava?
R – Ele gostava das seleções, também colecionava. Ele também comprava os livros pela lombada, se a lombada fosse dourada. Se fosse bonita a capa, ele comprava. Aí, uma vez, foi muito engraçado... Ele era solteiro, e uma pessoa de um temperamento muito puro, muito casto, religioso, e aí, um dia, pela capa, ele comprou “Dona Flor e seus dois Maridos”, quando ele começou a ler, ele arrancou o meio do livro, ficou só com a capa e falou: “isso as meninas não podem ler”. Então ele cuidava bem assim da gente, aí eu fui lá e peguei o livro.
P/1 – Que dica ele deu?
R – Eu falei: “opa, se não pode, agora que eu quero”. Então ele via um tanto de coisa. Tinha uma coleção, tem ainda, isso está lá em casa com a mamãe, “Ler e Saber”, uma coleção da lombada laranjada, isso ele comprou pra gente. Tinha reproduções, olha só, Tom Sawyer, Huckleberry Finn, as Viagens de Gulliver, tudo em quadrinhos. É um barato isso, isso está lá em casa. Cavalo de Tróia... Então a gente lia essas coisas e folheava, todo dia dava uma passadinha no quarto do tio Nego para folhear livros. É um barato.
P/1 – E nessa época você já teve acesso a Monteiro Lobato?
R – Ah sim. Aí foi na biblioteca da escola. Monteiro Lobato não tinha lá em casa ainda não. Já na adolescência a gente tinha Monteiro Lobato lá em casa, mas na escola bem mais cedo, com oito anos. Eu lembro o dia que eu li Reinações de Narizinho na casa da mamãe, peguei na escola e a orelha começou a ficar vermelha, de tanto que eu entusiasmava com aquele livro, e é um dos livros que os meus filhos mais gostam, hoje eu leio pra eles. Dava uma queimação aqui, eu não sei te explicar por que, mas eu acho que a própria emoção, o envolvimento com o livro. Monteiro Lobato me queimava as orelhas.
P/1 – Então você foi para a escola? E a escola era onde?
R – Estadual, a uns dez quarteirões, a gente ia a pé. Sempre estudei em escola pública, era escola estadual no mesmo bairro, em Santa Ifigênia, Escola Estadual Henrique Diniz e lá ainda tinha aqueles versinhos “Escola Estadual Henrique Diniz caiu da cama quebrou o nariz”, a gente falava isso.
P/1 – Tem alguma professora que te marcou, assim?
R – Acho que sim, a da quarta série, Dona Helena, mas eu acho que as professoras desse iniciozinho... Acho que mais ainda a do segundo grau, eu acho que depois eu posso até falar um pouquinho. Tem uma coisa que eu queria falar desse início, era a relação com o desenho nessa fase, sempre fui... Sabe aquela coisa, aquela ali gosta mais de desenhar, vai lá que ela faz um desenho para você. Então, sempre fui aquela que gosta de desenhar, eu adorava, ficava toda inchada e fazia um desenho pra alguém. Eu lembro uma vez que papai pediu para reproduzir um Santos Dumont de uma nota, acho que era um cruzeiro. Tinha a imagem impressa de Santos Dumont, e esse Santos Dumont fez um sucesso na família. Meu pai ficava orgulhoso, isso era um barato. Então sempre teve muito incentivo para o desenho, até que um dia... Mamãe era costureira e tinha um colecionador onde ela colocava os desenhos e os moldes. Minha família toda tem uma coisa com o fazer: uma bordava, outra costurava. Na família do papai, o artesanato é uma coisa mineira, de ficar bordando, e às vezes a gente passava as férias bordando pano de prato, vestido, isso pra gente era divertido. Mas voltando, aí eu tirei todos os papéis da mamãe e falei: “eu estou me preparando agora para ser desenhista de história em quadrinhos”. Eu falava isso desde pequena. Papai até conta que na época do Natal ele perguntava o que cada uma queria ganhar de presente, e eu falava que era uma caixa de lápis de cor. A mais velha pedia livros, a menor pedia boneca e eu pedia uma caixa de lápis de cor.
P/1 – E como é que era o lápis de cor da sua infância, era diferente de hoje?
R – Não, é esse mesmo, não é aquarelado, mas é esse mesmo lápis de cor.
P/2 – Quais os outros desenhos... Como você lembra bem desse de Santos Dumont, nessa fase mais da infância, adolescência, você se lembra de outros desenhos marcantes?
R – Lembro e tenho em casa, mamãe é uma grande educadora. Eu acho que ela teve uma sacada. Acho que é porque ela não estudou, então ela tinha esse desejo muito grande de todo mundo gostar de ler e tal, e incentivar, e ela guardou todos os nossos desenhos de criança. Então isso está na minha casa hoje, e um belo dia eu peguei, e tem a ver com algumas coisas que eu faço. Na época da Belas Artes, teve uma fase lá de desenhar uns objetos, uns bules, e um belo dia, eu pego esses desenhos de criança, e eu fazia a mesma coisa lá na infância.
P/1 – Intuitivamente...
R – Intuitivamente. Ficou guardado, ficou adormecido.
P/1 – Que bacana! E você guarda, então?
R – Guardo, não sei onde vai parar tanto desenho, porque agora estou guardando dos meus filhos, eu não sei onde vai chegar isso. Eu tenho algumas coisas legais assim dos anos 70... Eu nasci em 1964, com seis anos eu estava na escola.
P/2 – Você desenhava quadrinhos, nessa época já?
R – Não, isso era brincadeira que eu falava: “vou ser desenhista de quadrinhos”, mas fazia... Na verdade eu ficava pintando, desenhando; sempre tinha em casa um pincel, uma tinta, tudo improvisado, mas sempre tinha alguma coisa assim.
P/1 – E Marilda, nessa época já tinha livros infantis ou era mais Lobato e essa literatura universal juvenil?
R – Não, livros infantis a gente não tinha não... Você fala no formato de hoje, assim?
P/1 – É, na escola você já tinha acesso a esses autores?
R – Livros de poemas Terezinha Casa Santa, Dona Alaíde, a Alaíde Lisboa, isso é o que a gente lia naquela época. É interessante que as pessoas, em Minas... É um livro que só vende em Minas, não sai dali, Bonequinha Preta, Bonequinho doce parece que é um patrimônio das montanhas. A Dona Alaíde é o nosso patrimônio.
P/1 – E nessa época, que você está na escola, tendo acesso a vários autores, já te ligava, então, essa coisa das ilustrações, os desenhos? Os livros não eram muito desenhados.
R – Não, não eram não, era mais texto, não ligava não. Eu lembro que eu gostava de inventar, de desenhar, de rabiscar sempre. Mamãe também guardou uns cadernos, a gente tem caderno da primeira série, segunda, até boletim tem lá em casa. E esses cadernos, sempre nas últimas páginas têm esses rabiscos soltos, que é também o que eu faço até hoje. E daí é que vem a parte que eu mais gosto na hora que eu vou criar, porque a intuição vem daquela última página. Sabe quando você está falando ao telefone e está rabiscando? Isso hoje é o meu mote para criar, é dali que eu pego muita coisa para pôr nos livros, quando você ver um desenho mais maluco, pode saber que foi semi criado no telefone ou numa mesa de bar. Então, eu tenho blocos e blocos disso, não é pouca coisa não. Por quê? Porque é onde eu me solto mais, são os desenhos mais intuitivos. Na hora que você fala assim “vou fazer um livro tal”, aí, você dá um freio. Na hora que você não tem compromisso com nada, como, por exemplo, conversando e desenhando, aí sai mais livre.
