TecBan - Histórias Diversas
Entrevista de Anderson dos Santos Oliveira
São Paulo/Recife, 14/07/2022
Entrevista nº PCSH_HV1248
Realização: Museu da Pessoa
Entrevistado por Lucas Torigoe
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:18) P/1 - Anderson, obrigado de novo por você estar aqui com a gente. Que bom que deu tempo, espaço na sua agenda. A primeira pergunta eu sempre falo que é muito difícil, muito complicada. Qual é o seu nome completo, em que cidade você nasceu e que dia foi, por favor?
R - Meu nome é Anderson dos Santos Oliveira. Eu nasci no dia quatro de março de 1985. Nasci em Recife, Pernambuco.
(00:00:46) P/1 - Anderson, você nasceu em hospital, em casa? Como é que foi o dia do seu nascimento, te contaram isso?
R - Foi no hospital, nasci em parto cesárea, mas foi muito tranquilo, em hospital.
(00:01:04) P/1 - Qual é o nome da sua mãe?
R - Minha mãe é Luzineide dos Santos de Oliveira, e o meu pai é Elenilson Pereira de Oliveira.
(00:01:16) P/1 - E a sua mãe, o seu pai, nasceram no Recife também? Como era a família deles, conta pra gente?
R - Minha mãe é de Maceió, é alagoana. Ela veio criança para cá. O pai dela é falecido, ele era policial lá em Alagoas, e foi assassinado lá, quando eu era criança. A minha avó, com os dez filhos, sozinha, acabou vindo para Recife para tentar uma outra vida.
O meu pai nasceu em Caruaru, meu pai mais sete irmãos, são oito no total. Eram dez, mas dois faleceram quando eram crianças [por] questão de saúde, precariedade. Meu pai chegou a passar bastante fome em Caruaru, [no] interior, em uma situação bem precária, parecida com a da minha mãe.
Minha mãe vivia bem, até o meu avô ser assassinado. A situação da vida dela, da família mudou radicalmente, mas aí a minha avó veio para cá sozinha com os filhos e conseguiram sobreviver. O meu pai viveu em Caruaru e quando jovem, já adulto, veio morar em Recife. Foi aqui que eles se conheceram.
(00:02:27) P/1 - E o...
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Entrevista de Anderson dos Santos Oliveira
São Paulo/Recife, 14/07/2022
Entrevista nº PCSH_HV1248
Realização: Museu da Pessoa
Entrevistado por Lucas Torigoe
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:00:18) P/1 - Anderson, obrigado de novo por você estar aqui com a gente. Que bom que deu tempo, espaço na sua agenda. A primeira pergunta eu sempre falo que é muito difícil, muito complicada. Qual é o seu nome completo, em que cidade você nasceu e que dia foi, por favor?
R - Meu nome é Anderson dos Santos Oliveira. Eu nasci no dia quatro de março de 1985. Nasci em Recife, Pernambuco.
(00:00:46) P/1 - Anderson, você nasceu em hospital, em casa? Como é que foi o dia do seu nascimento, te contaram isso?
R - Foi no hospital, nasci em parto cesárea, mas foi muito tranquilo, em hospital.
(00:01:04) P/1 - Qual é o nome da sua mãe?
R - Minha mãe é Luzineide dos Santos de Oliveira, e o meu pai é Elenilson Pereira de Oliveira.
(00:01:16) P/1 - E a sua mãe, o seu pai, nasceram no Recife também? Como era a família deles, conta pra gente?
R - Minha mãe é de Maceió, é alagoana. Ela veio criança para cá. O pai dela é falecido, ele era policial lá em Alagoas, e foi assassinado lá, quando eu era criança. A minha avó, com os dez filhos, sozinha, acabou vindo para Recife para tentar uma outra vida.
O meu pai nasceu em Caruaru, meu pai mais sete irmãos, são oito no total. Eram dez, mas dois faleceram quando eram crianças [por] questão de saúde, precariedade. Meu pai chegou a passar bastante fome em Caruaru, [no] interior, em uma situação bem precária, parecida com a da minha mãe.
Minha mãe vivia bem, até o meu avô ser assassinado. A situação da vida dela, da família mudou radicalmente, mas aí a minha avó veio para cá sozinha com os filhos e conseguiram sobreviver. O meu pai viveu em Caruaru e quando jovem, já adulto, veio morar em Recife. Foi aqui que eles se conheceram.
(00:02:27) P/1 - E o que a sua mãe, a família dela, a sua avó, faziam para viver então, depois que o seu avô morreu?
R - A minha avó demorou muito para receber… Como ele era policial, ela demorou muito para receber. Ela teve problemas com o Estado, ou as pessoas tentaram enganá-la, então ela demorou muito para receber a pensão dele, então ela passou um bom tempo vivendo de ajuda das irmãs, de amigos, até conseguir resolver a pensão dela. Assim que ela começou a receber a pensão, diminuíram um pouco os problemas, mas ela como sempre foi muito ativa; trabalhava, dava um jeito, fazia doméstica.
Até antes de falecer ela tinha uma lojinha. Ela era bem católica, então ela comprou uma lojinha de santo dentro da igreja no centro da cidade. Ela ficava vendendo materiais de igreja, sabe? Cordãozinho, santo, ela gostava muito disso.
Ela era sempre muito ativa, passou muita dificuldade. A minha mãe, por exemplo, e mais duas irmãs, se eu não me engano, duas ou três, ficaram um tempo no internato em Garanhuns porque a minha avó, na época, não tinha condições de segurar todos os filhos, se manter, mesmo recebendo, então ela deixou [as filhas] lá. Inclusive, a minha mãe achou que tinha sido abandonada pela minha avó. Ela passou quase um ano morando no externato de freira em Garanhuns, no interior de Pernambuco.
Depois minha avó conseguiu dinheiro e foi lá buscá-la e as irmãs da minha mãe, mas minha mãe chegou a pensar que a minha avó tinha falecido, ou a abandonado lá.
O meu pai sempre viveu em Caruaru, que é interior de Pernambuco também, com os pais dele. Só que o meu avô, pai do meu pai, era aquele homem bem bruto, então a minha avó sempre teve muita dificuldade com ele. [Ele] viajava muito, [era] caminhoneiro, tinha muitas mulheres, inclusive. Meu pai acha - acha não, tem certeza - que tem irmãos em São Paulo, porque meu avô era meio ovo virado, essa é bem a palavra.
Ele não queria que o meu pai estudasse. O meu pai, apesar da dificuldade, das necessidades que passava, sempre gostou de estudar. Hoje, por exemplo, o curso técnico que eu tenho, que me encaminhou a trabalhar na empresa que eu estou hoje, o meu pai também estudou no Senai, porque meu pai desde novo sempre quis estudar, e o meu avô não deixava. Meu avô dizia que estudar não levava a nada, que tinha que trabalhar, ganhar dinheiro para sobreviver, porque na época eles sobreviviam. Meu pai chegou a implorar para o meu avô ajudá-lo ele, porque para ingressar no Senai na época, fazer os cursos que ele queria, precisava de autorização do pai porque ele era menor [de idade], e depois de muito implorar e conseguir ajuda de um dos professores do Senai, meu avô assinou a documentação para o meu pai poder estudar.
Meu pai seguiu estudando, fez vários cursos. Trabalhou quase a vida toda como mecânico, mas sempre trabalhou com honestidade. Trabalhou como autônomo em várias empresas, enfim, tem várias histórias em relação a ele.
(00:05:54) P/1 - Daqui a pouquinho você me conta, então. Eu só queria te perguntar: como é que seus pais se conheceram? Eles contaram para você a situação?
R - Rapaz, eu sei pouco de como eles se conheceram. Eu sei que quando eles se conheceram, o meu pai era bem ciumento, era muito inseguro com a minha mãe, e minha mãe sempre muito quieta, muito calma, mas minha mãe sempre disse para mim que o meu pai era muito inseguro. Ela até hoje não entende, porque [era] ciumento demais, mas não era um ciúme agressivo.
Meu pai sempre foi um homem muito família, então sempre zelou muito pela minha mãe. Meu pai é ciumento, mas muito zeloso, porque ele teve meio que um trauma, porque ele via como o meu avô não cuidava, não zelava pela família. A minha avó praticamente criou os filhos sozinha. Ele presenciou várias situações da minha avó cobrar ajuda, até comida para os filhos, porque o meu avô às vezes até negava [isso], pelo fato dele ter outras mulheres, então ele prometeu ser um homem diferente do exemplo que o pai dele deu para ele.
Era um ciúme de zelo, de cuidado. Não era uma coisa assim, nada que afetasse a relação deles, tanto que eles estão juntos até hoje, e é um casamento muito bonito, uma união muito bonita, de exemplo até para família, amigos..
(00:07:32) P/1 - E quando eles se conheceram, o seu pai era mecânico já, a sua mãe fazia o que, você sabe?
R - Minha mãe trabalhava, era costureira de indústria têxtil, e meu pai, como fez o curso técnico muito novo, já trabalhava como mecânico. Ele começou trabalhando como mecânico de automóveis e finalizou a carreira dele empilhando empilhadeira nos caminhões. Mas ele já trabalhava na área, por causa desse curso técnico que ele fez desde cedo. Elétrica, Mecânica, fez vários cursos técnicos no Senai.
(00:08:18) P/1 - E Anderson, você filho é único, ou você tem irmão?
R - Eu tenho uma irmã mais velha, [com] seis anos de diferença. Quando a minha mãe ficou grávida de mim, achava que eu era um mioma. Meu pai fez uma cirurgia e teve problema nos rins; eu não sei qual ligação deveria ter, que o médico falou que ele não ia poder ter mais filhos, então quando a minha mãe começou a sentir o corpo dela diferente e foi ao médico, ela achou que estava com mioma. O médico disse: “Não, você está grávida.” Ela não chegou a acreditar, mas o médico confirmou para ela. Fez exame, teste.
Foi assim, uma gravidez inesperada. Seis anos de diferença [entre] mim e minha irmã, mas foi assim, não planejaram. Meu pai queria ainda mais dois filhos; minha mãe que não quis mais, por ele a casa seria cheia, mas minha mãe só queria dois mesmo. Depois que eu nasci ela fez a cirurgia para não ter mais filhos. Meu pai ficou triste, mas pensaram até em adotar depois, se arrependeram. Queriam adotar, mas aí não aconteceu mais, ficamos só eu e minha irmã mesmo.
(00:09:30) P/1 - E qual é o nome dela, Anderson?
R - É Vanessa dos Santos Oliveira.
(00:09:37) P/1 - Então quando você nasceu ela já tinha seis anos, mais ou menos?
R - Isso.
(00:09:44) P/1 - E me diz uma coisa: o que você lembra… Tenta puxar quais as primeiras lembranças que você tem da sua vida. Você saberia me dizer?
R - Eu lembro muito da gente morando em subúrbio, em COHAB, mas eu posso dizer pelos relatos de alguns amigos, até do meu companheiro mesmo, [que] eu tive uma infância boa. É como o meu pai dizia, como pobre nunca me faltou nada.
Meu pai é aquele cara que trabalhava em tudo, viciante. Ele fazia tudo pela família, queria ser o pai que o pai dele não foi, então nunca faltou nada. Sempre estudei em escola privada, eu e minha irmã; ele queria fazer de tudo para sempre dar o melhor pra gente, sempre.
A gente cresceu em COHAB, em subúrbio. A criação foi bem tranquila. A minha mãe [era] sempre muito zelosa com a gente também, muito cuidado, sabe? Meu pai trabalhando muito, mas sempre trazendo as coisas para dentro de casa. Levava a gente para passear, “vamos ali fazer um lanche”, “vamos fazer uma viagem, ir na casa dos seus tios na Paraíba”... Enfim, eu tenho boas lembranças, posso dizer que tive uma infância muito boa.
(00:11:00) P/1 - Você passou a sua infância, a sua adolescência nessa COHAB, nessa casa. Como é que era lá?
R - Era prédio, aqueles condomínios de COHAB, sabe? Aqueles prédios com apartamento bem pequenininho, três andares, aqueles prédios caixão. Morei lá até os meus treze, catorze anos. Foi quando o meu pai fez um esforço… Não que fosse ruim, mas meu pai queria melhorar nossa qualidade de vida, então ele conseguiu vender o apartamento, vendeu um dos carros - o meu pai, como mecânico, ele tinha um carro de carregar as ferramentas dele, que era tipo uma… Vamos dizer, esses carros-caçamba que eu esqueci o nome agora. E tinha um carro para passeio, um carro simples, um fusquinha pra gente passear, então ele vendeu o carro, vendeu o apartamento, juntou dinheiro e a gente se mudou para um bairro melhor. Lá nesse bairro ficou próximo do Senai para mim; eu pude entender já que era o sonho, a meta de vida dele que eu estudasse no Senai igual ele, então foi também um dos motivos da gente ter se mudado. Era bem pertinho de casa, eu ia de bicicleta para o Senai, e eu fazia na época o segundo grau. O segundo grau era de manhã; eu largava, ia de bicicleta para casa, almoçava e corria para o Senai. Passava o dia todo estudando.
Saí de lá com treze, catorze anos, a gente se mudou de lá; fui morar nesse outro bairro, [com] uma qualidade de vida melhor que ele queria dar para gente.
