Programa Conte a sua História
Depoimento de Josephina Zagari Bello
Entrevistada por Carol Margiotte e Gabriela Ramos
São Paulo, 20/09/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH _HV697_Josephina Zagari Bello
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Dona Josephina, bom dia!
R – Bom dia!
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje.
R – Obrigada, eu.
P/1 – É um prazer receber a senhora.
R – Obrigada, eu.
P/1 – E, para começar, o seu nome completo.
R – Josephina Zagari Bello.
P/1 – O local e a data de nascimento da senhora?
R – 26 de julho de 1927.
P/1 – Em?
R – Julho.
P/1 – Qual o local em que a senhora nasceu? A cidade?
R – Mineiros do Tietê.
P/1 – São Paulo, não é?
R – São Paulo.
P/1 – E a senhora sabe por que os seus pais lhe batizaram de Josephina?
R – O site da cidade eu não lembro.
P/1 – A senhora sabe por que os seus pais lhe deram o nome de Josephina?
R – Porque a mãe do meu pai chamava-se Josephina. E meu avô chamava-se José. Então, naquela época, eles gostavam de pôr, quando nascia uma criança... De pôr o nome dos avós para continuar a geração. Assim, a minha avó chamava-se Josephina e o meu pai pôs o nome de Josephina. Esse meu irmão que é falecido, se estivesse vivo, hoje estaria com cento e tantos anos. Puseram o nome de José, porque o meu avô chamava-se José. Então, puseram esse nome. Tanto que era um nome tão difícil, difícil, que Josephina era difícil de achar. Mas, com o tempo, a gente foi vendo. Até a gente brincava, meus avós diziam: “Puxa, Josephina é a esposa de Napoleão Bonaparte. Famoso!” Sabe? Então, tinha aqueles comentários assim. Mas ficou. E meu nome é com PH. Antigamente assinava com F, mas pelo registro é PH. Mas isso a tradição por Josephina. Pelos meus avós.
P/1 – E os seus pais contavam para a senhora como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim. A minha mãe contava para mim. Meu pai já era mais um pouco recuado, porque meu pai trabalhava com carroça, com burro, sabe, trabalho em roça, ele era mais um pouquinho... Mas a minha mãe contava todo o passado para a gente, explicava as coisas e, com o tempo, com o tempo eu fui evoluindo, não é? Minha mãe costurava assim... Para fora, não. Para a família. Então, ela fazia vestidinho para mim, fazia terninho para o meu irmão. E a vida foi... Fomos assim... Fui crescendo, fui para a escola. Eu entrei na escola com a idade de sete anos. E tirei o diploma com dez. Naquela época, a gente tinha o estudo... Se quisesse estudar, continuar a ir ao colégio, tinha que ir para uma cidade... Fora de São Paulo, ali do interior, era Jaú. Mas a gente não tinha condições de pagar um colégio, então eu fiquei até o quarto ano só. E tirei o diploma do quarto ano, porque eu tenho o diploma do quarto ano. Não sei se a Fernanda trouxe, mas eu tenho o diploma do quarto ano também.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Francisco Zagari.
P/1 – E a mãe?
R – Domingas Miranda Zagari.
P/1 – Queria que a senhora falasse um pouco como eles eram. O que eles faziam?
R – O meu pai... Eu vou contar um pouco da vida que eu sei, dele. A gente morava nesse lugar, Mineiros do Tietê, e meus avós moravam numa esquina e meu pai morava em outra. Eram, como se diz, quarteirões, não é? E a minha mãe, para poder viver e sustentar os filhos, a minha mãe fazia muito doce para fora. Fazia cocada, pastelzinho. E um irmão meu, que é um tal de Vicente, que já é falecido, a minha mãe fazia os docinhos, punha numa bandeja e ele ia vender. A gente falava jardim porque o pessoal ia passear no jardim com os namorados. As moças iam de um lado, os rapazes iam do outro. E o meu irmão, com a bandejinha, ia vender doce. Isso me recordo, parece que estou vendo hoje. E foi assim. E o meu pai trabalhava na Prefeitura. Naquela época, a gente tirava o lixo da rua era com vassoura e uma pazinha. Então, a gente não falava... Hoje é coletor. Antigamente não, era carroceiro. Então, a gente pôs meu pai, no interior, por nome de carroceiro. Acontece o seguinte: que ele continuou essa vida e nós morávamos numa casinha mais ou menos, não das melhores, que dava para viver. E passou uma senhora e viu o meu pai na rua, varrendo ali, tirando o lixo. E essa senhora falou: “Puxa, esse homem tão bonito, pegar um serviço desse, eu estou achando que vou fazer uma proposta para ele”. Ela parou com ele: “Escuta, o senhor faz esta vida?” Ele falou: “É, faço a vida porque eu tenho três filhos, não tenho com o quê sustentar”. Ela: “Eu vou dar uma proposta, o senhor vai aceitar?” “Depende”. “Eu tenho uma fazenda. O senhor não quer trabalhar na minha fazenda? Eu ponho o senhor como colono”. Sabe o que é colono? É tomar conta dos empregados que ela tinha. Aí o meu pai falou: “Bom, eu até aceitaria. Mas eu preciso comunicar com a minha esposa, se ela consente”. Porque a minha mãe e os meus avós moravam perto. E ela não queria deixar os pais longe. Sabe? Como eles já tinham um pouco de idade... Aí, ele chegou em casa e falou para a minha mãe: “Domingas, eu tive uma proposta aí boa, só que nós temos que mudar daqui. Nós temos que morar na fazenda”. E essa fazenda chamava-se Baixão de Serra, que hoje… Aí, esse lugar chamava-se Baixão de Serra, pelo nome dessa senhora. Mas com o tempo, meu pai... Resolveram... Mudaram para lá. E eu, como estava na escola e faltava um ano para eu tirar o diploma, aí a minha mãe chegou e falou para o meu pai: “Olha...”. Ele se chamava Francisco, ela o tratava de Chico. Vou dar um exemplo de como eles se tratavam. “Chico, como é que nós vamos morar naquele Baixão de Serra, um lugar tão longe? E a menina que está na escola?” “Ah, você tira ela”. “Não posso tirar. Ela já vai tirar o diploma no ano que vem”. Aí, meu pai falou: “Mas tem que dar um jeito”. “Eu vou falar com o meu pai...” – que eram os meus avós, que é esse casal que está aí na fotografia – “E o meu pai fica com a Josephina até ela tirar o diploma”. Aí eu fiquei morando com os meus avós. Eu fiquei na cidade. E o meu pai e a minha mãe lá no Baixão de Serra, trabalhando lá. Fim de semana, eu ia. Eu chorava muito, porque queria ver os meus pais. Mas eu ia lá ver o meu pai e a minha mãe, fazer uma visita para eles. Meu pai ficou morando lá muitos anos. Passado o tempo, eu já tinha tirado o diploma, continuei morando com os meus avós. Já não queria mais morar com a minha mãe, no mato, sabe? Aí, fiquei morando com os meus avós. Morei até os dezoito anos e depois