Projeto: Memorial do Incor - 25 anos
Depoimento de Líris Terezinha Caracciolo
Entrevistada por José Carlos Vilardaga
São Paulo, 03/09/1999
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento ISP_HV009_Líris Terezinha Caracciolo
Transcritora: Marina D’ Andréa
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Dona Líris, por favor, repita o nome completo, data e local de nascimento.
R – Ai! Vamos lá. Meu nome é Líris Terezinha Caracciolo. Nasci aqui em São Paulo, na Avenida Celso Garcia, no dia dois de maio de 1936.
P/1 – E seus pais?
R – Papai era Francisco Caracciolo e minha mamãe era Leonor Biguelini Caracciolo.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – O papai era do comércio. Depois de um certo tempo eles abriram uma oficina de confecção de lençóis... Bordavam, passavam, eles tinham treze funcionários. Isso tudo ficava dentro de minha casa mesmo. E com esse dinheiro puderam dar estudo para mim e para o meu irmão. Eu tenho um irmão só: Jair Pedro Caracciolo. Ele é advogado, mas hoje é bancário.
P/1 – Sabe a origem da sua família? De onde ela veio?
R – É de Villimpenta, Itália. Os meus avós são de lá. O papai veio da Itália e a mãe da mamãe, que era Catarina Mulatti, veio para o Brasil já trazendo um filho e aqui ela teve doze filhos. Total treze. Só veio o tio Tarquinio da Itália. Depois ela ficou em Santa Cruz da Conceição, uma cidade distante de São Paulo, duzentos kilometros. Lá ela morou com todos esses filhos, depois todos casaram, vieram para São Paulo, Bauru, e hoje tenho uma casa lá. Quando eu fui transferida do HC pra cá, pude construir a casa pros meus pais (choro). Desculpe. Cada filho da vovó e filha fez uma casa lá pros seus pais, todos queriam voltar. E a casa da vovó, depois que faleceu, foi… A herança foi dividida e cada um construiu a sua residência. Eu não pude de imediato construir, só depois quando vim aqui para o Incor, em 1975, que, aliás, fui sorteada numa Brasília e comprei os tijolos. E...
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Depoimento de Líris Terezinha Caracciolo
Entrevistada por José Carlos Vilardaga
São Paulo, 03/09/1999
Realização: Museu da Pessoa
Depoimento ISP_HV009_Líris Terezinha Caracciolo
Transcritora: Marina D’ Andréa
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Dona Líris, por favor, repita o nome completo, data e local de nascimento.
R – Ai! Vamos lá. Meu nome é Líris Terezinha Caracciolo. Nasci aqui em São Paulo, na Avenida Celso Garcia, no dia dois de maio de 1936.
P/1 – E seus pais?
R – Papai era Francisco Caracciolo e minha mamãe era Leonor Biguelini Caracciolo.
P/1 – O que seus pais faziam?
R – O papai era do comércio. Depois de um certo tempo eles abriram uma oficina de confecção de lençóis... Bordavam, passavam, eles tinham treze funcionários. Isso tudo ficava dentro de minha casa mesmo. E com esse dinheiro puderam dar estudo para mim e para o meu irmão. Eu tenho um irmão só: Jair Pedro Caracciolo. Ele é advogado, mas hoje é bancário.
P/1 – Sabe a origem da sua família? De onde ela veio?
R – É de Villimpenta, Itália. Os meus avós são de lá. O papai veio da Itália e a mãe da mamãe, que era Catarina Mulatti, veio para o Brasil já trazendo um filho e aqui ela teve doze filhos. Total treze. Só veio o tio Tarquinio da Itália. Depois ela ficou em Santa Cruz da Conceição, uma cidade distante de São Paulo, duzentos kilometros. Lá ela morou com todos esses filhos, depois todos casaram, vieram para São Paulo, Bauru, e hoje tenho uma casa lá. Quando eu fui transferida do HC pra cá, pude construir a casa pros meus pais (choro). Desculpe. Cada filho da vovó e filha fez uma casa lá pros seus pais, todos queriam voltar. E a casa da vovó, depois que faleceu, foi… A herança foi dividida e cada um construiu a sua residência. Eu não pude de imediato construir, só depois quando vim aqui para o Incor, em 1975, que, aliás, fui sorteada numa Brasília e comprei os tijolos. E continuei andando de ônibus. É uma caminhada… Não é fácil.
P/1 – A senhora sabe como seus pais se conheceram?
R – A mamãe veio pra São Paulo quando tinha dezoito anos, morava ali na Celso Garcia, e o papai era de São Carlos, morava na João Boemer. Nós somos tudo do Brás, tudo italiano. Tinha o footing lá na Celso Garcia, e aí eles se conheceram, começou o namoro. Eles completaram cinquenta anos de casado, mas depois vieram as doenças e as coisas. Veio até o falecimento, é uma coisa desagradável, mas a gente tem que aceitar.
P/1 – A senhora nasceu na Celso Garcia. Como era essa casa da infância, a senhora morou lá até quando?
R – Era o seguinte: Uma tia minha, irmã do papai, a tia Angelina, tinha essa casa, Scattone, não sei se você já ouviu falar. Era uma casa de bicicletas, de reforma, uma casa antiga. Hoje já não tem mais porque os filhos todos já aposentaram, já faleceu um, mas foi nessa casa que eu nasci. Era um terreno enorme, tinha uma casa lá, e a mamãe foi morar lá quando casaram. Ali foi onde nasci. Não nasci no hospital não, nasci no dia dois de maio em pleno dia, com cinco quilos e quatrocentas gramas. Foi na casa, com trabalho de parteira, foi assim um negócio... Porque era assim, todo o mundo era assustado, porque a criança era grande, e veio o médico, que era o doutor Souza Lima, famoso, o único do bairro. Ele veio e ficou bravo com as minhas tias, pois a criança nasceu em casa sabendo que era uma criança grande. Mas não houve nada. Minha mãe não tinha diabete, nada, isso quer dizer que foi um parto normal, como eu sou normal até hoje (risos).
P/1 – A senhora se lembra fisicamente como era a casa?
R – Era assim: Tinha um jardim e na frente tinha a oficina das bicicletas. Tinha a loja e a oficina também. E atrás é que tinha a casa da tia Angelina, a casa da mamãe e do papai, isso é o que eu me lembro, porque na realidade eu fiquei até uns três anos lá. Depois mudamos pra rua Carlos de Campos, ali no Pari, e ali eu vivi minha infância, morei lá quase 39 anos, e depois mudamos para Santa Cruz da Conceição, já em 1975.
P/1 – A casa do Pari a senhora lembra como era?
R – Era uma casa bem simples, mas assim, recebia muita gente - como até hoje recebo na minha casa - era uma casa muito movimentada, sobrinhos, primos, enfim, todos queriam passar na minha casa. A minha mãe era uma pessoa muito alegre, dinâmica, gostava de receber as pessoas. Fazia as comidas italianas, feijoada, sardinha assada. (risos) Tinha todo esse envolvimento da família na casa da mamãe. E todo o sábado era essa folia, e dentro era a oficina, como já disse. As crianças gostavam de novidade e o nosso quintal era enorme. Eles vinham mais porque moravam em apartamento, tudo apertadinho. Eles ficavam na casa lá, brincavam e tudo. Todos os sábados eles perguntavam: “Onde nós vamos?” Todos eles com posses, com condições de viajar, mas diziam: “Quero ir na casa da tia Leonor”. E assim passamos nossa infância e.... Foi muito boa, trabalhei desde os dez anos, porque minha mãe ficava na oficina e eu tinha que ficar na casa. Fazia o almoço e quando eles voltavam eles iam almoçar. Nesta época eu já ia pra escola. Estudei no Colégio Santo Antônio do Pari, fiz lá o primário, na minha época, depois fiz um ano de admissão. Depois fui estudar no Colégio São José de Bauru, como eu era muita ativa, papai, infelizmente, não tinha estudado, ele tinha terceiro ano, como mamãe também tinha. Só que minha mãe era outra... Ela tinha mais leitura, era uma pessoa dada, tinha conhecimento, queria que nós estudássemos. E como eu trabalhava muito na oficina, eu rendia muito. Eu fechava duzentos lençóis em seis horas. E o papai falava: “Não, ela vai ficar aqui na oficina, ela não vai estudar, ela estuda aqui em São Paulo, aquela coisa”.
P/1 – Como era o trabalho na oficina?