P/1 – E conta um pouquinho da sua adolescência?
R – Foi muito bacana, porque essa minha irmã mais velha foi dar aulas numa escola particular lá de Belo Horizonte. A Marinês, no São Tomás de Aquino, aí chegaram os livros infantis lá em casa. Então assim, eu tenho a maior gratidão pela Marinês. Mas isso eu já estou com 14 anos, ela foi dar aula com 17 e eu estava com 14; aí Marinês chega com um tanto de livros bacanas lá em casa.
P/1 – Tipo o quê?
R – Cecília Meireles, “Ou Isto Ou Aquilo”; Bartolomeu Campos Queiroz... Ah, aí ela conhece Bartolomeu, porque ele foi dar umas palestras no São Tomás, e depois, ela me leva. Acho que isso é até mais para o final da adolescência, mas nessa fase a gente viu isso tudo: Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa... Quem mais? O que eu adoro, que fez Caneco de Prata, João Carlos Marinho.
P/1 – Então Bartolomeu apareceu cedo?
R – Bartolomeu apareceu com a Marinês dando aula para a terceira série e trazendo tudo lá para casa. E também, aí estou fazendo o curso Normal. Todas fizeram Magistério, iam ser professoras, e aparece também Lígia Bojunga. Foi onde eu li Casa Amarela, Angélica. Então, na adolescência, por volta dos 16 ou 17 anos, eu estava lendo isso tudo, O Sofá Estampado... Foi nessa época que eu descobri, depois conheci a Ana Raquel, e depois vai mais pra frente.
P/1 – Ah, a Ana Raquel mineira, que mora na Bahia agora.
R – É, em Trancoso.
P/1 – E aí, você já pensava em fazer faculdade na Belas Artes?
R – Já, já falava que queria desenhar, fazer Belas Artes. E não deu outra, terminei o curso e já fui estudando para o vestibular. Passei nesse mesmo ano, e já não tinha mais dúvida, era isso que eu queria fazer. Na verdade, tive um pouquinho de dúvida sim, que é aí que vem aquela professora lá da frente, uma professora de História, do segundo grau. Tive uma dúvida entre fazer Belas Artes ou História, uma leve dúvida, depois eu vi que era desenho mesmo. Por causa até dessa professora, a Maria Helena, que passou a paixão por História.
P/1 – Como é que foi esse período? Conta pra gente como que era a sua faculdade.
R – Da faculdade? Bom, quando eu comecei ainda não tinha certeza. Tinha descoberto a ilustração por via dessa irmã, e estava fazendo... Na verdade eu ficava muito perto do pessoal da restauração, que eu gostava muito, tinha ali no Cecor [Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais]. Eu gostava muito do movimento de restauração de quadros. Enfim, quadros, escultura. Estava com seis meses, uma amiga nossa de Belas Artes, a Marines, fica sabendo de um curso na Miguilim que pode juntar as duas coisas.
P/1 – O que é a Miguilim?
R – A Miguilim era uma editora, editora e livraria da Maria Antonieta Cunha e da Terezinha Alvarenga; tinham duas outras sócias que eu não vou lembrar o nome, mas, enfim, era lá em Belo Horizonte e Marinês dando aula. A Miguilim começa a dar alguns cursos, a Antonieta e o Bartolomeu começam a dar alguns cursos lá na escola dela, cursos ou palestra, foi aí que eu conheci o Bartolomeu, ouvindo, e nisso tinha também algumas coisas na Miguilim “ah Marilda, você gosta disso, vai lá” e lá estava eu. Então todo sábado eu ia para a Miguilim; eu até já contei pra Antonieta, não tinha dinheiro, estava estudando ainda, não tinha dinheiro para comprar, mas ficava lá sentadinha na Miguilim, folheando um por um, era um barato. Aí, um belo dia, Antonieta me pergunta se eu não queria fazer um curso de férias sobre literatura infantil. Era um curso lá, no mês de dezembro, e quando eu termino esse curso, eu estava com seis meses ou um ano de Belas Artes, ela me pergunta se eu não queria ilustrar um livro, então...
P/1 – Que rápido.
R – Foi rápido, foi uma sorte, não sei por que. Enfim, acho que isso só mesmo perguntando pra ela, porque ela pergunta se eu não queria fazer uma proposta, uma proposta não, na verdade ela tinha cinco títulos e estava pensando em dar um título para cada ilustrador, mas eu tinha que ilustrar os cinco. Aí ela escolheu um deles, que foi o Tonico Bode Diferente, e eu não sabia nada de ilustração. A gente não tinha escola de ilustração, não tem em Belo Horizonte.
P/1 – Espera aí, vamos situar o ano que é?
R – Isso foi em 1984, eu estava com 20 anos, e aí eu faço esse desenho. Eu estava com um ano e meio de Belas Artes, eu fiz e foi aprovado. E quando eu vi o livro pronto, falei: “nossa, não era nada disso que eu queria fazer, vou parar por aqui, stop, pausa”, e parei um pouquinho. Veio uma outra coisa interessante: eu dava aula, dava aulas para crianças, aí o Pitágoras me chama para ir para Carajás, e eu vou.
P/1 – Carajás, no Pará?
R – É. Aí eu tranquei tudo, tranquei Belas Artes, fui para Carajás e morei lá um ano dando aula de Artes no Pitágoras.
P/1 – É a Vale do Rio Doce.
R- Eu fui pela Vale do Rio Doce, fui professora lá.
P/1 – Ah, que bacana. Conta um pouquinho, então, desse ano que você passou no Pará, o que foi você mudar de paisagem tão radicalmente assim?
R – Talvez no fundo, no fundo, aquela vontade de morar sozinha “para tudo, vamos viver sozinha um ano”. E foi super legal, porque ao mesmo tempo em que esgotou aquele ano, eu falei: “eu quero voltar, continuar meu curso de Belas Artes.” Voltei correndo, eu lembro que levei na bagagem um livro de História da Arte e ele ficou lá, quieto. No dia que eu abri esse livro, eu falei assim: “não, tenho que voltar”, aí eu voltei pra casa.
P/1 – Ah, que legal.
P/2 – Eu queria fazer uma pergunta num momento anterior: como é que foi esse primeiro processo de criação?
R – Eu tinha uma certeza só, não legendar o desenho. Acho que é uma coisa que me persegue até hoje, falar nas entrelinhas. Tem uma ilustração que virou até a capa que, na verdade, era um bode de circo e crianças querendo assistir o circo e tal. Eu não desenho o circo, só desenho um menininho levantando a lona, mas era muito precária a técnica, assim, tudo muito precário. Eu só tinha a ideia, vamos dizer assim que eu tinha o conceito, mas eu não conseguia passar esse conceito.