(00:12:30) P/1 - Antes da gente chegar nesse outro bairro, como foi crescer nessa COHAB? Como eram os seus amigos, do que vocês brincavam nessa época? Conta para mim um pouquinho disso, por favor.
R - Na infância a gente brincava muito de brincadeira de rua. Era muita criança, coisa absurda. Eu me lembro que era muita criança mesmo, muita zuada. Não existia só futebol, a gente brincava de se esconder… Eu não sei se você… As brincadeiras de chutar lata, é diferente, não sei se vocês conhecem aí em São Paulo, mas era chutar lata, se esconder. Queimada, vamos fazer um time de futebol menino contra menina.
A gente brincava bastante na adolescência, no início da adolescência. Eu saí de lá no início. Foi ali que as coisas começaram a mudar um pouco, porque querendo ou não outras coisas vão surgindo na nossa vida, então eu vi colegas meus de infância se envolverem com drogas e acabarem sendo mortos, assassinados. Comecei a ver essas situações. Pelo fato de ser subúrbio, a gente acaba chegando acho que até mais rápido, ou muito próximo a gente essas coisas que acontecem. Também foi um dos motivos do meu pai querer que a gente saísse de lá, porque ele viu, tanto eu quanto a minha irmã mais velha, adolescente, mas os meus pais… A minha mãe acabou saindo do trabalho para ter dedicação aos filhos, então a minha mãe sempre teve uma educação… Por a gente morar em subúrbio, ela sabia dessas coisas, desses perigos, vamos dizer assim, então a gente teve uma criação muito… Apesar de brincar muito, se divertir, ela sempre criou a gente muito, vamos dizer assim, embaixo da saia dela para evitar qualquer possibilidade… Isso eu admiro muito na minha mãe.
Por exemplo, esse rapaz que eu falei que foi assassinado era meu vizinho de porta, e a criação que a gente teve foi totalmente diferente, porque [a gente] normalmente ficava muito preso. Minha mãe [dizia]: “Não, você não vai sair hoje”, enquanto ele era muito na rua. Eu não estou questionando a educação que ele teve, mas foi todo o contexto e isso acabou acontecendo com ele. Ele acabou se envolvendo. Mas foi uma criação que hoje eu agradeço a minha mãe, agradeço muito a ela, porque ela que estava lutando com a gente, e realmente soube criar a gente da melhor maneira possível que ela enxergava.
(00:15:08) P/1 - E você gostava de ver TV, ouvir música?
R - Eu gostava muito dos programas infantis. Cresci vendo Xuxa, TV Colosso - tenho disco da TV Colosso - Cavaleiros do Zodíaco. Eu adorava, às vezes eu preferia muitas vezes estar dentro de casa assistindo do que avistando a rua.
Eu brincava muito sozinho também, eu gostava. O meu pai comprava uns brinquedos para mim. Eu tive Lego quando criança, naquela época já era caro; meu pai comprou um kitzinho de Lego, eu adorava. Meu pai montava.
Às vezes eu ficava no quarto… Videogame também, teve uma fase que eu fiquei muito viciado em videogame. Meu pai me botava de castigo e eu saía escondido para jogar; quando eu via o carro dele chegando, eu saía correndo para dentro de casa, morrendo de medo de apanhar.
O meu pai era bem rígido nesse sentido, às vezes eu levava uma lapadinha, mas eu o recrimino, não. Eu entendo o que ele queria passar de respeito e obediência, mas aproveitei bem.
Empinava pipa com meus amigos. Eu não tinha muita prática em fazer ou empinar, então eu tinha uns amigos que me ajudavam, sabe? Sou bem sincero, não sou fã de jogar futebol; tentei, mas não me dei muito bem, não, e a maioria dos meus amigos jogavam, então eu ficava às vezes só olhando eles jogando. Foi um esporte que realmente eu não me dei muito bem, mas fora isso foi tranquilo.
Foi como eu falei no início: hoje eu vejo as histórias de uns amigos e realmente só tenho que agradecer. A minha infância no geral foi muito boa, como pobre eu era rico, então é só coisa boa mesmo.
(00:16:58) P/1 - E que histórias são essas que você ouviu que te faz ver que a sua infância foi um pouco diferente - do seu companheiro, por exemplo. Você pode dar um exemplo para mim?
R - O meu companheiro teve uma [por] boa parte da infância dele um pai ausente. De início era presente, mas aí [havia] brigas dos pais, e pelo fato dele ter outra família - foi descoberta outra família - ele o abandonou literalmente à própria sorte, porque ele, quando criança, ele e a mãe chegaram a passar fome, passaram meses sem comer dentro de casa porque não tinham dinheiro para pagar. [Foi] muita dificuldade que eles passaram mesmo, vivendo de ajuda de parentes.
Ele tinha uma irmã que era dez anos mais velha que ele. Ela, na época, se casou e ajudava como podia porque tinha acabado de casar. Não eram pessoas ricas, eram pessoas que batalhavam muito, então ela ajudava como podia.
Ele tem uma memória da infância muito pesada. Começou a trabalhar desde criança, vendendo doce para poder ajudar nas coisas dentro de casa. Ele vendia doce na rua, às vezes era roubado, roubavam os doces dele, roubavam o dinheiro dele. Eu nunca precisei disso, meu pai e minha mãe sempre… Eu falo mais o meu pai porque ele era o provedor financeiro da casa; minha mãe era do lar e o meu pai que mantinha financeiramente a casa. Ao contrário do pai dele, o meu pai sempre esteve ali, presente demais.
Meu pai foi tão presente na vida da gente que ele acabou esquecendo um pouco dele, de cuidar da saúde dele. Hoje a saúde dele é bem debilitada, pela idade dele ele não deveria ter os problemas que tem hoje, mas é isso, foi aquele cara muito família.
[Em relação] a sua pergunta, quando eu digo que tive uma infância muito boa, primeiramente trazer para o meu companheiro, o quanto ele sofreu na infância dele, enquanto ele teve um pai ausente durante grande parte da infância dele, por falta de respeito e de amor mesmo, porque assim, poderia ter se separado, mas não deixasse faltar nada para o filho, e ele fez isso com ele, então pegando o exemplo do meu companheiro é isso, eu realmente paro, eu olho para trás e digo, eu não posso reclamar do que eu tive.
(00:19:22) P/1 - Agora me diz uma coisa: na infância, na adolescência, você era chegado à sua irmã? Vocês brincavam juntos, conversavam, como é que era?
R - É uma pergunta bem delicada, porque eu posso dizer, sendo bem sincero com você, [que] hoje, depois de adultos é que a gente se dá bem. Desde criança a gente teve muitos conflitos, a gente não se dava bem. A gente brigava muito, brigava mesmo, na adolescência. Até hoje, na fase adulta, a gente tem divergências de opiniões.
Eram muitos conflitos entre eu e ela. Eu nunca deixei de falar com a minha irmã, acho que nunca passei desse limite, mas era cada um vivendo a sua vida depois que saiu de casa. A gente se falava. Mas hoje, depois de muita conversa, compreensão, a gente se dá muito bem. A gente busca isso, tem buscado muito isso, porque além de querer manter essa união, criar essa união entre a gente, os nossos pais estão bem mais idosos, meu pai [está] cada vez mais debilitado de saúde, então a gente compreendeu que precisava se entender, deixar alguns questionamentos, alguns problemas para trás. E daqui para frente - digo daqui para frente porque foi há alguns anos atrás - eu acho que a gente começou a se entender mais quando eu me casei com o meu companheiro Bruno. Parece que as coisas mudaram mais, ele me ajudou a ser uma pessoa mais compreensiva, a conversar mais. Foi uma coisa que eu aprendi muito com ele.
Aprendi a conversar mais com a minha irmã e hoje, graças a Deus, a gente se dá muito bem. Ela me ajuda muito, conversa. Ela mora com os meus pais atualmente porque se separou, e ajuda muito a cuidar do meu pai, porque o meu pai tem a saúde debilitada.
Hoje a gente se dá bem, mas realmente na infância, na adolescência, no início da fase adulta a gente tinha nossos conflitos.
(00:21:38) P/1 - Eu posso te perguntar porque que vocês brigavam? Era uma questão do quê? De opinião, de jeito de pensar, de fazer?
R - Hoje a gente compreende, acho que inicialmente era ciúmes. Minha irmã tinha ciúmes de mim, não sei se porque eu cheguei seis anos depois e ela percebeu que a criação que eu tive…Acho, sei lá, porque foi um pouco diferente. Eu cheguei depois, ela tinha ciúmes dos meus pais comigo, principalmente da minha mãe, mas era um ciúme que não tinha cabimento. A atenção que a minha dava para a minha irmã, dava para mim. Ela usava força comigo e acabou criando ciúme de mim, e esse ciúme acabou levando a várias brigas, desentendimentos entre a gente.
Eu também não fui uma criança muito fácil. Às vezes eu mesmo implicava com ela, chamava a atenção dela, então juntando uma coisa e outra acabou criando esses conflitos.
A gente já não se dava bem na infância, e na adolescência essas coisas foram só se agravando. Ela [dizia]: “Ah, porque vocês só pensam em Anderson. Porque eu fiz alguma coisa, eu estou errada, e Anderson sempre está certo!” Ela sempre tinha esse questionamento, mas como eu falei agora, voltando, a gente foi conversando… Outras famílias, outros parentes, acaba existindo esse conflito.
Eu acho que o ciúme é uma coisa muito complicada entre irmãos; desperta o conflito, brigas. Ela mesma desabafou isso comigo depois de anos porque a gente sentou para conversar; a gente foi relembrar o passado [em] que a gente brigava muito, e um dos motivos dela comigo era ciúme.
(00:23:33) P/1 - E me diz uma coisa: como você era na escola? Quais são as primeiras escolas que você frequentou, o que você se lembra delas?
R - Eu acho que era um pouco mais tímido na escola - era pouco, não, eu era tímido na escola. Desde criança, eu me identificava muito com as meninas, então eu sempre me aproximava mais das meninas. Eu tinha mais amigas do que amigos na escola. Posso dizer que tinha pouquíssimos amigos na escola; lembrando assim, eu tinha pouquíssimos amigos - homens, eu falo. Eu tinha mais amigas, meninas; sempre me aproximava mais das meninas.
As coordenadoras até chegaram a achar que eu… Ficava conversando muito com as meninas, alisando o cabelo das meninas; [elas ficaram] achando que eu estava querendo namorar com as meninas, mas não, era só amizade mesmo. É que eu me identificava mais com elas.
Na adolescência eu sofri um pouco. Não é que eu sofri, eu tive um pouco de dificuldade…. Eu até estava conversando com uns amigos um dia desses sobre isso, sobre a questão da Educação Física, que era uma aula obrigatória e para homem só existia futebol, e futebol para mim, vamos dizer assim, começou a ser um terror, porque eu não sabia jogar bola. Eu não tinha o menor interesse em jogar bola, eu era obrigado a frequentar, então as vezes que eu entrava no ginásio eu passava vergonha, eu entrava ruim e saía pior, mentalmente falando. Eu fazia de tudo para faltar, mas eu não podia, senão poderia ser reprovado, então dava um jeito de não participar da aula. Eu sempre dava um jeito de não participar daquela aula, ou propriamente ficar sentado, só observando; conversava com o professor que eu não estava bem.
Na escola foi uma das minhas dificuldades a aula de Educação Física. Era uma coisa que eu temia, porque como era obrigatório e para o homem só tinha futebol, e eu não gostava, não me dava bem, então foi complicado para mim, até porque era uma coisa um pouco machista; o homem tinha que jogar bola. Eu já sabia que não tinha essa percepção, não ficava à vontade.
Hoje em dia é tranquilo, não jogo, mas assisto futebol. O meu pai gosta, assisto com ele. Minha mãe adora assistir com ele, me divirto muito assistindo com a minha mãe, mas vamos dizer que na minha infância foi uma coisa muito difícil para mim.
Conversando com outros amigos, eles falam a mesma coisa. Meus amigos homossexuais tiveram essa mesma dificuldade, esse mesmo problema. Meu pai nunca me levou para campo de futebol, ele assiste futebol em casa, mas meus amigos relatam que foram meio que obrigados pelos pais a ir para campo, sofriam com isso porque não queriam ir. Enfim, estou falando isso porque voltando à questão da escola, é todo um contexto.
O meu pai nunca gostou de ir para campo. Uma vez ele sofreu uma violência lá e depois disso ele não quis ir mais. Minha mãe também não queria que eu fosse, porque ela tinha medo de briga, essas coisas, então como eu nunca fiz questão, nesse sentido para mim era ótimo, aí eu só ficava sentado com ele, assistindo com ele, para fazer companhia a meu pai. Mas eu não gostava muito, não.
(00:27:05) P/1 - O que você gostava de fazer na escola, então? Você se lembra quem eram os seus melhores amigos ou amigas na época, o que te marcou nesse período?
R - Eu gostava muito de me divertir com as minhas amigas, a gente conversava muito. Até hoje eu tenho contato com elas. É engraçado porque teve um período que eu tinha perdido o contato com elas, aí a internet fez a gente se reencontrar, então [foi] fantástico. Eu me sento com elas, fico lembrando o passado.