R – Eram lençóis de casal, tinha que bordar. Tinham as bordadeiras, elas bordavam e depois a gente fazia a bainha pra fechar. Tudo na base da máquina. E depois tinha que passar. E como eu dava produção ele achava que tinha que ficar aqui. E a mamãe, como era esperta, não queria, porque se eu ficasse aqui não ia estudar. Então ela me pôs no Colégio São José de Bauru, tinham as tias lá morando. A tia Emília, tia Vitória e a tia Ida. E fiquei interna lá. Fiz o ginásio. E meu pai, como não queria que eu fosse estudar, falou que não ia ajudar a pagar. Mas minha mãe trabalhava o dia inteiro, das seis à meia noite ela trabalhava pra pagar o colégio (choro). Ela bordava lencinhos, aqueles que ficam nas caixinhas, três lencinhos, ela bordava com perfeição. Com isso ela pagava o meu colégio. Eu estudei os quatro anos interna, uma menina não travessa, mas sempre procurei cumprir a obrigação, pois sabia o que lá em casa estava acontecendo. Isso foi 1954...
P/1 – Como era esse colégio?
R – Era um colégio muito... As freiras eram do Sagrado Coração de Jesus, eram, aliás, eu sentia falta de casa, mas sentia um amparo tremendo com aquelas irmãs. Não sei se eu era uma menina quieta, tinha de tudo com as freiras. Inclusive elas deixavam eu receber carta do namorado, coisas que para as outras passava primeiro pelo crivo delas. Eu não. Recebia sempre a carta fechada. Nosso dormitório era de setenta alunas, a sala de estudo tinham as setenta alunas e a gente estudava, era aquele silêncio, aquela obediência, os horários eram cumpridos, e a gente... Eu sempre, por bom comportamento, tinha saída livre nos sábados e domingos. Fiquei os quatro anos no quadro de honra do colégio, tanto de comportamento como educação. Eu achava que era obrigação pra poder pagar aquilo que estavam fazendo (choro).
P/1 - A senhora estudou até o ginásio. E depois, como foi?
R – E aí voltei pra São Paulo e entrei aqui na Alexandre de Gusmão. Depois prestei o concurso pra magistério, aí na escola do Ipiranga, e estava estudando, já estava no segundo ano, já no sétimo ano de piano e estudava pra professora. Colégio interno tinha que estudar piano. Nisso já estava namorando um rapaz que estava estudando medicina, e ele de tanto ouvir os desencontros que tinham os casais que não eram casados com enfermeiras, aqui da área da saúde, e que o casamento não ia pra frente... Então ele começou a virar a minha cabeça, que eu deveria mudar de curso, deveria fazer enfermagem, e tal, e eu toda animada, né? Lógico, menina de dezoito anos. Terminei o magistério e fui me matricular na Cruz Vermelha pra fazer um curso de samaritana. Era um curso de seis meses, tinham três meses de teoria e três de prática. E nisso a diretora da escola e professores insistiam pra eu fazer enfermagem, diziam que eu tinha nascido pra enfermeira, que tinha o dom. E eu, pra mostrar pro namorado, fui pautando minha vida mais pra enfermagem. E aí foi outro drama. Fui conversar com meus pais, porque naquela época, 1955, quem fazia enfermagem... No conhecimento deles e no meu mesmo, porque não tinha muito conhecimento nessa área. Mas depois que fiz o curso samaritana eu já tinha outras conversas, outro papo pra falar sobre enfermagem. Mas os meus pais não queriam de jeito nenhum, meu pai achava que pegavam essas mulheres da rua pra ser enfermeira, que eram mulheres que não tinham comportamento, que elas traziam tudo pro hospital, isso na realidade foi mais no século passado. Sei lá. Mas essa era a imagem. E o papai, sendo aquele calabrês muito rígido, achou que eu ia pegar a maior liberdade, que ia ficar… Não sei o que ele imaginou na cabeça dele. Mas aí, sem ordem deles, fiz o vestibular e entrei. E ficou assim três meses. Eu tinha que comentar com a mamãe e com papai que eu tinha passado, enfim, três meses de sofrimento. Aquela ansiedade pra falar pra eles, que tinha que pagar, e uma série de coisas que tinha que tomar providências e não podia, inclusive a carteira profissional, né? Porque na Cruz Vermelha exigia a carteira profissional, eu tinha que fazer isso aí. Foi um tormento, uma coisa terrível, minha família inteira falando que não deveria fazer enfermagem, que era isso, era aquilo, que eu era professora, que estava estudando piano... E ninguém via o meu lado, que eu queria, que gostava já da enfermagem, dava pra isso, todo mundo achava e eu também. O namorado era o principal motivo da minha ida pra enfermagem, também achava bom. No fim, quando chegou perto de começarem as aulas, na enfermagem começava no dia 31 de janeiro, decidi que ia fazer o curso e que se não passasse ou fosse aquilo que eles estavam pensando, sairia da escola. Fiz o primeiro ano, feliz da vida, com amor, sacrifício, com tudo o que você possa imaginar. A minha escola ficava lá na Rua Líbero Badaró, num prédio que hoje fica em frente ao Banco do Brasil. É um prédio velho, antigo, e nós tínhamos um andar e era ali que era a escola. Na realidade não tinham muitos alunos, porque era uma escola particular, uma escola que só recebia famílias tradicionais brasileiras, aí tive que lutar porque era italiana, havia preconceito, eu e minha amiga Dorothy, era alemã naturalizada, mas considerada alemã como eu considerada italiana. Então tivemos que vencer essa etapa na escola, mostrar o que nós éramos, mas depois foi passado por esquecido. Mas no início foi muito difícil. Lá era assim. Lara Vidigal era uma pessoa que a gente conhecia a vida pelos jornais, pela postura, a casa tinha piscina, eles tinham clube, tudo aquilo que nós não tínhamos. Eu tinha que pegar o ônibus, o bonde pra chegar até escola. Então aquela ali ia elevar o nome da Cruz Vermelha, como brasileira, porque era escola de Enfermagem da Cruz Vermelha Brasileira, filial de São Paulo. Tinha que pôr ênfase no Brasileira. E era assim. Não que maltratavam, você não senta aqui e tal. Mas a gente sentia que as meninas chegavam na hora que queriam, saíam na hora que queriam, e nós éramos cobradas, chegar no horário, sair no horário. Éramos cobradas em hora de biblioteca, tudo era mais difícil para o nosso lado. Todo o mundo entregava um trabalho simplesmente, e nós precisávamos entregar o trabalho com capinha e outras novidades. Mas a gente percebia, nas ações dos professores no dia a dia, em pequenas coisas. Começamos a turma em dezoito e só três se formaram, porque elas não aguentaram. Nós já estávamos vendo que elas não iam aguentar a enfermagem, porque eram donas da sociedade, dondoquinhas. Mas nós tínhamos mesmo escolhido enfermagem e sabíamos por que estávamos lá. Então se formou o Francisco, a Dorothy e eu. Hoje somos amigas, há 42 anos... Fizemos Cruz Vermelha, fazíamos estágio aqui no HC, a escola tinha convênio. E também era assim. Tinha a USP e a Cruz Vermelha. Na ocasião eram só essas duas, que eu me lembre. E as professoras da USP sempre perguntavam... Porque na Cruz Vermelha é assim. Como nós somos aliadas ao exército, eu sou primeira tenente, com livro assinado no exército, tudo direitinho, graças a Deus não teve guerra aqui no Brasil, não precisei...
P/1 – A senhora tinha algum vínculo com o exército?
R – Ah, sim. Cada seis meses a gente ia lá pra fazer a renovação de onde você está, onde mora. Depois mudou o coronel, o general e não teve mais. Mas no início de formada a gente tinha que a cada seis meses comparecer. Bom, aí elas queriam saber porque que nós andávamos uniformizadas, tínhamos uma outra postura... Porque era completamente diferente. Na USP eles tinham tudo, desde a roupa lavada e uniforme lavado, a moradia, que morava dentro da escola, daí tinham os estudos deles já bem organizados. E nós não. Nós tínhamos que fazer estágio aqui, pegar ônibus, ir lá pra Líbero Badaró para poder continuar as aulas da tarde. Era muito sacrifício. E nós vivíamos com o uniforme no braço, o uniforme era diferente, era vestido branco por baixo e tinha um avental com uma cruz vermelha aqui. Mas tinha esse avental que diferenciava dos outros. Já sabia que era uma aluna de enfermagem. E aquela cruz vermelha tinha que ser perfeitamente quadradinha, não podia ter um milímetro, nada, era tudo bem quadradinho. E se passaram quatro anos, e fui presidente do Centro Acadêmico, vice-presidente, tudo isso contra os meus pais, eles não sabendo nada da minha vida pra cá. Falava de enfermagem, era um tormento em casa. Aí a família também ficou meio distante... Isso aí são suposições minhas.