P/1 – Mas, então, você já tem aí 20 anos de estrada.
R – Tenho, pois é. Aí, quando eu vi pronto, falei: “não é nada disso, fecha”. Fechei o livro, parei, e quando eu retorno de Carajás, já venho decidida: “Agora eu vou fazer de tudo para me dedicar à ilustração.” Então às vezes eu não sei se comecei em 85, fiz em 84 e ele saiu em 85 ou se comecei em 87 mesmo, que é onde eu considero que comecei mesmo, por causa dessa fechada. Vamos dizer assim, tem dois começos: um oficial e outro alternativo.
P/1 – Marilda, quer dizer, você pega aquele livro em Carajás e fala: “tenho que voltar, a minha praia é outra” e que são os artistas que você se identificava na época, assim, que você admirava o trabalho dos grandes...
R – Miró... Então a minha cabeça ia... Ah, tem uma história bacana para contar, aliás, tem duas histórias legais que eu estava esquecendo: uma é que com esse negócio de gostar de desenhar − eu vivi isso agora −, eu estou falando na infância, depois eu volto lá nos artistas.
P/1 – Pode ir, não tem problema.
R – Porque na infância tinha uma prima que fazia pintura, fazia aula de pintura com aquele estojo bacana cavalete e tudo, e eu era louca para fazer essa aula, e era caro. Todo ano eu falava: “mamãe, me matricule”. A mamãe me levava lá, apreçava e falava: “filha, não dá para te matricular”, porque mamãe não trabalhava, só o papai e tal. Eu voltava toda chorosa. Hoje eu agradeço por ela não ter me colocado, porque hoje eu vejo... Sabe aqueles desenhos de perfil com uma lágrima? Aquelas praias... Era isso que a professora dava. Hoje eu falo assim, “Viva a mamãe que não me colocou, ainda bem que não teve dinheiro, porque era uma tragédia”. E ia amarrar, eu acredito que ia amarrar. Então não tinha dinheiro para colocar numa aula, mas sempre deu tinta e papel dentro de casa. A gente nunca parou de desenhar, nunca deixou de gostar. Outra coisa que eu achei legal é que lá em casa era assim, quando fazia dez anos de idade, tinha dois presentes marcos, um do papai, vamos dizer assim, um do universo masculino, e outro do universo feminino, que era da mamãe. O papai era um relógio Mondaine, você fazia dez anos, ganhava um relógio, todas as três. Eu ainda tenho esse relógio, e a mamãe era uma carteirinha da biblioteca pública. Fez dez anos, ela ensinava a gente como ir até lá de ônibus na biblioteca central, ali na Praça da Liberdade, e levava a gente para fazer essa inscrição. E toda semana a gente ia lá e trocava livro. Então eu acho um barato esses dois presentes definitivos com dez anos. Vocês já dão conta de olhar as horas, de ter vida própria, assim, de ter compromissos, olhar o relógio e de ter o caminho da biblioteca pública. Foi bacana.
P/1 – E que presente.
R – Isso não é onda, é verdade mesmo, ela fez isso com todas as três.
P/2 – Marilda, então, retomando, fala pra gente um pouco das influências, das paixões que você tinha nessa época... Por quais artistas, nessa época do seu retorno ou desse período, que você passou lá em Carajás...
R – Bom, por isso que eu estava até contando antes sobre essa história da aula de pintura. Então, tinha aquele negócio de achar que arte era esse desenho, saber pintar direitinho, o domínio da técnica. Eu cresci sempre achando que ia encontrar isso na Belas Artes, porque era a referência que eu tinha. Bom, quando eu entro na Belas Artes, levo um choque. Um choque ótimo, porque não era aquilo. Então, de repente... Aí é que eu vou descobrir os artistas. Antes de Carajás eu já tinha feito um ano de Belas Artes, um ano e meio mais ou menos, aí quando eu vou descobrir isso, quando eu vou descobrir os artistas, eu encontro os que eu tinha citado antes, Miró, Picasso, sim, não era o primeirão que me tocava. Ou seja, toda essa ousadia, toda essa... Sabe, esse desconcerto, provocaram um desconcerto na minha cabeça, e comecei a ver. Na mesma época eu dava aula para crianças. Então tinha a paixão pelo desenho de criança, porque eu sempre gostei do que estava à margem: desenho de criança, desenho indígena. Uma exposição que me marcou muito foi o Museu do Inconsciente, tudo aquilo que era meio escondido, porque era meio à margem, me interessava muito, porque não era oficial.
P/2 – E como era essa experiência sua dando aula para criança? Conta um pouquinho do ambiente escolar.
R – Era fantástico. Era fantástico no sentido assim... Eu gostava. Sempre gostei de crianças, era fantástico, mas eu não quis continuar dando aula. Então há controvérsias nisso, mas acontecia que eu ficava muito próxima do desenho delas e via como aquilo podia ser um caminho para relembrar daqueles meus desenhos lá de infância, e começava a perceber a língua que a criança fala. Nessa época eu comecei a pensar que era como um país estrangeiro, a criança e a infância, porque a gente não consegue entrar direito nesse país ou num planeta, vamos dizer assim. É mais que um país, é um planeta, e eu fui percebendo isso. Curtia cada vez mais os desenhos delas, e comecei a ver como é que eu poderia fazer isso lá na Belas Artes. A Belas Artes deu esse corte, sabe? O mais importante não é o que eu penso, é o que eu sinto, isso é que eu descobri na Belas Artes. Por exemplo, a proximidade com o real, eu tinha fotografia. O que eu queria era o não real, era o imaginário. Achei a palavra: dar aula para criança era um exercício do imaginário, do dia a dia. Então foi fundamental por causa disso, e está presente até hoje. Agora eu retomo com meus dois filhos lá dentro de casa, que é a aula do imaginário o tempo todo.
P/2 – E em termos factuais, digamos assim, você retorna de Carajás e aí você tem esse reinício?
R – Aí volto para a Belas Artes e continuo dando aula para crianças.
P/1 – E como é que você se reaproxima do mercado editorial, digamos assim, depois daquela primeira experiência em 1984?
R – É engraçado isso, porque aí... Eu volto de Carajás com uma pequena poupança, porque eu trabalhava lá dia e noite, de manhã e de tarde. E foi com esse dinheiro de Carajás que eu falei assim: “vou para a Bienal do Livro.” Aí eu vou para São Paulo, e lá conheci Edmir Perrotti. Fui com meu pastão de desenhos e foi um barato isso, porque sempre esteve ligado. Mamãe falava muito assim pra gente: “nós não temos condições de dar tudo, mas vocês vão atrás”. Então, era um casal com muito boa intenção e deixando a gente mais ou menos à vontade para conduzir essas coisas. Então a gente tinha isso, juntava o dinheiro, depois ia lá e fazia o resto. Nesse momento, em 86, que eu vou à Bienal do livro e já conhecia a Antonieta − e ela estava lá − também fiz um curso. Conheci quem mais? Conheci a Lúcia Pimentel. Então foi nesse momento, voltando de Carajás, que eu começo a conhecer o mercado editorial.
