Projeto Ponto de Cultura - Museu Aberto
Depoimento de Jefferson Coelho de Oliveira
Entrevistado por Antônia Domingues e Gabriel Monteiro
São Paulo, 23/08/2007
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista PC_MA_HV052
Transcrito por Juliana Leuenroth
Revisado por Viviane Aguiar
Publicado em 28/08/2007
P1 – Eu vou pedir pra você repetir o seu nome e a sua data de nascimento.
R – Meu nome é Jefferson, nasci em 1991, moro em Praia Grande.
P1 – Você nasceu em Praia Grande?
R – Sim.
P1 – Qual é o nome do seu pai?
R – Elido Oliveira, e minha mãe é Marli Coelho de Oliveira. Só que eu dei o nome da minha madrasta para você, que eu não tenho mãe.
P1 – Ah, certo. E dos seus avós?
R – Minha avó é Aparecida Cardoso de Oliveira, do meu vô, eu não conheci, não.
P1 – A avó, do seu pai. E a da sua mãe?
R – A do meu pai. É minha avó e mãe do meu pai.
P1 – E o que o seu pai faz, fazia?
R – Meu pai é pintor de quadros, artista plástico.
P1 – Que tipo de pintura que ele faz?
R – Ele pinta quadro mesmo. Paisagem, Paris, palhaço, Marinha.
P1 – Faz tempo que ele faz isso?
R – Ah, desde pequeno. Minha madrasta pinta flores. Copo-de-leite, esses negócios. Negócio que só eles entendem. Eu não sou muito chegado, não.
P1 – Ah, é? Por quê?
R – Não nasci com o espírito mesmo. Meu negócio é esporte. Meu sonho é ser bombeiro.
P1 – E eles vendem em algum lugar, como é que era?
R – Ele tem um ateliê em Praia Grande, na Vicente Carvalho, na Rua Vicente Carvalho.
P1 – E ele vende dentro do ateliê dele?
R – É, na loja. Eles moram em cima. A loja é embaixo, e a casa do meu pai é em cima.
P1 – E as pessoas que querem comprar vão lá, tocam a campainha?
R – Não, lá é aberto. Tem vezes que ele acorda até cedo, tem vezes que ele levanta às sete, vai para a loja, abre. Meu pai monta umas telas, monta umas telas e faz entrega. Tem aula, tem uma mulher que dá aula, ele também dá aula de pintura. Porque meu pai também sofreu um acidente na mão. Tem uma máquina lá que ele monta, ele perdeu esses dois dedos aqui, ó, uns tempos atrás. Só que eu não estava em casa, eu estava na rua.
P1 – Que máquina que era?
R – Duas máquinas, até esqueci o nome da máquina.
P1 – O que ela faz?
R – Ela corta. Ela corta moldura, esses negócios, para montar tela. Tudo que for para cortar, ela corta, de madeira.
P1 – E faz tempo que ele teve esse acidente?
R – Faz. Faz uns dois anos. Eu não tenho certeza.
P1 – E você tem irmãos?
R – Tenho. Três, comigo.
P1 – Como que eles chamam?
R – O meu irmão pequeno chama Everton Dias, (que é mesma da filha?) da minha madrasta. Do outro é Jackson Coelho de Oliveira, que é filho do meu pai e da mesma mãe que morreu.
P1 – Quando a sua mãe morreu?
R – Minha mãe morreu, eu não conheci, não.
P1 – Mas quantos anos você tinha?
R – Não sei, não, porque eles não gostam de contar pra mim.
P1 – Ah, é? Você não sabe nem o que aconteceu com ela?
R – (sem resposta)
P1 – E como era lá em Praia Grande? Quando você era pequeno, como é que foi a sua infância lá?
R – A minha infância só foi ficar na loja. Só na loja, só. Meu pai, parece que ele tem medo de perder a loja, vou qualquer hora perguntar para ele. Porque nós morávamos lá na favela, aí as pessoas ficavam admiradas que eu fugia da minha casa, ficavam admiradas. A minha família mesmo falava: “Você tem que tirar seus filhos de lá.” Aí ele tirou um dia e ele levou lá para perto da praia. E construiu a vida dele, conheceu a Meire , que a gente é filho também, eu gosto dela. Aí ele fez um irmãozinho, eu tenho um irmãozinho. Eles estão lá em casa, de boa. A vida deles é tranquila.
P1 – E do que você lembra, como é que era... Com quantos anos você começou a trabalhar na loja?
R – Acho que desde os dez, desde os sete anos. Deve ser isso mesmo. Desde os sete anos, eu ficava só na loja.
P1 – E antes disso? Você não tem lembranças? O que você fazia?
R – Eu ficava na casa da minha avó. Ficava empinando pipa em cima da minha laje. Porque quem ficou mais comigo foi a minha avó, não foi nem o meu pai. Meu pai gostava de sair para trabalhar. Morava em outro lugar, eu acho.
P1 – E como é que era a sua avó?
R – Ah, ela sempre foi boa. Avó, né? É igual mãe. Mas tem horas de nervoso, também. Eu ficava abrindo e fechando o portão, correndo atrás de pipa, subia em cima de laje, arriscado de cair lá. Aprontando lá. Batendo nos moleques por causa de pipa. Quando eu era menor. Agora eu não ligo muito pra pipa, não.
P1 – E como é que era essa pipa? Você que fazia?
R – Não, eu comprava. Fazer, só quando não tinha nada, não tinha dinheiro, pegava um plástico e fazia uma pipa de plástico. Aí fazia.
P1 – E você tinha muitos amigos?
R – Tinha. Tinha, mas depois começaram a se afastar.
P1 – Quem eram esses amigos?
R – Todo mundo lá da rua.
P1 – Era uma “turmona”?
R – Era uma “turmona”.
P1 – Você se lembra de algum de que você gostava mais?
R – Lembro. Quem eu gosto mais é do meu primo. Eduardo e Erick, eu gosto mais, que ficavam mais perto. Depois, com certo desenvolvimento, eles não deixaram eu ficar muito perto deles, não.
P1 – Por quê?
R – Ah, comecei ir pra rua, né? Usar droga.
P1 – Como é que foi essa coisa de estar com os amigos, depois ir pra rua? O que aconteceu?