vim para São Paulo. Vou contar um pedaço da minha vida anterior. Aí, fiquei morando com os meus avós. Um belo dia, meu pai falou: “Não, nós temos que tirar a menina de lá, porque é nossa filha. Se ela ficar com o seu pai e a sua mãe, o amor que ela tem por nós vai passar, vai mudar. Eu a quero do meu lado”. “Mas é meu pai, tem que ficar lá. Eles têm idade. Deixa ficar lá”. Aí eu fiquei morando com eles, lá no interior. Só que, naquela época, eu estava com dezessete anos, era uma moça muito presa. Muito! Eu não ia em jardim, não ia em cinema, só ia em igreja. Meu avô era do tipo italianão marrudo, ele achava que a mulher não podia usar calça comprida, tinha que ser vestido, para baixo do joelho, tinha que ser tudo manga comprida. Naquele tempo antigo... Você sabe os italianos de antigamente? Queria tudo de mais rígido para a família deles. Bom, concluindo: fiquei um tempão com ele. Eu saí de lá, aí meus pais... Veio um tio meu, que morava aqui em São Paulo, chamava-se Vicente. Ele trabalhava com... Era motorneiro de bonde. Bonde, vocês devem saber o que era o bonde. Antigamente contando. Tinha o bonde e ele era o cobrador do bonde. Ele falou para a minha tia: “Puxa, o Chico...” – que era o meu pai – “... está no interior, lá naquele Baixão de Serra, vamos trazê-lo para São Paulo, você arruma um serviço aqui para ele”. O meu tio saiu aqui de São Paulo, foi lá para Mineiros do Tietê, foi lá no Baixão de Serra, onde estava o meu pai, e falou: “Chico, eu tenho um serviço para você lá. Você vai trabalhar na CMTC, vai dirigir bonde”. “Mas eu não sei”. “Mas a gente explica. É tal, explicamos”. Aí o meu pai acabou pedindo a conta lá na fazenda e veio morar em São Paulo. E nesse meio tempo eu fiquei com os meus avós. Fiquei lá. Eu estava com dezessete anos, já estava acostumada, não queria mais vir com o meu pai e a minha mãe. Fiquei lá. Tanto que quando eu completei dezoito anos, a minha avó ficou muito doente, teve uma verruga no nariz e nós viemos aqui para São Paulo para ela fazer uma cirurgia no Hospital Humberto Primo que, antigamente, a gente falava aquela musiquinha que tinha, ‘São Paulo da Garoa’. Vocês não devem lembrar dessa época, talvez. Mas é uma música que eles fizeram - ‘São Paulo da Garoa’ - que era um tempo em que havia muita garoa. Então, a minha mãe... A minha avó... Eu vim com a minha avó, lá de Mineiros do Tietê, para São Paulo. Ficamos aqui na casa da minha mãe. Fomos ao Hospital Humberto Primo, aí o médico falou: “Olha, a senhora tem uma verruga no nariz, nós precisamos queimar essa verruga”. “Mas como eu faço? Eu não moro aqui. Eu moro...”. “Não”. Aí, minha avó ficou na casa da minha mãe. E, naquela época, era muita garoa e os carros eram a oxigênio. Era um tambor que vinha atrás. Não era gasolina. Tinha gasolina, mas gasolina era muito caro. Então eles punham aquele tambor atrás do carro, era oxigênio. E nós saíamos aqui da Oscar Freire, onde minha mãe morava, às seis horas da manhã para estar no hospital... Fazia banho de luz às sete horas. E a minha avó, com aquele trânsito de sai dali, sai de lá, ela ficou resfriada, porque era muita garoa. Ela ficou doente. Deu pneumonia. Resultado: ela acabou ficando aqui em São Paulo e faleceu aqui. Tanto que meu avô e minha avó estão enterrados aqui no Araçá. Eles ficaram aí. Aí eu fui obrigada a ficar com a minha mãe. A casa lá eles venderam e eu vim morar aqui em São Paulo. Cheguei aqui, eu já... Sabe, eu era moça, não sabia da vida de nada, muito ingênua, meu avô com aquilo, minha avó: “Não pode fazer isso. Você tem que usar vestido assim. Coisas íntimas você tem que só você saber. Sua mãe não pode ficar sabendo”. Eu vou ser sincera, falar uma verdade: eu fiquei mocinha, minha mãe, ninguém ficou sabendo. Porque quando estive na escola, minha professora me chamou... Eu vou falar uma coisa aqui, não sei se vocês podem gravar isso. Eu estava na escola, estava com dez anos - de dez a doze anos - e fiquei mocinha. Não sabia o que era isso. Aí eu estava em uma classe, que era uma classe mista - metade menina, metade menino - e a gente, quando queria ir ao banheiro, não podia falar com a professora, tinha que levantar dois dedos. Então, a moça que queria ir ao banheiro levantava dois dedos e os meninos levantavam a mão. Porque era quarto ano misto. Metade mulher, metade homem. Então, eu senti uma dor na barriga, vontade de ir ao banheiro. Falei: “Ai, preciso ir ao banheiro”. Aí, levantei dois dedos, a professora mandou. Quando cheguei no banheiro, que eu vou fazer xixi, falei: “Ah, meu Deus!”. Eu comecei a gritar dentro do banheiro. Aí veio a servente, chamava-se dona Joana, até hoje eu lembro o nome dela. “O que foi, Josephina?” Eu falei: “Ah, dona Joana, eu me arrebentei por dentro”. A inocência de uma moça! Hoje não. Hoje tudo já vem certo. “O que aconteceu?” Aí eu expliquei. “Não, minha filha, vem cá que eu vou explicar para você. Você ficou mocinha. Você precisa ter cuidado com os meninos, agora”. E me deu aquela orientação que minha mãe, aqui em São Paulo, não dava para mim. “Então, com muito cuidado, chega aquele mês, às vezes vem três dias, às vezes vem oito, depende da sua menstruação, você pega...” – hoje tem aqueles “Modess”, antigamente era paninho – “... Você faz aquilo, não deixa a sua avó ver”. Então, eu fazia tudo, tudo, na surdina. Chegava aquele tempo em que eu ficava... Menstruava, tirava, lavava. Antigamente, a gente punha cinza para clarear. Hoje é Cândida. Era tudo... Antigamente era tudo ótimo. Eu tenho saudade daquele tempo. Eu lembro muito daquele tempo. E fiquei moça e minha mãe não ficou sabendo, minha avó não ficou sabendo. Ficaram sabendo quando eu fui namorar. Que esse foi meu primeiro marido, e foi o último também. Foi o primeiro namorado. Então, eu fui muito ingênua, sabe? Não ia ao cinema. Não ia a baile. Tanto que agora, pela minha idade, tem coisas que eu vejo, eu falo: “Meu Deus do Céu! No meu tempo não existia isso”. Mas agora eu penso entre mim: vai evoluindo, não é? As criancinhas que vêm vindo hoje são todas modernas. Então, são coisas que eu tenho muita coisa na cabeça. Muita coisa passada. Muitas coisas boas. Que eu me sentiria feliz se voltasse àquele tempo. Não acho falta nenhuma do tempo de hoje. Apesar de que eu sou muito a favor da mocidade de hoje. Porque hoje é tudo moderno, não é? Mas é assim. Tem muita coisa. Pode fazer as perguntas que você achar que eu possa responder, eu respondo.