P/2 – E essa sua experiência em São Paulo, na Bienal, você conheceu todas as pessoas... Quais as reações que você encontrou ali?
R – Eu não me esqueço disso e ele também não esquece o grande encontro. Foi com Edmir Perrotti um dos grandes encontros. O Edmir até já falou isso comigo, que ele me viu escondida no meio de uma pasta azul de todo tamanho, cheia de desenhos, e mostrei aquela pasta. Eu lembro dele falar assim: “não Marilda, ainda não está na hora, eu não posso te passar nada”, porque ele trabalhava para a Paulinas na época. Trabalhava não dentro da Paulinas, ele dava uma assessoria e tal, isso foi em 86 “não posso agora, não tenho nada para te passar, mas continue trabalhando” e tal. E esse “não” dele foi ótimo, porque eu vi que ali naquele momento realmente não estava bom, mas um dia poderia estar. Aí, voltei para o hotel e fiz um desenhinho com um cartãozinho, deixando um abraço, um desenhinho personalizado. No dia seguinte eu entrego esse cartãozinho pra ele. Ele fala que foi nessa hora que ele não se esqueceu de mim, por causa desse desenhinho; então esses desenhinhos feitos ao léu, sabe? Sem intenção. E isso é que me marca até hoje. Não sei se vou adiantar um pouquinho, mas foi nessa época, aí eu juntei mercado editorial com a experiência das Artes Plásticas. Então tinha nas Artes Plásticas naquela época. Hoje eu acho que não (é?) uma coisa bem direcionada para você ser artista plástico mesmo, participar de exposições, fazer quadros, não tinha um foco na ilustração. E eu fazia os meus desenhos lá mais para o lado da ilustração, como se fossem quadros. Então nessa época eu fui aluna do Amílcar de Castro, do Agro Apocalipse. Eles ficavam na minha cabeça. Assim, nem tanto o Amílcar. Fui aluna do Márcio Sampaio, eles falavam assim: “escolha: seja ou ilustradora ou artista plástica”. Mas eu não queria escolher, eu queria fazer as duas coisas numa só. Então acho que isso foi fundamental, passar pela Belas Artes, porque ela me formou como pessoa, como visão de mundo mesmo. Quem admirava aquele desenho lá da lágrima, lá do início e depois fui conhecer outras coisas. Foi exatamente por causa da Belas Artes, ela faz esse marco. E aí vem, eu reconheço no meu trabalho de hoje esse caminho aberto que é a necessidade de ser... Vamos dizer assim, de fazer um trabalho plástico cada vez mais e misturar, não faço só ilustração. Eu quero fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Sei que é um trabalho para ser reproduzido, sei que é uma coisa em série, mas, no fundo, é como se cada arte pudesse também botar na parede, vamos dizer assim. Então vem daí essa junção, essa confluência.
P/3 – E esses desenhinhos, é nesse momento que você percebe, assim, o imaginário aflorando?
R – Acho que é nesse momento mesmo. Sabe aquela expressão: “jogar conversa fora”? Os desenhinhos são isso, eu estou jogando conversa fora, ou “conversar fiado”. Então é nessa hora que eu estou mesmo fazendo sem compromisso de nada. Eu preciso deles ao começar um trabalho, eu ponho eles em cima da mesa, se não tenho ideia nenhuma, vou pegando um ou outro. E me salvam, são meus salvadores.
P/2 – E qual foi a primeira, quer dizer a segunda experiência como ilustradora? Qual livro foi?
R – Aí foi o Tico Tico da Perna Quebrada, já foi na Editora Lê, já estava em 1987. Porque acontece o seguinte: como a gente não tinha formação de ilustração, a UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais] fazia uns cursos, umas oficinas. O Festival de Inverno que era um momento fantástico de laboratório pra gente. Então em 87 eu vou fazer o festival em São João Del Rei, aí entra o Nelson também na história...
P/1 – Foi quando vocês se conheceram?
R – Foi, foi lá que a gente se conheceu.
P/1 – Conta um pouquinho dessa história pra gente?
R – Conto, é gostoso contar. Estou lá no Festival de Inverno em São João, fazendo oficina de ilustração com o meu grande mestre, Paulo Bernardo Vaz, que depois virou meu amigo. É, o Paulo é professor ainda hoje. E a história dele é projeto gráfico, o foco dele central, ilustrador e projetista gráfico, programador visual, é isso, e a Ana Raquel. Aí vem a história: era oficina de ilustração, mas eu estava pintando, fazendo aquarela. Para ter ideia, para ilustração eu tinha que pintar primeiro, fazer quadros separados, estava desenvolvendo pinturas. Tinha lá três desenhos na mesa, aí entra o Nelson conversando com outro amigo da sala que era amigo dele, o Tavinho. Estava batendo papo com o Tavinho, porque o Nelson vem da caricatura, e o Tavinho também fazia caricatura. Conversa e fala assim: “quem fez esses desenhos? Que desenhos lindos”. Eu falei: “fui eu” e daí a gente começou a conversar. E estamos casados, e estamos juntos há 21 anos. A gente ficou namorando um tempo e depois o Nelson foi embora para São Paulo. Casamos, e hoje a gente tem 16 anos de casados, com a história dos livros. E aí a convivência com o Nelson foi muito bacana. Não só da gente estar juntos gostando de artes e vendo coisas juntos: cinema, teatro e conversando sobre isso tudo. E principalmente cinema, era o que a gente mais gostava de ver. E o Nelson foi me passando esse lado mais prático, vamos dizer assim, de ir às editoras. Eu já tinha um pouco essa experiência, mas com o Nelson isso ficou mais forte, mais fortalecido. Aí, vem de novo o lado masculino, o relógio Mondaine, o lado dos compromissos. Eu acho que o Nelson tem esse pé assim, muito pé no chão, muito cabeça, assim, pensante, nessa parte. Eu era mais do sonho, mais avoada, do imaginário, achava que tudo virava ilustração. Qualquer cena que eu via na rua “ah, aquilo vira ilustração”. E o Nelson já tinha um pé mais no chão. Então, foi bacana esse encontro aí, exatamente quando eu estou voltando de Carajás, eu voltei um ano antes. Estou desenhando, estou fazendo as coisas e aí a gente começa a seguir juntos o caminho.
P/2 – E aí qual é o segundo livro? Você disse o nome do escritor?