R – É, foi. Estava em casa. Aí meu irmãozinho estava para nascer, só que eu fui lá querendo enfeitar o berço dele, pequeno, queria enfeitar o berço dele. Coloquei umas bexigas, eu era gordinho, quebrei o berço todo dele com o meu peso. Aí eu fiquei com medo. Porque antigamente meu pai batia, agora ele não bate mais, não. Aí eu quebrei, fui pra rua. Fui tomar conta de carro, coisa que eu não preciso, né? Aí eu conheci os moleques que eram de São Paulo, da rua, eu fui para São Paulo. Primeiro lugar que eu cheguei lá foi um abrigo, que a polícia nos pegou em Embu-Guaçu, que nós subíamos de trem cargueiro mesmo. A gente ficou no cargueiro oito horas até chegar a São Paulo, por causa das paradas dele. Cheguei a Embu-Guaçu, a polícia nos pegou e me levou para um abrigo no centro de São Paulo. Aí já comecei a desenvolver. Fugi com um moleque e fui pra rua, pra Praça da Sé. Da rua, comecei a conhecer outros lugares que eu nunca vi na minha vida: Anhangabaú, República, Santa Cecília, o centro todo. Comecei a ir para esse, para o Rio de Janeiro, fui com os moleques para o Rio de Janeiro, comecei a cheirar tíner, a fazer coisas que eu não gostaria de fazer.
P1 – E você tinha amigos também? Os amigos da rua?
R – Ah, amigo na rua eu não sou muito chegado, não.
P1 – Mas você fazia as coisas com esses meninos?
R – Fazia. Cheirava tíner, mas nunca roubei. Eu já roubei uma vez na rua, mas nunca cheguei a roubar todo dia. Eu aprontei uma vez, umas três, quatro vezes na rua, mas nunca... Fui preso também.
P1 – Mas, só voltando um pouquinho, antes você tinha os amigos. Empinava pipa com a turma. Depois, você começou a ir pra rua, mas com outras pessoas. Eles não eram, como era o relacionamento com essas pessoas?
R – O relacionamento? Porque, depois, eu roubei a bicicleta da minha prima e vendi. Vendi a bicicleta da minha prima. Aí eu vendi e fui para o centro de São Paulo de novo. Mas, antes de acontecer tudo isso, eu já tinha fugido de casa, já. Várias vezes.
P1 – E por que você fugia?
R – Por causa que eu não me dou bem mais. Não consigo ficar mais no mesmo ambiente.
P1 – O ambiente que era a casa do seu pai?
R – A casa do meu pai.
P1 – E por quê? O que aconteceu?
R – É porque eu, sei lá, não me sinto mais bem lá.
P1 – Mas, antes, que você era pequeno, que você começou a ir pra rua, você lembra o que fez você ir pra rua, a não querer ficar mais lá?
R – Foi quando eu encontrei esses moleques de São Paulo. Eu tinha acabado de sair de casa, com medo de voltar pra casa.
P1 – E por que você sentiu vontade de ir com eles?
R – Ah, porque eu fui meio bobo mesmo, né? De ter ido pra São Paulo. Eles falaram: “São Paulo é bom, lá é (tudo lotado?).” Aí eu fui pra São Paulo, não voltei mais. Demorou um tempo, não voltei mais pra Praia Grande. Depois que eu comecei a voltar pra Praia Grande.
P1 – Foi vontade de conhecer lugares novos porque você saiu?
R – Nunca vi, nunca tinha ido pra São Paulo. Já fui de passagem, mas nunca... Nunca quis ir, não. Só fui de embalo mesmo.
P1 – Se você pedisse para o seu pai: “Posso ir pra São Paulo?”, ele não deixaria você?
R – Não. Nem pagando ele, ele não deixava.
P1 – Então, voltando. Mas você consegue lembrar um pouquinho como era seu cotidiano, o que você fazia, quando você morava com a sua avó? Como era, você ia pra escola?
R – Ia só na casa do meu pai, quando estava na casa do meu pai. Aí eu ia pra escola, voltava, ficava na loja, de boa.
P1 – Como era o trabalho na loja?
R – Ah, eu geralmente não fazia nada. Meu pai ficava irritado porque eu fico parado, não tem nada pra fazer, aí ele fica irritado. Só tem coisa pra eles fazerem. Que nem, eles pintam quadros, e eu não gosto, eu gosto mais de esporte, igual eu falei pra você. Aí eles não se dão bem. Eu comecei a fazer aula de boxe, comecei a ganhar minhas medalhas no boxe, e eles não, eu não acho, né? Eles falavam assim: “Tá louco, você ficar lutando boxe.” Esses negócios. Ficar se arriscando, aí, é um negócio que eu gosto.
P1 – Com quantos anos você começou a lutar boxe?
R – Eu comecei desde quando eu fui pra rua.
P1 – Quantos anos você tinha?
R – Eu fui com dez pra rua.
P1 – Dez?
R – Dez anos.
P1 – E como é que surgiu o boxe?
R – Foi o professor Garrido. Professor Garrido, que ele tinha uma academia embaixo da ponte. Tinha embaixo da ponte. Uma vez os moleques falaram: “Vamos lá na academia.” Falei: “Que academia é essa?” “De boxe.” E eu falei: “Vamos lá, sim.” Aí estava todo mundo loucão. Pegamos e fomos, fica lá no Anhangabaú mesmo. Fomos, tudo, ele falou: “Quem é você?” Eu falei: “Sou o Jefferson.” “Mora onde?” “Praia Grande.” E ele falou: “O que você está fazendo aqui?” Eu falei assim: “Estou fazendo, estou aqui, fugi de casa.” Ele falou: “E você gosta de esporte?” Eu falei: “Gosto.” “Vem aí aprender a lutar boxe.” Aí começamos a ficar na academia, dormia na academia, eu era o que dormia mais, que eu gostei do negócio. Começamos a ir pra torneios, esses negócios. Até hoje eu vou lá, lutar boxe. Só que eu parei um pouquinho porque vai cortar minha mão. Era tipo uma operaçãozinha, se for preciso. Que estão achando que tem um caco de vidro no meu... Aí eu fiquei lá, de boa. Até hoje eu passo lá, tem vezes que eu faço boxe lá, estou cansando já de tanto boxe.
P1 – Eu já fui lá, conheço.
R – Já foi lá?
P1 – E como é que são os treinamentos de boxe?