P/1 – A senhora continuou morando com os pais?
R – Continuei… Quando chegou no fim do primeiro ano meu namorado entrou na enfermaria, na clínica médica lá do sexto andar do HC, na enfermaria 6025. E disse: “Olha, a senhora está proibida de conversar com esses doentes e com os meus colegas”. E eu pensei: Poxa, que enfermeira vou ser? Não posso conversar com os doentes, não posso conversar com o médico, que enfermeira vou ser?”. Fiquei pensando. Aí cheguei em casa meio triste, pensando, e pensando o que ia fazer, e eu decidi que ia desmanchar o namoro. Foi uma coisa violenta, porque eu ia morrer solteirona, eu não ia casar porque eu estava com a enfermagem, e tudo voltou à baila. E desmanchei o namoro e fiquei com a enfermagem.
P/1 – E por que ele disse isso?
R – Acho que era ciúmes... Naquela época não era preconceito, pois foi ele que mandou estudar. Acho que era ciúmes mesmo. Eu era muito solicitada, era garotinha, com quase dezenove anos, era muito paparicada mesmo, com os próprios residentes, com os próprios médicos, acadêmicos, e os pacientes também, né, porque a gente se devotava por aquele paciente, como aluna, e você tinha por trás um professor que queria que você tivesse comunicação com o doente, chegar perto do paciente, e com isso eu fiquei sobressaindo e ele ficou pra trás. Não entendi. Mas também não vem ao caso. Nós desmanchamos o namoro, foram três meses pra essa duração aí, mas nós conseguimos desmanchar. Ele se formou médico, eu já estava formada, e nunca mais encontrei com ele, nem nada. Apesar de estar os dois aqui nessa Instituição, nunca mais encontrei, só quando me formei, aí vim pro HC e prestei concurso, entrei, depois de quatro anos, eu era professora dos atendentes de enfermagem, naquela época nós recebíamos atendentes, e tinha que dar aquelas aulas de iniciação à enfermagem, aqui no HC. Fiquei durante um ano. A gente voltava de férias e não sabia que lugar você ia. E bem nessa volta das minhas primeiras férias fui convocada pra substituir chefias. Trabalhei em todos os andares do HC, eu era substituta de chefia. Depois fui trabalhar na clínica médica, tinha o início da hemodiálise. Tinham 36 hemodiálises. Hoje já tem mais de cem mil, duzentos mil, milhões de... Era o começo desse procedimento. Eu me lembro até hoje que tinha uma lousinha que dizia: “Completamos hoje 36 hemodiálises” E nesse dia fiquei nessa sala, sozinha, eu era a enfermeira da sala, e o doutor Saldanha era o chefe da unidade, e eu era a enfermeira. E nós estávamos... O paciente começou a se sentir mal, o médico já ficou alterado, aí a hemodiálise não era como é hoje, era circular, em papel celofane, só tem em livros essa máquina. Não existe mais. E estourou, teve sangue por tudo quanto era lado. O doutor Saldanha ficou muito nervoso e eu lá perto do paciente, tirando a pressão dele e explicando pra ele que aquilo era o sangue da máquina e não dele... Aquelas coisinhas todas que a gente tinha uma prática em fazer isso. Ele falou: “A única coisa que me acalmaria era um cafezinho”. Eu saí da sala, fui na copa, era ao lado, peguei o cafezinho e trouxe. Nisso a minha supervisora, hoje já falei duas vezes nela, é já falecida, perguntou: “Pra quem é esse café?” Falei que era para o doutor Saldanha: “Às 11 horas a senhora vai pra minha sala”. E aí eu dei o café para o doutor Saldanha e às 11 horas fui para a sala dela. Porque era muito rígido, esse controle, aproximação médico e enfermeira, era muito rígido. E como eu tinha aquela fama que eu era engraçadinha, tudo... É sofrimento. Sofri em tudo quanto foi base, viu? Fui pra sala dela e ela falou: “A partir de amanhã a senhora estará na Pediatria ou Pronto-Socorro”. Então falei: “Já que a senhora deu oportunidade para escolher, então vou pro pronto-socorro”. E aí comecei minha trajetória. Isso em 1968, 66. Em 1968 passei para o cargo de encarregada, de enfermeira passei pra encarregada, e em 69 fui fazer o curso de pós-graduação. Eu fui a primeira CLT a fazer um curso a mandato do hospital. Fiquei estudando o ano inteiro. Nessa trajetória também houve sofrimento. Porque a USP... Como eu era Cruz Vermelha tinha que fazer tudo dobrado. Mostrei pra eles, inclusive fiz a especialização para diretora de serviço de enfermagem. A professora dona Naíde, disse: “Olha, acho que a senhora precisa passar pra administração de unidade, porque diretora a senhora acho que não vai dar”. Falei: “Não, se vim aqui o hospital mandou, tenho um compromisso com o hospital. Se eu chegar no fim do ano e não passar porque não tive condições, vou dizer pra ele, mas quero tentar, vou ficar nesse curso”. E fiquei. E sabendo dessa trajetória toda me esforcei demais. Fui aluna revelação do curso. Pedi pra que ela falasse isso em frente aos alunos, e também pra diretora de enfermagem do HC, na época era a Dona Lurdes Cerqueira. Ela foi falar pra Dona Lurdes que fui uma aluna revelação, já que ela tinha falado que eu não dava pro negócio, daí pedi pra que ela falasse. Isso era o meu ego que estava precisando... Aí eu voltei da pós-graduação e falaram que eu não podia mais ficar no Pronto-Socorro, porque tinha que lidar mais com a parte científica de outra área, no Pronto-Socorro era muita tarefa, muito doente, muita coisa. Falaram que eu não ia pôr aquilo que tinha estudado durante o ano todo. Então...
P/1 – Como era o trabalho no Pronto-Socorro?