Eu gostava muito de sentar, conversar bobagem. Além do futebol, a gente tinha brincadeira de queimada na escola. Não me recordo agora o nome das brincadeiras, agora não, mas tinha outros tipos de brincadeiras que a gente fazia na quadra da escola. Foram bons momentos, boas lembranças que eu tenho.
Às vezes, até na sala de aula a gente estar conversando, brincando, perturbar um pouquinho…. Aquele aluno perturbado, fui um pouco, mas sempre com elas, sempre brincando, se divertindo. Eu tenho essas boas lembranças.
Como eu estudei, acho que da minha terceira série até a oitava na mesma escola, praticamente foi quase todos esses anos com elas, quase o mesmo grupo, então a gente tem muita lembrança legal, [é] muito bom isso. São essas lembranças que eu tenho da época da escola.
(00:28:35) P/1 - Tem algum dia, alguma lembrança, alguma coisa que aconteceu que você lembra com mais carinho, ou enfim, que te marcou com essas pessoas?
R - Rapaz, são tantas lembranças boas. Não foi assim, um dia marcante, mas eu tenho registrado… Na época não tinha essa câmera digital, era aquela câmera que a gente imprimia as fotos. Levei uma câmera fotográfica nesse dia, e como a escola que a gente estudava era [de] regime militar, tinha muitas regras. Até, por exemplo, abraçá-las era um problema, por mais que eu demonstrasse um carinho só de amizade, não podia.
Nesse dia que eu levei [a câmera] a gente tirou muita foto. A gente tirou fotos bem malucas, que eu fiz a impressão e levei para todo mundo ver. A coordenadora pegou e viu essas fotos, e foi uma polêmica. Chamaram os pais, e não tinha nada de absurdo nas fotos. Eu estava sentado no colo das meninas, elas sentaram no meu colo. “Vamos bater a foto todo mundo junto, vamos tirar foto dando dedo”; coisa de adolescente, de molecagem, mas isso foi uma confusão tão grande na escola! A minha mãe foi lá, chamaram os pais de todo mundo porque acharam absurdas as fotos - um menino sentado no colo das meninas, as meninas sentadas no colo de um menino. Então a minha mãe foi lá e tipo: “Qual o problema nessas fotos?” Mas a escola fez um terror psicológico na gente, porque mesmo depois que os pais foram lá, os coordenadores ficaram meio que perseguindo a gente, não deixava a gente junto, então isso foi uma coisa que marcou bastante.
Até hoje eu tenho as fotos, dando o dedo nas fotos, sentado… Vamos dizer, aquela cachorrada, como diz o Gil, mas não tinha maldade. A gente não tinha maldade nenhuma, era só amizade e carinho que a gente tinha um pelo outro. Tinha os outros meninos lá também, mas esse grupo em si que a gente tinha com as meninas era só amizade, até hoje.
Elas se casaram, seguiram a vida delas. De vez em quando a gente tem nossos encontros, quando dá, porque a vida está bem mais corrida, mas não tinha maldade entre a gente, não.
(00:30:57) P/1 - Qual era o nome dessa escola, Anderson, e porque ela era esse regime todo durão assim?
R - É a Escola Curso e Bandeira. Esse nome, agora que eu parei para pensar. Escola Curso e Bandeira, é isso mesmo, porque o diretor era militar, então ele meio que quis implantar esse curso na escola. Não era militar, mas implantou a cultura.
Era uma escola de referência em Recife na época, acho que ainda hoje é porque a educação lá é muito boa, tanto que eu fiz prova… Era escola particular, mas [fiz] prova para entrar lá, eu lembro. A minha irmã também estudou lá, fez prova para entrar lá também, então era uma escola de referência na época e acho que até hoje, não só pelo regime militar, mas pela dedicação aos alunos. Muitos alunos saíam de lá [e] faziam prova para curso militar, então era uma escola de referência, no centro da cidade.
Eu saía da COHAB, pegava ônibus. De onde eu morava para lá era longe, eu gastava quarenta minutos de ônibus. Eu ia para lá com oito anos de idade; minha irmã já estudava lá, então eu ia junto com ela de ônibus, ia e voltava. Outros colegas da região em que eu morava estudavam lá também.
Mas era só por causa disso, o diretor implantou a cultura do regime militar. Tinha que estar no pátio todo dia de manhã, fazer fila para entrar. Ficava todo mundo em pé na sala, só sentava quando o professor desse a ordem; enquanto o professor não desse a ordem, tinha que ficar em pé dentro da sala, esperando. A gente ficava sempre no pátio cantando o hino nacional, o hino da bandeira, o hino de Pernambuco, então tinha vários costumes militares dentro da instituição, mas no geral era bom. Por mais que tivesse essas conflitos, a gente se divertia do mesmo jeito.
(00:33:11) P/1 - Durante a sua escola, e também no ensino médio, teve algum professor que te marcou ou professora, alguma matéria que você gostava mais?
R - Durante esse período, até a oitava série, eu tive um professor de Matemática que me marcou bastante. Depois de uns anos, poucos anos atrás eu soube que ele tinha falecido por infarto. Morreu jovem, mas foi um professor que me marcou bastante nesse período, da terceira à oitava série. O professor Valdemar era um professor muito bom, ele era muito rígido, mas eu gostava da postura dele na sala de aula, porque eu aprendi muito com ele. Ele tinha uma dedicação muito grande em ensinar, era muito dedicado mesmo. Tenho muita lembrança boa dele, fiquei muito triste quando eu soube dele ter falecido novo por infarto.
Além dele, tinha outros professores muito bons também. O professor Mendes, que era o professor, na época, de Ciências; muito divertido, muito brincalhão. Mas eu acredito que esse professor específico, o Valdemar… Eu não sei explicar, porque eu sempre gostava da aula dele - pela forma, pela dedicação [com] que ele dava aula pra gente, a postura dele. Eu lembro que ele realmente gostava daquilo que fazia, então ele se dedicava ao máximo ali pra gente. Mesmo sendo rígido às vezes com a gente, era o papel dele. Tem profissão que realmente você tem que ensinar o correto, você tem que ser rígido, às vezes, porque era uma sala cheia de pré- adolescentes, então não tinha como não ser rígido.
Foi um professor que marcou bastante. Fiquei bem triste mesmo quando soube que ele tinha falecido.
(00:34:51) P/1 - Anderson, me diz uma coisa: então você foi fazer ensino médio como ensino técnico no Senai, é isso ou não?
R - Não. [Quando] comecei o segundo grau, o meu pai me incentivou muito a fazer o Senai. Na época eu fiz a prova do Senai e fiz a prova que na época era Cefet - agora IFPE, Instituto Federal de Pernambuco. Eu não passei no IFPE, mas passei no Senai, que era tão concorrido quanto, na época.
Entrei com quinze anos no Senai, então eu estava no segundo ano. Na época, era primeiro, segundo e terceiro, hoje mudou.
Na época eu fiz o curso de graça no Senai, era gratuito, então eu estudava de manhã no Colégio Decisão, que ficava próximo da minha casa, e à tarde fazia o Senai. Era essa correria. Eu tinha uma bike, eu ia de bicicleta para a escola fazer o ensino do terceiro ano, ia correndo para casa, almoçava e ia correndo para o Senai, isso tudo de bicicleta. Era próximo à região, o bairro, por isso que meu pai também quis se mudar, morar próximo, aí já vinha tudo planejado na mente dele. Eu cresci ouvindo o meu pai dizer: “Você vai fazer o curso técnico, é profissão, é profissão”, então foram 2 anos e meio nessa rotina.
Na época, o [curso técnico do] Senai era dois anos e meio, quando eu estudei; acho que com um ano e meio você se forma. Hoje mudaram um pouco a carga horária, porque no Senai, na época que eu fiz - entrei em 2001 - eles faziam [em] seis meses nivelamento em Matemática, Química, antes de começar as aulas. Então foi isso, eu vivia nessa rotina dos meus quinze aos dezessete, dezoito anos. .
(00:36:49) P/1 - Isso foi uma mudança na sua vida, você achou?
R - Sim, com certeza. Eu vou ser bem sincero com você, na época, na verdade, eu nem sabia… Falando de mim, eu não tinha muita noção do que eu queria. Nesse período, inclusive, eu comecei a gostar mais da área de Saúde, da área de Biologia. Comecei a fazer aqueles testes na escola, pensando já no vestibular e sempre dava para área de Saúde, mas como meu pai sempre dizia: “Não, você tem que fazer o curso técnico, criar [uma] profissão. Vai garantir a sua profissão”, então meio que eu me inscrevi sem saber exatamente onde é que eu estava pisando. “O meu pai está mandando, eu vou fazer.”
É engraçado que no dia que eu fiz a inscrição, eu não ia fazer, eu não queria, aí meu pai simplesmente disse: “Se eu voltar para casa e você não tiver se inscrito, você já sabe.” Eu disse: “Meu Deus do céu, tenho que ir correndo lá para o Senai.” Fiz a inscrição; na época não tinha nada de internet, [era] tudo manual, tenho o cartão de inscrição até hoje guardado nas minhas coisas. Fiz a inscrição e a prova era na outra semana, tive acho que uma semana para estudar para a prova, porque fiquei sabendo da inscrição de última hora, nos últimos dias de inscrição.
Passei, entrei no Senai. No mesmo ano tinha feito FPE, não consegui passar, mas foi uma mudança na minha vida. Foi bom, eu digo, graças à persistência do meu pai. Com dezessete anos eu já estava estagiando, com dezessete anos eu já tinha uma profissão. Eu estava estagiando em indústria, como menor aprendiz. Quando eu via, na época, os meus colegas que terminaram o segundo grau comigo, estavam tentando entrar na universidade, ou estavam trabalhando em shopping. Não desmerecendo, não estou aqui para desmerecer nada disso, não; estou falando que eu comecei novo a entrar no mercado de trabalho, com dezessete, dezoito anos. Eu já tinha carteira assinada.
Hoje eu olho para trás e vejo que foi muito bom para mim, graças mais uma vez a persistência do meu pai. Na época, se não fosse por ele, eu não sei se teria feito o Senai, então devo isso a ele, devo pelo menos o ponto de partida, [que] partiu dele. Para mim foi muito bom, era cansativo na época, mas eu não trabalhava, só fazia estudar, então eu não tenho do que reclamar. Meu pai sempre me deu tudo, tudo o que eu precisava o meu pai dava, na medida do possível, nas condições dele.
Hoje eu não tenho nível superior, mas por culpa minha. Cheguei a entrar em faculdade, passei na Universidade de Pernambuco em Engenharia, mas no meio do caminho eu desisti, por vários conflitos meus, mesmo. Mas o curso técnico me garante emprego até hoje. Eu nunca fiquei desempregado, graças ao curso técnico. Todas as empresas que eu passei foram empresas muito boas, então realmente eu não tenho do que reclamar. Foi uma mudança mesmo na minha vida, esse curso técnico.
(00:40:11) P/1 - E foi técnico do que, como eram as aulas?
R - Eu fiz o curso técnico Eletrônico Industrial no Senai, no mesmo Senai que eu estudei Eletrotécnica e Telecomunicações. Fiz o curso técnico industrial, voltado para a indústria em geral, e foi um período muito bom. Fiz grandes amigos lá no Senai, amigos que eu tenho até hoje. Até hoje eu tenho convivência com esses amigos, são meio que uma família para mim. São amigos que em muitos momentos difíceis da minha vida estiveram presentes.
Inclusive, nesse período da adolescência que eu estava no Senai, eu sofria muito porque eu estava descobrindo cada vez mais a minha sexualidade. Eu tive um amigo que foi fundamental para mim, porque eu vivi uma fase muito depressiva. Estava me descobrindo, estava naquele conflito, passando muito ruim; acho que até os meus vinte e poucos anos eu sofri bastante por isso.
A fase da adolescência foi bem difícil. Ter que estudar, mostrar para o meu pai que eu estava ali presente… Ao mesmo tempo, eu estava lidando com os conflitos internos sobre a minha sexualidade, e esse meu amigo, eu acabei meio que me apaixonando por ele, mas ele percebeu isso; acho incrível a maturidade que ele teve na época para lidar com isso, porque ele não retribuiu, mas virou para mim e disse: “Olha, eu sou seu amigo e vou estar aqui para o que você precisar. Eu não posso retribuir o que você quer porque não é do meu interesse, mas eu vou estar sempre presente com você, vou te ajudar.”
Para mim isso me marcou muito, porque de fato ele foi uma pessoa incrível na minha vida, na minha adolescência. A gente sempre andava junto, [ele] tinha a namorada dele. Ele me ajudou. Apesar de gostar dele de outra forma, eu consegui trabalhar isso de uma forma saudável, e ele me ajudou muito a lidar com os conflitos com o meu pai, porque ele já via que eu tinha conflitos com o meu pai em relação a isso - aquela velha pergunta: “Teve namorada?” Enfim, essas coisas que a gente escuta na adolescência. “Não tem namorada. Porque o seu amigo tem e você não tem?”
Eu cheguei a ter, não vou mentir. Cheguei a tentar namorar mulher; era uma coisa que não dava, não batia.
O nome dele é Rafael, este meu amigo. Hoje ele não mora mais no Brasil não, mora em outro país. Ele demonstrava muito carinho por mim, me tratava como um irmão. Ele tinha os irmãos dele e me tratava praticamente da mesma forma, [com] aquele carinho, aquela atenção, sempre preocupado comigo. “Está tudo bem com você? Olha, eu estou aqui”. Sabe, aquela pessoa que segurou minha mão e vamos caminhar juntos.