P/1 – Eu tenho muita pergunta!
R – Então, vamos ver. Se for do meu alcance, eu vou respondendo todas.
P/1 – A primeira é um pedido. A senhora falou de uma música, da garoa. Canta para mim um pedacinho dela?
R – Não sei se...
São Paulo da garoa, São Paulo é terra boa.
Eh, São Paulo, eh, São Paulo
São Paulo da garoa, São Paulo é terra boa.
R – Depois tem outro pedacinho que eu não lembro. Eram dois cantores que cantavam essa música, sabe? Muitos anos.
P/1 – E a senhora lembra como foi a sua chegada aqui em São Paulo? Do dia?
R – Como foi a chegada? Sim! Eu saí dos meus avós, já vim morar na casa dos meus pais. Meu pai morava num... Era um cortiço. Hoje fala vila, não é? Era um cortiço de casas. E meu pai... A gente comprava à caderneta, não comprava a dinheiro. Era uma caderneta. Você ia lá, pedia dois quilos de arroz, um litro de leite, ele marcava na caderneta. E meu pai falou para mim: “Você vai lá na venda do ‘seu’ Antônio, compre umas coisinhas para mim”. E eu fui, com aquele medinho, sabe, dezessete para dezoito anos, uma moça formada. Eu era ainda muito jovem, muito insegura. Aí eu vi esse meu marido, sentado ali na mesa, ali no barzinho, com a perna cruzada e olhando para mim. E eu com vergonha, sabe? Eu nem conhecia moço nenhum. Aí, o dono do bar falou: “Não mexa com essa moça, não. Essa moça é de família direita. Ela não mora aqui, ela é do interior, está com os pais dela aqui”. Ele falou: “Puxa vida! Então é essa que eu vou procurar para casar porque todas que eu namorei aqui não deram certo. Eu falava uma coisa, elas aceitavam. Eu vou tentar. Vamos ver se essa moça...”. “É difícil isso!”, o dono da venda falou para ele. “Então, você vai arrumar para mim, Antônio. Veja se você dá um contorno. Quando ela vier aí, você fala que tem um rapaz que trabalha na Prefeitura...”. E, justamente, a casa em que eu morava... Meus pais... Atrás era o muro e era a Prefeitura. Que era na... Como se diz?... Na Heitor Penteado, ali na Afonso Bovero, em frente ao Hospital das Clínicas. Era a Prefeitura antiga. Eu morava embaixo e ali, naquele muro... Ele trabalhava ali, era carroceiro. Naquela época, tinha carroça. Depois vieram os caminhões para coletar lixo. Aí, depois, ele passou para o caminhão. Aí eu ia lá, esse Antônio falou para mim: “Olha, você sabe que aqui tem um rapaz que está gostando de você?” Falei: “De mim? Eu nem sei o que é namorado. Não, não quero não”. “É, mas ele é de família boa. É filho de espanhóis. Eles vieram da Espanha há pouco tempo. E ele namorou com uma moça, mas ele achou que aquela moça...”. A mãe não queria porque os espanhóis eram muito rígidos. Queriam as coisas muito certas, sabe? Ele falou: “Vê se você tenta”. Eu sei que, com o tempo, ele foi me convencendo. Ele falou: “Marca um encontro com ele”. Só que eu tinha medo dos meus pais. Eles não queriam que eu namorasse. E meu avô, nessa época... Como a minha avó faleceu, o meu avô veio para São Paulo com a minha mãe. Ficou morando conosco. Até está na fotografia aí. E meu avô, sabe, quando ele ficou sabendo que tinha um rapaz que gostava de mim, ele não consentiu o namoro. “Não! Você acha que uma moça de dezoito anos vai casar? Ela não sabe nem cozinhar o feijão”. E eu cozinhava. Eu, com a idade de sete anos, no fogão de lenha, a minha avó punha um banquinho e ela falava para mim. Eu falava: “Como que cozinha o feijão, vovó?” “Você tem que lavar o feijão, deixar de molho”. Era fogão de lenha. “Quando estiver fervendo a água, você põe...”. Eu, de sete para oito anos, cozinhava. Fazia arroz, feijão, uma carne assada. Eu sempre cozinhei. Até hoje, pela minha idade, ainda cozinho. Aí, o meu avô... Aí apresentou esse rapaz. Eu falei: “Não vai dar certo”. “Vai dar certo, sim”. Eu namorei com ele três anos. Mas, ele na casa dele e eu ali. De vez em quando, a gente se encontrava. Aí foi indo, foi indo, ele falou: “Não, essa é a mulher que eu vou querer para a minha vida”. Aí começamos a namorar, marcamos o casamento. Os meus dois irmãos, falecidos, trabalhavam de marceneiros e estavam fazendo a Igreja Nossa Senhora de Fátima, essa grande. Estava em construção. E eu ia casar na igrejinha de baixo - ainda hoje está lá - mas hoje é... Como é? Um escritório! Aí, eu falei para o meu irmão: “Puxa vida, eu, de noiva, queria tanto casar numa igreja nova!” Ele falou: “Eu vou ver se consigo falar com o padre para você casar naquela igreja”. Aí ele falou com o padre. Ele falou: “Mas como é que ela vai casar na igreja, se aqui estão todos os andaimes? Ela vai passar embaixo dos andaimes?” Aí eles vieram correndo, o sacristão veio correndo na minha casa e falou se eu consentia em entrar na igreja, estrear a igreja, mas debaixo dos andaimes. Eu aceitei. Aí, eles puseram um tapete vermelho e eu entrei na igreja nova. Como a igreja é muito grande, os convidados eram poucos, sumiam, não é? Mas eu fui a primeira noiva que se casou na igreja nova. Na Nossa Senhora de Fátima. E assim foi a minha vida. Casei. Aí, fui morar numa chácara, numa casinha de madeira. Eu casei com vinte anos. Com vinte e um anos já tive o meu primeiro filho. Hoje ele está com setenta - não sei se é setenta e dois ou setenta. Ele nasceu no dia seis de agosto. Eu casei em 1947, ele nasceu em 1948. Depois, no outro ano, nasceu a minha outra filha, a Norma, em 1949. E assim por diante. Mas a minha vida foi assim. Foi uma vida muito segura, não me arrependo de nada do que se passou. E agora estou aqui. Perdi meu pai, minha mãe. Da minha família, foram todos embora. Só estou eu aqui de herança. E tenho meus filhos, meus netos, que são a luz da minha vida. São todos eles. Mas é uma historinha muito boa! Eu andei fazendo no papel, mas como é muita coisa assim, que a gente vai lembrando... Tem coisa lá do Baixão de Serra, que eu trabalhava. Meu pai, para me castigar, ele falou: “Eu vou dar um castigo na menina”. Me levou lá no Baixão de Serra e falou: “Você vai apanhar algodão”. Ele tinha os colonos, que ele tomava conta do pessoal ali. Porque essa senhora, que era dona da fazenda... Meu pai tomava conta. Então, meu pai, para me castigar, falou: “Você vai apanhar algodão”. “Pai, mas eu não sei”. “Vai aprender. Ninguém nasceu sabendo”. Naquela época, tinha algodão e eu fui. Naquela época... Você sabe o que é um quilo de algodão? É um quilo de chumbo, não é? Eu apanhei quatro arrobas de algodão! Um vestido manga aqui. Pus o saco aqui na frente e eu fazia assim: ia apanhando algodão. E foi assim. Aí, depois, meu pai falou: “Não. Não. Essa menina não pode ficar aqui na roça. Ela tem que ir para a cidade”. Eu queria continuar o estudo, mas não tinha como estudar.
