Meu ex-marido marcou uma data pro casamento, 27 de julho. Ele foi a minha casa e disse a minha mãe que tinha feito um teste, tinha pegado o meu xixi, tinha colocado em cima de um sapo, e eu estava grávida, e eu tinha que casar. Isso foi um choque pra mim.
Então a gente casou no dia 27 de julho de 1971, tinha dezesseis anos, e na realidade fui eu e ele pra igreja e ninguém da nossa família, pra você vê que desastre, duas crianças se casando. Eu não tinha nenhuma consciência pra vida. Naquela época eu não tinha informação nenhuma, eu pensava que se uma moça desse um beijo no rapaz ela ficava grávida. Eu não tive nenhuma educação sexual, nada. Bem, mas fomos pra igreja e casamos. Ele parecia gostar muito de mim, era o que todo mundo pensava, e eu também pensava.
Foi um desastre total, do começo ao fim. No terceiro dia de casada, chega uma moça que era vizinha da minha mãe, aí entra no escritório onde eu estou trabalhando e diz: “Eita, Baco tava no maior amor com Fátima, tavam se beijando”.
Eu me sentia tipo uma barata, um bicho sem valor, uma coisa asquerosa, eu me sentia sem vida. A minha primeira gravidez por exemplo, eu só tinha um único vestido. Eu passei os nove meses com esse vestido, eu não tinha outra roupa. Ele trabalhava na Caixa Econômica Federal e ganhava um bom dinheiro, mas… Quando nasceu a minha primeira filha, ela só não ficou nua porque minha tia deu umas roupinhas, uns paninhos, umas fraldas de tecido, e minha tia levou no hospital, porque a menina nasceu nua e ficou nua, não tinha nada, nem um pano pra colocar em cima. Ele nunca comprou nada pra um filho.
Ele não tinha o menor carinho com a minha filha, eu nunca vi ele pegar ela no colo e dizer: “Ah que menina bonitinha”, e ela ainda usava roupas usadas das primas, porque eu não conseguia trabalhar, tomando conta de casa, da criança, e emprego lá era muito difícil. E ele trabalhava na Caixa Econômica Federal, ganhava um bom...
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Meu ex-marido marcou uma data pro casamento, 27 de julho. Ele foi a minha casa e disse a minha mãe que tinha feito um teste, tinha pegado o meu xixi, tinha colocado em cima de um sapo, e eu estava grávida, e eu tinha que casar. Isso foi um choque pra mim.
Então a gente casou no dia 27 de julho de 1971, tinha dezesseis anos, e na realidade fui eu e ele pra igreja e ninguém da nossa família, pra você vê que desastre, duas crianças se casando. Eu não tinha nenhuma consciência pra vida. Naquela época eu não tinha informação nenhuma, eu pensava que se uma moça desse um beijo no rapaz ela ficava grávida. Eu não tive nenhuma educação sexual, nada. Bem, mas fomos pra igreja e casamos. Ele parecia gostar muito de mim, era o que todo mundo pensava, e eu também pensava.
Foi um desastre total, do começo ao fim. No terceiro dia de casada, chega uma moça que era vizinha da minha mãe, aí entra no escritório onde eu estou trabalhando e diz: “Eita, Baco tava no maior amor com Fátima, tavam se beijando”.
Eu me sentia tipo uma barata, um bicho sem valor, uma coisa asquerosa, eu me sentia sem vida. A minha primeira gravidez por exemplo, eu só tinha um único vestido. Eu passei os nove meses com esse vestido, eu não tinha outra roupa. Ele trabalhava na Caixa Econômica Federal e ganhava um bom dinheiro, mas… Quando nasceu a minha primeira filha, ela só não ficou nua porque minha tia deu umas roupinhas, uns paninhos, umas fraldas de tecido, e minha tia levou no hospital, porque a menina nasceu nua e ficou nua, não tinha nada, nem um pano pra colocar em cima. Ele nunca comprou nada pra um filho.
Ele não tinha o menor carinho com a minha filha, eu nunca vi ele pegar ela no colo e dizer: “Ah que menina bonitinha”, e ela ainda usava roupas usadas das primas, porque eu não conseguia trabalhar, tomando conta de casa, da criança, e emprego lá era muito difícil. E ele trabalhava na Caixa Econômica Federal, ganhava um bom salário, tinha plano de saúde, mas eu nunca usei esse plano de saúde.