Acho que tanto na minha infância como na adolescência, apesar de ter sofrido muito pelos meus conflitos… Pelos meus pais eu não tive muito apoio na época, até porque eu não tive coragem de dizer para eles; sabia que eles iam sofrer e eu sabia que ia ser difícil para mim. Na época da minha adolescência, eles não tinham a cabeça que eles têm hoje, então acho que a vida colocou esse cara na minha vida. “Você não vai ter os seus pais nesse momento, mas vai ter um amigo que vai te ajudar a pelo menos não se sentir só.”
Ele me ajudou bastante pra eu não me sentir só. Saber que tem alguém ali que realmente se importava comigo, se importava com os meus conflitos, que eu podia desabafar… Ficou marcado na adolescência. Eu tinha outros amigos de infância, e com o passar do tempo acabei me abrindo com eles também.
Chegou na fase adulta, comecei a trabalhar, eles foram namorando, noivando e eu nada. Eles sempre questionavam, brincavam comigo, e esse meu amigo Rafael, do Senai, me ajudou a me abrir com eles também. Mais uma vez eles foram bons para mim, porque me ajudaram muito. São pessoas que eu digo que me marcaram, não tiveram preconceito comigo.
Esse meu amigo de infância que eu falei, o nome dele é Vanderson. [Era] meu amigo de infância mesmo, desde a época da COHAB; até hoje a gente é amigo. A esposa dele, os filhos… É um cara extremamente incrível, a hora que eu precisar daquele cara ele está ali comigo, e nunca teve preconceito, nenhum tipo de problema comigo em relação à minha sexualidade, então eu posso dizer que em relação a amigos eu sou um cara de sorte. Agradeço muito por ter tido pessoas tão boas na minha vida, em um período que foi bem difícil para mim.
(00:45:48) P/1 - Eu posso te perguntar um pouquinho mais sobre esses conflitos que você viveu?
R - Sim, tranquilo.
(00:45:57) P/1 - Acho que pensando até em quem não viveu esses conflitos, ou também em quem possa ver no futuro a sua entrevista e possa estar passando com uma situação de dificuldade também. Queria te perguntar como foi. Teve algum momento em que você conseguiu elaborar que a sua sexualidade não era como a dos meninos que jogavam futebol? Como é que começou na sua cabeça você pensar em sexualidade? Como é que isso apareceu para você, você se lembra?
R - Desde a minha infância, eu acho, comecei a me entender, me conhecer como um ser humano assim. Comecei a perceber que eu era diferente, eu sentia algo diferente. O olhar que eu tinha para os meus colegas era diferente do que eu tinha para as minhas amigas, só que na minha infância eu não sofri tanto com isso. Foi uma coisa que eu sentia, mas no início da minha adolescência, [com] onze, doze anos, aquilo começou a pesar, a crescer aquele desejo. Nessa época, como eu não conversava com os meus pais, conversava mais com amigos, colegas, eu escutava “porque o gay é pecado, porque na Bíblia diz que é errado”, e isso me acabava. Eu rezava chorando, pedindo a Deus para acordar no outro dia e não sentir mais aquilo, rezei muito antes de dormir, e por esse motivo minha mãe fala que hoje ela entende por que dentro de casa eu sempre fui uma criança muito fechada, e [como] adolescente pior ainda; eu entrava mudo e saía calado, e os meus pais sempre perguntavam: “O que é que você tem?”, do nada. “O que é que você tem? Por que é que você está triste?" “Eu não estou triste.” Mas eu demonstrava para eles, transparecia para eles; eu nem sabia que estava transparecendo para eles que eu estava triste, então minha mãe me cobrava muito nesse sentido. “Por que você não conversa comigo? A sua irmã conversa tanto comigo.” “Não, mãe, eu não tenho nada para conversar, não.” Hoje ela entende por que.
A minha fuga era estar na rua com os amigos, conversando, desabafando… Eu perdi o raciocínio, reformula a pergunta, por favor.
(00:49:09) P/1 - Eu tinha perguntado como é que foi ir se descobrindo. Teve algum momento específico, foi uma fase? Como é que você foi elaborando essa questão?
R - Voltando, não foi uma fase. Cada vez que eu ficava mais velho, ficava mais forte; eu sentia mais desejo, eu queria e não queria. Pensei em sumir, pensei em me matar. Cheguei a pensar isso, cheguei a cogitar essa possibilidade.
Eu, hoje, percebo que as pessoas que se suicidam não se importam com quem vai ficar. Elas se importam em só aliviar o sofrimento que estão sentindo naquele momento. Quando eu paro para pensar que eu pensei isso no passado, eu entendo porque eu queria fazer isso, porque eu queria aliviar aquela dor que eu estava sentindo. Não me importava na época se minha mãe e o meu pai iriam sofrer. Eu pensava em sumir. Eu pensava: “Vou começar a trabalhar, vou embora dessa cidade. Vou viver em outro lugar, porque se eu viver em outro lugar, eles não vão ver o que eu estou fazendo.” Eu pensava isso também quando eu era mais novo, porque eu não queria decepcionar os meus pais, sabia que ia fazê-los sofrer. Eu sabia que o meu pai, por ter tido uma criação muito machista do interior… Eu via o quanto o meu pai era machista, os irmãos. Eu sabia que além dele sofrer ele ia me rejeitar. Eu tinha muito medo disso, do meu pai não me querer mais como filho.
Enfim, eram vários medos que eu tinha, mas eu tinha muito, muito medo em relação a eles. Era um medo que eu nem sei explicar. Era muito medo dos meus pais, de fazer eles sofrerem. Eu me sentia muito culpado por estar sentindo aquilo.
É muito doido relembrar essas coisas. Hoje eu faço terapia, estou bem resolvido em relação a isso, meus pais são bem tranquilos em relação a isso, mas relembrar essas coisas parece um gatilho, porque eu relembro o quanto sofri sozinho, calado, mesmo tendo os meus amigos para me ouvir. Eu não tinha a referência de tanto amor e tanto carinho dos meus pais, não podia me abrir para eles. Isso para mim era muito difícil, muito doloroso.
Quando eu estudei nessa época do Bandeira, que eu falei das minha amigas, tinha um colega na nossa época de escola. Criança não percebia… As meninas: “Você nunca percebeu o jeito dele, meio afeminado?” “Não, eu nunca percebi.” Acho que o nome dele era Rafael, e ele se matou porque ele era gay. A família evangélica não o aceitava, e um dia ele tomou remédio dentro de casa, veneno, e quando a mãe dele o encontrou ele já estava com convulsão no quarto. Foi socorrido, mas não sobreviveu. Eu paro e penso: “Caramba, eu pensei em fazer isso.”
Ele não aguentou, acredito eu que a pressão que ele passou foi muito maior que a minha. Tem gente que não aguenta, é muita pressão, a pressão familiar… As pessoas não têm ideia de como é pesado pra gente, mas pela educação, pela dedicação que os pais dão pra gente… As pessoas não têm noção do quanto é pesado a gente ter que ser aquilo que os pais esperam da gente, se esforçar para ser aquilo que eles querem, aquilo que eles esperam. Foi um sofrimento novo para mim, um período bem longo para mim.
Quando eu fui forçado a falar para eles foi um alívio, foi um peso que eu tirei das costas. Os meus pais ouviram de mim com 27 anos, depois de muito tempo. Eu morava com eles, já tinha relações com homens, cheguei a namorar, mas nunca falei para eles. Eu tinha amigas, eu inventava, “fui na casa da minha amiga”, mas não estava na casa da minha amiga.
Eu mentia muito para os meus pais, muito, isso era muito ruim para mim. Quando eles me cobravam relacionamento com mulher, era muito pesado para mim. É aquela história que eu falei no início, entrava calado e saía mudo.
Chegou um tempo que minha mãe começou a sofrer, porque ela via que eu estava sofrendo. Ela falava assim: “Meu filho, conversa comigo. Você está passando alguma coisa e você não quer me dizer.” E ela realmente começou a cair na real quando a irmã dela, que tem uma filha gay também, minha prima, viveu a mesma situação que a minha. Só que a minha prima se abriu com a minha tia, e a minha tia foi desabafar com a minha mãe. A minha mãe [disse]: “Meu Deus do céu, eu acho que é a mesma coisa que está acontecendo com o Anderson”, porque minha prima também entrava muda e saía calada de casa, vivendo os mesmos conflitos, as mesmas situações. Ela começou a entender que eu também estava sofrendo.
Depois de muito me pressionar… Na verdade, não foi nem pela pressão dela, o meu pai acabou… É uma situação bem engraçada. Eu falo engraçada hoje, na época eu fiquei morto cego. O meu pai acabou vendo coisas na internet, pela porta do quarto que não estava trancada, e ele entrou para falar comigo. Internet discada, lenta, você clicava, o negócio ia fechar (risos) e deu tempo dele ver coisas que eu não deveria ver, na visão dele. O meu pai viu aquilo, falou o que tinha que falar comigo e saiu do quarto.
“O mundo acabou agora. E agora, o que é que eu faço?” Eu saí do quarto e fui falar com ele. Ele [ficou] todo desconfiado comigo. “Vamos dormir.”
Isso foi à noite. No outro dia, a minha mãe me chamou para conversar. “O seu pai conversou comigo ontem, viu uma coisa…” [Ela] me botou na parede e eu confirmei: “Sou gay, sim.” Ela [disse]: “Por isso que você ficou calado, todo fechado. Eu sabia que tinha alguma coisa errada.”
Enfim, teve toda aquela conversa de família. Meu pai passou uns três, quatro meses depressivo em casa. Meu pai ficou muito mal, mas nunca me destratou. Primeiro ele falou com a minha mãe, depois de alguns meses que ele veio falar comigo sobre esse assunto, mas a minha mãe veio até mim e disse: “Olha, o seu pai está muito triste, muito mal. Ele está muito decepcionado, mas ele prometeu para mim que não vai te tratar mal. Ele não vai te botar para fora de casa, essas coisas.” Isso é uma coisa muito forte ainda para mim, porque quando eu ouvi aquilo da minha mãe, eu não esperava aquilo do meu pai. Não que ele fosse bater em mim, a minha mãe disse: “Pelo amor que ele tem por você, ele vai passar por cima disso, mas respeita o tempo dele.”
Meu pai foi criado no interior, foi criado no meio machista, então eu tinha essa compreensão que ele viveu em outro mundo. Não podia obrigar o meu pai, simplesmente esfregar na cara dele aquilo, então eu fiquei na minha, respeitando o tempo dele e ele respeitando o meu, muito calado, muito fechado dentro de casa. Mal falava comigo, mas nunca me tratou mal, nunca, desde que ele descobriu oficialmente. Ele já desconfiava - eu, com 27, não tinha namorada, não tinha nada, meus amigos casando - mas ele nunca me tratou mal.
Depois de meses, ele descobriu que o meu amigo que frequentava lá em casa, o meu amigo era o meu namorado. Teve final de ano, festa de família; meu pai sempre alugava casa de praia e foi a família toda para lá. Eu não fui. Ele ligou para mim: “Meu filho, você não vai vir aqui para casa, não?” Falei: “Não, pai, eu não sei.” Ele disse: “Olha, meu filho, você pode trazer seu amigo. Seu pai te ama e nunca vai te tratar mal, então você pode trazer o seu amigo, se você quiser. Ele vai ser bem-vindo aqui.”
Ouvir aquilo do meu pai era uma coisa fantástica, porque era como eu falei antes, eu vivi uma parte da minha vida com medo de decepcioná-lo, de achar que ele não ia me aceitar. O meu pai trazia revista Playboy para mim, coisa de pai, vamos naturalizar isso, mas ele foi criado de um jeito diferente, então ouvir aquilo do meu pai para mim foi uma coisa assim… “Está bom, pai, obrigado. Eu também te amo.” Na época eu não estava bem, não estava bem na minha relação, então não ia acontecer de levá-lo na minha família, mas foi por causa da relação que não estava legal. Ouvir aquilo do meu pai para mim foi uma coisa assim, sabe?
Minha mãe abraçou mais a causa. Mãe normalmente é assim, ela abraça mais. Foi o que ela disse: “Meu filho, eu não queria, mas eu não vou deixar de te amar e eu não queria também por causa do mundo. Eu tenho medo do mundo o que possa fazer com você.” Hoje eu não lembro se essas eram as palavras dela. “Hoje o meu maior medo é o mundo. O meu amor é mais do que nunca, eu tenho medo de perder o meu filho pela violência que existe no mundo.”
Mas é isso, em relação aos meus pais mais uma vez eu agradeço muito a Deus, porque quando eu olho para trás, pra minha vida, apesar de ter sofrido muito por medo, eu não sofri por rejeição. Acho que poderia ter sido muito pior. Eu sofri por medo; talvez, na época, se os meus pais tivessem descoberto, ou eu tivesse falado, o tratamento teria sido outro porque eles não tinham a cabeça que eles tinham quando descobriram. A minha tia, de certa forma, ajudou muito a minha mãe a abrir os olhos, porque eu sei que a minha mãe teria muita dificuldade em me aceitar, então no final das contas [foi] tudo no seu tempo. Sofri, realmente, mas no final das contas na minha fase adulta teve o abraço dele, e isso eu agradeço muito a Deus. Eu não sei como teria sido minha relação com essas coisas, porque eu amo muito meus pais.