R – É um pouco pesado, né? Pegar uma barra de ferro, que é mais pesada do que eu, bater em pneu de caminhão, correr entre a academia, ficar pedalando 15 minutos, ficar pulando corda meia hora. Ficar socando, socando mesmo, com raiva, tá, tá, tá. Aí, quando subia lá no ringue, já estava meio cansado. Tomava lá umas no meio do estômago, (que não estava viajando na Lua?). E fui para o caratê. No caratê também ganhei uma medalha, está lá na parede, em casa. Meu irmão sempre está usando ela, que meu irmãozinho faz caratê na creche, ele sempre mexe nas minhas coisas. Mas ele não pega nada. Quando eu vou lá, está no mesmo lugar.
P1 – Mas como é que é? Começa cedo o treinamento? Você já dormia lá e já começava a treinar?
R – Ah, começava cedo. O pessoal passava lá: “Olha, aquele menino lá, pequeno lá, aquele moreninho lá.” Ia gente de televisão lá, entrevistar. Não gostava, não, porque ficava com vergonha. Em torneio também, os outros tentavam me ajudar, mas essa hora eu falava: “Eu não quero ajuda, não.” Pra mim mesmo, falando: “Não quero ajuda, não.” Passava lá todo dia, tinha um cara da RedeTV que ia lá engraxar sapato, que antigamente também engraxava sapato. Trazia lanche pra todo mundo, todo dia de manhã ele estava lá com sacola de pão e mortadela, guaraná, esses negócios. Aí nós comíamos. Ele falou assim: “Você mora onde? Você não quer ir pra sua casa, não?” Aí que falava: “Não.” Uma vez, a mulher dele foi lá também, conheci os filhos dele e agora sempre vejo eles lá. Falo que está tudo bem. Eles vão lá no Quixote. Ontem mesmo, foram. Não foi a turma que eu conheço, não. A turma que eu conheço é desde a Praça da Sé.
P1 – E as pessoas que frequentam lá, a academia do Garrido, elas têm a sua idade, como é que é?
R – Não, é muito difícil agora ter pessoa da minha idade. E lá só tem aqueles caras mesmo que... Capitão do boxe, gancho, tudo que você imaginar, os caras estão dando. Só que o meu, a minha categoria é um pouco pesada. Porque eu tenho 84 quilos, e, para quem olha assim, não parece. Aí ele pega uns moleques lá, leva no ringue lá, faz uma brincadeira. Agora, tem vezes que eu pego uns caras da pesada. Igual ao meu pai. Uns caras de 90 e poucos quilos também. Já brinquei também. Mas é mais cara assim, tem uns caras magrões que são altos também, que lutam boxe, tem 80, 84 quilos. O máximo é a categoria peso, é peso tudo igual ao meu, entendeu? Não adianta pegar um cara de 90 quilos e perder para o cara. Então, não tem graça. Tem que ser do mesmo. Se você tem 80 quilos, se você tem 80 quilos, eu tenho que ir com você. Senão, não tem graça pegar um cara de 100 quilos, e o cara me detonar. Só o peso da mão do cara já empurra minha mão. Aí, de boa. Eu só parei de ir lá por causa da minha mão. Cortaram lá.
P1 – Você sabe o que aconteceu?
R – Não.
P1 – Com a sua mão?
R – Ah, estão falando que tem um caco de vidro. Porque eu quebrei um vidro lá.
P1 – Quando?
R – Foi antes de a casa inaugurar.
P1 – Da casa?
R – Inaugurar.
P1 – De boxe?
R – Não, lá do meu abrigo.
P1 – Ah, do abrigo.
R – Eu fui dar um “jab” no moleque, o moleque de trás segurou meu braço: “Está louco, Jefferson?” O “jab” pegou bem no vidro. Pelo menos, passou de raspão na orelha dele. Porque lá tem moleque que é meio... Mas estou aprendendo a me dar melhor. Que antigamente, quando eu cheguei lá, o pessoal: “Ah, Jefferson, você quebrou tudo, você está quebrando tudo.” “Me solta, me solta.” Aí fui para o hospital, depois eles falaram... No outro dia, no segundo dia de casa, eles pegaram e falaram pra mim: “Jefferson, você vai ter que ir pra um hospital psiquiátrico.” Passei dez dias lá no hospital de Diadema, que a Lúcia e o pessoal lá da técnica, o pessoal da técnica arrumou pra mim. Fiquei 15, dez dias, o máximo 15 dias, mas eu fiquei dez. Tinha quadra, tinha pebolim, tinha mesa de dama, tinha tudo. Pingue-pongue. Aí, também arrumei uma briga lá. Os cara pegaram lá e nem me amarraram, não fizeram nada, só amarraram o moleque, que o moleque desrespeitava todo mundo, me deu um tapa na cara e eu já botei ele na pancada. Quebrei o nariz dele e o maxilar. Porque o moleque era grandão. Falei assim: “Ah, tamanho não é documento.” Fui pra cima dele. Na hora que ele deu um tapa aqui na minha cara, quebrei ele. Também, com o maxilar dele, nem sei o que aconteceu mais com ele. Que no outro dia ele foi embora. Aí, eu voltei para cá, para o abrigo, estou até hoje, me tentaram para eu voltar para minha casa, voltei, só que não deu certo. Aí voltei para o abrigo de novo. Aí está a mesma coisa. Agora eu estou lá de boa. Tem a hora dos nervosos, ele medica. Porque lá eles falam que é fundado pela Psiquiatria, né? Mas quem inventou o Quixote, o Projeto Quixote, foi o Doutor Lauro. O que eu sei, né?
P1 – Só uma coisinha. O que faz você ficar bravo, quando você vai, briga?
R – Quando a pessoa me irrita muito. Eles ficam de brincadeira boba, eu falo: “Para, mano.” Eles: “Não”, continuam. Continuam. Eu falo: “É melhor você parar, mano.” “Aí, sabe de uma coisa?” Começo a falar alto. Diminui, que sabem como eu sou. Depois eu troco uma ideia, tudo no mesmo quarto. Falo: “Vou trocar uma ideia com esse preguinho aí.”
P1 – Mas o que é que te irrita? Que tipo de brincadeira?