R – Olha, foram os melhores anos da minha vida. Se você me pedir pra voltar, se eu tivesse que voltar, voltaria como enfermeira, como enfermeira no Pronto-Socorro do HC. Foram uns anos… Foram dez anos que me dediquei, era apaixonada. Tinha horário para entrar e não tinha para sair. Até hoje. Hoje já estou mais cansadinha, né, mas eu entrava às treze horas e não tinha horário pra sair. Tanto é que tinha um taxista que me esperava. Ele já sabia que eu saía tarde, meus pais ficavam preocupados, e para não dar essa preocupação a eles eu.... Porque nesse ínterim eu comecei a dar aula em Mogi das Cruzes. Era professora de Fundamentos de Enfermagem. O dinheiro do HC eu dava fechado no envelope para os meus pais e o dinheiro de Mogi gastava com o que queria. O táxi foi uma das coisas que... Às vezes eu não sabia nem quanto eu recebia no HC. A enfermagem foi o orgulho da vida deles. E meu pai pegava qualquer diplominha que eu recebia, de Educação Continuada, que eu fazia no hospital, mostrava pra eles, e meu pai ficava todo orgulhoso... Mais um diploma... Quer dizer, passou de uma imagem preta a ser o orgulho deles. No Pronto-Socorro tive grandes tragédias. Peguei o incêndio do Joelma, primeiro foi um desastre aéreo que teve lá em Congonhas, e aquilo ali... Pensei que tinha nascido mesmo pra ser enfermeira de pronto-socorro. Chegavam aqueles doentes politraumatizados, doentes queimados, só a parte de baixo em osso, não tinha carne, músculo, nada. E a parte de cima bem. E eu como enfermeira que estava lá na direção tinha que falar para os médicos: “Olha, vamos cuidar desse aqui, deixar esse aqui”, porque eu sabia que as condições dele... Então a gente dava sangue, soro, mas precisava ficar em cima daquele outro que a gente sabia que ele tinha um prognóstico melhor, para que a gente não se concentrasse na perda desta vida aqui, porque a gente ia perder essa, a outra e a outra. Então a gente ficava... Pela emoção de ver aquela tragédia, de chegar aquela pessoa mutilada, e você querendo salvar quando não dava pra salvar. Era eu que fazia a seleção e as equipes eu comandava. Depois teve o Joelma... O Andrauss foi primeiro, eu continuava no Pronto-Socorro e o doutor Paulo Branco, o doutor Waldomiro de Paula, era o chefe do Pronto-Socorro, o que eu falava era lei, acreditava em tudo, ele mandou que eu fosse lá no CAOC, no campo de futebol do CAOC receber os helicópteros que chegavam com os doentes, então eu escolhia qual mandava para o Pronto-Socorro e qual tinha que atender ali embaixo - tudo com uma equipe médica - ali no campo mesmo. Porque tinha gente só com intoxicação da fumaça, nervoso, então não adiantava subir, era mais um. Eles precisavam cuidar dos outros, graves. E a seleção era feita por mim e era acreditado, mesmo, que aquilo que eu estava fazendo era certo. E fiquei todas essas horas recebendo para o encaminhamento. Tanto que naquela revista “Fatos & Fotos” eu apareci, mas rasguei, não quis mais ver aquilo. Eu naquele acidente. Achei aquilo muito traumatizante. Também porque queria apagar da minha memória, como apagou. Fiz bem, cumpri bem… Nesse do Joelma eu já estava na Urologia e aí o doutor Waldomiro mandou me chamar - porque eu tinha que ficar nessa coordenação, novamente - só eu sabia fazer essa coordenação, e fiquei. Mas aí já tinha que cuidar das jóias, dos pertences dos pacientes, de direcionar grupos e equipes médicas, quem que vai cuidar de quem, e tudo ficou sob a minha responsabilidade. Lembro-me que fui lá no CAOC, estava cheio de gente, cheio de escoliose, tinha da PM lá também, e perguntei pra ele: “O que o Sr. faz com essa farda?”. “Eu tomo conta, mandaram tomar conta”. “Então o senhor vai tomar conta mesmo. Tira todo esse pessoal que está aqui fora, está atrapalhando, porque essa é a função do senhor.” Quer dizer, eu enfrentei a PM naqueles tempos da ditadura. O doutor Cesar Leite falou assim: “É, você é louca, não sei o que...” mas ele tinha que ajudar. O povo ia entrando, entrando, sufocando, daí aquele povo que mandava leite, leite, leite, porque era assim: Saía do helicóptero, você olhava o paciente, via que ele só precisava uma água com açúcar, um copo de leite, então você mandava fazer aquilo lá. E o povo leite, leite, leite. Voluntários...E os que traziam um litrinho de leite queriam entrar, pra ver, né? E daí eu tinha que dar condições para aquela equipe trabalhar. Então, eu sempre fui bem prática, sabe, mais do que teórica, científica, sou muito prática.
P/1 – A senhora diz que já tinha mesmo o dom para a enfermagem, o que é esse dom?
R – Eu passei a me ver dentro do hospital. E eu fora de casa. Fora de casa, eu tinha decidido que ia me dedicar para aquela família. E o que era ser enfermeira, eu tinha um objetivo. Aquela minha missão era de cuidar, de estar presente, de ser responsável por aquela unidade, estar de prontidão quando o médico perguntasse... Porque hoje nós temos enfermeiras, várias enfermeiras. Naquele tempo era eu para cuidar de 83 doentes, dois auxiliares e um atendente para cuidar de 83 doentes. Lógico que não tinha a tecnologia de hoje, mas era puxado também. E eu tinha a responsabilidade dos 83 pacientes. Então eu dediquei minha vida ao doente. E se você não dedica com amor, não dá pra ser enfermeira, de jeito nenhum. Pelo ordenado, você nunca vai ser enfermeira. Mas se você não tiver amor, amor ao próximo, não dá. Me dediquei a isso. Foi esse carisma, de bondade, de me dar... Porque eu não gosto muito de falar de mim.
P2 – Mas é verdade. Ela tem isso. Se tem uma pessoa que está precisando, ela já vai entrando, ajudando, e isso na enfermeira é tudo. Depois tem toda a parte técnica, embasamento teórico, mas na hora da decisão você precisa estar lá. E ela tem essa decisão sempre presente, na hora que precisa. E é lógico que a questão do conhecimento técnico científico vem. Em algumas horas é preciso aplicar o conhecimento teórico, e ela tem isso muito presente na decisão. Precisou, está ali. Está sempre presente.
R – Quando eu dava aula de Fundamentos de Enfermagem, ensinei a pegar na seringa, pegar no paciente, conversar com o paciente, então isso era o que eu mais gostava e que até hoje me identifico também. Então minhas alunas... Era escola particular, e quando tinha assim, eles entravam em janeiro, e 31 de abril faziam um examão para ver se dava pra ser enfermeiro. Podia continuar com a faculdade ou tinha que desistir. Era um exame, mas era eu que fazia isso, não era a faculdade. Mas eu tinha que ter um parâmetro, uma avaliação daquelas pessoas que estavam ali. Você via que existia alguns que eram perfeitos para fazer enfermagem, outros estavam ali por estar, a outra porque passou, e a outra que no fim do ano ia embora. Eu ia perder muito tempo. Eu tinha oitenta alunos numa classe. E se pudesse ficar livre de vinte, ficava. Sempre mandava embora quatorze, dezoito, duas desistiam, e o diretor da escola me chamava: “Professora, a senhora sabe que esta é uma escola particular e que estamos perdendo dinheiro?” “Sei, sim senhor, mas quem vai cuidar de doente precisa saber também o que é ser enfermeiro. E não vou pôr no mercado alguém que não gosta da enfermagem”. Se ele veio ali por que quis vir, ou para mostrar que entrou na faculdade, acabou a missão dele. Dia 31 de abril acabou. Eles entendiam, mas não compreendiam e assim era. Todo o ano era assim. Trabalhei doze anos lá em Mogi das Cruzes, e nos doze anos eu era chamada. Inclusive tenho até dois funcionários, duas funcionárias minhas que chamei e falei: “Você não serve para ser enfermeira. Você nasceu para ser auxiliar de enfermagem” Até hoje elas têm um ressentimento comigo, mas continuam sendo auxiliar de enfermagem. E boas auxiliares. E como enfermeiras não iam ser. Então, essas percepções assim que a gente...
P/2 – Olha, eu fui enfermeira nessa unidade com a Dona Líris, quero passar um pouquinho como é essa coisa da Dona Líris. Ela não é de ficar falando muito, é postura profissional. E quando a gente entra aqui no Instituto, dizem: “Olha, tem uma enfermeira brava, ela exige postura”. E, ao longo dos anos, vai verificando. Logo no começo a gente acha que é só coisa chata, do cabelo e do uniforme, né? Mas depois de um tempo que eu estava, a Dona Líris pegava e eu já sabia o que era essa postura profissional. Não podia ficar maca no corredor, não podia cadeira de roda fora, não podia o doente estar desarrumado na cama, ela levantava os lençóis do doente, o paciente tinha que falar bem da enfermeira. Não olhava só o lençolzinho bonitinho. O posto de enfermagem tinha que estar em ordem, a sua apresentação tinha que estar bem, e os funcionários também. Era todo um conjunto de coisas. E isso é que era ser enfermeira. E os funcionários administrativos eram assim. “Dona Líris está chegando”, então todo mundo se organizava, faziam tudo que precisava. E ela tirava uma fotografia muito rápida, tanto da unidade, quanto do paciente, como da equipe. Era isso a postura que ela falava, quando ela falava postura, a gente sabia muito bem o que significava.