(01:02:22) P/1 - Hoje como é que vocês estão, Anderson? Você, o seu pai e a sua mãe?
R - Hoje meus pais são loucos por Bruno, o meu companheiro. Hoje eles conversam mais com ele do que comigo. Meu pai adora conversar com o Bruno, meu Deus do céu! É Deus no céu e Bruno na terra.
Meu pai adora quando a gente faz chamada de vídeo. Às vezes eu estou conversando com ele [e ele diz:] “Deixa eu falar com o Bruno.” Deixo falar porque…
Fica horas conversando com Bruno. Quando eles se encontram: “Bruno, senta aqui, vamos conversar”, e são altos papos, ele e meu pai, sabe?
Quando eu conheci Bruno… A gente está junto há cinco anos. Antes dele eu tive outras relações. Meu pai [os] conheceu, eu sempre [os] levava para casa. Meus pais conheceram antes do Bruno outros ex-namorados, mas quando eu conheci Bruno, que a gente resolveu primeiro morar junto, a gente fez uma festa, oficializando nossa união. Aquele momento da festa… Tem os discursos e ninguém esperava, não estava preparado para aquilo. O meu pai pediu o microfone para discursar e ele fez aquele discurso, eu nem lembro direito porque eu estava chorando tanto… Tem uns vídeos, mas eu não lembro. Sei que ele falou coisas que ninguém na festa segurou, todo mundo… Porque ninguém esperava, toda a família que estava lá, minha mãe, minha irmã, uns parentes meus ficaram muito surpresos com o meu pai ter aquela postura de pedir para falar. Ele falou do amor, do respeito, do quanto ele sofreu até compreender que era o filho dele, e ele reafirmou que nunca abandonou o filho dele, falou que nunca me renegou.
Enfim, ele reafirmou aquilo na frente de várias pessoas - meus amigos, familiares, amigos meus, amigos de Bruno. A família do Bruno, que é do Rio, não mora aqui, a família dele veio do Rio para cá. O meu pai fez aquele discurso lindo que emocionou a todos, porque é aquela coisa… Meu pai, eu falo muito dele, porque apesar da criação que ele teve, de às vezes ele ser muito ignorante - quando eu era mais moleque ele era muito ignorante, da forma dele, mas era muito ignorante - meu pai sempre teve muito amor pela família, muito zelo pela família, muito cuidado. Ele tinha o lado ignorante dele, mas tinha um lado muito amoroso. Até hoje eu abraço, beijo o meu pai, fico agarrado com ele às vezes, sento no sofá com ele, abraço. A gente fica rindo. Ele me criou dessa forma, [com] esse amor, esse carinho. Eu, [quando] criança deitava junto com ele na cama; adolescente também, minha mãe e meu pai deitados, eu pulava nos dois, ficava brincando.
Meu pai sempre foi muito amoroso com os filhos, muito, então como eu falei, [com] toda essa dedicação, todo esse histórico de amor que ele tem com a família, eu tinha muito medo de decepcioná-lo, mas mais uma vez ele demonstrou, sobrepôs todo o preconceito que existia que tinha nele e colocou o amor em primeiro lugar. Isso me marcou muito, mesmo. Os dois sempre foram muito amorosos, toda a família, mas foi muito decisiva para mim a entrega dele, a aceitação dele para mim foi importante demais. Eu me acho um cara muito de sorte porque eu vejo outras histórias, tenho amigos que até hoje tem dificuldade com a família em relação a isso; tem pessoas que não falam mais com a família, nem com o pai e a mãe. Tem relatos que a gente ouve de outras pessoas, pessoas trans, travestis que a família não aceita. Isso me dói muito.
Hoje, na minha pequena insignificância… Eu não sou artista, não sou influencer, mas na minha insignificância eu sempre tento falar muito sobre isso, porque eu sei o que eu passei, eu sei o que as outras pessoas passam. Eu já escutei muito isso: “Anderson, tu é mais tranquilo, tu não é…” É horrível falar isso: “Tu não é afeminado, tu não tem jeito.” Cara, a pessoa merece o mesmo respeito que eu, se brincar muito mais, porque ela está batendo todo dia de frente com a sociedade. Eu sou mais respeitado porque eu não mostro, não tenho jeito, visto roupas de homem. Eu já escutei muito isso, e eu tento quebrar muito isso.
Eu falo, o fato do fulano, sicrano, beltrano ser mais afeminado não o desmerece. Ele é um ser humano igual a mim, ele merece tanto respeito quanto eu, e eu dou muito mais valor a ele, ou a ela, ou quem quer que seja, porque a sociedade bate de frente todo dia com eles. Comigo bate, mas de uma forma mais ponderada, porque eu sou mais aceitável, mais padrão da sociedade. Você entende o que estou falando? Isso para mim me dói muito, então eu tento muito conversar, falar com meus amigos héteros sobre isso, falar isso em rede social. Com a minha insignificância eu tento levantar esse debate, até para a minha família também.
Meus pais não entendiam muito sobre isso. Hoje eles compreendem, eu converso com eles sobre isso, tento mostrar um outro lado - não o lado só do filho deles, que não tem jeito. Eu estou reafirmando isso porque eu já ouvi muito isso, até [de] colega de trabalho. Já ouvi de um colega “você não tem jeito…”. Eu respiro fundo. “Tá, mas e daí?”
Eu trabalho na rua, trabalho com outras pessoas também. Eu não falei do meu trabalho, vou só pegar um pouquinho. Eu trabalho consultando caixa eletrônico, guardando valores, então é inevitável ouvir piadinhas do tipo “olha só…” Passa um grupo, eu trabalho na região de praia, então [tem] muita gente na praia, umas pessoas mais à vontade; as pessoas estão curtindo o momento delas ali e eu estou trabalhando. Passa um grupo de meninos: “Olha ali ó, o que tu acha?” É minha turma, e aí: “Calma, eu só estou brincando.” Eu digo: “Eu não estou entendendo onde você quer chegar, porque qual o problema? Eles estão te fazendo algum mal? Eles estão atrapalhando a sua vida?” “Não, calma,” Não, cara, comigo não tem essas brincadeiras não. Eu corto logo.
Eu evolui muito, mas no passado eu morria de medo de falar sobre isso no trabalho. Ambiente de trabalho sempre foi muito machista. Eu trabalho nessa parte de manutenção, já trabalhei em indústria, então a parte técnica, a manutenção em si, tem aquela coisa muito ogra: “Isso é coisa de homem, mulher não conserta máquina.” Eu sempre trabalhei com isso, nunca tive problema, mas sempre foi um meio machista, então eu sempre me retraía, sempre saía de campo. “Você tem namorada?” “Tenho”, inventava umas namoradas, ou pegava minhas amigas. Eu tenho amiga que meu Deus do céu, o nome dela foi muito usado… Como tinha muito foto com ela, “essa aqui é minha namorada”, mas hoje em dia eu não admito isso, eu não escondo.
Na academia, onde for, o instrutor vem falar não sei o que lá… “Meu companheiro…” Na outra academia, às vezes, as pessoas olham assim para mim. No meu trabalho, mais do que nunca, porque a empresa que eu trabalho hoje, a TecBan, ela me deu muita liberdade. Acho que nem é a palavra ‘liberdade’, ela sempre me deixou ser quem eu sou. Hoje o meu companheiro Bruno é declarado, a gente é casado no estado; eu o declarei na empresa, então praticamente todo mundo da empresa sabe - na empresa em si, eu não digo na guarda de volante, porque são duas empresas distintas, a TecBan e a outra empresa. Na empresa em si eu não tenho problema nenhum, todo mundo me respeita, eu respeito todo mundo. Eu falo esse respeito porque infelizmente é muito criada a ideia de que o homossexual é promíscuo, “ele pode dar em cima de mim”, por isso, infelizmente, a gente tem que levantar esse nome de respeito. Eu ouvia muita piadinha, “o cara é gay, então cuidado, não vamos entrar no mesmo banheiro que ele, não”, e graças a Deus eu consegui adquirir respeito dentro da empresa.
A empresa abraça a causa, então no meu ambiente de trabalho hoje eu converso com os meus colegas, praticamente todos sabem que eu sou casado, alguns conhecem o Bruno, então hoje eu consigo ser eu. Como eu falei antes, eu não admito mais ser diferente dos outros, eu não me permito mais me esconder. Eu já me escondi boa parte da minha vida, já vivi boa parte da minha vida com medo de ser quem eu sou, então depois de muita terapia também eu consegui ser esse Anderson que eu sou hoje, sem medo de ser quem eu sou, [de] lutar por uma causa que a gente sabe que o caminho ainda é longo, hoje. Não quero que o respeito caiba só a mim, quero que todos sejam respeitados. Ninguém aqui tem que aceitar ninguém, ninguém tem que me aceitar; eu acho que eles têm que me respeitar. Antigamente [se] usava essa palavra, aceitação; não, hoje em dia é só respeito.
Acho que em um planeta de bilhões de pessoas ninguém vai ser igual a ninguém. Todo mundo vai ter um desejo diferente, uma visão diferente, um pensamento diferente, então por que ainda essa questão de julgar? Enfim, é todo um contexto que diz não, e política… Mas é isso, hoje realmente é isso. Eu não dou o braço a torcer para ninguém; me respeitou, bem. Não me respeitou? Cada um segue a sua vida.
Hoje eu me coloco em uma posição [em] que eu não ‘mereço’, eu não preciso que alguém esteja ao meu lado e compactue ou pense de forma negativa [em relação a] mim, ou quem é igual a mim. Hoje eu tenho essa postura. Se eu vejo que aquela pessoa, mesmo conversando com ela, tentando mostrar um lado para ela de respeito, de compreensão, de empatia, ela não consegue enxergar isso, eu não preciso conviver com aquilo. Hoje eu me coloco em uma situação que quem está do meu lado é quem agrega, é quem soma, quem compreende, quem se permite enxergar o outro lado.
Hoje eu abranjo não só o fato de ser gay, mas todas as outras diversidades que tem na sociedade - o negro, a questão da mulher. Eu tenho amigas professoras, converso muito com elas sobre isso, sobre esses questionamentos. A gente levanta muito essas pautas em conversas. Eu tento sempre, quando é possível dialogar - não é sempre - no ambiente de trabalho, quando é levantado algum assunto, alguma bobagem… Cara, tenta olhar por esse lado, existe esse outro lado também, existe esse contexto também. Você acha que iria gostar? Você está desrespeitando a sua esposa fazendo isso aqui agora; se sua esposa fizesse ao contrário, é certo desrespeitar mulher só por causa disso?
Enfim, voltando, como eu falei antes, na minha humilde insignificância eu tento fazer a minha parte. Eu estava conversando com um amigo meu um tempo desses: tem que plantar uma sementinha; se de dez, um entender e compartilhar aquilo eu fico feliz, pelo menos deu certo. Tento agir dessa forma porque eu sei o que eu passei, eu sei o que eu sofri, eu sei o que é sofrer preconceito, então eu não desejo isso para ninguém, nem para o meu pior inimigo. Graças a Deus eu não tenho inimigos hoje, mas eu não desejo isso para ninguém porque é muito ruim. Como eu passei grande parte da minha vida sofrendo, me escondendo, me anulando, eu faço hoje de tudo para não ver isso mais acontecer.
Não tem como não falar sobre isso. A gente vive hoje na sociedade… O que está acontecendo hoje com o Brasil, diante do tanto de discurso de ódio… É tanta maldade que a gente vê hoje em dia de forma desnecessária, usar religião… Eu não vou dizer que sou uma pessoa cristã. Eu me dedico muito à religião, cresci no espiritismo. Gosto muito do espiritismo porque ele abrange muito a nossa mente, a nossa visão de mundo, de compreensão, de respeito ao próximo, de amar o próximo, independente do que a pessoa seja ou o que ela faz. Tudo o que a gente está vivendo hoje, está sendo doloroso no Brasil ver as coisas acontecer. É engraçado que eu estava conversando com a minha terapeuta, está difícil manter a saúde mental nesse país e isso corrói, não tem como porque eu sempre fico me colocando no lugar dos outros. Caramba, imagine a barra que essa pessoa está passando, essas pessoas estão passando, porque elas têm que lidar [com isso] no lidar no dia a dia delas. Hoje eu adquiri esse respeito na minha convivência, no meu meio social, e tanta gente está batalhando por isso, pelo mínimo de dignidade, então é isso.
Eu falei demais.
(01:18:32) P/1 - Eu queria retomar do ponto onde você começou a estagiar. Você estava fazendo técnico, pelo que eu entendi, e foi entrando no mercado de trabalho. Como é que foi essa entrada, como é que foi o seu primeiro emprego?
R - Eu assinei a minha carteira como menor aprendiz em uma indústria de café, Café Pretinho. Foram três meses, só. Minha mãe teve que ir lá porque eu era menor [de idade], ela teve que me acompanhar para assinar a minha carteira.