R – Aí foi o Tico Tico da Perna Quebrada, e logo depois... Aí, fiz um monte de livros depois disso. O Nelson vai morar em São Paulo no ano seguinte, em 88, e eu, de certa forma, falando assim com ele: “cai na ilustração, Nelson, vai por esse lado”. Porque o sonho dele era ser mesmo pintor. Sabe aquela coisa que meus professores ficavam “tem que ser pintor”? Ele já era. E ele é autodidata, mas ele fazia pinturas, exposições e tal. Aí o Nelson, um belo dia, desiste de tudo e fala: “vou morar em São Paulo” e vai, e eu vou visitá-lo. E nessa época ele tinha uma entrevista marcada na Editora Scipione, e eu estava lá. Ele falou: “vamos lá comigo, leva seus desenhos e tal”. Conclusão: eu saio com trabalho e ele não. Então tudo da gente foi meio construído assim, junto, os dois duros e de repente eu volto com trabalho. E aí, desse trabalho, eu junto uma grana de novo e juntos a gente compra um apartamento. Foi quando ele desiste de São Paulo, a gente casa e ficamos juntos, e estamos juntos até hoje. Mas foi assim, um vai para um lado, sabe? Você vai para uma porta e sai pela janela. Então foi mais ou menos assim.
P/2 – E de lá pra cá − isso é 88, 89, mais ou menos − de lá pra cá você poderia falar pra gente alguns marcos assim, pessoais, que você tenha na sua carreira? De livros que foram especiais para você? E podem ser também marcos pessoais, se você quiser juntar.
R – Aí em 89 veio... Deixa eu lembrar aqui primeiro, foi o Tico Tico, depois vem o Pula Gato, e têm vários outros livros que agora eu não estou conseguindo lembrar... Ah, teve algumas coisas com a Miguilim antes um pouquinho, teve de “Três em Três de Reis em Reis”, depois teve esse, O Tico Tico da Perna Quebrada. Depois teve, deixa lembrar aqui... Eu acho que já pula mesmo para O Pula Gato, que é o primeiro livro sem texto. Aí eu tenho vontade de fazer... E foi no ano que a gente casou, aí O Pula Gato dá uma virada, dá a segunda virada, porque aí é um livro sem texto, eu estou fazendo aquarela. Ainda aí mais pra frente, eu viajo. Nessa viagem eu vou para a Bolonha; aí na Bolonha abre tudo. No primeiro dia, aquela vontade de parar, e não... Não quero fazer mais nada disso. Já estou em “O Lagarto”... Foi em 92, que aí ganhei o primeiro prêmio do Japão, o primeiro prêmio que eu ganhei. Não ganhei o primeiro prêmio do concurso não, era um prêmio incentivo. “O Pula Gato” acontece em 94, eu vou para a Bolonha em 95, eu vou à Bolonha na feira, e o que acontece? O Nelson não vai. Eu volto com uma mala de livros! Eu lembro disso, a gente sentando e começando a estudar, estudar pintura, técnica, o que eles fazem. Aí já volto com as tintas que eu via lá nos catálogos. Eles usam essa tinta acrílica. Comprei um tantão de tinta e fui experimentando, aí vem a necessidade de parar um pouco com a aquarela, deixo a aquarela e começo a usar a tinta acrílica, porque eu precisava ver textura, cores mais sérias, mais fortes, assim. Aí vem o livro, depois do Elias José, que foi “A Cidade que Perdeu o seu Mar”, depois veio o livro do Leo Cunha, o “Cantigamente”, e eu e o Nelson trabalhamos juntos. E “O Rei da Fome”, e aí em 95. Espera aí, “O Rei da Fome” é até antes desses dois que eu falei, é o primeiro que eu escrevo, o primeiro com texto. E mais no finalzinho da década de 90, trabalhando direto.
P/2 – Espera só um pouquinho. Nessa primeira experiência com texto, conta só mais um pouco... Mais detalhadamente como foi o processo de criação, como veio essa vontade ou essa necessidade de querer escrever também?
R – Aí entra o Nelson também na história, porque Nelson... Isso foi em 95. Ele tem toda coleção do Henfil, aí, lendo Henfil, eu fiquei encantada com “Bode Orelana”. Então reli tudo aquilo, e o Bode Orelana ficava comendo os jornais e revistas e dando todas as notícias. Eu falei: “que coisa bacana, um bode que come e tal”. Aí veio o “Rei da Fome” logo em seguida. Então tem essa história meio influenciada pelo Henfil e pelo Nelson, que tinha aquele arsenal todo. É mais ou menos isso. O Rei da Fome é uma história que brotou assim, de repente. Deu vontade e fui escrever, não sabia o que ia acontecer com aquilo, tanto que foi um dos primeiros. Escrevi mais uns dois ou três, depois, mais à frente, o que eu fui escrever já foi livro com pesquisa, que é o “Agbalá”, o “Pindorama”, que foi outro foco, não foi tão ficção. Aí volta no Agbalá... Pode já mudar pra ele? No Agbalá e no Pindorama já tem mesmo aquele pé na plasticidade. Ao mesmo tempo que mais solto... Uma coisa que é bem forte no meu trabalho é querer resolver na hora, é intuição. Eu costumo até brincar que os editores sofrem comigo, porque eu mostro o rascunho, o original, e não vai ser nada daquilo. Então a Sônia Junqueira, que era da Formato, ela até falava assim, eu levava lá os rastos, aí eu falava assim: “está vendo isso aqui, Sônia?” Ela falava: “tô” “pois é, não vai ser nada disso”. Ela já sabe, assim, o meu jeito. Então eles sofrem um pouquinho, porque eu mudo tudo e ao mesmo tempo conservo os elementos, mas me dá um incômodo muito grande. Sabe aquela coisa, eu não quero criar uma vez só, eu quero sempre mudar. Então, não adianta eu fazer um desenho e seguir ele à risca, porque daquele primeiro desenho para hoje já se passaram 15 dias. Eu olho pra ele e falo: “nossa, não tem nada a ver.” Então ainda bem que livro vai ser impresso, porque se não eu ia ficar mudando como se fosse um livro mutante, o tempo todo.
P/3 – Marilda, eu queria perguntar: quando é que você olha para um livro seu e fala: “Agora sim, agora eu acertei”?
R – Quando olho e falo que acertei? Quando a mão está solta... Como é que explica isso... Eu sei direitinho quando minha mão está dura e quando ela está mais solta, não sei te explicar como funciona isso. Porque também têm aquelas cartas na manga do paletó que me ajudam muito, que é a composição, aquilo tudo, aqueles elementos, todos os elementos visuais, aquilo tudo vai me ajudando para compor a imagem. Então eu posso até dizer que eu tenho uma estrutura inicial, mas uma organização que eu quero desorganizar. Depois tem uma estrutura que eu vou mudá-la toda. Então começa com certa ordem e depois bagunça tudo, é como brincadeira de criança: começa tudo arrumadinho e depois dá uma olhada para você ver, está uma zona, uma bagunça, está uma farra. E o que acontece nos meus desenhos é exatamente isso, chega um momento que nem eu sei se vai dar certo. Mas aí eu vou limpando, a necessidade de limpar esses desenhos é importante com a pintura mesmo, vai ficando tão cheio de camadas que depois eu vou limpando, vou abrindo os espaços, vou colocando uns branquinhos. Enfim, vou pegando meu paninho sujo para dar uma textura bacana. Então vou tirando proveito daquele acúmulo, acho que é isso, você acumula para depois ir separando, sabe?
P/3 – Demorou para você olhar um livro e dizer: “agora é o caminho, eu conheço a técnica”. Demorou para chegar nesse nível, assim?