R – Outra coisa, não saber o nome da enfermeira que trabalha oito horas com o doente. Ah, isso... Não acredito. Como? Trabalha oito horas com o doente e ele não sabe o seu nome? Então você não se apresentou para o doente. Isso eu não admito, viu? Até hoje. Pergunto: “O senhor não conversou com a enfermeira?” “Que enfermeira? Ah, não sei.” Tá bom, pode deixar que agora é comigo. Uma vez as enfermeiras disseram: “Dona Líris, a senhora não vai comprar um sapato de borracha?” “Porque sapato de borracha?” “Não, porque quando a senhora chega ali no elevador, a senhora começa andar e a gente...” “Ah, nunca vou ter sapato de borracha” (risos). Porque você sabe, elas gostam de trabalhar de cabelo solto, sem o jaleco, então quando escutavam os meus passos elas já… (risos). São coisas da vida da gente. Mas é com isso que acho que inclusive nos diferencia, o Incor dos demais, é essa postura dos nossos profissionais. Tive a felicidade de poder dar aula e trouxe todas as enfermeiras que eu achava que seriam enfermeiras de cabeceira, de ponta, de presença, postura, inteligência, trouxe pra cá. São as minhas enfermeiras, chefe e algumas encarregadas. Porque eu dava aula de Fundamentos da Enfermagem e depois dava aula de Administração de Unidade. Ali é que eu escolhia minhas profissionais. Mas hoje já passaram vinte anos, mas hoje trabalho com essa nata da enfermagem, que nós somos diferenciadas por isso. Pela qualidade da escolha, da seleção que fiz. Elas são minhas filhas, né, não casei, não disse isso ainda, mas sou solteira, não por não ter pretendente, nada. Agora, há bem pouco tempo tive um, mas por causa da enfermagem mais uma vez ele ficou, e eu vim pra cá. Eu sempre tive namorado, sempre tive fãs, médicos, engenheiros, arquiteto, mas me dediquei ao hospital, e acho que não saberia dividir, a família e o hospital. Não sei como elas conseguem ter o marido, os filhos e se preocupar com toda a educação das crianças e ter que trabalhar oito horas. Isso é um exemplo de vida também para elas. Acho que isso aí eu também deveria ter feito um pouquinho de esforço, mas me acomodei. Não sei se também fiquei traumatizada dos meus pais dizendo que ia ser uma menina travessa, quis mostrar pra eles que não. Fiquei solteirona, vai morrer solteirona... Fiquei solteirona e feliz. Sou feliz mesmo. Hoje cuido das pessoas, sou madrinha de casamento de vinte casais. Tenho dezoito afilhados de batismo, sendo que duas são minhas sobrinhas. Meu irmão casou e tem duas meninas. Então sou assim, mãe deles. Uma já é advogada, e a outra está fazendo Relações Públicas, não quiseram fazer enfermagem. Mas acho que é muita dedicação... Eu conversava com elas quando eram menores, estavam estudando, mas a gente já viu que não tinha vocação. E quando não tem vocação, não adianta. Isso aí tem que nascer. Se não, faz enfermagem pra entrar na arquitetura? Ou direito? Não, você tem que fazer enfermagem porque quer. Aí vamos ter bons profissionais. Enfermagem não é entrar em vaga aberta. É ser enfermeira.
P/1 – Em 1972 a senhora estava na urologia?
R - Minha supervisora foi uma... Eu sofri muito, porque eu era uma pessoa dedicada, profissionalmente era reconhecida pela equipe médica, pelo hospital todo, e tinha aquela ciumeira que... Isso existe mesmo. Minha supervisora hoje falecida... Ai, quanta gente falecida! Agora estou me lembrando de um fato. Na emergência, era mês de julho, frio, garoa que tinha naquele tempo. O corredor continuava lotado como até hoje, é um corredor lotado, e não tinha roupa para trocar os pacientes, todos eles molhados. E eu tinha que passar o plantão pro meu colega que chegava às onze horas da noite. Peguei um atendente, serviçal, entrei na lavanderia e quebrei a porta, liguei a calandra, passei duzentos lençóis, subi na unidade, troquei todos os doentes e entreguei em ordem pro meu colega, passei pra ele com roupa. Essas coisas assim eu sempre fiz. Nunca perguntei para ninguém se podia ou não. Eu acho assim, que tenho que deixar o doente em condições dele poder estar naquela maca. Já imaginou? Frio, molhado, não. Eu não ia embora para casa sossegada, de jeito nenhum. Não era do meu feitio. Bom, voltando para Urologia, daí a minha supervisora, nós tivemos uma desavença, uma briguinha, e ela ficou quinze dias sem vir na minha unidade, depois veio assim de óculos escuros, dizendo: “Tudo bem por aqui?” “Tudo bem”. E eu falei: “Olha, a senhora faltou quinze dias, não veio me ver e eu não sei se a senhora está olhando pra mim ou para a Zuleika.” Aí ela falou: “Desce para a minha sala às onze horas” (risos). As minhas mudanças de unidade foram tudo assim. E lá fui eu. Conversamos, era a Falcona, na época, e a Dona Lila, hoje falecida também. Ela falou que eu tinha que mudar minha atitude, que não podia ter feito aquilo e não sei o que. Falei: “Olha, não saberia como mudar minha atitude”. Agora, em respeito à pessoa dela, ela também não respeitava a minha, né? E aí vim aqui no Instituto, isso… Em 1973 começou. Em 74 eu vim aqui e me falaram que tinha uma vaga, porque minhas colegas... Shisuka foi convidada pra trabalhar aqui. Aí vim aqui, conversei com Dona Clarice Ferrarini, era uma enfermeira, estava aqui já aposentada do HC e estava cuidando do planejamento do Instituto. Vim aqui pedir pra ela: “Oh, que bom, tal” E eu vim pra cá em 14 de abril de 1974. Tudo em obras. Chegamos aqui e não tinha escrivaninha, nada, tudo de alvenaria, um frio, vinha vento de tudo que era lado, a gente trabalhava numa salinha pequena e tudo de alvenaria. A gente ia na obra, pegava uma madeira pra fazer de mesa, porque a gente tinha que começar a fazer os manuais pra ter o recebimento dos pacientes na Instituição. E assim nós ficamos, de lá de 74 até hoje. Não te contei, mas já tenho 39 anos de HC, nenhuma falta, nunca fiquei doente, tive uma licença médica de quinze dias, mas a minha diretora falou: "Não, nós estamos precisando de você". E eu vim trabalhar no quinto dia. Trabalhei e estou bem até hoje, com a graça de Deus. Porque tendo saúde você… Vem mesmo. Tirei um ano e meio de licença-prêmio, já ia me aposentar, já estava me preparando, mas daí fui impedida pelas colegas pra não me aposentar. A direção pediu que eu voltasse, voltei, e já faz quase um ano que estou aqui. Depois desse afastamento me... Acho que ainda tenho coisas para dar para elas como exemplo, como atitude profissional, e... Mas na realidade, não estou mais como diretora, assim... Acho que estou mais como conselheira, como assessora, e elas até estão achando que melhorei. Porque sou muito brava, grito muito, não admito as coisas assim, básicas, acho que enfermeira não pode deixar de fazer. As coisas que são... Que tem a tecnologia... Tem a falha humana, porque humano erra mesmo. Não é que quero perdoar essa falha. mas é passivo de você fazer reflexão, mas nas coisas básicas, não. Atendimento para um doente, conversar com a família, atender bem o seu funcionário, conversar com os médicos, quer dizer, não precisa viver lutando, falando, brigando... O que que é isso? Acho que isso é o básico da enfermeira. Acho que nós somos reconhecidas aqui dentro da Instituição por esse meu perfil. Até hoje sinto que eu e as outras enfermeiras somos respeitadas. Você sabe que tem hospitais aí fora que enfermeira... Os médicos desabonam a prescrição da enfermeira, eles riscam, eles agridem, e aqui não. Não temos esse tipo de postura. Acredito que é com essa jornada que fizemos juntas. E agora, com essa minha volta depois de um ano e meio de reflexão, e tudo, se estou voltando é porque deixei alguém no meu lugar, certo? Eu não soube escolher? Não, porque a pessoa que ficou no meu lugar tem condições perfeitamente, mas acho que eu deveria ter ensinado um pouco mais, aquele algo mais, porque você ter a prática e esquecer do outro, do que ele está passando hoje, ouvir o que está sentindo, isso não ensinei. Era muito meu, isso. Então agora voltei para ensinar. E está difícil, muito difícil, porque está mudando. Essa revolução toda aí, nós também estamos passando por isso, mas só que na enfermagem não pode deixar. Não pode. Não pode. Se você está cuidando do paciente, tem que cuidar da parte psicológica, isso não, porque estaria invadindo outro território (risos). Enfim, mas a parte material... Hoje eles moram a duzentos quilômetros da Instituição. Tem que pegar ônibus, metrô, outro ônibus e outro metrô só para chegar aqui.
P/1 – Neste sentido é um trabalho muito parecido com o das psicólogas, tem uma semelhança nisso também. Muita conversa...