No início foi um pouco assustador [estar] dentro de uma fábrica com dezessete anos. Os funcionários [eram] bem mais velhos, um pouco com vícios, e preocupados, achando meio que eu ia roubar o lugar deles. Essa indústria que eu entrei não era grande, era uma indústria pequena, e as pessoas que trabalhavam lá, os técnicos não tinham formação; eram técnicos porque entraram lá novos, foram aprendendo a consertar os equipamentos, então meio que eu tive dificuldade para lidar. Eu não tinha experiência de lidar com pessoas assim, bem mais velhas do que eu, então de início foi um pouco difícil, mas como foram só três meses de estágio, eu saí de lá, fiz dezoito anos e comecei trabalhar de carteira assinada.
Trabalhei consertando celular, aqueles celulares antigos que a gente chamava de ‘tijolex’ - pesados, podiam matar um. Eu consertava aquele celular em quiosque de shopping. Na época, foram até várias franquias, [foi] uma febre de manutenção de celular. [Foi] pouco também, três, quatro meses que eu trabalhei.
Depois eu fui trabalhar em indústria. Na indústria eu ganhei muita experiência profissional, muita experiência mesmo. Tinha os conflitos, na época eu ainda tinha 21, 22 anos; namorava menina, forçava a namorar, [era] um ambiente bem machista. “Vamos sair os casais?” “Bora”, e eu saía, levava as meninas.
Eu me sentia mal na época, porque eu também estava enganando as meninas. Eu não estava só enganando a mim. Eu estava brincando com a expectativa de algo, enganando o sentimento da pessoa, enganando a mim, a menina e minha família, porque quando meus pais viam que eu estava com uma namorada, até a fisionomia deles mudava. No fundo eu acho que todo pai e mãe sentem que o filho é diferente, eles sentem, então eu percebia a mudança de comportamento deles quando eu aparecia com uma namorada. Eu namorava por um, dois meses de namoro, não passava disso.
Quando eu trabalhei nessa fábrica - com 21 anos acho que entrei nessa fábrica - tinha essa namorada, então eu conseguia lidar com as situações. No ambiente meio machista da fábrica eu consegui me sair bem, menti para os outros, mas me saí bem. Depois que eu trabalhei nessa fábrica, eu passei quase nove anos em outra empresa. Eu trabalhava em escritório, laboratório, manutenção. Como eu passei muito tempo convivendo com as mesmas pessoas durante muito tempo, eu nem deixava as pessoas começarem a entrar na minha vida, de certa forma. “Ah, teu pai, tua mãe, namorada…”
Nesse período eu conheci um dos meus ex, e na época ele estava desempregado. Eu estava trabalhando [na] manutenção e ele era da parte administrativa. Eu o indiquei na empresa e ele começou a trabalhar lá. O povo começou a conviver no mesmo ambiente e obviamente começaram a perceber que a gente chegava junto, saía junto. Sempre rolava os comentários, eu ouvia.
Tinha uma colega nossa de trabalho que a gente acabou desabafando com ela, ela deu muito apoio pra gente, mas chegavam os comentários para ela, e sempre comentários negativos em relação à gente. Eu me incomodava muito, aquilo me deixava mal, mas eu tinha que seguir em frente porque tinha que trabalhar, tinha que manter o meu emprego, pagar as minhas contas. Eu evitava às vezes algumas reuniões de empresa, evitava até almoço com certas pessoas da empresa, com medo de ouvir, mas era inevitável porque eu acabava ouvindo um comentário ali, uma brincadeirinha ali. “Cadê a namorada de Anderson, onde será que está essa namorada de Anderson? Porque Anderson sai tanto com fulano?” Sabe, esse tipo de coisa. E eles falavam na minha frente, para alfinetar mesmo, não era escondido, não. Muitas vezes era na minha frente, para me alfinetar, para soltar gracinha; nessa empresa eu ouvi muita piadinha.
Depois acabou a relação, ele saiu da empresa. Não saiu por isso, não, foi por outro motivo, mas sempre ficavam as piadinhas, os comentários. Até antes de sair de lá eu sempre ouvia uma brincadeira, uma maldade - não diretamente a mim, ofendendo qualquer outra pessoa por ser gay, mas aquela coisa era para me alfinetar, e muitas vezes eu ficava calado, porque eu não sabia, não conseguia me defender. Eu simplesmente não tinha força para me defender; ou desconversava, ou saía de perto. Eu tinha muito medo. Se for parar para pensar, eu tinha muito medo do preconceito dentro do ambiente de trabalho, tinha muito medo de ser inferiorizado, de ser colocado para baixo, então o meu refúgio era me calar, a minha defesa era me calar, ficar na minha, abaixar a cabeça.
Eu comecei a aprender a me defender mais quando comecei a fazer terapia. Comecei a fazer terapia em 2016 para 2017, já tinha saído dessa empresa e voltei a trabalhar em fábrica. Quando eu voltei a trabalhar em fábrica, eu trabalhava com amigos do Senai; eles que me arrumaram, esses amigos sabiam de mim, então para mim foi muito mais suave. Saí de uma empresa que o ambiente em relação à minha sexualidade era muito pesado e fui para outra que era mais suave, era mais tranquilo, eu estava do lado de pessoas que sabiam de mim e que eram meus amigos.
Passei um ano e três meses nessa empresa; ela acabou perdendo o contrato, questões do governo. Fomos desligados, saí realmente por causa disso. Eu acho que foi a partir dessa empresa, junto com a terapia, que eu comecei a entender que não precisava aceitar certas coisas calado. Quando eu entrei na atual, que é a TecBan, ainda se encontra um pouco de dificuldades, porque eu comecei a trabalhar com guarda de valores, um meio extremamente machista, e a maioria das pessoas saem do exército, viram vigilantes; aquela cultura, aquela mentalidade… Eu já trabalhei com pessoas muito ogras. Algumas pessoas [são] tranquilas de trabalhar, de conversar, mas eu já trabalhei com pessoas que não sabiam nem conversar direito, pura ignorância, ao extremo, incrível.
O que foi me permitindo a tocar o foda-se foi o meu coordenador. Ele não é de Recife, ele é de São Paulo, mas mora aqui, atuando na coordenação da filial de Recife. Como eu trabalho na rua, sempre trabalho sozinho, uma vez ou outra ele sai com algum técnico para ver o dia a dia do cara, acompanhar. Nisso ele saiu comigo, começou a conversar comigo. Acho [que] hoje em dia uma pessoa com mais de trinta anos ser casado e não falar muito da sua vida pessoal… Ele meio que deu esse start para mim, do nada veio conversar comigo. “A minha esposa, ela tem um amigo que frequenta muito a nossa casa, e ele é homossexual, mas os meus filhos o adoram, [é] um amigão nosso.”
Eu ouvindo aquilo do meu coordenador, falando isso para mim, e eu bem sério no carro. Caramba, que legal, porque até então… Ele: “Anderson, é isso aí, eu sou um cara muito tranquilo em relação a isso. Ele é meu amigo, dou maior valor a ele, ele é meu amigão.”
A empresa está trabalhando em cima disso, para educar essa questão do preconceito. Lá em São Paulo isso é muito mais forte do que aqui no Nordeste, lá em São Paulo existem casais em empresas, pessoas que são realmente…. Para mim aquilo foi… A primeira vez que eu escuto isso de um líder, ele era o meu coordenador em um setor meio machista. Eu nunca esperava ouvir isso em uma empresa, de alguém que está preocupado não só com o meu trabalho. Ele mostrou para mim que ele estava preocupado com a minha pessoa, de mostrar para mim que eu poderia ser quem eu sou, então a gente começou a conversar tudinho.
Um belo dia eu digo: “Preciso conversar contigo.” Depois disso eu conversei com Bruno bastante sobre isso, e eu resolvi chamá-lo para conversar. “Eu sou casado com um homem e a gente tem união estável. Queria saber como que a empresa enxerga isso, porque eu queria declarar, queria incluir Bruno no plano de saúde da empresa.” E ele: “Sim, Anderson, por que você está falando assim comigo?” Eu falei: “Porque eu sou casado”. Ele: “Cara, fica tranquilo, não tem distinção aqui não. Você que sabe, [pode] dar entrada aqui na documentação dele.” Eu disse: “Depois que você conversou comigo, eu sei lá, me senti mais à vontade para conversar com você. Quero saber como a empresa enxerga isso.” Ele: “Anderson, é como eu falei, a TecBan está trabalhando muito em cima disso. Na verdade, ela quer trabalhar para quebrar essa questão, esse preconceito, então fique tranquilo. Traga a documentação dele aqui, e a partir de hoje, já que você se permitiu se abrir comigo, qualquer problema que você tiver aqui na empresa em relação a discriminação, pode vir falar diretamente comigo. Se você sofrer qualquer tipo de preconceito aqui, pode vir me falar diretamente comigo.” “Não, está tranquilo, com a equipe técnica eu não tive problema, não. Já tive com guarda de valores, mas eu estou sabendo lidar com as situações hoje.” “Anderson, pode ter certeza que o apoio da empresa em relação a isso você tem, então traga a documentação.”
Eu levei, declarei Bruno; hoje ele é declarado na empresa. A partir disso eu comecei a me sentir mais à vontade para falar com as pessoas. Meus colegas de trabalho vieram até mim conversar comigo, comecei a me abrir mais sobre essa situação. Ocorreu apenas uma situação, que foi para mim a gota d'água. Um dos vigilantes, toda vez que eu trabalhava com ele - porque nem sempre é o mesmo vigilante todo dia. O que acontece, só para você entender: eles abrem o cofre e eu faço a manutenção do equipamento, eles fecham o cofre e a gente segue, então a gente sempre anda junto - eu no meu carro, ele no carro dele. Um dos vigilantes que sempre estava comigo soltava piadinha, gracinha, e eu sempre engolindo aquilo, sempre tirando por menos, porque o meu objetivo não era brigar com esse pessoal, não era ter conflito. Só que chegou um momento que estava insuportável para mim, aí eu falei: “Não está dando para trabalhar com essa pessoa. Eu queria muito que vocês dessem um jeito nisso, porque eu estou sofrendo assédio moral no ambiente de trabalho.”
Primeiramente eu falei com o meu monitor; existe o monitor e o coordenador, que lida diretamente com os técnicos de rua. Ele [disse:] “Anderson, pode deixar que a gente vai resolver isso.” Conversou com o meu coordenador, eu não sei qual tipo de conversa que rolou entre o meu coordenador e o coordenador das contas de valores; sei que esse cara hoje em dia comigo só fala o necessário, é outra pessoa. Era o que eu queria, eu não quero ali amigo para levar, é fazer o trabalho e cada um para o seu canto. Hoje ele mudou radicalmente, e eu fiquei sabendo por outros vigilantes. “Rapaz, o cara lá foi chamado na coordenação porque um de vocês foi reclamar dele. Ele saiu de lá com a cabeça baixa”. Eu digo: “É mesmo, foi?” Falaram o nome do técnico. “Não, a gente não sabe não, mas vocês estão ferrando com ele, porque ele saiu de lá todo desconcertado, todo desconfiado”. “Foi mesmo? Está bom.”
Eu quase que falei que teve essa situação, porque cara, sabe o que é você passar o dia trabalhando… Imagina você ter um colega de trabalho, todo dia você está ali com ele, quase todos os dias, mas só de você ver ele chegando, você já fica mal, você já sabe que o seu dia vai ser ruim. Aguentei isso calado, por muito tempo, até que eu não aguentei mais e falei com o meu monitor para falar com o coordenador, porque estava insuportável; brincadeiras pesadas, de realmente me depreciar. Muitas delas eram indiretamente, mas a única pessoa que ele queria atacar ali era eu, porque não eram os outros vigilantes, era só a mim que ele queria atacar. Sinceramente, eu não entendo porque tanto preconceito.
Uma vez eu estava com outro vigilante e ele falou diretamente comigo: “Tu é bom, tu é legal. Tu não tem aquele jeito, tem uns caras que são escandalosos.” [Respondi:] “Não tem problema, cara. Você tem que respeitar ele igual, não tem porque.” “Não é porque eu não gosto, não.” “Veja só, uma coisa é você não gostar, ok, mas destratar ou desrespeitar está errado, cara. Quer dizer que se eu fosse um técnico que tivesse, como vocês falam, os trejeitos, você ia me tratar mal por causa disso? Você acabou de dizer que eu sou uma boa pessoa, então eu não seria uma boa pessoa se eu tivesse jeito?”
Ele para para pensar, porque tinha acabado de dizer que eu era uma pessoa boa, que gostava de trabalhar comigo, mas quer dizer, se eu fosse pintoso eu não era uma pessoa boa. Essas situações no ambiente de trabalho, dependendo da pessoa tem como conversar, porque tem situações que é melhor eu me calar porque não dá, às vezes a cabeça é muito fechada. Eu aprendi, o Anderson do passado, de uns quatro anos atrás debatia, se estressava; hoje em dia eu aprendi que não dá, tem gente que não vai mudar. Uma coisa que eu aprendi com a minha professora que falou, minha professora de criança, adolescente, ela falou: “Anderson, adulto não muda, a pessoa só muda se quiser. Eu estou investindo nas crianças, as crianças do futuro, talvez abrir a mente delas para quando chegar adultos diferentes dos de hoje.” E realmente ela está certa, porque é difícil mudar a cabeça das pessoas, não dá.