P/1 - E por que te castigar? O que a senhora tinha feito?
R – Como? Para ficar no sítio? Ele achava que, como eu era moça, uma moça nova, ficar fazendo o quê no sítio se eu podia ter um futuro pela frente? Aí eu vim para São Paulo, depois entrei num corte e costura. Como eu expliquei, não deu certo. Eu estava aprendendo bem, quando eu comecei a costurar modelo de camisa... Trabalhei em uma camisaria, na rua da Consolação. Andei muito de bonde. Porque, antigamente, tinha bonde aqui. Talvez vocês até se lembrem do bonde, não é? Pode ser... Vocês não lembram, não é? Tinha bonde, tinha aquele camarão, que era um tipo de ônibus fechado. Como se diz? Eu trabalhei na rua Augusta, com camisa, aí foi que eu aprendi a fazer colarinho. Depois aprendi a fazer punho. Aí, quando eu entrei na costura para pegar firme, a minha professora foi embora. Aí, eu não quis mais. Abandonei. Mas até hoje eu tenho papel em casa, com os colarinhos, com as mangas... Como fala? O molde, não é? Eu tenho até hoje guardado. Tenho muita, muita coisa guardada. Tenho muita recordação também.
P/1 – Dona Josephina, eu posso voltar para a infância da senhora?
R – Como?
P/1 – Posso voltar para a infância da senhora?
R – Pode! Pode!
P/1 – A senhora falou que o seu irmão vendia doce, não é?
R – É.
P/1 – Como eram feitos esses doces? Que doces eram?
R – A minha mãe fazia doce de cidra, doce de abóbora, doce de batata. A batata doce, ela fazia o doce. Enrolava e punha naquelas panelinhas, punha numa bandeja bem direitinho, com um paninho branco em cima e meu irmão ia lá no jardim vender para os namorados. Doce de batata ela fazia, doce de mamão... Tudo doce de frutas naturais. Nada de coisa artificial. Doce de goiaba. Porque, no interior, tinha muita fruta, sabe? Lá onde meu pai morava, mesmo na casa dele, tinha pé de goiaba, tinha muita fruta, então era mais cidra. Nossa, quanto doce de cidra! Tanto que hoje qualquer doce eu faço. Qualquer, não! Eu faço doce de cidra, se tem. Doce de laranja. É um doce daquela laranja azeda, que deixa curtir, depois você come. Aquele doce, quando eu faço, Nossa, o pessoal fica louco! E é difícil achar aquela laranja. Eu faço doce de banana. Eu faço doce de abóbora, faço doce de goiaba... O que vier de fruta, eu faço. Faço geléia. Então, minha mãe trabalhava nesse ramo. Era um dinheirinho que entrava, extra, para poder sustentar a família. Porque o que meu pai ganhava era muito pouco.
P/1 – E de onde vinham essas frutas?
R – Plantavam. Eles plantavam na horta. Meu pai ia no sítio pegar, sabe? Principalmente lima. Lima, não. É lima mesmo que fala? Aquela que rala... Cidra! A cidra, você ia lá naquela chácara, eles davam! Você pegava cestas e cestas. Então, minha mãe chegava em casa, lavava, ralava tudo, punha para curtir. No dia seguinte, espremia e fazia o doce de cidra. Fazia... Era até um açúcar redondo, que hoje acho que nem existe mais. Na Barra Bonita tinha uma fábrica - até hoje tem - o açúcar da Barra. Fazia açúcar redondo e meu pai ia lá. Ele trocava o feijão, o arroz pelo açúcar. E minha mãe fazia os doces. E a gente ia vender. Eu não cheguei a vender porque quem vendia era mais o meu irmão. Eu fiquei mais com os meus avós. A maior parte, de doze para treze anos, quem me criou foram meus avós. Porque eu morei com eles. Tirei o diploma, já fiquei com eles lá. Tirei o diploma. Meu diretor era muito bom. ‘Seu’ Benedito. Fizeram uma festinha lá. Eu trabalhei no teatro, sabe? Fiz o papel de mãe dos meninos. Olha, coisas maravilhosas. Coisas lindas que eu tenho na minha cabeça, que eu acho que... No dia em que eu morrer vou levar comigo tudo isso.
P/1 – Não, vamos contar hoje, aqui, tudo isso. E a senhora sabe como seus pais se conheceram?