R – É, quando eu começo a dar soco. Porque eu quase fui desligado por causa desse negócio de dar soco. Comecei a ficar lutando boxe dentro da casa, batendo nos moleques, nos moleques folgados. Quase fui desligado. Falei, eu mesmo que caguetei para o meu professor, me caguetei. Mas o resto está tranquilo lá. Casa tranquila, parou de quebrar vidro. Agora quebrou, vai embora. Depende do que for. Agora, se a pessoa é muito tensa, tiver fora do ar, como posso dizer? Sem saber o que está acontecendo, aí ele dá uma medicação. Se a medicação não resolver, ele chama uma ambulância e vai pra um hospital psiquiátrico, ficar lá um pouquinho, depois volta pra casa. Se for preciso, passa uma noite. Toma uma _____, que me deixa desligado. Uma vez, eu tomei e fiquei alucinado, não sabia para onde ia. Se eu não andasse, se eu não andasse, eu não parava, eu ficava desligado de tudo. Dá vontade de dormir, não conseguia dormir. Só fui dormir quando cheguei lá na Praça da República, depois de meia hora. E eu com pijama do hospital. Aí eu falei para o moleque lá: “Tem uma camiseta para me emprestar, não?” Ele falou: “Tem sim.” Pegou umas camisetas lá, emprestou para mim, só não consegui trocar a calça. A polícia me parou, falou que tinha BO [Boletim de Ocorrência] contra eu fugir de lá, aí voltei. No outro dia, o pessoal do Acolher foi me buscar, que antigamente era o Acolher. Agora é o Caps [Centro de Atenção Psicossocial]. Aí me buscou, foi para o abrigo, só que eu não fiquei no abrigo. Não consegui ficar no abrigo. Aí eu voltei pra rua. Mas antes eu já conhecia o pessoal do Projeto Quixote.
P1 – Como é o Projeto Quixote?
R – Aí você me pegou. Mas eu vou tentar, né?
P1 – Conta o que você sabe?
R – É um abrigo. É um abrigo, tem médico, tem tudo lá. Tem o pessoal da OBS, tem coordenação, tem um educador. Os ETs, que são os educadores de rua, né? Tem os educadores mesmo da casa, que tomam conta, passam a noite, 24 horas lá com a gente. Tem o educador que fica meio período. Lá é sossegado. Lá todo mundo é sossegado. Não tem aquela agitação igual a antigamente. Quebrava um vidro, ficava todo mundo nervoso lá. É igual... Conheci uma menina lá no abrigo. A Daniela. Aí começou, não sei o que deu nela, que ela começou a quebrar tudo. Logo quando eu cheguei, quando ela chegou. Eu não me dava bem com ela. “É, você vai sofrer na minha mão. Você arrumou pra sua cabeça.” Aí, já, né? Aí eu comecei a ficar com ela, aconteceu uns grauzinhos lá, mas os “BOs” eu acho que estão resolvidos.
P1 – Que é BO?
R – Não, eu fiz um filho nela. Eu fiz um filho nela. Meu pai já está sabendo, todo mundo. A maioria da minha família já está sabendo. Está tudo bem, o resto. Para mim, né? Agora, para eles eu não sei (risos). Porque o meu pai não ficou muito bem, sabendo. “O Jefferson já com filho?” Qual pai ia se sentir, né? Só que eu estou tentando fazer o máximo possível para dar de tudo para o meu filho. Só que parece que não está dando, parece que tem alguma coisa puxando, sempre vem vindo. “Eu vou fugir, vou fugir.” Tem uns que aparecem com garrafa de tíner lá, passa fumando, fumando droga, lá na rua, fumando maconha, só que eu nem ligo. Antigamente, eu ligava. “Ei, irmão, deixa eu dar uns dois aí, se tiver condição.” Lá na gíria, os moleques falam. Só que eu não sou moleque de falar na gíria, não. Tem muita gente que olha pra mim e fala assim: “Você não é de rua, não.” Muita gente. “Mas eu já fui de rua, agora não sou, não.” Aí eles pegam e falam.
P1 – Como que é essa coisa de ser de rua e não ser de rua?
R – Ah, porque antigamente eu era, né? Agora eu não, eu não me considero mais de rua, não. Antigamente, eu não queria saber da ajuda dos outros, não. Só queria ficar olhando para o alto. Agora, né? Quem sabe, começando a esquentar. Agora, com esse “BOzinho” que eu te falei. Agora, vamos ver se dá tudo certo. Se Deus quiser, vai dar tudo certo. Eu vou seguir meu rumo.
P1 – Como é o nome? É filho?
R – É, vamos ver se é filho. Vai ver acho que nesse mês, ela já vê se é filho. É homem ou menina. Mas espero que seja homem, porque homem eu posso tudo que o meu pai queria me dar de bom, também não quis dar de bom. Meu pai, tem hora que ele dá as coisas de bom, tem hora que ele não dá. Quando ele pode, né? É futebol, no comecinho enchia o saco: “Ah, não vou colocar, não.” Vou dar futebol para o meu filho, se ele gostar, boxe, tudo de bom que estiver ao meu alcance eu vou dar. Não vou ser um pai também que: “Ah, não vai pra esses lugares, não.” Quer ir pra um lugar longe, tem que ser acompanhado também. De pai ou alguém que é de confiança mesmo, que eu conheço. Mas espero que seja homem. Porque mulher dá muito trabalho. Ficar arrumando cabelinho ali, cabelinho aqui (risos).
P1 – E fala mais um pouco, como é o seu relacionamento com as pessoas dentro do abrigo?
R – Ah, por enquanto é sossegado. Sempre, ontem mesmo, saiu uma briga. Ontem mesmo saiu uma briga. Saiu uma briga lá porque... Por causa de besteira. “Mó viadice.” Vou falar logo em português: “mó viadice” os moleques lá. Um passando a mão no outro. Mas na brincadeira, né? Aí saiu uma briga lá, porque o mais folgado, que eu sou louco para dar um choque no sistema dele, praa ele ficar meio... Esses dias, eu estava dormindo lá, e ele começou lá na cama: roc, roc, roc. Tipo, me irritando. Eu peguei, quase quebrei os dois dedinhos dele, apontando o dedo assim, olhando bem para o dedinho dele. Aí, eu peguei e falei: “Sabe de uma coisa? Vai dormir que você ganha mais.” Aí ele começou a debater. Debater, começar a um falar, outro falando junto e sem saber o que estava acontecendo também. Porque acho que na briga lá foi por besteira mesmo. Por besteira. Podia não existir briga. Esse negócio. Mas já que existe, vamos ter que aturar. E vamos até o fim, né?
P1 – E você falou assim: “Ah, você não parece de rua.” Como que é? Quem parece de rua, quem não parece?