Tem situações no ambiente de trabalho que eu prefiro me calar hoje em dia, principalmente em relação à política. Já ouvi muito debate, muitas discussões; hoje em dia eu me calo, eu me faço de doido. Às vezes eles começam a falar certos assuntos em relação ao atual presidente, e eu sei que se eu entrar naquele assunto não vai ser bom para mim, vai acabar me fazendo mal, aí eu simplesmente deixo a pessoa falando sozinha, até que ela se toca. Já aconteceu mais de uma vez, a pessoa se toca que eu estou deixando ela falar sozinha e ela mesma muda de assunto, porque não dá. Eu tenho que cuidar de mim, já me desgastei muito com essas situações, então eu aprendi que tenho que cuidar da minha saúde mental em relação a isso.
(01:37:13) P/1 - Só uma coisa: eu imagino que também, nessas situações todas, você tenha tido medo de perder seu emprego também, ou não?
R - Em relação a isso, eu acho, por aquela situação que eu já contei aqui várias vezes, o fato de eu não ser afeminado não afeta muito, não me afetou. Eu digo isso porque eu vejo, é notório isso. Já vi até depoimentos, entrevistas. Independente do ambiente de trabalho, isso é um problema. Ainda bem que a sociedade está evoluindo quanto a isso, mas muitas empresas mudaram muito isso, essa cultura. No meu ambiente de trabalho você não vê, eu nunca vi, e olha que eu já passei em indústria. Você pode até ver uma pessoa [que] está ali no escritório, mas a manutenção em si ainda é um meio muito machista.
O fato de eu ter me moldado… Querendo ou não, eu tive que me moldar. Quando eu estou com os meus amigos a gente brinca, perturba. Eu sou mais natural, brinca, tira onda, usa o lado feminino para chamar o amigo, “ô, menina, vem cá, vem cá, mulher”. É brincadeira, mas no ambiente de trabalho eu tive que me moldar, tive que me podar para me adequar àquele ambiente. No setor que eu estou agora não tive esse problema [de] chegar a esse ponto de correr o risco de perder o meu emprego. Isso eu não passei, porque eu me moldei ao ambiente.
(01:39:13) P/1 - Eu achei interessante o que você falou, que você não esperava que um superior fosse falar com você desse assunto. Qual é a importância de ter superiores, ou de outros cargos que possam conversar com os empregados da empresa com relação a isso? Dá uma segurança ou não, como é que fica?
R - Com certeza, você se sente valorizado. Independente da sua função você se sente: “Puxa, eu sou reconhecido como eu sou. Não é o Anderson fingindo ser hétero, é o Anderson gay mesmo que está ali, trabalhando na manutenção, se jogando ali na máquina, se sujando, entrando no equipamento.” Não é o hétero, é um gay, um homossexual, mas é um ser humano como qualquer outro, capaz de fazer aquilo. Isso não é só coisa de homem, coisa braçal, [que] só homem hétero, pode fazer, qualquer pessoa pode fazer isso. Não é o fato de ser gay que eu não posso. Se eu tenho capacidade de fazer aquilo…
O fato dele vir diretamente e abrir essa porta, de eu me sentir à vontade de falar isso, para mim foi muito importante, porque é um ponto que você falou, o medo de perder o emprego existia - pouco, porque eu me moldei à estrutura, àquela organização. É inevitável não existir um pouco de medo de sentir preconceito.
Antes de entrar nessa empresa eu fiz uma entrevista. Foi horrível a entrevista, o gerente da empresa veio me entrevistar. Eu saí de lá tão… As perguntas que ele fez: “Qual a sua religião?” “Faça uma redação sobre o seu posicionamento político.” Só faltou perguntar se eu era gay ou hétero, só faltou isso, cara. Eram perguntas tão absurdas que eu falei “meu Deus do céu, o que eu estou fazendo nessa empresa?” Aí eu saio de uma entrevista dessa e entro em uma outra empresa. Lógico, foi bem diferente na TecBan, mas imagina, eu estava desempregado na época. A outra empresa perdeu o contrato, demitiu todo mundo. Passei um tempo desempregado, até conseguir outro emprego; até demorei a procurar, porque nesse mesmo período o meu pai…
Eu nem acabei falando isso, vou resumir. O meu pai sofreu um infarto, então eu passei meses ajudando a cuidar dele, pagando plano de saúde com a recisão do trabalho. Minha irmã sem trabalho, meu pai sem renda nenhuma, ele era autônomo, então praticamente… Eu, dividindo apartamento com um amigo meu, tive que manter minhas contas e as contas da casa dos meus pais. Pagava 1500 reais de plano de saúde, para você ter ideia, fora as contas, as despesas. A família ajudou um pouco, mas eu entrei quase com tudo, praticamente.
Nessa época, quando fiquei desempregado, meu plano era ir para a Irlanda fazer intercâmbio, mas aí o meu pai adoeceu, então toda a minha renda e atenção foi voltada para a família. E depois conheci Bruno, então acho que o destino era não fazer intercâmbio, era ficar aqui cuidando de meu pai, e na sequência conhecer Bruno. Foi engraçado, logo que o meu pai ficou bom ele voltou para casa, começou a fazer fisioterapia; eu conheci Bruno, depois arrumei um emprego, as coisas foram caminhando… Desculpa, eu entrei em um assunto…
(01:43:11) P/1 - Não, vamos pelo desvio mesmo. Me fala como você conheceu o Bruno.
R - Eu conheci Bruno em um show do Nando Reis. É engraçado falar isso, porque desde a minha adolescência, desde quando eu, sei lá, tinha quinze anos, eu era muito fã da Cássia Eller. No ano em que ela faleceu ela esteve aqui em Recife; com quinze, dezesseis anos fui para o show dela. Meu pai deixou, comprou ingresso. Fui louco porque eu era fã dela, do acústico dela, e ela morreu no mesmo ano. Continuei escutando a Cássia, o Nando, fui para vários shows do Nando Reis - vários, do luau na praia aqui, um luau que ele fez, [a] vários festivais; ia para o interior, para [ver] o show dele.
Nesse período o meu pai ainda estava se recuperando, eu estava desempregado, só que graças a Deus eu tinha uma grana boa guardada, deu para eu me manter e manter a minha família. Só que eu estava muito mal na época - meu pai doente, eu desempregado, relacionamento não dava certo - então eu fui com um casal de amigos héteros e uma amiga minha, essa minha amiga que é professora, que é minha amigona, minha parceira. Fomos para o show do Nando Reis, open bar. “Vamos para o show do Nando Reis?” “Bora, mais um”, porque eu já tinha ido para vários.
Engraçado, quando a gente desce do Uber, Bruno estava encostado no muro, sozinho. Ele foi para o show do Nando Reis sozinho. Ele ia com uma pessoa que tinha conhecido, mas acabou que brigou [com a pessoa] e foi só. A gente trocou olhares, aí minha amiga percebeu e começou a tirar onda. [Eu falei:] “Eu não vim para o show para paquerar, não. Vamos curtir o show, eu quero curtir com vocês.” Ela ficou perturbando.
Tem até uma música… É engraçado falar isso, provavelmente vocês não conhecem um brega daqui - a gente chama de brega - que é a música “olhou, te olhei, paquerei, paquerou”... Ela ficou tirando uma comigo em relação a essa música. Eu: “Para, Elvinha, deixe de onda. Vamos entrar.”
Ela ficou lá, curtindo o show. Quando menos se espera,Bruno aparece perto da gente. Aí a minha amiga: “Vai lá, falar com ele.” “Eu não vou, eu não quero conhecer ninguém. Meu objetivo aqui é curtir o show com vocês, com meus amigos.”
A gente ia buscar cerveja, voltava, e ele estava lá. [Pensei:] “Sabe de uma coisa? Eu vou lá, falar com ele”.
“Está sozinho?” O tempo todo eu o via sozinho. “Realmente, estou sozinho.” “Vamos lá com meus amigos.” Apresentei, ele ficou conversando, brincando, e a gente ficou junto. Só que a festa era open bar, open bar normalmente ninguém sai bem da festa. Na saída do show, o menino não conseguia nem ficar em pé - ele, né? Eu ainda estava meio consciente. Ele tentando pedir o Uber e a minha amiga, doidinha já: “Você vai deixar ele ir embora assim, desse jeito?” Eu fiz: “Eu conheci ele aqui na festa” “Ele vai para a sua casa, junto com a gente.”
Na época, eu dividia apartamento com meu amigo, e meu amigo estava viajando. Eu estava sozinho no apartamento. “Amiga, não, acabei de conhecer o cara.” “Não, você não pode deixar ele ir embora sozinho assim, ele vai para a sua casa com a gente.” Eu digo, “tá.”
Todo mundo bêbado. Entrou todo mundo no Uber. Quando chegou no apartamento todo mundo tomou banho; ele apagou, deitou lá na minha cama, no meu quarto. Ela e o outro casal foram dormir no outro quarto. Depois que perceberam a loucura que a gente fez. “A gente obrigou o Anderson a trazer um desconhecido para a casa dele. Se ele for um assassino, vamos fazer o seguinte: vamos trancar a porta do quarto; se morrer, só morre o Anderson!” Ó a cabeça deles, estou falando isso porque foi engraçado.
No outro dia, todo mundo sóbrio, a gente começou a conversar. Eles contaram essa história pra gente, pensaram isso. Realmente, eu não conhecia Bruno; podia ser qualquer pessoa. Loucura, né, todo mundo bêbado, trazer uma pessoa estranha para dentro de casa.
Enfim, depois disso a gente foi se conhecendo mais. Ele estava no período de separação também, tinha passado nove anos casado, em um relacionamento bem abusivo, então a vida dele estava bem difícil. Eu, desempregado e ele, com problemas emocionais. Ele tinha saído da casa que tinha morado com o rapaz, a casa que ele tinha comprado. A gente foi se conhecendo e um foi ajudando o outro. Eu dei muita força para ele, fui atrás de um advogado para ele fazer a separação litigiosa - o rapaz não queria [a separação].
A gente foi construindo essa relação. Com menos de um ano a gente resolveu morar junto. Praticamente expulsei meu amigo do apartamento para o Bruno ir morar comigo, e com menos de um ano, sim.
Nesse período, no segundo mês, a gente se conhecendo… Ele é carioca, mora há doze anos aqui em Recife, mas veio para cá porque é militar da Aeronáutica. Veio morar aqui em Recife [por] transferência. [Com] um mês que a gente estava se conhecendo, [ele disse:] “Estou indo para o Rio no mês que vem. Comprei uma passagem para tu ir comigo, conhecer a minha família”. “É o que, menino? Não, calma? “Não, vamos conhecer a minha família”. Então ele já foi atropelando o tempo,
Nesse andar da carruagem, com um mês fui conhecer a família dele, com seis meses a gente começou a morar juntos. Acho que com nove, dez meses, mais ou menos - desculpa, nove - a gente resolveu fazer a festa, vamos dizer assim, que foi oficializando a nossa união. Foi incrível, fantástica a festa; a família do Rio veio para cá.
Depois de um tempo a gente saiu desse apartamento. Hoje a gente mora na Vila Militar, na entrada. Na época ele morria de medo, tinha muito medo; depois, com muito trabalho, com terapia, a gente conversando, ele criou coragem [e] deu entrada porque era um direito. Para morar na vila tem que ser casado, somos casados, então ele deu entrada [no pedido].
A gente veio para cá com muito receio; graças a Deus nunca sofremos nada, aqui é tranquilo. Inclusive tem um casal aqui no nosso prédio, duas meninas, então é isso.
Em homenagem a nossa relação - é todo um contexto, viu? - quando a Cássia… Até hoje eu gosto muito dela, escuto muito Nando Reis. Fiz uma tatuagem que faz referência a tudo isso. Está aqui no pescoço; eu vou mostrar, não sei se vocês conseguem visualizar.
(01:50:14) P/1 - Dá para ver, sim.
R - É um braço militar e um All Star, porque é aquela música, All Star…. Inclusive foi a música-tema da nossa festa, que é a frase “estranho seria se eu não me apaixonasse por você”.
Hoje o nosso casamento… Eu aprendi muito com ele, muito a questão da conversa. A gente nunca brigou. Tem os conflitos, é normal dentro de qualquer relacionamento os problemas, a família, o financeiro, mas a gente sempre senta muito para conversar as situações. Nunca brigar, nunca discutir ou agredir verbalmente o outro; sempre conversar, dialogar. A gente está junto há cinco anos, e mais uma vez eu falo: é engraçado, eu só agradeço a Deus, à vida, porque é uma pessoa incrível, eu não tenho… É uma pessoa muito dedicada à relação, não é à toa que foi casado [por] nove anos antes de mim, mas foi uma relação abusiva que ele viveu. É uma pessoa totalmente dedicada à relação, a minha família.
A gente tem cinco bichos dentro de casa, três gatos e dois cachorros, fora as plantas, eu estou enchendo a casa de planta. Como eu falei anteriormente, meus pais são loucos por ele. Minha irmã, hoje um dos melhores amigos dela é o meu companheiro; ela o adora, conversa muito com ele, brinca muito com ele: Às vezes vem aqui pra casa, começam a escutar música, começam os dois a dançar, pular dentro de casa; eu fico só olhando pra cara dos dois, os dois pulando parecendo criança, mas é isso.
Foi assim que eu conheci Bruno, no show do Nando Reis, toda essa história que eu falei.