R – Olha, os meus pais se conheceram lá em Mineiros mesmo. Porque o meu pai... É o seguinte: o meu pai, ele foi para o Exército. Ele foi convocado para a guerra, no tempo da guerra. E meu avô, como morava em Mineiros, meu avô era sitiante, ele tinha sítio. Antes de tudo, ele era sitiante. Aí eu tinha... Uma tia minha, que era irmã da minha mãe, chamava-se Angelina. Ela namorava com um moço de família muito boa. Então, eles faziam assim: o casamento era marcado. E o pai do moço, com a mãe... E o pai da moça, os dois casais e os dois namorados... Essa minha tia namorou muito tempo esse rapaz. Só que a minha tia ficou conhecendo um tal de João, porque ela ia para a igreja... O nosso caminho era a igreja. Da minha mãe, era a igreja. E meu avô me acostumou assim também. A vida deles era assim. Chegava o domingo, levantava de manhã, tomava o café e ia para a missa. Assistia à missa, voltava para casa, se trocava e trabalhava ali. Então eu fui criada assim também. E a minha tia foi à igreja e conheceu esse tal de João. Aí, o que ela fez? Chegou em casa, ela não quis mais o namorado antigo, que era para casar, que os pais foram lá para marcar o casamento. Meu avô tinha um sítio muito grande. Pegava a metade da cidade. Aí ela chegou um dia, carrancuda, no almoço, brava. Meu avô: “Angelina, o que foi?” “Eu não quero casar com o João!”. “Você não quer casar com o João? Já está marcado o casamento! Você sabe que a palavra de um homem é um fio de cabelo”. Porque para o meu avô, um fio de cabelo era a palavra de um homem. “Eu dei a palavra, você vai casar. Você não falou que quer casar? Os pais dele vieram aqui”. “Não, mas eu não quero casar. Eu não quero casar... Eu quero casar com o outro”. “Mas o que foi?”. Ela viu o outro, o outro gostou dela. Bom, resultado: ela não casou com o João! O meu avô ficou tão enfezado que ele ficou na janela, debruçado assim e falou para a minha avó: “O homem que passar aqui na estrada hoje, eu vou vender o sítio por qualquer preço! Eu vou acabar com isso aqui”. Porque ele tinha era pé de café. Aí, passou um senhor e falou: “‘Seu’ Miranda, o senhor quer vender o sítio?” Ele falou: “Quero!” “Quanto o senhor quer?” “Eu quero X”. Tudo bem, vendeu o sítio. Aí, ele foi morar na cidade, com a minha mãe. E meu pai namorava com a minha mãe. Só que meu pai veio para São Paulo, ele foi convocado para a guerra, foi para o Exército. Aí ele mandou uma carta para minha mãe. Falou: “Olha, Domingas, eu fui convocado. Eu estou indo para a guerra”. Ela falou: “Como que nós vamos fazer? Eu estou namorando com você. Como é que vai fazer?” “Eu não sei o que eles vão fazer, eu vou ver se a gente dá um jeito. Eu vou combinar com uns aqui, a gente vai fugir. Quando juntar aquela turma dos soldados para ir embora, eles vão ver se dão um jeito, a gente foge”. Eles saíram de São Paulo os quatro: meu pai, esse meu tio Vicente, que era o irmão dele, e mais dois amigos. Combinaram, vieram a pé. Saíram a pé de São Paulo, pararam em Mineiros. Chegaram lá a pé. Eles iam parando, dormindo no mato. Aí, quando ele chegou, era meia-noite, ele bateu na porta. Meu avô falou: “Tem ladrão”. Minha avó falou: “Vamos ver quem é?” Porque, antigamente, aquelas fechaduras grandes, sabe, minha mãe olhou e falou: “Papai, é o Chico”. “Como é que é?” “É o Chico. Abre a porta”. Aí, meu avô abriu a porta, era o meu pai. Ele falou: “Mas você está aqui?” “Nós fugimos”. “Mas como é que vocês fugiram? Agora a Polícia vai te pegar!” “Não. Vamos fazer o seguinte: nós temos um prazo para estar lá na guerra. Eu tenho um esconderijo?” “Tem”. A casa do meu avô tinha um alçapão que, em cima, era o fôrro, não é? A gente falava alçapão. Então, meu pai fazia isso: de dia, ele ficava no alçapão. Porque se a polícia viesse de dia, não o veria, não é? E de noite, ele descia para jantar. Então, minha mãe fazia essa vida. Fez acho que uns dois anos essa vida aí. Subia e descia, até quando a guerra normalizou tudo. Quando parou a guerra, eles desceram. Aí, eles casaram. Foi uma vida muito puxada para a minha mãe. Minha mãe também passou uns pedacinhos, viu? Mas aí eles casaram. Aí, ficaram morando em São Paulo. Do interior vieram para São Paulo. Foi quando eu fiquei por aqui. Aí, meus avós faleceram. E eu fiquei por aqui mesmo.
P/1 – E, além da senhora, tem outro irmão?
R – Não, agora vivo não tem nenhum.
P/1 – Mas seus pais tiveram quantos filhos?
R – Quatro filhos.
P/1 – A senhora pode falar o nome de cada um?
R – O primeiro que morreu chamava-se José, que é esse que eu falo que eu trouxe o sapatinho. O segundo morreu também. Meu pai pôs o mesmo nome, de José. O terceiro foi o meu irmão, chamava-se Vicente. Depois, a quarta, foi Josephina. E o último, agora, é o Paulo. Quer dizer, o primeiro que morreu eu não cheguei a conhecer. O que eu conheci foi o José, o Vicente, o Paulo e eu. São três homens e uma mulher.
P/1 – E nessa época que vocês moravam todos juntos...
R – Moramos todos juntos. Mas esse José já casou, já se separou, teve filhos. E agora ele já é falecido. Depois, casou-se esse meu irmão, Vicente, que era marceneiro. Os meus três irmãos eram marceneiros. Foi quando eles fizeram o altar da Igreja Nossa Senhora de Fátima. Aí depois casou, um foi para um lado, outro foi para outro, se separaram. Assim... Cada um trabalhou por sua conta. E eu fiquei em São Paulo, aqui.
P/1 – E ainda na infância da senhora, de que a senhora brincava?
R – Olha, eu brincava de boneca, mas antigamente não era boneca. A gente não tinha dinheiro para comprar uma boneca, não é? Hoje eu vejo... meu Deus... eu falo: “Meu Deus, como esse mundo é!” Eu não tinha boneca. A minha avó fazia... Ela pegava uma porção de meia velha, enchia na outra meia e fazia a cabeça da boneca, sabe? Aí, ela pintava de carvão. Fazia aqui a sobrancelha, fazia o nariz e a boquinha de carvão. Aí, ela pegava um sabugo de milho. Você sabe o que é sabugo de milho? Enchia de pano. Colava ali e fazia o corpinho da boneca. E eu brincava com aquilo. Não sabia o que era boneca. Depois, com o tempo, aí fui vendo o que era boneca de louça. Mas nunca cheguei a ter uma boneca na mão, como hoje a molecada tem. Mas foi uma vida assim. Saudável. Brincava. Como se diz? Estudava também. Gostava muito de estudar. Gostava muito de costurar. Mas, infelizmente, a minha vida é essa vida assim. Muita coisa, muita coisa eu tenho guardada na cabeça, dos antigos. Depende do que você vai me perguntar.
P/1 – E quando a senhora ainda era criança, a senhora queria ser alguma coisa quando crescesse?
R – Não. Você vê: não tive noção nenhuma. Eu só queria saber de cantar. No teatro. Eles faziam o teatrinho, me punham para cantar. E eu lá, brincava assim. Mas teatrinho de criança. Tanto que quando eu tirei o diploma, eles fizeram um teatro, no cinema, e eu trabalhei em uma peça. Eu fiz o papel de mãe, com dois rapazes. Um rapaz e uma menina. Aí puseram, me encheram a cabeça de talco para mostrar que eu era velha. Eu gostava muito de teatro assim. Mas não tive vontade de estudar. Não podia estudar mesmo. Mas se tivesse vontade, hoje... O estudo é uma grande coisa, não é? Mas, infelizmente...
P/1 – Mas a senhora cantava?
R – Cantava essas modinhas de Carnaval, brincava.
“Mamãe eu quero!
Mamãe eu quero! Mamãe...”
R – Sabe? A molecada ali, não é? Tudo música antiga. Mas eu ficava na rodinha ali, com as meninas. Quando ia para a escola, também. Mas não tive assim... Pegar um estudo firme. Gostaria! Mas, naquela época, não tinha condições.