Eu só sei que minha vida foi isso, se você me perguntar se eu tenho um momento, um só momento de alegria com esse homem, eu não tenho. Foi só decepção, do primeiro dia ao último. Graças a Deus eu to divorciada, já tem vários anos, mas eu passei 33 anos casada com esse homem. Em princípio eu vou “condenar” a religião, minha família é muito religiosa, teve essa lance do padre me dizer que uma mulher que se separa do marido não é mais nada, não tem mais valor nenhum, isso pesa drasticamente numa adolescente. E de certa forma você acredita porque é um senhor mais velho, com mais experiência, sabido, é um padre que ta dizendo um negócio desse.
Eu fui vivendo nessa… Eu considero que eu tava numa prisão, numa espécie de prisão que eu não via luz, em canto nenhum existia nem túnel, onde eu procurasse uma luz. E a minha família pobre, eu não tinha a quem pedir socorro, eu não tinha a quem pedir ajuda, eu não tinha como trabalhar, principalmente com três meninos pequenos. Eu sei que eu chorava muito e nessa época eu escrevia muito, eu passava a noite escrevendo. Eu tenho um bocado de poesias que eu escrevia, que se você pegar é só sofrimento, é só baixo astral.
Eu devo ter uns 50 cadernos ou mais com algumas coisas que eu escrevia a noite. Eu parava pra raciocinar um pouco e eu começava a escrever. E um dia desses eu peguei e comecei a ler assim, e eu não suportei. Eu disse: “Eu suportei tudo isso?”. Eu não consigo mais ler tudo o que eu escrevia, o que acontecia. Tinha das traições… As vezes ele sentia prazer em chegar em casa e contar que foi pra tal motel, aí dizia o nome da pessoa, e que fez isso, isso, isso e aquilo outro. Então eu acho que ele sentia prazer em torturar, porque eu considero isso uma tortura. Mas eu acho que o prazer maior dele era me torturar e realmente ele me torturou a vida inteira, foi tortura mesmo. Eu não tenho outra palavra pra dizer, tortura espiritual.
Eu lembro que teve uma época que eu tava muito atormentada, porque a namorada dele ia na minha porta buscar ele, todo meio dia, na hora do almoço, e todo mundo sabia e eu também sabia, mas o que eu podia fazer? Por isso que eu digo, é um tipo de prisão onde você não vê nenhuma saída, não existia nenhuma saída pra minha pessoa.
Então nessa época eu disse: “Eu tenho que mudar de vida, eu não posso ficar assim não”. Ia ter um concurso de banco lá na cidade e eu pedi à ele um dinheiro pra matrícula, que era 20 reais, mas eu não tinha e pedi pra ele me dar uma apostila. Aí ele disse: “É, 20 reais, você não passa mesmo”, como quem diz assim: como é que uma mãe de família que passa o dia inteiro trabalhando, cuidando de três filhos, de casa, cozinhando, lavando, passando, e ainda com uma namorada do marido que vai buscar ele na porta dela, como é que essa mulher tem cabeça pra passar num concurso de banco. Impossível, né? Naturalmente é uma coisa que não se espera.
Aí eu comecei a estudar, colocava os três meninos pra dormir oito, oito e meia e eu começava a estudar e eu não saía dali. Aí eu caía em cima da apostila, pronto, aí ali eu descansava um pouquinho, aí dali a pouco já tava na hora de preparar a casa. Eu passei três meses estudando. O concurso foi em Serra Talhada, mas abrangia várias cidades ali na região, então era muita gente concorrendo. E eu tava fora do mundo, eu tava dona de casa. Mas eu queria passar. Aí eu sei que eu fiz a prova, e eu te juro, só passaram duas pessoas, e a melhor nota foi a minha. Quer dizer, eu estava decidida.
Eu só fiquei suportando as traições dele porque a religião e a família, por eu ter crescido sem pai, pesaram muito, então eu fiquei suportando até que ele arranjou uma jovem. Ele se aposentou, arrumou uma jovenzinha, graças. Aí sim eu comecei a viver, porque até então a minha vida toda foi pautada nessa falta de respeito, abuso.
Aí eu comecei a trabalhar no banco, aí eu me senti feliz, agradecida e eu agradeci muito a mim mesma pela minha força, garra, determinação, pelos meus filhos, porque eu morria de vergonha que as minhas filhas não tinham roupa, andava que nem umas meninas de rua. Aí eu disse: “agora eu vou comprar roupa pra elas, vou comprar roupa pra mim” que eu também não tinha roupa. E quando eu recebi o meu primeiro salário, juro por deus, eu queria devolver ao banco, eu queria chorar, era muito dinheiro. Foi muito, muito, muito bom, foi muito gratificante.