R – Não, porque tem uns meninos aí que têm uma cara, que chega lá... Mas com o tempo vai dando uma engordadinha, vai mudando de rosto. Mudando de rosto. Tem a Marta lá, que dá dinheiro para cortar o cabelo para os educadores. A primeira vez que eu cheguei lá, já teve o Hopi Hari. Falei: “Nossa!” Aí depois veio, acho que foi... Daí não lembro, foi depois da inauguração da casa, que antes eu estava no hospital. Passei uns dias lá, aí voltei para o abrigo. Fiquei um tempo no abrigo, veio a inauguração da casa. O Kassab foi lá. O Kassab foi lá, conversou comigo e falou que gostaria de falar comigo. Peguei e conversei com ele. Conversei com todo mundo lá. Ele falou, conversou comigo. Falou uns negócios lá, não têm nada a ver. Mas é sossegado lá. Negócio bom.
P1 – E como é que é? Vocês dormem, podem sair? Como é que são as regras?
R – Pode sair acompanhado. A regra lá é não fazer sexo, brigar, desrespeitar o educador, não ficar pulando, brigando, batendo, batendo boca com o educador. Subir lá na sala da equipe, ficar mexendo nas coisas. Porque lá, toda hora estão enchendo o saco da Dona Marta. Quando não é a Dona Marta, é a Dona Lúcia (risos). Aí, quando fala: “Para de encher o saco, vou descer.” Aí: “Vamos abrir o refeitório.” Porque lá tem o café da manhã, o almoço, café da tarde e a janta e mais um café, que dorme, para dormir. Depois do café, de vez em quando, tem jogo, igual teve ontem, e nós dormimos uma meia-noite, só que o horário mesmo é às 11 horas, para dormir. Aí tinha que estar todo mundo tranquilo, tem uns dormindo lá. Porque lá eles tratam igual filho. De manhã, tem a Tia Nice, que acho que ela é apaixonada pelo serviço dela. Porque ela trabalha no Quixote, tem o Quixote da Vila Mariana e o Quixote... Esqueci o nome do outro Quixote. E tem outro Quixote aqui, que é o abrigo. Agora, não sei quem foi que me falou que vai abrir outro aí, que é para atender esses meninos de rua. Não sei quem me falou, mas vamos ver se dá tudo certo, eu espero.
P1 – E como é que... Vocês fazem atividades com os educadores?
R – Faz. De manhã, tem o Telecentro, que é a primeira coisa. Todo mundo: “Não, quero entrar no meu Orkut, quero entrar.” Só que só fico eu lá. Tic, tic, tic. Só que eu não gosto de Orkut, não. Não gosto de Orkut, não. Eu já sou assim: “Você quer entrar no meu Orkut?” Falo brincando: “Olha, se quiser entrar, deixa eu entrar no seu para eu mandar vírus, mandar vírus para você.” Brincadeira. Os moleques começam a me achar estranho. “Vou mandar vírus para você, vou apagar tudo.” Aí ele já começa. Descubro a senha rapidinho, já sei a senha de todos lá (risos). Porque eu vou lá, meio de pescocinho, tic, tic, tic. Tem uns que é número, tem uns que é letra. Aí eu procuro saber mais rápido. Também é sossegado lá. Acho que, se fosse para considerar, acho que o melhor abrigo é lá. Porque lá, para tudo o que você precisa, tem. Que nem a diretora de lá foi comprar chinelo, foi comprar chinelo para todo mundo. Acho que eu não tenho nem o que falar mal de lá. Tinha que falar mal de mim, de tudo que aconteceu lá. Mas também tem aquela hora que você acorda, aquele dia que você acorda, vê lá, você olha, fica olhando para a parede. (Sempre?) Porque tudo lá é grafitado. Lá tem um... Não sei se você conhece lá, você nunca foi lá, né?
P1 – Não.
R – Na hora que você entra lá, você já vê dois olhos. Aqueles desenhados lá, na janela. Aí você já levanta, no quarto vê aquela cidadezinha, que eles pintam com grafite lá, pincel, tudo. Já fala: “Meu Deus, que que eu estou fazendo aqui de novo? Com mais um dia aqui.” Depois passa, aí começa, normal. Chega a noite, você vai dormir cansado, fica correndo pra lá e pra cá, levanta, come alguma coisa. Você pensa. Mas lá é sossegado. De todos os abrigos que eu já passei, ele é o melhor. Lá tem psicólogo, tem psiquiatra. Tem três psiquiatras lá, não sei se são três ou são dois. Não sei se a Betina ainda trabalha lá. Se a Betina ainda trabalha lá. Tem, tem tudo lá. Agora eles estão querendo, não sei se é o ginásio que nós vamos fazer atividade lá, nos dias de final de semana, sábado e domingo. Lá na quadra esportiva, do ginásio. Mas lá é sossegado. Lá é sossegado. O resto, não é? Não tem nem o que falar mal.
P1 – E como que você tomou a decisão de se aproximar do Quixote, de entrar lá?
R – Foi quando eles começaram a pedir para mim, começaram a pedir para eu ir lá. Eu comecei a ir. Porque, antigamente, ficava um moleque do meu tamanho. Nós, antigamente, nós éramos pequenos. Ficava lá um moleque do meu tamanho, que ele perdeu a perna no trem cargueiro, uns tempos atrás. Aí andavam ele e o irmão dele, o Fernando. Levavam os dois para tomar remédio, porque eles tinham que tomar remédio todo dia. Comecei a levá-los lá. Comecei a conhecer melhor. Falaram, colocaram meu nome na lista, aí de boa. Eu vim para o abrigo, depois que eles abriram. Eles falaram que iam abrir um abrigo, e o tempo passou rápido, e eles abriram.
P1 – E antes disso vocês ficavam na rua?
R – Ahã.
P1 – E esses outros abrigos?