P/1 – E para a gente deixar registrado aqui, qual o nome dos avós da senhora? Do lado do pai e do lado da mãe?
R – Do lado da minha mãe é Vicente Miranda e Maria Florenzana. Que é essa fotografia que eu trouxe. Da parte da minha mãe. E do meu pai é José Zagari e Josephina Fidelis.
P/1 – Que são os dois com quem a senhora morou?
R – Os que eu morei foram os da minha mãe: Vicente Miranda e Maria Florenzana. Que ela veio para São Paulo - da verruga.
P/1 – Sim!
R – Agora, da parte do meu pai, eu só conheci a minha avó Josephina. O meu avô não cheguei a conhecer.
P/1 – E que lembranças a senhora tem do jeito dos seus avós?
R – Ah, muitas saudades. Bom, lembranças eu tenho de quem eu conheci, não é? A mãe do meu pai não cheguei a ver direito - a Josephina. Eu sei que ela andava com aqueles vestidões grandes, lenço na cabeça, tipo portuguesa, sabe? Parece que eu estou vendo ela sentadinha assim. Agora, desse outro avô já tenho mais noção. Eles faziam aquelas festas de Natal... A minha avó, sabe? O meu avô estava muito bem de vida naquela época, porque ele tinha vendido o sítio. Que até ele comprou aquela casa. Ele tinha um viajante, de São Paulo, só vinha de propósito para vender para ele. Porque, naquela época, tinha o trem. O trem da Paulista. Saía da Estação da Luz e passava por Campinas, Torrinha, ia para Bauru, aqueles lugares. Esse viajante descia em Dois Córregos, pegava outro trenzinho e ia para Mineiros do Tietê. Ele só ia para fazer pedido para o meu avô. Então o meu avô comprava cartolas de vinho, latas de bolacha, queijo parmesão. Nossa! Era coisa demais. Tanto que o meu avô não tomava café. O café dele era pão com vinho, de manhã. Ele levantava, de manhã, tinha aquele pão caseiro, ele abria a adega dele lá, na torneirinha, pegava um copo de vinho... Era o café da manhã. Ele era um italianão forte, bigode, andava com aqueles relógios de patacão. Ele era muito imponentão, imponente, mas era uma boa pessoa. E desse eu me recordo bem. Do meu avô e da minha avó.
P/1 – E que comidas que a sua avó fazia?
R – Sabe, eles faziam muita macarronada. Italiano gosta muito de macarrão, não é? Aquele macarrão... Fazia muita carne assada. Meu avô matava leitoa. No Natal, era leitoa, era peru, era aquela mesa que dava medo de ver. Vinham os filhos todos ali. A gente comia por três dias. Na Semana Santa, a minha avó... Na Semana Santa não se trabalhava. De quinta-feira, sexta até sábado ao meio dia não se penteava cabelo. Ela não deixava pentear o cabelo. Era a religião nossa. Então, quinta-feira você comia... E outra! Na quarta-feira, a gente fazia... Cozinhava batata doce, mandioca, fazia bolinho de bacalhau, bacalhau com... tudo coisa de peixe. Nada de carne! Então, quando era na quinta-feira santa todos os netos ficavam na mesa, comiam direto! Tomava-se vinho, comia-se pão, comia-se bolinho de batata, bolinho de mandioca, bolinho de bacalhau, torta, tudo, tudo de peixe. Isso quinta-feira. Sexta-feira da paixão, até o meio-dia, nós jejuávamos. Todos jejuavam. Aí, quando era meio-dia, ia na igreja, batia o sino, arrebentava a Aleluia, que hoje é diferente. Aí, sim! Aí, aquela mesa! Aí, vinha leitoa, frango, macarronada, grão de bico, bacalhau. Aí, era farra. Era, olha, uma vida maravilhosa. Uma vida que eu passei, que sinto saudades. Muita saudade. Mas eu agradeço a Deus que eu tenho meus filhos todos vivos, meus netos, tenho bisneto. Então, a minha vida agora... Às vezes, eu falo para eles: “Meus filhos, eu já estou com noventa e um. Tenho que agradecer muito a Deus o que Ele me deu até agora. Agora, daqui para frente, o que eu vou fazer? Vou esperar. É tudo lambuja, não é? O que vier, vou aguentando. Mas tenho muita saudade das coisas. Tive uma Loteria Esportiva também, no interior. Fiquei lá um ano. Eu com o meu filho. Trabalhando lá um ano. Saía daqui de manhã, pegava, ia na Caixa Econômica, pegava os volantes. Ia lá, trabalhava. Voltava na sexta-feira, entregava os volantes. Aí, depois, deixei. Vendi a Loteria porque o meu filho começou a namorar. A namorada falou: “Ah, você está no interior, eu não vejo você aqui, a gente não pode conversar”. Aí, desistimos. E é assim. E foi indo a vida, com meus filhos.
P/1 – Tenho umas perguntas para fazer, de São Paulo, antes. Vocês querem fazer alguma ainda, da infância?
P/2 – Eu queria perguntar: qual é a primeira lembrança que você tem da escola?
R – Lembrança? Que eu tenho da escola? Nossa, meu Deus do Céu! A minha lembrança que eu tenho da escola é que eu ia para a escola, não tinha nem sapato. Ia de chinelo. Eu via aquelas meninas ali, todas bem arrumadinhas, mas eu olhava assim nos pés delas e falei: “Meu Deus, o meu é chinelinho!” Mas, com tudo aquilo eu falei: “Não, é uma força de vontade. O que faz para mim é a cabeça de estudar, não é o chinelo que faz isso”. Aí fui indo, levando as coisas, tudo na paz. Falei: “Não! Isso não é o que me atrai”. Aí eu fui indo. Eu falei para o meu avô. Ele falou: “Não. Você vai ter um sapatinho bom”. Aí, foi na cidade do interior, comprou um sapato para mim. Sapatinho pequenininho. Até hoje, se eu não me engano... Não tenho aqui a fotografia, mas eu devo ter esse sapatinho guardado - a fotografia - na minha casa. Porque, sabe, como a Fernanda falou essa coisa tão de repente, não deu para eu trazer tudo. Mas a minha recordação é isso, viu? Que muita coisa da escola tenho saudade... As minhas professoras. Lembro da dona Lídia. Tirei diploma com a dona Lídia. O meu diretor. E gostava muito da escola. É que a gente, naquela época, não tinha tanto conforto de escola como tem hoje em dia. Hoje em dia, tudo já é diferente. Mas eu me lembro disso daí. Gostaria de voltar à escola novamente, se fosse possível.
P/1 – Qual é o nome da escola?
R – Grupo Escolar Antônio Ferraz. Tem até hoje o nome, na cidade.
P/1 – Em que momentos a senhora usava esse sapato?