Após o divórcio eu acho que eu comecei a viver, porque eu gosto de cantar, dançar, eu amo o carnaval, e eu nunca pude fazer certas coisas. Eu gosto de ouvir música. Eu tinha muita dificuldade com o meu ex-marido porque eu ficava no computador fazendo qualquer coisa e ouvindo música. Aí ele chegava e desligava o aparelho de som. E às vezes eu tava cantando, eu gosto de cantar, eu ficava cantando qualquer música que eu gostasse. Aí ele chegava e ó, a mão na minha boca. “Peraí, peraí que eu quero falar contigo”, mas não era, era só pra eu não falar. Porque quando eu tirava a mão eu dizia: “O que você quer dizer?”, “Não, era um negócio que eu ia dizer, mas eu me esqueci”. Quer dizer, não era, era só pra eu não cantar. Ele não admitia que eu cantasse, ele não admitia que eu sorrisse, que eu fosse na casa de uma vizinha.
Eu não sei o que se passava na cabeça dele, se era algum tipo de doença, pode ser, não sei se é porque ele sabia que não merecia confiança e que também não confiava nas pessoas, é outra coisa que também pode ser, eu não sei. Sei que era assim. Eu não podia, por exemplo, eu quero ir ao supermercado, eu nem tentasse ir sozinha, porque eu não ia. Ele tinha que ir comigo. Eu não podia sair de casa sozinha pra nada. O que mais me constrangia, eu vou no ginecologista, e ele entra na sala comigo, eu ficava passada. Isso me sufocava, eu vivia fazendo tratamento com psiquiatra, de outra forma eu não conseguia aguentar. Eu tomava remédio mesmo pra depressão, eu tentei suicídio mais de uma vez.
A primeira coisa que eu fiz depois de me separar foi ir ao teatro, porque se eu dissesse: “Eu vou estudar teatro”, ele diz: “Pronto, é puta, prostituta, amarra, assassina”. Então a primeira coisa que eu fiz foi teatro. Assim que ele me deixou, eu pensei: agora eu vou viver. O teatro eu comecei no mesmo ano que ele me deixou e no ano seguinte eu comecei dançando nesses blocos de carnaval.
Eu me sentia muito sufocada. As vezes ele chegava em casa e eu tava chorando, e ele perguntava o que foi, e eu falava: “Nada, nada”. Eu não sabia dizer, eu não tinha o que dizer, ele sabia porque eu tava chorando, eu não tinha vida. Eu não ia pra canto nenhum.
Eu confesso que foram 33 anos de suplício, de tortura, de tortura mental, tortura psicológica, de mentiras, de falsidade. E eu sabia que ele me traia, pra mim foi um inferno. Se eu existe inferno eu vivi no inferno durante 33 anos. Eu não tinha nada que eu dissesse: “A minha vida vale a pena”, quer dizer, exceto os 3 filhos. Mesmo com os filhos eu vivia com o maior cuidado, porque ele batia nas crianças. Ele foi um pai carrasco, asqueroso, ele foi um pai nojento.
Quando eu me separei eu vim saber o que é a vida, ter responsabilidade com os meus atos, com o meu ser, com a minha vida. Porque uma pessoa que casa com 16 anos, que foi criada no sertão, eu não sabia de nada do que era a vida, eu não sabia das possibilidades que existem, nunca nem questionei. Porque se eu soubesse o que eu sei, talvez eu tivesse enfrentado o mundo com mais garra, sem medo. Porque você não quer aceitar a violência externa, a violência da sociedade, a sociedade vai te chamar disso, disso, disso e daquilo outro. Aí você fica num relacionamento aceitando todo tipo de violência, onde você nem questiona. Chega um ponto que você não vê, cansou, parou e não tem mais nem o que questionar, é aceitar e pronto.
Mas agora eu descobri o teatro, e é onde eu realmente me realizo, é um sonho de vida, é viver. Hoje eu pergunto: “como eu conseguia viver sem o teatro?”. Eu acho que… Eu acho não, eu tenho certeza que eu comecei a viver depois que eu me separei, eu tenho certeza absoluta.
Hoje eu sei o que é viver, viver uma vida boa, porque eu não tinha vivido até então. Mas hoje eu não consigo, às vezes eu acho que eu vou ficar cheia de prega logo, porque eu só vivo rindo, é uma coisa eu adoro fazer, eu faço, eu nem percebo e eu já to rindo. Eu sempre vivo rindo, eu não sei tá de cara fechada, mas isso é hoje, porque antes eu vivia chorando, com certeza.
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