R – Ah, eu (ouço?) assim. Entrava, não passava uma semana e ia embora. Quando falavam assim: “Você vai embora pra sua casa”, eu já me explodia. “Não vou embora, não.” Ficava nervoso, né? “Não vou embora, não.” Mas o resto... Chegava sábado e domingo, acordava: “Jefferson, arruma suas coisas que você vai embora.” “Para onde?” “Praia Grande.” Falava: “Ah, vou embora para o Centro mesmo.” Passava por baixo do ônibus, passava por baixo do ônibus de boa. Aí o motorista... “Ô, motorista, deixa eu passar por baixo?” Quando nós íamos para a Represa de Guarapiranga, que todo dia nós íamos tomar banho numa igreja lá, que tem lá na ______. Nós íamos tomar banho lá todo dia. Tem o Três Corações, o Projeto Três Corações também. Tem um monte de projeto, um monte de projeto por aí. Qualquer lugar que eu for, eu encontro um projeto. Tem o Travessia também. Todas essas pessoas tentaram me ajudar, mas eu não quis, não. Agora que eu estou com o “BOzinho”, que eu falei para você, que eu estou me aprumando mais. Jamais eu quero ver um filho na rua, porque deve ser uma dor tão ruim. O pai me ver assim. Meu pai fala para mim, quando eu olho para o meu prato, e a Meire esquece o meu prato lá, que a Meire é a minha madrasta, ele fala: “Nem para pôr o prato do meu filho, para eu roubar o bifinho dele.” Ele começa a brincar lá, aí depois eu... Mas comer lá é de boa. Tudo tranquilo.
P1 – E qual é o nome da sua... Você está namorando a menina?
R – Estou.
P1 – Qual é o nome dela?
R – É Daniela.
P1 – Daniela. E aí, você agora? No começo era difícil, mas agora?
R – Agora eu estou sossegado.
P1 – E ela está feliz?
R – Com certeza, né? Ela que pediu, não foi eu que pedi.
P1 – O “BO”?
R – É, eu também fui “embalista”. Eu fui “embalista”, de ter feito uma coisa... Mas já fez, né?
P1 – Quantos anos ela tem?
R – Quinze.
P1 – Quinze?
R – Ter filho não é igual botar nota de um real no bolso, não. Filho você tem que correr atrás. Acordar de madrugada para ir no hospital, esses negócios, um monte de coisa.
P1 – E ela está morando no abrigo?
R – Está morando na casa da mãe dela.
P1 – Da mãe dela. E a história dela, também ela morava lá?
R – É a mesma coisa. Igual a eu. Ela também é a mesma coisa. Conheci ela no abrigo, só que ela ficava na rua também.
P1 – O que é mais interessante nessa vida da rua? Quando você acabava indo, saía do abrigo, voltava... O que te levava?
R – Como assim?
P1 – Ah, quando você estava no abrigo, o que te levava de volta pra rua?
R – Ah, bateu na mente. “Vou embora.” Aí eu fugia. Quando vai embora, ______. Aí, vai ver: “Cadê o Jefferson?” “O Jefferson fugiu.” Aí, encontrava o pessoal da Caps de novo, o pessoal da Caps de novo, falava com eles. “Fugiu, Jefferson?” “Fugi.” Eles falavam, ficavam tristes. Agora que eu estou mais sossegado. Agora estou aliviado. Também, quando eu passo perto de um menino assim, ele está deitado no chão, não tenho nem o que falar. Já aperta o coração. Porque a mesma coisa que eles passaram eu já passei na vida. Coisas que eles já passaram, eu já passei. Na hora que eu vejo aquele molequinho embrulhado, só com uma camiseta, com a perninha assim, a camiseta passando por aqui... Não tem nem o que falar. Já passo até reto para não ficar muito triste.
P1 – Te deixa...?
R – Deixa. Se eu pudesse tirar todos da rua, à força mesmo, eu tirava. Dava uma... Comprava uma chácara enorme. Montava uma cidadezinha só de moleque de rua. Que já foi moleque de rua. Piscina, cachoeira, tudo. Mas para tudo isso precisa de money (risos).
P1 – O que você acha que faria eles saírem da rua?
R – Parar de... Essas pessoas, de dar comida, essas coisas. Aquelas pessoas também que... Parar de dar comida, que isso incentiva muito. De repente, a pessoa não tem o que comer, vai comer na rua. Aí já começa a conhecer tíner, começa a conhecer maus elementos, que nunca viu na vida. E começa a se misturar. Que tem gente que não tem nada para comer em casa e, quando você vai ver, está na rua pedindo. Ou a mãe bota para pedir no farol, o pai. Se não, está com o rodinho lá, ou pega umas frutinhas aí e começa... Nem sei o nome. Malabarismo. Sei lá. Negócio meio assim. Começa a pegar pauzinho também e jogar para o alto. Tudo isso os moleques fazem.
P1 – Normalmente, entre o grupo de meninos de rua, cada um sabe a história do outro? Por que o outro está ali? Ou ninguém sabe?
R – Tem alguns que sabem. Tem uns que preferem não contar, não. Tem uns que são fugidos lá do lugar. Tem uns que são corridos. Tem uns que são fugidos do lugar, e, de repente, o moleque é da mesma quebrada lá. Eles nem preferem falar. Tem uns que falam: “Ah, não é da sua conta.” Aí já: “Peraí, vamos raciocinar. Uma coisa ele aprontou.” Mas ninguém gosta de contar na rua, não.
P1 – Não tem muita troca, conversa?
R – Não tem.
P1 – Está todo mundo ali...
R – Está todo mundo ali, curtindo. Mas ninguém pergunta essas coisas. Ninguém pergunta.
P1 – Mas hoje em dia você se pergunta por que aquelas crianças estão ali?
R – Como?
P1 – Quando você passa e olha uma criança, você se pergunta por que ela está ali?
R – Ah, ahã.
P1 – Ou você já sabe?
R – Às vezes, eu já olho: “Aquele ali está de safadeza. Aquele ali está mais porque a mãe briga.” Bateu o olho na criança, você já sabe. Eu, se eu bater o olho, eu já sei por que está. Parece que já vem na minha mente mesmo. “Aquele ali já deve estar porque aprontou alguma coisa.” Ou: “Aquele ali já apanhou em casa.” Quando vem com marca, um negócio assim. Aí eu vejo. A primeira coisa é bater, e isso aí na mente. Ou algum que sofre. Alguns que sofrem, como que eu posso falar? É abusado pelos pais, pelos irmãos. Pela própria mãe também, né? Que não é difícil, não. Alguns fogem para a rua.
P1 – Então, Jefferson, já que você está falando o que ajuda a levar os meninos... Agora que você tem o “BO”, eu vejo que você tem outro olhar sobre essa situação. Você ajuda os educadores com as outras?