R – Foi uma questão de maturidade, não só artística, mas pessoal também. O primeiro trabalho eu tinha 20 anos, então realmente falta experiência. Como se diz, faltava ter ouvido muitos nãos, eu acho que eles foram muito importantes. Esse “não” aí do Edmir Perrotti é mesmo um ganho. Você precisa ouvir alguns nãos para amadurecer, para refletir, senão você chega a achar que está tudo bom, e não é verdade. Demorou um pouquinho, mas foi também o tempo que era necessário para continuar a produzir, para ter outras experiências. O momento que eu acho assim, que o meu trabalho está mais maduro, é exatamente logo depois que eu termino Belas Artes e que eu vou organizar esse pensamento com a tinta acrílica, vou juntar isso tudo. Toda aquela minha necessidade de ser artista plástica vai casar com a necessidade de ser ilustradora. Demorou um pouquinho, mas foi o tempo necessário para amadurecer o pensamento, o conceito.
P/3 – Conta um pouco como é essa relação de você com os leitores, enfim, a relação com quem lê?
R – É ótimo ver. Bom, eu vou a escolas, não digo sempre, mas esse ano até estou indo com uma certa frequência. Vou a escolas e é sempre gostoso, porque eu adoro crianças, gosto de conversar com eles e gosto de ouvir a crítica, seja de adulto ou de criança. Então é estimulante, não sei te dizer se eu sigo à risca essas críticas, essas opiniões, porque a gente sempre pensa assim “eu escuto, mas eu não tenho a mínima obrigação de seguir”. Isso eu falo até com o Nelson, que é o meu primeiro leitor, ali do lado, então a gente dá muito palpite pro outro. Estamos no mesmo atelier, a mesa é do lado. Então a gente já tem um pacto: “eu vou te escutar, mas não tem o menor compromisso de te seguir”. E até é uma coisa legal da gente fazer isso, para não misturar o trabalho um do outro. Então para manter essas características muito próprias de cada um, isso também foi outro pacto da gente. Tudo bem, a gente tem a mesma profissão, isso é ótimo, isso é super produtivo, isso é super bem vindo para nós dois, mas enfim, não é pra gente misturar as personalidades profissionais, vamos dizer assim, e nem individuais. Mas a profissão, eu Marilda, é uma coisa e Nelson é outra, porque senão complicava muito, sem ter concorrência. Isso tudo a gente conversava muito, a gente não pode ser concorrente um do outro, a gente é parceiro, e não concorrente da profissão.
P/2 – Marilda, você falou das crianças proporcionarem um exercício de surgir imaginário e que você retoma isso com os filhos depois. Como é esse exercício de imaginário levado ao extremo no caso da maternidade, como que isso influenciou sua produção? Transformou sua produção, se é que transformou? Como você relaciona?
R – É difícil dizer isso no passado. Não é que transformou, transforma. A gente desperdiça certas oportunidades bem legais. “A gente”, que eu falo, sou eu. Tem hora que eu até desperdiço as oportunidades que eles me dão, que, por exemplo, um dia Cecília estava lá vendo uma princesa feita de aquarela e ela falou que era um cubo de gelo, por causa da transparência da aquarela. Então ela tem uma outra visão. Outra coisa, quando ela tinha dois aninhos, eu comecei a recortar umas gravuras e colar num caderno, numas folhas de ofício, e pedia para falar o que ela estava vendo. Então tinha lá uma nuvem, era um desenho de uma nuvem e embaixo umas árvores, uma coisa, e eu falei assim: “O que é isso?” Ela falou assim: “Vovó” eu falei: “Como vovó?” − minha mãe tem cabeça branquinha −, ela falou: “Aqui, mamãe”. A nuvem era a vovó. A nuvem estava tampando a árvore, uma coisa assim, ou seja, é esse movimento mesmo, é o lado do avesso, é aquela história do planeta. A criança é outro planeta. Então a Cecília e o Nino todo dia me dão esses exemplos. Um último recente: eu estava com o Nino lá fora e ele me perguntou: “Lua cheia, mamãe?” “Não, não é lua cheia”. Ele falou: “Eu sei, é lua casca”, que é a lua minguante. Então são imagens poéticas. Eu sinto que estou até desperdiçando a dica que eles me dão, mas, ao mesmo tempo, não é para ficar pegando tudo. Eles estão do meu lado e eu é que tenho que ter sensibilidade para isso. Enfim, é uma história minha, se eu vou ter sensibilidade ou não para ouvi-los. Agora, que eles me dão oportunidade de transformar, dão, o tempo todo. Às vezes, a gente é que tem que desligar um aparelhinho aqui para ficar mais atenta com eles, como essa história aí do cubo de gelo.
P/2 – As associações são muito particulares.
R – Exatamente, das associações. Não adianta a gente tentar provar “não, não é isso”, porque para eles é esse universo. Conhecia a cabeleira branca da avó, então associou na hora uma nuvem com a cabeleira branca.
P/3 – Isso ajuda a entender um pouco a cabeça da criança, porque eles têm tanta atração pelo texto infanto juvenil, dá para você tentar entender como eles pensam.
R – Exatamente, ajuda. Eu comecei a perceber. Eles folheiam livros desde seis meses de idade, até menos que isso. Eu comecei a perceber que aqueles mais simples, mais sintéticos, eram o que eles mais gostavam. Então, não adiantava dar um desenho sofisticado. Por exemplo, os meus livros “Pindorama” e “Agbalá” não gostavam, porque não era para aquela idade. Não é nem idade, eu não gosto de usar isso porque eles podem folhear sim, as crianças podem folhear esses livros quando estão muito novas. Não há identificação com aquilo como vai haver quando tiver nove ou dez anos. Então podem sim folhear aquilo. Aquilo não é ainda o dicionário delas. O dicionário da imagem delas é diferente, é aquela coisa que elas vêem todo dia a avó, o avô, o cachorro, sabe, esse universo daquele entorno ali. Aos poucos vai... Sabe lua, quando dá aquela... Vai tendo uma luz aqui em volta e vai outra aumentando? Ou melhor, pedra, que você joga no rio vai dando aquelas ondas? Então, as crianças com dois anos estão ainda naquela primeira voltinha ali da pedra. Vai aumentando esse nível de percepção. Com eles eu vou aprendendo isso, que eles vão crescendo esses níveis, mas é interessante. A Cecília, que está com seis anos, tem hora que ela volta àquelas imagens mais poéticas, àquelas expressões mais poéticas que ela me dava com dois ou três anos, então eu não abandono.
P/2 – Você citou agora o Pindorama. Fala um pouquinho de como veio a ideia do processo de criação, sobre essa pesquisa? Depois ele culminou com o prêmio Jabuti que você ganhou. Conta sobre a biografia do livro?