R – Ah, sim. Se não cuidar do seu funcionário, não se trabalha. Se a enfermeira não escutar o seu funcionário, não trabalha, porque ela depende deles. Ela tem que fazer uma escala de trinta dias, e se não conhecer a vida deles lá fora como pode planejar uma escala? Porque ele tem família, tem que levar a esposa no médico, a criança, ele tem o dia da folga, tem o churrasco, aniversário da mãe. Sei lá, elas tem que saber isso senão não trabalham bem com o funcionário. Você tem uma desarmonia desastrosa se não trabalha assim, mas tem gente que consegue trabalhar. Lá, e eu aqui. Não consigo. Isso infelizmente, não. Nós estamos agora... Quando elas me pedem uma coisa que não posso oferecer fico pensando: Será que não posso mesmo fazer isso? Será? Eu penso. E isso às vezes me maltrata um pouco, mas tenho que ser enérgica porque estou diante de um grupo, tenho mais de setecentos, entre técnicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem. Atendentes não têm mais. Eram aqueles que logo no início eu disse que ensinava dentro da Instituição. Então eu dava os primeiros cuidados, era com higiene e encaminhamento de papel, mas isso era a função deles. Terminou e... Isso foi uma resolução do nosso Conselho e que a partir de 1996 não teria mais o atendente de enfermagem nas Instituições. Nós conseguimos a escola de enfermagem, a CEFAX. Conseguimos que os nossos funcionários estudassem. Fomos felizes nisso. Hoje podemos dizer que não temos atendentes.
P/2- Atendente é um nível elementar, eles não precisam do primeiro grau. É uma profissionalização que a enfermagem tem que ter, ou seja, primeiro e segundo grau e mais uma profissão. Auxiliar de enfermagem é profissão, a técnica é profissão, enfermeira é profissão. O atendente é uma função elementar.
P/1 – Essa escola fica na Fundação Zerbini?
R – É, é isso. No CEPACO.
P/1 – A escola tem quanto tempo?
R – Essa escola foi de 1982, eu era diretora da escola, era diretora aqui na Divisão de Enfermagem, mas diretora da escola. Depois fomos preparando uma enfermeira que fez especialização na USP, hoje é diretora, é a Ana Beatriz. Foi uma das enfermeiras daqui. Era a enfermeira chefe do oitavo andar. Nós tínhamos só uma sala de auxiliar de enfermagem, hoje estamos com quatro salas. E nossos atendentes, terminaram.
P/1 – A enfermeira está habilitada pra trabalhar em qualquer setor? Existe algum tipo de especialização por área?
R – No meu tempo não tinha. Você tinha que ser transferida, por exemplo, para urologia, como eu fui. Saí do Pronto-Socorro para urologia, aí tive que voltar a estudar tudo outra vez. Era um problema pessoal, eu tinha que investir em mim, participar de congressos, simpósios, a própria leitura, tinha que estudar junto com as enfermeiras. Enfim, eu tinha enfermeira, os próprios funcionários. É completamente diferente um procedimento de Pronto-Socorro com o de Urologia. Por exemplo, a sonda de demora no Pronto-Socorro é para aliviar. Uma bexiga, uma bexigona, alivia. Agora, na Urologia, é pra você ver o funcionamento da bexiga. Você escutava os funcionários falarem assim: “Quando eu aspiro, eu colo a bexiga”. Eu ficava assustada, como é que vai colar a bexiga? Só depois de tanto treinamento, de tanta coisa, consegui saber o que eles estavam falando. Fiquei cinco anos na Urologia e de fato saí de lá sabendo fazer bons cuidados da sonda. Hoje nós já temos especialização. Na cardiologia de UTIs há várias sociedades, a Sociedade Brasileira de Enfermagem abriu várias sociedades. Nós temos a Sociedade Centro Cirúrgico, de Educação Continuada, a de Gerenciamento, e aqui no Incor, a Leda está aqui hoje porque ela vai ficar na parte da Educação Continuada da Divisão de Enfermagem, e ela fica com um grupo de aprimoramento em enfermagem. Tem aqui.
P/2 A nossa formação é generalista. Depois tem a especialidade.
P/1 – Quando a enfermeira entra aqui ela já vai...
R – Tem um curso de um ano formal e tudo, e aí ela fica enfermeira especializada em cardiologia. Quase que você fica sabendo tudo da enfermagem. Daqui a pouco vou te dar diploma (risos). Mas não é fácil, viu?
P/1 – Como foi? A senhora entrou aqui já como diretora...
R – Não, entrei aqui como enfermeira-chefe, depois passei para assistente de enfermagem, do ambulatório. Como eu sabia pouco de saúde pública, então ia fazer o curso de saúde pública. Já em 74, 77 foi se falando que eu ia pro ambulatório. Naquela época já tinha terminado a Faculdade de Pedagogia, porque dava aula e achava que precisava fazer. Então eu tinha Pedagogia, Instituto e ainda acompanhava aluno de sábado e domingo. A minha diretora, era a Dona Wanderli, me pediu pra fazer Saúde Pública porque eu ia ficar no ambulatório. Então é isso, a gente se especializava de acordo com a unidade pra onde você era designada. Mas quando houve a formação, tudo, fiquei como assistente da Dona Wanderli no plantão da tarde. Trabalhei como assistente e depois a Dona Wanderli saiu. Ela foi pro CAP e eu fiquei na diretoria, desde 1984 que estou aqui, nesta mesinha (risos). E estou aqui na diretoria.
P/1 – Desde que a senhora entrou, aquele tal de projeto multiprofissional, isso sempre foi um projeto do Incor?
R – Foi, o InCor tinha o doutor Humberto Moraes Novaes, até tenho a fotografia dele ali... Aquele ali é o quadro dos que começaram o Instituto. É uma equipe multiprofissional mesmo. Veja, a doutora Bellkiss está lá na ponta, tem a Wanderli, tem os engenheiros, tem o veterinário, tem a nutrição, tem a Dona Íris, serviço social e tem eu lá atrás. Era uma equipe que foi formada pra organizar a parte operacional do Instituto. Nós começamos… A enfermeira, tanto é que no ano que vem nós vamos completar trinta anos de Incor, porque a Dona Clarice Ferrarini veio para cá antes, desde a pedra fundamental. Acho que é muito mais até. Início das obras. E ela já veio designada pra cá. Então, no ano 2000 nós completamos trinta anos. Depois vem a Wanderli, ficou bastante tempo, Dona Clarice, e daí veio a Wanderli, e começou a dar formação para o corpo, para a equipe multiprofissional. O doutor Humberto ouvia as pessoas, fazia uma avaliação e perguntava pra nós se a gente conhecia as pessoas. Eu, como fiquei muito tempo aqui dentro da Instituição, no HC, não tinha convivência com os outros profissionais. Lá no Pronto-Socorro a gente trabalhava muito na urologia, era o médico, a enfermeira, serviço social e a nutricionista. Era bem pouco a parte de psicologia. Quando tinha qualquer problema, a gente encaminhava o doente pro serviço de psicologia. Não tinha assim...
P/1 – Tinha serviço de psicologia?
R – Tinha, mas no HC era assim: Era só para encaminhamento do paciente, que era feito pelo médico. E aí viemos aqui, veio a fisioterapia, e toda a equipe montada e tivemos o conhecimento, que, aliás, foi um tempo muito gostoso do Incor. A gente foi conhecendo os profissionais de perto, o que fazer aqui, já tive que mudar minha conduta, porque eu dava aula e, às vezes, a gente falava que era um louco, um doente agitado, mas no contato com a Bellkiss, achei que ia ter que mudar. E aí já comecei a mudar na escola e aqui não tivemos problema. Então eu sei, acredito onde ela pode chegar e onde devo chegar para orientação dos meus funcionários. Se me perguntar se confunde, e tal, de vez em quando a gente quer entrar na área, como elas também querem, isso é óbvio, porque é gostoso entrar numa área que está tudo prontinho e tchum... Porque você sabe que nós, enfermeiras, temos que preparar desde o sabonete do doente até a roupinha dele para dar conforto para outros profissionais que venham aqui atender. Porque se ele não estiver todo arrumado, outro profissional não vai voltar depois. Já sabe a rotina, sabe que tem horário do banho... Mas é um trabalho intenso da enfermagem, estamos aqui 24 horas, desde a internação até a alta dele, a gente gostaria que fosse tudo liso a estada dele aqui, com todo o conforto, mas nós lidamos com seres humanos, somos passíveis de erro. Então de vez em quando tem um deslize, nós procuramos estudar o problema, ver para não acontecer mais. Às vezes, chamo o cliente aqui na minha sala, familiares, e falo que não vou me desculpar pelo que aconteceu, mas prometo que não vai acontecer mais. Invisto nisso mesmo.
P/1 – A senhora conheceu o doutor Zerbini?