R – Ah, às vezes, some alguma coisa, eles já vêm assim: “Jefferson, tem que achar isso pra mim.” Mas já eu falo: “Todo mundo, faz favor.” Reúno todo mundo e já falo: “Quem pegou a chave? Dou um minuto pra aparecer. Se não aparecer e eu descobrir quem que foi...” Já dou um choque. Eu já chego em um e falo assim: “Foi você, não foi? Foi você, sim, mano.” Começa a chorar e fala: “Não, eu sei quem foi.” Eles mesmos caguetam o outro. Aí o outro fica nervoso, né? Tranquilo. Mas jamais eu vou chegar e bater no moleque, que eu não sou pai dele, nem mãe dele, ninguém da família dele para relar nele.
P1 – E, outra coisa, os seus pais. São artistas, pintam. Tem alguma coisa de arte, de música que você goste? Rap, alguma coisa?
R – Ah, isso eu sou fanático em pagode. Sorriso Maroto, esse negócio. Mas break, esses negócios assim, eu não gosto, não. É funk, que lá onde eu moro só rola funk. Baixada, só rola funk.
P1 – E no esporte?
R – No esporte, vixe! Se fosse para eu passar de mês em mês em esporte, eu fazia questão de passar.
P1 – Além do caratê e do boxe?
R – É, eu não escolhia mais caratê, não. E nem boxe, que hoje em dia... Um vôlei, um futebol. Que eu cato no gol e cobro falta. Aí sempre tem um lá. “Olha quem chega, vamos colocar no time lá para catar.” Só que o meu negócio é campo mesmo, não é quadra, não. Se for em quadra, eu posso até tentar, né? Mas rala muito aquele chão duro. Mas nós fazemos o máximo possível. Se estiver com vontade de jogar. Agora, se estiver desanimado, eu nem jogo, só jogo se estiver com vontade de jogar. Se não, não jogo, não. Não vou estragar a brincadeira do outro que está com vontade de jogar.
P1 – E você acha que o esporte ajudou você a sair dos problemas, da rua?
R – É, acho que um pouquinho. Porque na rua eu não fazia muita coisa, não. Só jogava bola e fazia boxe. Boxe era toda hora. Eu, quando chegava lá, tinha a senha, né? (Cacetar?) o negocinho lá. Tic, tic, tic. No saco lá, (cacetar?). Tchu, tchu, tchu. Aí ficava lá duas, três, quatro horas. Quando vai ver, já são seis horas. Falei: “Agora parar, tomar um banho e vou dar uma volta, dar uma volta aí.” Ficava de boa. Mas meu esporte favorito mesmo é natação e futebol. Se não, vôlei. Vôlei eu estou começando a ficar fanático agora. É uma coisa que está mexendo comigo mesmo, é vôlei. Todo mundo fala: “Você tem altura, você vai ter altura, você já com 15 anos é desse tamanho, imagina quando tiver 20, 18, 20 anos? Você vai estar grandão.” É isso que eles falam.
P1 – E onde você está jogando vôlei?
R – Ah, eu jogo quando aparece. Mas, se fosse para eu estar numa escola de vôlei, eu fazia questão, fazia questão. Até ______, tomar uma bolada, mas eu prefiro ficar no futebol. Mas de boa.
P1 – E o boxe? Por que você acabou se afastando?
R – Ah, porque eu fiquei um pouco parado e desanimou.
P1 – Por quê?
R – Ah, porque eu não queria parar uma coisa que eu gosto. Eu não queria parar. Só que eu vou lá e dou um soco. A primeira coisa que eu chego lá, o cara fala: “Deixa eu ver a sua mão.” Aí já olha minha mão e fala: “Filho, volta pra lá.” Aí eu falo: “Não, nem um soquinho para matar a vontade?” Comecei a ir, todo dia, e pedia: “Por favor, por favor.” Aí ele falou: “Não, agora não tem condições. Depois, quando melhorar sua mão, você vem.” Passaram quatro meses, e minha mão não melhorou ainda. Aí me encaminharam para o cirurgião, vamos ver o que vai fazer. Se tiver o caco de vidro, eles vão ter que abrir. Porque eu achei também que isso foi falha deles. Fui na ortopedia, tiraram raios X e não viram um caco de vidro nos raios X? Acho que é uma puta de uma falha, para mim.
P1 – Mas você sente dor?
R – É, quando está frio. Nossa. Bate até dor de cabeça.
P1 – E como é que eram os torneios de boxe que você participou? Ganhou medalha, tudo?
R – Ah, era. Na hora era. Pô, depois que via os caras, era sossegado. Mas, antes de chegar lá, se trocar, colocava a luva, o cara falava: “Está todo mundo pronto?” “Está.” Os moleques falavam: “Estamos.” Na hora que me chamava, eu já podia ver a cara do suspeito. Se fosse aquele quadradão, não dava para enfrentar, não, professor. Não dava para enfrentar, não. Quando via um moleque, igual a eu, só que, sei lá. Quando eu vejo que é mais fraco do que eu, quando ele está perdendo, parece que eu quero deixar ele ganhar, que eu não gosto de ver ninguém perder. Gosto de ver todo mundo ganhar. Só que, agora, na hora que pega forte mesmo, é para pegar forte. Então, demorou, se quer pegar forte. Aí já começa. Já começa a entrar uma maldade lá no meio. É soco na boca, soco na cara, que você nem vê de onde sai. Nós tomamos, e eu não sinto mais nada. Barriga, rim, não sinto mais nada. No fígado, eu ainda sinto, que é a parte que mais dói. Mas é sossegado.
P1 – E onde eram os torneios?
R – Tinha torneio em qualquer lugar. Só que era mais São Paulo, Osasco, São Mateus, ali perto da Santa Cecília. Agora, onde a gente ia mesmo era para Osasco.
P1 – É numa academia? Onde era?
R – Era no ginásio de boxe.
P1 – E como foram as vezes em que você ganhou medalha?
R – Ah, eu não queria ter ganhado, não. Vou ser sincero. Eu queria que a pessoa que estava no meu lugar ganhasse. Não, eu queria ganhar também, mas queria que ele ganhasse a mesma coisa que eu. Eu queria que todo mundo ganhasse. Eu, todo mundo. Não ver aquela pessoa saindo triste lá do meio, perdendo. Esse aí perdeu. Eu já perdi também bastante luta. Quando eu perdia, falava: “Ufa, até que enfim eu perdi uma.” Que era difícil de eu perder também. Mas o resto era tranquilo.
P1 – Você já deixou alguém ganhar?