R – Eu usava assim mais quando ia para a escola. Ia para a escola, usava. Chegava em casa, tirava e guardava. Eram coisas bonitas. A gente não falava sapato. Falava borzeguim. Borzeguim é um sapato que hoje eles falam polaina. Que é aquele sapato que hoje usa para chuva, que põe aqueles cordões assim e trança. Era um sapatinho... E era difícil quem tinha aquele sapato, porque era caro. Mas o meu avô chegou a comprar para mim, e usei. Mas depois já fui crescendo, já fui ficando mocinha, já tinha outra mentalidade, outro estilo de vida. Mas é assim.
P/1 – A senhora quer tomar uma água?
R – Não.
P/1 – Não?
R – De vez em quando me dá uma tossinha, mas eu não tomo.
P/1 – Podemos chegar em São Paulo, já?
R – Pode!
P/1 – Eu queria saber, nesse começo que o esposo da senhora ficou querendo falar, o que ele falava para a senhora?
R – Olha, o primeiro encontro que eu tive com ele, eu vou falar a verdade, viu? Se for coisa feia, vocês riscam na hora. Eu não sabia o que era a vida de sexo. Nunca fiquei sabendo. Fiquei sabendo quando foi para casar. Então, acontece que esse Antônio, que tinha o bar, falou: “Olha...”. Ele chamava-se José, o meu marido. José. Mas o apelido dele era Pepe. Ele falou: “O Pepe quer falar com você, Josephina”. Eu falei: “Mas como é que eu vou falar? O meu pai não deixa”. “Não, você marca um encontro numa esquina, de dia”. Porque, de noite, eu não saía. “E ele quer falar com você”. Eu falei. “Está bem, eu vou tentar. Vamos ver se eu consigo ir com a cara do rapaz”. Não sabia o que era namorado. Aí, esse Antônio o chamou e falou: “Olha, eu vou falar com ela, qual é o encontro que você quer marcar?” “Marca na esquina da Prefeitura”. Porque era... Aqui era uma encruzilhadinha. Aqui era a esquina, aqui era a Prefeitura, aqui era o Cemitério do Araçá. Então falou: “Marca duas horas da tarde”. Aí, quando foi duas horas... Me arrumei e ele foi lá, estava na esquina me esperando. Aí, ele: “Oi, tudo bem? Como é que você se chama?”, ele perguntou. “E você, tal?” “Você mora aqui?” Eu falei: “Não, eu sou do interior. Minha avó faleceu e meus pais não quiseram que eu ficasse no interior com o meu avô. Meu avô está por aqui. Estou morando aqui. Mas o meu avô nunca quis, não sabe que eu tenho namorado”. “É, mas por quê? Você tem idade”. “Mas, sabe como é? O sistema dele é esse. Ele acha que a moça tem que casar com 24, 25 anos e saber tomar conta de uma casa”. Eu ainda falei: “Eu sei. Mas ele não consente o namoro”. “Vamos conversar!” Aí ficamos conversando. Marcamos encontro num dia, depois no outro. Quando foi no oitavo dia, eu conversando com ele, ele não pegava na minha mão. Eu não pegava na mão dele. “Até logo”. “Até logo”. E pronto! Quando passada uma semana, ele veio falar comigo, ele falou: “Você não me dá a mão para falar ‘até logo’?” Falei: “Por que dar a mão, dar a mão por quê?” Ele falou: “Me dá a mão, fala ‘até logo’”. Aí eu dei a mão para ele. Quando eu dei a mão para ele, ele fez cosquinha na palma da mão. Para quê? Aí eu virei e falei um palavrão para ele. “Olha, o que você está querendo, você vai fazer com a sua mãe. Comigo, não!” Eu já sabia que ele queria transar comigo. Ele queria me levar para o hotel. Porque ele já era daqui, homem sabido. Eu não sabia de nada. Mas eu tinha experiência pela minha cunhada. Esse meu irmão que trabalhava na igreja. A minha cunhada sabia de tudo. Ela que me ensinou as coisas, porque minha mãe nunca falou para mim o que era um sexo. Nunca! Ela achava que a mãe não tinha que falar isso para a filha. Nunca falou. E essa minha cunhada morava junto com a minha mãe. Desse meu irmão que faleceu. Aí, eu cheguei e falei para a minha cunhada: “Miguela, você sabe que o Pepe chegou na minha mão e fez cosquinha?” “Ih, você sabe o que é isso?” Falei: “Não”. “Ele está convidando para você ir ao hotel dormir com ele”. “Isso? Mas eu xinguei ele”. “Fez muito bem!”. Aí eu falei assim para ela: “Que coisa, não é? Mas, escuta, por que o homem faz isso?” Olha a minha inocência! Dezoito anos, heim? Dezoito anos. Falei: “Mas, por quê? A gente conversa com o homem, está tão normal”. “Não, eu vou explicar para você. Você está para casar, já logo estará namorando”. Porque o meu pai marcou casamento logo quando ele conheceu o meu marido. Ele falou: “Olha, o casamento é para pouco tempo, que o velho está aí...”, que era o meu avô. “Ele não quer coisa longe”. Tanto que meu marido, quando entrou na minha casa para conversar comigo, o meu avô estava sentado na sala. Aí, na fotografia, ele ficava assim: eu sentada ali, o meu marido, que era meu namorado, sentado aqui. E o meu avô aqui. E a porta da rua era ali. Meu avô ficava assim, olhando para mim e para o namorado, para ver se ele ia dar algum beijo em mim. O meu avô tinha vontade de fazer xixi - não é vergonha falar - mas eu vou falar para vocês, contar a minha vida que eu sei. Ele queria fazer xixi. Sabe o que ele fazia? Para o meu marido não dar o golpe de dar um beijo em mim, ele ia na porta da rua ali, ficava de lado e fazia necessidade olhando para mim e para o meu marido. Aí, voltava para trás. Foi quando a minha cunhada falou. Falou: “Mas como um homem pode ter relação com uma mulher se a gente não tiver contato?”. Aí que ela me explicou: “Eu vou lhe explicar, você está para casar, é o seguinte: o homem, quando ele está no normal, ele é uma pessoa normal. Mas quando ele quer ter uma relação com uma mulher, então o negócio fica diferente e cresce”. Olha, como tem Deus no Céu! Ela foi quem me orientou, porque eu não sabia o que era o sexo. Não sabia. “Ah, então é por isso...”. Eu andava na rua assim, olhava para um homem, não via nada. Entende? Fui muito inocente. Aí foi quando eu casei. Tanto que nós morávamos nessa vila de casas, a gente não tinha chuveiro, era um bacião grande para tomar banho. Essa minha cunhada, a irmã dela tinha uma casa melhor. Tinha chuveiro. Eu fui tomar banho na casa dela quando fui casar. Fui tomar banho na casa dela, para tomar banho de chuveiro, porque na bacia não dava. Aí que eu casei. Mas eu não sabia o que era sexo. Por isso que, às vezes... Hoje eu não me revolto não, bem. Eu falo com sinceridade. Hoje em dia eu sou bem para frente. Porque eu tenho netos. Tenho a Fernanda, tenho mais netas. Eu tenho uma neta de treze a quatorze anos, está com os menininhos ali se beijando. Eu não acho ruim. Agora, hoje a vida mudou. Mas, no meu tempo, não tinha isso. Então, eu tenho muita recordação passada. E não me arrependo, viu? Não me arrependo. Eu queria ser um pouquinho mais esperta para viver um pouco mais. Mas, infelizmente, parou naquilo. Casei. Fui morar numa casa... Meu marido falou: “Olha, eu não vou poder alugar uma casa”. Naquela época, meu pai pagava 25 “merréis”, porque falava um tal de “merréis”. E eu precisava ajudá-lo a pagar. Porque eu trabalhava na camisaria, foi quando eu deixei. Mas o meu pai dizia assim: “A pessoa para casar precisa ter um dinheiro”. Tanto que eles fizeram uma festa, está aí. Combinaram um barril de chope. Fizeram a festa no barracão lá aonde eu fui morar. Porque eu fui morar numa casa de madeira. Você vê, uma moça com vinte anos, lavando roupa, puxando água de poço, sete metros de altura, grávida de sete meses, casa de madeira, chão de terra, fogão de lenha, entendeu? Tudo isso. Passei por tudo isso. Hoje? Nossa, hoje eu me sinto uma heroína. Hoje você tem fogão a gás, você tem geladeira, você tem micro-ondas, você tem máquina de lavar roupa. Você só não tem máquina de lavar louça porque não precisa, porque eu lavo na mão. Mas hoje todo mundo tem o conforto e ainda acha ruim.