R – A biografia do Pindorama? Estou lá em Bolonha vendo aquilo tudo e tal, conheço o Leo Pizzol, que é da Mostra Imagem de La Fantasia que acontece em Sarmede em todo ano. Quando eu chego, recebo um convite do Leo para mandar as ilustrações na próxima mostra. E uns dois anos depois, ele fala assim: “Oh, Marilda, venha fazer uma exposição aqui com seus trabalhos.” Foi quando eu vou, em 98, para fazer essa exposição. Resolvi fazer uns desenhos, porque aí vem aquela ideia: se eu vou estar lá na Itália, quero falar do Brasil. Aí vou para a pesquisa e faço uns desenhos que são exatamente os primeiros desenhos, alguns estão no Pindorama. Esses desenhos é que deram origem com esse convite de ir para fora e mostrar lá o que era mais ou menos o meu imaginário de Brasil. Eu vou para a pesquisa e crio essas imagens. Bom, aí antes de viajar eu pego esses quinze desenhos e levo para a Sônia Junqueira, lá da Formato, e saímos com ideias. “Não, está fechado, leve. O que você voltar a gente faz uma coleção”. Então alguns eu vendi lá na Itália, outros que eu sabia que iam estar no livro eu não quis vender e tal. Outros também ninguém quis comprar, lógico, porque parece que era tudo uma maravilha, não é assim também. Mas enfim, aí volto com esses desenhos, e quando eu chego aqui, continuo a fazer as pesquisas. Aí vem o Pindorama e depois o Agbalá. E outra coisa que eu achei que modificou muito a minha cabeça é que quando a gente sai, encontra cada ilustrador fazendo o seu país, vamos dizer assim. Cada um tem a sua linguagem ali representada, o México está no artista mexicano, o jeito introspectivo do leste europeu está no artista polonês, entendeu? O latino está ali, representado na Espanha. Ou seja, a cultura está no desenho, e aí vem na minha cabeça: onde é que está a minha cultura? O que eu tenho de Brasil? E vem também Bratislava mais ou menos nessa época, porque eu faço um seminário em bratislavo. Bom, tudo juntou, eu juntei esse caldeirão todo e é daí que nasce o Pindorama.
P/3 – E como que foi o reconhecimento depois desse prêmio? O que você sentiu?
R – Nessa época eu já sentia assim: “é o que eu gosto de fazer, quero continuar fazendo, e que coisa boa que as pessoas estão gostando”, sabe? É uma frase atrás da outra, é isso que eu gosto, e que bom que veio um prêmio, e que bom que está tendo esse reconhecimento de tanto esforço. Eu acho que é sempre assim, as coisas vão encadeando, dá uma pausa e vem outra. Aí terminei o Agbalá, fiquei grávida, veio a pausa para cuidar das crianças. Na hora que eu estou retomando, porque eu sou toda mãezona, fiquei parada quase cinco anos, ilustrava pouco, um livro por ano. A Cecília está com seis anos, parei com um monte de coisas, até de viagens, para cuidar deles. Enfim, agora que eu estou retomando. E aí vem a nova edição do Pindorama, que aí é outra alegria. Pindorama e Agbalá com edição primorosa na Cosac Naify... E você fala assim: “opa outro...” Sabe aquela coisa? Puxa mais ar, porque continua a nadar. Então acho que é essa imagem mesmo, a gente vai nadando e na hora que você precisa de mais ar põe a cabeça para fora e continua a fazer. Não me sinto pronta, por isso vem essa necessidade de estar sempre revendo os trabalhos, revendo os desenhos das crianças, pensando com elas, porque eu não me sinto pronta, acabada. Hoje eu também me dou os meus nãos “não, para, dá uma pausa” para continuar.
P/2 – Então, conforme a gente estava dizendo, fale um pouco da produção atual? Dos novos projetos?
R – Tá bom, eu falo. Antes de falar, eu lembrei aqui uma coisa que o Thiago perguntou: “e quando não está bom o que você faz?” Vocês não vão acreditar, eu viro o desenho de cabeça para baixo, tipo assim: “fica de castigo um pouco”. Eu tenho umas coisas muito malucas. Uma vez também me perguntaram assim: “você tem algum ritual para desenhar”? Eu falei: “tenho, só que eu não sigo nenhum deles”. Então acendia incenso, tinha umas coisas assim, acender incenso, ficar descalço, pensar, mas se eu não fizer isso, dá certo do mesmo jeito. Então é aquela coisa lá do início, é a desordem. Primeiro uma ordem para depois desorganizar, começar tudo limpo para depois sujar; aí, suja e depois limpa de novo. Mas aí, voltando ao que eu estou fazendo hoje, acabei de refazer o Pula Gato, uma nova edição. Peguei a história inicial − que é um livro sem texto − e adorei o processo que ficou agora, porque aí vem o seguinte... A gente falou lá da Belas Artes num primeiro momento, super encantada com o movimento de artes plásticas internacional, vamos dizer assim, não que acontecia no Brasil... O meu olhar ficou todo voltado para os artistas estrangeiros que eu citei antes e tal. Então o Pula Gato anterior eu tinha referências à Matisse, Miró, Marcel Duchamp... Duchamp não, não cheguei a tanto; à Degas... Foi aquela coisa assim: “puxa, tem um mundo de coisas acontecendo...” A arte moderna aconteceu... Enfim, a arte mudou tanto tempo e eu não tinha visto isso ainda, aí saiu o Pula Gato. Aí, quando eu vou refazer o Pula Gato, falo assim comigo: “vou fazer só com artistas brasileiros dessa vez”. E foi um barato, porque aí... A história é de uma menina que entra numa galeria de arte − uma galeria fictícia −, são os artistas que eu gosto, que eu amo, e quem eu coloquei? Artur Bispo do Rosário. Só com brasileiros agora. O Marcos Coelho Benjamin − que eu conheço, é meu amigo, o Benja − O Rubem Valentin, Goeldi, Tarsila do Amaral, Portinari, Amílcar de Castro, espero não esquecer de nenhum. Mas enfim, ela vai passear nessa galeria... É muito legal, eu estou fazendo pela Scipione. A Editora Scipione fez um trabalho de licenciamento dessas imagens. É como ganhar um prêmio, porque todo mundo trocou de ideia, todo mundo curtiu, estão dando a maior força, e deram autorização. Então é também um prêmio, um incentivo, é também um incentivo para continuar a história, a viagem. Então refazer o Pula Gato foi uma delícia. Ah, e aí entra a história, fica tudo misturado, porque o nosso atelier é dentro de casa, as crianças têm livre acesso ali, até certo ponto. Se está incomodando muito, dá licença, mas tem o livre acesso. Aí, a história do gato, ele vai passeando na galeria, rouba os pincéis, pede emprestado. Os pincéis para a menina... A menina tem a bolsa cheia de pincéis, ele pega aqueles pincéis e interfere na tela de onde ele tinha saído, a história é essa. Então nesse momento, o que acontece? Nessa versão atual o que acontece? O desenho do quadro quem fez foi a Cecília, aí eu puxei ela para dentro do atelier e falei: “toma aqui tinta e pincel”. Então o desenho é dela, eu colori esse desenho, fui fazendo junto ali, mas o inicial é dela e outros desenhos do livro foi a Cecília que fez. Mas na arte mesmo eu dei a tinta, o pincel, e aí ela trabalhou na minha arte, e adorou. Foi uma parceria bacana.
P/3 – Pintaram outros projetos fora esse?