R – Ah, não. Aí não. Na hora que eu tentava, falava: “Ele tem que ganhar.” Na hora que eu batia, piscava o olho, já tinha tomado várias. Na boca, na boca do estômago, no rim, na testa. “Está bom, você quer brincar mesmo? Então, vamos brincar.” Aí tinha vez que segurava o cara, mordia a orelha do cara, para arrancar mesmo. Os caras maldosos mesmo eu mordia para arrancar. Sempre tem, né? Aquela mordidinha assim. Mas o resto era tranquilo.
P1 – Quais são as regras do boxe?
R – Não pode dar chute, só pode dar soco, daqui para cá. Não pode dar soco aqui, é só do umbigo para cima.
P1 – E o pessoal segue essas regras?
R – Tem uns que sempre dão umas falhas. Mas sempre é cobrado pelo juiz, pelos técnicos, deles mesmos, do professor deles. Que todo mundo... Errar é humano também. Em algumas coisas, errar é humano.
P1 – E, à vezes, dá briga fora, depois do campeonato?
R – Como?
P1 – Às vezes, acontece briga fora do campeonato?
R – Não.
P1 – Não?
R – Porque, quando tem esses negócios, tem muita polícia que vai. Muita polícia. Que a primeira vez que eu fui, teve uma pancadaria, teve uma puta de uma pancadaria que eu vi até cadeira voando. No caso, sei lá por quê, o maluco, era besteira de casal. Casal olhando para outro casal. Aí teve briga. O cara falou: “Está dando em cima da minha mulher?”, e catou o cara. Aí já começou a sair pancadaria, já juntou tumulto. Mas depois eu fui embora. Entrei na viatura e fui embora. Que lá tem que ter escolta. Tem que ter escolta para levar a gente e trazer a gente.
P1 – Ué, por quê?
R – Até hoje eu não sei. Não pergunto.
P1 – Mas isso é da academia do Garrido?
R – Da academia do Garrido mesmo. Ah, não sei. Tem uns caras que não vão muito, que lutam boxe, que perdem e não sabem perder. Acho que a pessoa tem que aceitar: perdeu, perdeu. Agora ficar lá: “Ah, não.” O bagulho é muito chato lá. Aí vai levando de boa.
P1 – E como era o seu relacionamento com a polícia, quando você estava na rua?
R – Na rua?
P1 – É.
R – Ah, muito difícil. Ver os moleques apanhando e não poder fazer nada. Chegar polícia, tinha polícia que não gostava de ninguém. Fazia questão, mano, de bater com borracha, com cassetete, do meu tamanho o cassetete. Aí batia em todo mundo. Eu era mais esperto. Na hora, eu via os caras de longe. Falava: “Molhou.” Aí: “Molhou nada, não.” “Então está bom.” Quando via, todo mundo estava tomando cacetada. “Não avisou!” “Avisei sim. Vocês que não quiseram sair.” Que essa relação com a polícia na rua está sempre sendo muito difícil. Sendo muito difícil.
P1 – Tem alguém que ajuda, ou é sempre uma relação...?
R – Tem um pessoal aí. Do Quixote, do Caps. Quando você, que a polícia bateu, e eu pego esse polícia mesmo, eu tento o máximo pegar, mas não vou lá, chegar na polícia. Pego o nome tudo. Levo para a corregedoria. Mas não sei se ele sai, não.
P1 – Mas é sempre uma relação difícil?
R – Agora, tem uns policiais que chegam lá, sabem trocar uma ideia, enquadrar: “Mão na cabeça.” Sabem trocar uma ideia. Sabem trocar uma ideia de boa. Tem outros que não, tem outros que chegam na cacetada. Igual esses guardas municipais. Esses dias, eu catei um de porrada lá. Falou: “Pega _____.” Aí, peguei, dei um chute na mão dele. O gás de pimenta caiu atrás de mim. Os moleques já aproveitaram, na República, e pegaram o gás de pimenta e já zoaram eles também. Já que é para zoar, né? “Vamos criar o tumulto”, os moleques pensam assim. Antigamente, quando eu estava na rua, eu pensava assim também. Pensava assim, agora não penso mais, não.
P1 – Mas tem algum policial que ajuda vocês? Que é mais amigo, ou é difícil isso?
R – É muito difícil.
P1 – É sempre uma relação de agressividade. E por quê?
R – Não sei, mano. Eles pegam, aprontam uma vez, eles já querem pegar toda hora. Parece que vira festa. Quer pegar toda hora e ficar levando para a delegacia.
P1 – E, às vezes, não tem nenhum motivo?
R – Nenhum motivo. Eles jogam uma droguinha lá e falam que estavam usando droga.
P1 – E você também falou que trabalhou de engraxate. Como é que era?
R – Aí, foi surgindo um cara, que deu a caixa para mim. Que deu uma caixa para mim. Ele deu a caixa, aí eu comecei a engraxar, aprendi com os moleques.
P1 – Quantos anos você tinha?
R – Ah, foi logo que eu cheguei na rua também. Para eu pegar meu dinheiro.
P1 – E como é que era engraxar, pedia? Ficava parado? Onde você ia?
R – Ah, ficava andando, eu gostava de andar. Se não, ficar parado, esperando freguesinho (risos).
P1 – E você conseguia bastante freguês?
R – É, quando eu vou ali pela Sete de Abril, era todo mundo, todo mundo. Tinha gente que trazia sapato de casa para engraxar.
P1 – Ah, é? Você tinha uma clientela?
R – É, na Sete de Abril, ali.
P1 – E como é também essa história de quando vai para o hospital psiquiátrico? Como que é?
R – Vai para desintoxicação. A ideia mesmo deles foi para me mandar para a desintoxicação, para desintoxicar um pouco.
P1 – Você estava precisando por quê?
R – Não sei, isso aí eu nunca perguntei para eles, não, por quê. Mas não tem problema nenhum. Já passou.
P1 – Faz tempo?
R – Foi antes de eu entrar na casa.
P1 – E adiantou?
R – Adiantou. Bastante.
P1 – Então tá, você tem mais alguma coisa que você gostaria de falar, alguma coisa que você acha que ficou faltando?
R – Não, já falou tudo já.
P1 – Tudo? Nadinha? Então tá, queria agradecer, em nome do Museu da Pessoa, você ter dado o depoimento aqui para o Ponto de Cultura. Muito obrigada pela entrevista.
R – De nada.
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