R – O professor Zerbini, conheci bem de perto quando eu trabalhava no HC e quando ele ia com o doutor Waldomiro de Paula, foi um grande anatomista. Ele descia quase que diariamente para conversar com ele sobre a dissecção do coração,, porque eles estavam pensando em transplante. Eu já tinha me encontrado com ele desde a época de Pronto-Socorro. E, felizmente, vim aqui, trabalhei com ele, tinha muito contato com ele, inclusive no dia que ele faleceu estava um filho dele, o padre e eu. Uma coisa que me amargou profundamente. Ele deu aula para trinta mil alunos, não sei, e de repente ficou eu, o padre, a Dona Líris e um filho dele até ele falecer... Faleceu. Foi esse o último finalmente dele. Quando ele deu o último suspiro, eu estava presente. Trabalhei com o professor Fúlvio, foi um grande incentivador, um grande mestre, ele deu impulso na enfermagem do Incor, tinha uma profunda admiração pela enfermagem, e com isso os médicos passaram a respeitar ainda mais a equipe. E hoje estamos trabalhando com o professor Ramires, foi meu interno, então (risos). Não temos... Porque são 39 anos de HC, com quatro de faculdade.
P/1 – Nesse período em que a senhora trabalhou no Incor, que momentos que...
R – Tive várias passagens. Uma que marcou mesmo foi o primeiro paciente que atendi aqui dentro da Instituição, foi no ambulatório, no fluxo de atendimento. A gente tinha planejado exaustivamente, tínhamos um prontuário que começava com um ‘históricão’. Hoje ele não é histórico de enfermagem, mas naquela época... Eram muitas folhas e era a equipe multiprofissional que usava esse impresso, ficou denominado o ‘históricão’. Começava pela enfermeira. E fui eu que recebi o primeiro paciente. E fiquei muito emocionada de ver aquela doente entrando, todas as equipes a postos, e ela entrou assim, feliz da vida, e disse que nunca tinha entrado num hospital que alguém tivesse conversado com ela de olho no olho. Olha, isso foi em 1977. Hoje estamos nessa mesma fase, mas naquela época, dela ter notado isso, que os profissionais estavam olhando no olho dela. Achei que tinha dado certo e que íamos cuidar bem dos pacientes.
P/1 – Como era essa primeira paciente, quem era, a senhora lembra?
R – Era uma senhora que tinha uma insuficiência cardíaca, ela até estava bem. Hemodinamicamente ela estava estável. Ela veio porque tinha aberto a matrícula, estava na fila do HC. Mandaram que viesse pra cá. Foi feita a matrícula dela e a triagem. Comecei a fazer o histórico dela. Era falante, tanto é que teve essa observação: “Até que enfim encontrei alguém que olha nos meus olhos”. Isso me marcou bastante. Depois teve várias coisas mais simples. Depois a era do Tancredo, trabalhei bastante, comandada pela Risoleta e não por ele. Dona Risoleta me chamou lá e queria saber como era a minha organização, como estávamos dividindo as tarefas, e ficamos muito amigas. Até me mandou uma carta muito bonita de agradecimento, mas a gente percebia que era ela que comandava o espetáculo. E acho que ia comandar o Brasil também (risos). Ela era dinâmica... Tanto é que no dia 21 de abril o papai completava oitenta anos. E fui lá falar com ela, dizendo que naquele dia e no dia seguinte eu não viria por causa do aniversário do meu pai e ela disse: “A senhora não vai, a senhora não vai!” E eu respondi que ia sim, porque papai só completaria oitenta anos uma vez. “Vou e volto, mas vou” E fui. Tanto que quando cheguei aqui em São Paulo, a Thereza me ligou, eram nove horas da manhã, e disse: “Olha, você se arrume que o doutor Tancredo não está passando bem”, e eu vim aqui e logo foi dado o óbito dele. Então é assim. Ela escolheu uma data que era para a gente não esquecer do Tancredo, mas assim, foi uma tensão muito grande da gente, estávamos com o presidente da República, o homem do povo, e a gente tinha que dar todas as condutas, acompanhamento, tomar conta das coisas. Estávamos com segurança na casa inteira, enfim, nós nunca tínhamos trabalhado com isso, mas eles sabiam quem eu era. Tanto é verdade que qualquer confusão que dava no pedaço as pessoas já mandavam chamar “aquela enfermeira loira”, dizendo que eu iria pôr logo ordem no pedaço. Quando entrei lá no centro cirúrgico tinha um monte de pessoas na sala, entrei lá e disse: “Vai ser outro hospital, Sarah Kubitschek? Vai ser outro hospital porque falaram tanto que tinha mil pessoas dentro da sala, e aqui vai se repetir a mesma coisa?” Sei que todo mundo saiu da sala. Eu tinha uma voz ativa com a estada dele aqui. Mas nós também recebemos... Aliás, uma família muito boa, educadíssima, do senador Sarney, na época senador e que esteve aqui com a gente, com hipertensão, depois foi operado, teve até uma trajetória grande, mas a escola do Tancredo serviu para poder entrar aqui qualquer político e a gente saber como conduzir. Depois veio o Figueiredo, e o general Walter Pires, ai, eu não aguentava aquele olhar dele. Não sei se era um olhar de confiança ou de desconfiança. Eu não gostava dele, Nossa Senhora! Mas assim, quem cuidava do Figueiredo era eu, eu que entrava, colhia o sangue, cuidava, por isso que falo, as enfermeiras hoje... “Ah, não vou ser mais enfermeira”. Hoje sou administradora, não cuido de doente. E quando te mandam cuidar de um paciente, você tem que lembrar dos cuidados básicos. Volto a dizer que cuidados básicos a gente tem que fazer, é uma Bíblia que você tem que ter na cabeça e fazer, não esquecer porque você está na alta tecnologia de computação, de bomba de infusão, essas coisas. Não pode esquecer do básico, que é pegar na mão do doente, olhar para ele.
P/1 – Transplantes, alguma coisa especial em relação a isso?
R – Não, mas transplante é aquela emoção. Ficamos todos unidos, até demos a mão na hora que bate o coração, isso é uma coisa que emociona mesmo. Mesmo que você seja enfermeira de trinta anos, são coisas assim que emocionam. O trabalho da equipe médica, com a equipe de enfermagem, com a equipe multiprofissional. Isso é uma coisa que nos satisfaz muito, deixa a gente orgulhosa. O Josué foi a nossa criança, era um transplantado, também... Você já deve ter ouvido essa história dele, também foi assim... A equipe multiprofissional se dedica realmente ao paciente, se um desliza de cá outro pega dali… Sabe, por isso que somos um hospital diferente dos demais.
P/1 – Esse é o maior diferencial?
R – Eu acho, porque quando o doutor Humberto pôs essa equipe aqui, ele acreditava. Pode crer, somos diferentes porque olhamos para o doente. Pessoas que cuidam de gente. Fico muito emocionada. Você pode chegar agora lá no SAME, está entrando um doente, nervoso, mas sempre tem alguém que pega na mão dele e ele pergunta o que aconteceu. Aconteceu um negócio com um doente lá, e a enfermeira: “Ei, Dona Líris, aconteceu isso, foi feito isso, e aquilo, fui lá e já resolvi”. Mas vem aqui e conta o que aconteceu. Ali é gente que está cuidando de gente. Nós não somos um hospital de parede branca, frio, isso pode confiar.
P/1 – E a relação enfermeira e médico, como...
R – Como vou te dizer? Eu trouxe já isso comigo do HC, todos os residentes que hoje são doutores, mestres, diretores, todos que você vê aí na parte administrativa passaram comigo como residentes. O doutor Nuedir era um deles. Um residente muito querido nosso, foi interno da cirurgia, nas noites frias que ele dava plantão eu cobria, ele deitava na maca, cobria com um cobertor e pensava: “Puxa, amanhã ele vai continuar dando plantão”. Hoje não, hoje os residentes passam plantão, vão pra casa, mas ele não. Ele não tinha. Ficava no hospital. Até isso eu fazia. Ele era meu residente, hoje está como diretor. E com a minha postura, acredito, a gente deu essa credibilidade pra equipe médica, porque nós tínhamos um bom contato. Tem briguinha? Tem, lógico. Onde não tem briguinha não tem crescimento, evolução. Com os outros profissionais também... Lógico que tem uma hora que tem a filosofia dela, o ideal dela às vezes não é o nosso, estamos além, eles buscaram muito na enfermagem, porque a enfermagem, por ser uma profissão mais antiga já contém todos os protocolos que as enfermeiras do passado já deixaram pra gente. A própria Florence, em 1858, deixou história. Como lavar a mão, como chegar perto de um doente. Ela foi a precursora disso. E com isso eles também foram se espelhando na enfermagem, eles não falam, mas a gente percebe. Muda-se a palavra. O inicial da palavra, o modelo, mas o modelo é da enfermagem. O trabalho pode estar de pezinho e eles fazem deitadinho, mas a gente percebe. Mas como temos que trabalhar e trabalhar em equipe, acho formidável… Ontem mesmo um médico estava aqui, nós estávamos fazendo um grupo de trabalho, ele falou que era a primeira vez que tinha que trabalhar em grupo e que não sabia como era, e se sentia feliz porque conhecia cada uma e o que faz cada profissional. Isso é uma coisa muito válida. O respeito do outro. Eu faço até aqui e você faz ali. Isso às vezes é difícil, mas já acostumei, já sei.