R – Depois do Pula Gato eu ilustrei o livro “Gato e o Escuro”, do Mia Couto, esse foi para a Companhia das Letrinhas, uma delícia de trabalho. E também difícil, porque ilustrar tanta poesia, tanta imagem poética, foi ao mesmo tempo dar corda para o que eu já gosto, que é o subjetivo. Mas aí você vê, assim, o subjetivo não é tão fácil como eu imaginava. Lembro o dia que a Élen me deu o texto e falou assim: “Olha, acho ele muito difícil”. Eu falei: “não, não é não, eu estou adorando o texto, não vai ser difícil não”. Na hora que eu comecei... Como é que desenhava o escuro com medo, o escuro chorando? Eu falei: “meu Deus, e agora”? E andava pelo atelier e falava: “Nelson, como é que o escuro chora”? Eu não podia dar forma para o escuro. Teve uma maravilhosa que é assim: “o gato queria passar para o lado...” A grande admiração dele era o pôr do sol, e a mãe não o deixava passar para o lado de lá do poente com medo dele se perder, aí ele ficava vendo o pôr do sol e os seus “olhos pirilampiscavam”. Tá, como é que eu faço um olho pirilampiscando? Aí foi delícia para eu fazer, porque eu o fiz de costas, vários olhos, e os últimos olhos são vaga-lumes voando. Então é um pôr- do- sol de olhos de vaga-lume, esse foi o último. Aí o Pula Gato está virando uma coleção. Então agora a menina vai a outros museus; agora eu vou começar o segundo museu, que é um Museu de História Natural. Ela vai ver dinossauro e preguiças gigantes, e ossos e mais ossos. Eu queria falar um pouquinho, voltando um pouco atrás: depois que eu fiz o Pindorama e o Agbalá, aconteceu uma coisa bacana: alguns editores me chamavam para fazer livros de temas parentes dos dois, ou cultura popular, ou cultura indígena. Aí fiz O Segredo da Lua, que eu adorei, do Daniel Munduruku, e fiz também dois da Companhia das Letras. É um pé na cultura popular, que são dois livros do Hernani: “Só Amigos da Onça” e “Conto de Morte Morrida”. Conto de Morte Morrida é ótimo, é cheio de caveiras. Aí vem aquela história assim... Na minha cabeça tem uma cultura popular muito forte sim, tem meu interesse por essas imagens do inconsciente, do imaginário, e vêm aqueles desenhos que ficam sempre do lado e que estão esperando a hora deles nascerem num projeto solo. Então essa é minha grande intenção, fazer esses desenhos do telefone virarem um projeto solo, um projeto... Não serem só coadjuvante dos livros, eles reinarem sozinhos. Isso ainda não aconteceu. Então vai ser na próxima onda de maturidade, acho que ainda não consegui reuni-los numa coisa legal.
P/2 – Isso é o que você considera o principal próximo desafio?
R – Deixar o livro sair mais solto. Eu não vou lembrar do nome dele agora, tem um livro fantástico que ele cria uma linguagem; é uma linguagem que não existe, ele cria a linguagem. Como se criasse o país para trabalhar nisso, é um autor brasileiro, Eli Barros LS Barros. Ele cria a sua própria imagem velox, velonque, e vai todo por aí. O dia que eu conseguir desenhar assim com um Velox ou Velonque ou Ode, eu acho que cheguei no que eu quero. Uma linguagem que não existe, uma linguagem da visibilidade para esse pensamento para sonhos. Tornar concreto o que é matéria dos sonhos, isso é um desafio que eu não sei se consigo, mas que, pelo menos, pretendo, dando princípio, meio e fim para esses desenhos soltos. Tem tanta coisa que no momento a gente pensa em falar e depois esquece... Mas enfim é mais ou menos por aí.
P/3 – Eu queria perguntar: tem alguma coisa que a gente deixou de perguntar?
R - Lá trás?
P/3 - Ou de agora, mesmo.
R – Acho que eu queria, não sei se acentuar, mas queria deixar assim... Queria deixar um pouco claro que nos meus desenhos eu intenciono sempre que tenha uma conversa, uma parceria. Por exemplo, se eu não termino um personagem, tenho motivo para não terminar. No Pindorama mesmo acontece isso: há uma transparência de índio e árvore, aquilo é intencional, há uma fusão ali de árvore que vira rio na parte do moitará; também é intencional. O Agbalá, por exemplo, eu estava falando de cultura africana, então eu não queria apenas mostrar os desenhos, as imagens representativas da cultura africana, afro-brasileira, queria dar a temperatura daquilo, o clima daquilo. Então o livro é cheio de matéria, porque a arte africana, ela é cheia de passado, é cheia de tradição. A gente lê o tempo todo, tradição, passado, enfim, acúmulo de histórias passadas de geração a geração. Então o livro é pesado, as artes são pesadas, são cheias de tintas, cheias de camadas. Há essa intenção do conceito também ser ilustração. Às vezes ele nem é percebido, não importa, mas eu tenho que registrar esse conceito. O improviso me dá muito isso: às vezes o personagem, um animal, por exemplo, está mais narigudo, aí está com um focinho comprido, aí eu entorto a árvore para poder caber os dois, sabe? Não tenho o compromisso de fazer a paisagem, um retrato; a minha necessidade é de adaptar isso tudo no espaço em branco. Das formas irem conversando umas com as outras, aí vem a história da plasticidade que o meu desenho é do improviso, o meu trabalho é baseado no improviso e na tentativa de deixar aquilo o mais plástico possível. Como você falou: “como é que você vai saber se está bom?” Como é que você vai saber que pára? É tudo na intuição. Você fala assim: “consegui um efeito legal, então acho que está na hora de parar”. O Nelson costuma brincar que eu tenho que pôr um cachorro amarrado no pé da mesa, porque na hora que eu tiver exagerando, ele dá uma mordida aqui na minha perna. Então tem que ter um cachorro imaginário. Tem que ter um cachorro morando aqui: “para dar uma latida aí”. E vou dar uma latida para essa menina parar. E é por aí, não tem compromisso de fazer, literalmente, meu compromisso é de fazer o outro lado, o avesso, adoro o avesso.
P/2 – A gente queria saber se você gostou de contar a sua história.
R – Ah, sim, puxa vida, é uma memória que é fresca, a memória da gente é fresca, embora a gente esqueça, porque é muita coisa. É tudo muito recente, você vai contando aí e não parece que passaram 44 anos. Então é tudo muito recente, e ao mesmo tempo tem algumas coisas que são embaçadas. Lembrei de uma coisa que eu falei ali do desenho que eu ponho de cabeça para baixo e às vezes, o vejo melhor. Tem um outro recurso também, e acho que fiz isso aqui hoje de uma outra forma, que é abrir janelas. Eu pego uma folha branca de papel, recorto uma janelinha e vou tampando. É isso aqui, eu vou tampando e vendo detalhes, e acho que fiz isso, fiz um monte de recortes, um monte de janelinhas aqui. Foi isso. Valeu.
P/2 – A gente agradece muito.
R – Eu que agradeço.
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