(01:52:12) P/1 - Engraçado, você falou que ele quase não foi, porque ele brigou. Ele te contou como é que foi essa decisão dele de ter ido? Porque se ele não tivesse ido, provavelmente vocês não teriam se conhecido.
R - Sim, sim. Ele estava ficando com um rapaz já há um tempo e eles resolveram ir para o show do Nando Reis, só que aí eles brigaram, se desentenderam e ele decidiu: “Eu vou”. O rapaz acabou indo também e esbarrou com ele lá, a gente já estava junto. Ele decidiu: “Não vou deixar de ir.” Foi só ele para o show e a gente se conheceu.
Acho que era destino mesmo da gente se encontrar, enfim, a gente se dá muito bem. As pessoas que passam na nossa vida não são por acaso, até aquelas que já não estão na nossa vida, mas se estiveram na nossa vida é porque ensinaram algo pra gente, e a gente ensinou algo a elas. A gente se dá muito bem, não existe perfeição, mas todos os problemas que existem, a gente tem uma facilidade muito boa [de resolver]. por isso que a família também abraça tanto a gente, os amigos. Até amigo meu fala: “Anderson, que bom que você conheceu o Bruno”, colocando ele um pouco no pedestal, porque realmente ele mudou muito a minha vida, eu sei que eu mudei a dele. Ele me mudou muito, só agregou coisa boa, tanto de relacionamento, quanto de aprendizado para mim mesmo. Muita coisa eu aprendi com ele. É isso, uma pessoa incrível na minha vida.
(01:54:07) P/1 - Anderson, você e o Bruno tem planos para o futuro, para a sua carreira, para a sua vida em geral? O que você deseja?
R - Eu estou correndo atrás dos meus estudos, que eu tinha deixado um pouco para trás, vou retomar. Quero muito adotar uma criança; ele ainda está trabalhando isso, então tem que acontecer quando os dois estiverem muito certos disso. Como ele ainda não tem certeza se é isso o que ele quer, a gente tem conversado bastante sobre isso e eu tenho que respeitar o tempo dele. Não posso exigir nem cobrar isso dele, porque ele tem que estar confortável também, mas eu particularmente sonho muito em ser pai. Até brinco com ele, me imagino levando para a escola, passeando na praia. Eu sou muito besta para essas coisas, ele começa a rir, mas ele ainda não se sente preparado para isso, acredita que ainda não bateu aquela coisa: “Vamos adotar.”
A gente tem um amigo em São Paulo que o irmão dele… Uma vez a gente foi para a casa dele de férias. Esse amigo nosso é casado e adotou uma criança, conversou com a gente, a gente conheceu o filho dele. Enfim, eu pesquiso páginas na internet, sigo algumas redes sociais de adoção, casais homoafetivos que adotaram. Eles fazem campanha incentivando outros casais a adotar, então mostro para ele documentários, sempre estou agregando mais informações e sempre passando para ele também, para ele entender. Mas é um sonho, ainda não está no planejamento. É um sonho que eu quero muito realizar.
E a gente crescer mais, ele está fazendo a graduação dele; apesar dele ser militar de carreira, ele é biomédico, é o segundo sargento biomédico. [Ele] pensa em trabalhar nessa área de obstetra, está fazendo uma graduação.
Enfim, a gente quer construir algo juntos. Hoje a gente já tem, mas a gente quer construir muito mais. Tem a nossa casinha, mesmo sendo vila do armazém, tem o nosso cantinho. Tem a nossa vida, tem a nossa família, que é muito mais unida hoje. A família dele vem para cá, passa dois, três meses com a gente, querem vir morar aqui para ficar perto da gente, agregar mais a família, e meus pais se dão muito bem com a mãe e o padastro dele. A minha irmã tem uma afinidade, é engraçado, a irmã dele e a minha irmã se dão muito bem. É incrível. Elas se conheceram há quatro anos atrás no Recife, a Érika veio aqui depois de muito tempo e elas se dão muito bem, são muito amigas, se falam sempre. Quando a Érika vem para cá, a irmã dele, elas saem juntas. Como a vida é engraçada!
É isso, os planos são agregar mais estabilidade financeira, e para mim nesse momento é ter um filho - dois, quem sabe, (risos) - mas eu quero adotar. Eu queria ter um filho do meu sangue, mas eu penso que tem tantas crianças querendo um lar. [Quero] dar oportunidade a uma criança. Eu não falo nem de bebê, acho que recém nascido tem muito mais oportunidade de ter uma família do que criança de quatro, cinco, seis anos. Tenho visto bastante, tenho buscando bastante matéria sobre isso, documentário, reportagens. Eu sempre estou fuçando, buscando para poder ver outras histórias, compreender mais sobre isso, e vejo cada vez mais.
É esse nível que eu quero, me dar oportunidade de amar; pode ser que originalmente não venha do meu sangue, e também dar oportunidade daquela criança ter uma família, uma oportunidade que ela perdeu, não teve.
Um dos planos do futuro, com certeza, é manter a nossa relação cada vez mais sólida.
(01:58:46) P/1 - Me conta uma coisa. Como é que foi a pandemia para você, para o Bruno, para a sua família? Como é que vocês encararam, como foi ou está sendo essa experiência para vocês?
R - No meu trabalho e no dele, a gente não teve pandemia. Na verdade, para ele foi bem mais sofrido. Como ele era da saúde, ele viu muita coisa de perto. Ele chegava em casa mal, porque quando ele pegava os plantões… Ele trabalha em laboratório, mas quando ele pegava os plantões era bem sofrido, de ver várias mortes em uma noite só. Colegas de trabalho, pessoas mais novas que ele, que trabalhavam com ele, morreram por causa do covid.
Para mim o meu trabalho não mudou nada - lógico, com todos os cuidados, a empresa forneceu tudo. Eu trabalhava na rua, tinha muito contato na rua com as pessoas, então a empresa deu todo o material possível e impossível pra gente se cuidar. Meu trabalho não mudou em nada, a gente só se isolou mais dos amigos, da família - principalmente Bruno, porque como ele estava o tempo todo no hospital, aí é que a gente não podia ver meus pais. A gente passou meses sem ver meus pais, só falando por telefone.
Eu morria de medo dos meus pais saírem na rua. Meu pai tem muito problema de saúde, tem uma lista de problemas de saúde, então se meu pai pegasse ele ia durar dias. Eu não estou exagerando, não, meu pai tem muito problema de saúde. Hoje o meu pai, [com] 65 anos, nem anda direito; ele precisa andar com uma muleta. [É] diabético, hipertenso, tem desvio na coluna, tem problema no pulmão. Ele nunca fumou na vida, mas tem problema no pulmão. Eu até falo para ele [que] talvez, como ele trabalhou muito em automotiva, não usava EPI, ele respirava muitos gases; é a única explicação, meu pai nunca fumou e tem problema sério no pulmão. Os gases dos automóveis, motores… Não tem outra explicação para isso.
Foi tenso, sim, foi bem difícil aquela coisa da saúde mental, terapia à distância, pelo celular. A gente teve que manter mais do que nunca, principalmente ele, conversando muito. Teve um momento que o colega dele de trabalho faleceu, e ele ficou muito mal, muito mal mesmo; eu tive que dar a maior força para ele, porque ele [dizia:] “Anderson, poderia ser eu.”
Logo depois vieram as vacinas, veio aquele pouquinho de esperança. Depois de meses eu pude ver os meus pais. Para mim foi muito forte aquilo, eu sou muito apegado a eles. Como eles moram em Recife, é muito diferente da família do Bruno. Por exemplo, sábado agora eu já falei para eles, “vem aqui pra casa, vem aqui em casa um pouquinho”. Eu sempre quero estar perto deles, quero muito aproveitar a velhice deles. Eles vão seguir primeiro, no ciclo natural da vida, então mais do que nunca eu quero estar próximo deles, sempre que possível levá-los para passear, trazê-los aqui, poder fazer basicamente o que o meu pai fez muito com a família. Tento sempre me dedicar muito a eles, então na pandemia ficar sem vê-los, sem estar presente foi difícil para mim e para eles. Mas graças a Deus eles estão bem.
Eles não pegaram covid; pegaram esse ano, mas já com a 4ª dose, [no] mês passado, se eu não me engano. Mesmo com todos os problemas de saúde que o meu pai tem, graças a Deus nada de hospital; tratou em casa, pegou mais leve. Eu tenho certeza, se o meu pai tivesse ido naquela época não tinha sobrevivido, então eu fui bem duro com ele. A minha irmã que mora com eles, também. Fui bem crítico em relação aos cuidados, mesmo à distância eu brigava com eles [sobre] a questão de ir na rua. Nesse sentido eu cheguei a brigar com a minha irmã; [é] mais difícil com ela, porque como ela é jovem, então ela ia na rua resolver as coisas. [Eu brigava] pra ela ter todos os cuidados possíveis e impossíveis por causa deles, principalmente por causa do meu pai.
Eu não queria passar por aquele sofrimento que outras pessoas estavam passando. Já era doloroso ver as famílias passando. Eu não podia passar por aquilo. Mas graças a Deus a gente conseguiu superar toda essa situação.
O que dói hoje ver é o reflexo da pandemia, e ainda a questão política. É tanta gente passando necessidade, tanta gente desempregada. Eu falo porque como trabalho na rua, eu vejo muitas situações, muito morador de rua; estou trabalhando nos espaços, as pessoas sinalizando para falar, desabafar, sabe? O pouco que ganham mal dá para sobreviver, as coisas estão muito caras, realmente, então é doloroso ver o reflexo do que está hoje o país, essa situação. Mas é isso, a gente vai caminhando e tentando fazer a nossa parte.
(02:04:18) P/1 - E para quem for ver essa sua entrevista, você gostaria de deixar alguma mensagem? O que você gostaria de deixar para o futuro, digamos assim, para as pessoas mais jovens?
R - Olha, eu lembrei de uma situação recentemente com uma mulher que eu conheci, uma colega. Falando um pouco mais do que eu vivi, [que] os pais tentem compreender mais os filhos, ser amigos e permitir os filhos se abrir mais com eles.
Por que eu estou falando isso? Essa minha amiga tem dois filhos, um de onze e uma de nove anos. Ela falou que a filha foi falar para ela que gosta de meninos e meninas. Ela falou assim para mim: “Eu acho que isso é só moda, né? Acho que é influência dos jovens de hoje.” E eu falei para ela: “Não fala isso não, porque nessa idade eu já sabia, eu já sentia isso. Já que sua filha teve coragem de desabafar com você, seja amiga dela, se permita ser amiga da sua filha. Não diga que isso é influência.”
O que eu quero dizer é que os pais acolham seus filhos, não desamparem seus filhos; não julguem, não permitam que eles passem o que eu passei - tudo o que eu falei aqui para você, de sofrer, me esconder, de passar a maior parte da minha vida pensando em me matar. Hoje eu paro para pensar, imagina uma pessoa… É tanto sofrimento que você tem guardado dentro de você, de chorar e pensar: “Não é melhor eu tirar minha própria vida para silenciar esse sofrimento”, de você imaginar que seus pais não iam aguentar lhe aceitar… Acredito que a mensagem é essa, que os pais acolham seus filhos nesse sentido, e não abandonem, não rejeitem, não recriminem. Abraçar seus filhos, amar seus filhos do jeito que eles são, ser amigos deles, apoiar, porque já basta o mundo querer crucificar a gente, já basta o mundo querer pisar na gente, jogar pedra, então ter pelo menos o apoio dos nossos pais…
É muito pesado, é muito difícil a gente lidar com o mundo sem ter o apoio dos nossos pais, que a gente ama tanto. Eu cheguei a endeusar os meus pais, então eu acredito que é essa a mensagem que eu quero deixar: mais amor para seus filhos, para que ele possam, com o amor que eles têm de vocês, lidar com o mundo que não é fácil. .
(02:07:17) P/1 - Anderson, como é que foi contar um pouquinho hoje da sua história para mim?
R - Foi muito legal. [Fiquei] um pouco nervoso. [É] engraçado lembrar certas coisas que eu passei, achei engraçado pelo fato de eu ainda me emocionar com isso. Não imaginava que puxar coisas do passado me trazia tanto gatilho hoje em dia, trazer tantos gatilhos de coisas do passado, tanto sentimento. Ao mesmo tempo foi bom, porque eu percebi que apesar de me emocionar com isso, me mostra que hoje eu sou uma pessoa mais forte. Lembrar daquilo que eu passei, mas [que] hoje não me afeta mais, saber que hoje eu sou mais seguro de mim mesmo… Eu tenho mais amor próprio, eu não tinha antes; eu tenho uma segurança, é legal saber [disso].
Também, como eu falei… [É] plantar sementinha. Espero que o que eu falei hoje, o que a gente conversou hoje, sirva de exemplo para outras pessoas que ainda não conseguiram enxergar um filho, ou se enxergar como pessoa, principalmente; se enxergar como pessoa que ela é, que tem direito de ser feliz, que tem direito de ser respeitada, tem o direito de se amar e amar quem ela queira amar. Espero que esse depoimento de hoje ajude nessa reflexão, tanto o respeito a si próprio, como o respeito aos outros. Espero que traga, que ajude nesse sentido, contando um pouquinho da minha história, a minha vivência.
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