P/1 – Me conta um pouquinho da casinha em Santa Cruz.
R – Essa casa, como já disse, minha avó chegou - não sei se comprou ou a igreja deu - mas era enorme e com o falecimento eles venderam. Teve a herança, a partilha, dividiram. Ficamos com uma casa com quatro tias. Era a tia Iris, tio Gastão, mamãe e a tia Emília. Porque não tínhamos condições de cada um ter a sua casa. Aí nos unimos e construímos. Foram os filhos crescendo, tudo, e a mamãe sempre falava que queria uma casa em Santa Cruz, não queria morrer sem ter a casa em Santa Cruz. E como fui transferida aqui pro Incor, e não sabia que ia ser assistente, e com isso meu ordenado, naquela época eu ganhava muito bem, era considerada uma das mais ricas da família... E tudo moderadamente. Fui ganhar mais e eu estava num consórcio de uma Brasília, ganhei, vendi o carro e comprei os tijolos da minha casa. Comecei a construir lá, meus pais ainda conseguiram viver lá quinze anos, porque aqui em São Paulo... Como papai tinha enfisema, não ia conseguir viver muito. A cada dois meses ele estava no pronto-socorro por causa da poluição, que nem era como é hoje, então lá ele ainda conseguiu viver quinze anos e nunca mais foi pro pronto-socorro. Essa casa ficou lá, eu que construí, hoje é das minhas sobrinhas, já sabe que é delas, vou todo o final de semana, viajo duzentos quilômetros toda a sexta-feira, fica entre Leme e Pirassununga, gostaria de sair mais cedo na sexta-feira, mas não consigo. Olha, eu sou muito... Tenho minhas... Sabe, tenho minhas reservas, não sou arrojada. Sou tímida, apesar de me achar muito mais tímida antes, sei lá, acho que a enfermagem me fez conseguir vencer isso. E tenho minha casa, é uma delícia, um terreno enorme, tem plantação, frutas, tenho uma caseira que cuida muito bem da casa, fico aqui sossegada, e vou com essa minha amiga, Dorothy, somos amigas há 42 anos, ela, infelizmente, ficou viúva há três anos e a nossa amizade ainda ficou mais forte. Somos companheiras de passeio, de viagem, brigo com ela porque quer viajar logo, e eu tenho minhas restrições, ela é coordenadora de escola então dá pra ela fazer o calendário, mas o meu já vem pronto e tenho que me adequar. Mas é assim, uma amizade muito linda a nossa, em 42 anos nunca teve nada, nem nunca discordamos, sempre nos respeitamos. A área dela é o Emílio Ribas e eu aqui, no Incor, uma coisa até de chamar a atenção. Porque hoje não existe amizade como esta, não. Ela já faz parte da minha família, tanto que meu irmão outro dia, estava lá na casa de Santa Cruz e falou: “Olha, Dorothy, se a Líris morrer primeiro, você continua a vir aqui em Santa Cruz. A casa ainda é sua”. Ela ficou muito feliz de saber que poderia continuar indo lá em casa.
P/1 – Como é o seu cotidiano hoje?
R – Continuo a mesma coisa. Tenho horário para entrar e não tenho para sair. Hoje faço muita leitura, mais a leitura técnica, e tenho professor particular de informática, porque quando voltei pra cá vi que tinha um computador na minha sala e que eu precisava desenvolver. Fiquei meio assustada, mas hoje não mais. É ele que fica assustado comigo (risos). Tenho um professor que vem uma vez por semana aqui, e também essa oportunidade eu devo à instituição. O doutor José Manuel dá umas tarefas que a gente tem que cumprir e tem que aprender. Com isso, tive que entrar no computador, porque pensei: “Ah, se não entrar, minha secretária entra”. Aí ele me pôs uma tarefa, e dessa tarefa eu vi que tinha que sentar mesmo no computador. Passa-se a vida, os anos, e tem sempre uma novidade. À noite assisto TV, vou ao cinema com a Dorothy, a irmã dela é alemã e gosta de um cineminha, vamos jantar na igreja, elas são presbiterianas, domingo passado fomos no foundeau, no Horto Florestal, muito bom. Não paro. Estou sempre viajando, esse ano que fiquei afastada fui para Vancouver, fiquei quarenta dias no Canadá, conheci de ponta a ponta. Sempre tenho minhas viagens, em dezembro vou para Florianópolis, no Congresso Nacional de Enfermagem, participo de cursos. Tenho a minha idade, mas me sinto com menos. A única coisa que me cansa são as pernas, mas tenho uma vida normal. Retraída um pouco por causa da situação hoje. Tenho medo de voltar tarde pra casa, se não tem uma companhia. Às vezes eu saio, mas peço pra me levarem em casa. Aí eu vou.
P/1 – E avaliando a suas trajetória, a senhora mudaria alguma coisa?
R – Não, nada! A única coisa que vou pensar um pouquinho é na minha parte social. Na minha parte afetiva, que acho que... Não que faz falta estar casada, ter os filhos, mas a gente sente que... Porque escuto minhas colegas que hoje... Quando entraram aqui casaram, foram tendo seus nenens, hoje estão na faculdade, e tudo isso eu pensaria hoje. Voltar-me mais pra isso, e deixar um pouquinho a enfermagem. Continuaria fazendo tudo pela enfermagem.
P/1 – E sonhos?
R – Nessa altura do campeonato? (risos) Olha, o sonho que eu tenho... Gostaria que quando eu deixar a enfermagem, que continue e... Porque muda. Muda as cabeças, as orientações, mas que elas continuassem nesse amor ao próximo, amor ao colega, isso é um sonho que eu gostaria. Às vezes até arrojado demais, mas é um sonho.
P/1 – A senhora acha arrojado?
R – Eu acho, difícil. Porque quando você senta aqui, a outra pessoa é completamente diferente do que você era. Você não pode ser igual a todo mundo, nem todo mundo ser você. Mas gostaria de deixar... Essa é um sonho. Acho assim que Deus me deu tudo. Tudo que eu poderia sonhar em ter eu tive. Desde ficar 39 anos aqui e nunca ficar doente... só Deus (choro). É assim. Não precisa ter muito sonho, né? (risos)
P/1 – Tem mais alguma coisa que...
R – Não.
P2 – Só queria falar que a enfermagem do Incor tem a cara da Dona Líris. E uma coisa. Apesar da rigidez, ela dá liberdade para as pessoas trabalharem. Ela sabe ser o que ela é e usar o complemento das pessoas. Ela é muito complementada. Ela tem essa praticidade, mas ela estimula as enfermeiras a estarem estudando, pesquisando, incentivando a participar de congresso, a estar se desenvolvendo na parte de gerenciamento, e está acompanhando o mundo que está trazendo novas tecnologias, essas novas frentes para a instituição. Então ela se encarrega de ter essa cara, dessa enfermagem que olha o próximo, essa enfermagem muito pessoal, individualizada e ela estimula vários segmentos da enfermagem a estar complementando o outro lado. O lado técnico, científico, esse é o grande valor dela. Ela sabe se colocar, mas sabe respeitar, estimular, para estar complementando as demais.
P/1 – Então, uma última perguntinha, o que a senhora achou de ter dado este depoimento?
R – Ah! Formidável conhecê-lo, você é uma pessoa muito simpática, me deixou muito à vontade, apesar das minhas emoções, não sei se foi porque ontem precisei tomar um medicamento na perna, se isso me deixou relaxada e fiquei com essa... Mas gostei bastante, estava esperando uma outra… Sabe? Tipo um interrogatório, que não vinha ao caso, tipo: "O que é ser enfermeira etc etc?" Estou muito satisfeita. Muito obrigado. Adorei o depoimento (risos).
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