P/1 – Dona Josephina, a senhora ficou sabendo, por essa...
R – Minha cunhada.
P/1 – Isso! E como foi a primeira noite de vocês dois?
R – Ah! Foi uma noite vergonhosa, não é? Porque eu estava com meu vestido de noiva, um vestido muito bonito. Eu estava com meu vestido de noiva e era todo de botãozinho, de cima em baixo, não é? E meu marido estava deitado, ele falou: “Como é, Josephina, você vem deitar ou não vem?” Eu falei: “Espere!” Fazia um pouco de hora na cozinha, sabe? Eu estava com vergonha, não é? Vergonha eu estava, não sabia de nada. “Mas você não vem deitar?” “Meu Deus do Céu, será que eu vou? Será que eu não vou?” Pensando na minha cabeça, não é? “Como é? Eu quero...”. Como é que ele falou? “Eu quero molhar a água!”. A água não, outro, dizia de água, não é? “Eu quero molhar meu ganso!”, ele falou. Eu falei: “Meu Deus do Céu! O que eu vou passar?” Aí, fui obrigada a deitar. Mas eu não conseguia desabotoar. Porque o vestido era todo... Tenho até hoje o vestido lá. Eu posso até tirar fotografia e mandar para vocês. O vestido era todo de botãozinho, sabe? Até desabotoar...! Ele ficou tão nervoso que ele estava desabotoando, rasgou um pedaço. Porque ele estava louco para ter relação. Ele não via a hora, porque era a primeira mulher. “Vou desonrar ela!”. Porque ele achava que era uma grande... E foi mesmo. Quem me desonrou foi o meu primeiro meu marido. Fiquei 56 anos casada. Vivemos uma vida maravilhosa. Tenho cinco filhos maravilhosos. Tenho dez netos. E tenho quatro bisnetos. Todos vivos, graças a Deus. Todos maravilhosos. Tenho os filhos. Estou bem amparada. Ele me deixou bem. Faz dezesseis anos que ele faleceu. E moro sozinha. Agora estou com um neto aí que está fazendo teatro, está estudando teatro, trabalha em teatro, não é? E ele quer... Agora no final do ano ele quer ir para os Estados Unidos porque ele quer seguir a carreira melhor, porque lá tem mais opção para teatro. Ele quer ir para lá. Mas ele está morando comigo aqui. Faz oito meses que ele está comigo.
P/1 – E quando vocês se casaram, em qual bairro vocês foram morar?
R – Eu fui morar na Alves Guimarães, numa casinha de madeira. Ali era um lixão, sabe? Era o lixo, o lixo da Prefeitura que jogava ali. Embaixo tinha aquela casinha. Está na fotografia - na casinha de madeira - está o meu marido sentado, eu, com a minha filha no colo, e o outro meu filho mais velho. E o vizinho do lado. Parecia aqueles caipirões, sabe?
P/1 – E como foi a festa de casamento?
R – Nossa! A festa, Nossa! A festa foi tão bonita que, olha, se falar para vocês, vocês não vão acreditar. Porque, antigamente... Hoje não, hoje é tudo diferente, por isso que eu acho... A vida de hoje eu acho bonita e dou risada. Antigamente, a pessoa tirava motorista, qualquer um queria dirigir. E tinha um tal de ‘seu’ João, que era vizinho nosso. Ele tirou carta naquele dia. Então, o casamento, tudo, tinha mais de vinte carros. Então, os carros... A noiva ia na frente, num carro. Que era eu. E atrás ia o carro dos padrinhos, e depois os dos convidados. Cada um tinha o seu carro. E justamente atrás do carro do padrinho veio esse João, que havia tirado carta naquele dia. Ele não sabia nem o caminho. E o pessoal o acompanhando, sabe? Como a festa foi nessa chácara - está aí, depois você vê - foi nessa chácara, antes do ‘seu’ João ir na Benedito Calixto, que é o Cartório - até hoje existe lá - antes dele acompanhar... Porque todo mundo ia ao Cartório, ele não... Ele pegou e desceu. E os convidados desceram todos para a festa. Foram todos lá para a festa. Quando chegamos lá no Cartório, só estávamos eu, o meu marido e os padrinhos. Aí, o escrivão falou: “Ué, mas cadê os convidados?” Antigamente, os convidados iam. Faziam aquela roda. “Cadê os convidados?” Aí, o meu padrinho falou: “Devem estar aí fora”. Não tinha ninguém! Eles falaram: “Puxa vida! Eles desceram todos lá para a festa”. Casamos no civil. Fizeram as perguntas, eu assinei, os padrinhos assinaram. Aí, nós voltamos, tiramos as fotografias lá no civil. Quando nós voltamos para a chácara, estava todo mundo lá, já estavam comendo, não esperaram nem a noiva chegar! Aí jogaram aquela festa, fizeram um tablado, e foi uma coisa linda.
Depois, esse meu tio, que era irmão do meu pai, ele tocava sanfona. Fizeram um tablado ali e ele ficava tocando a sanfona. E nós dançando. Tudo ali no terreiro. Era terreiro de terra. O pessoal se divertindo, comendo, bebendo. Foi uma maravilha, viu?
P/1 – Quem fez o vestido de noiva?
R – Ela já é falecida. dona Isabel. Ela fez o meu vestido de noiva e fez o vestido da minha filha Norma, de noiva também. O mesmo modelo meu é o da minha filha. Pena que não deu para trazer, viu? Porque ele é muito bonito. Acho que tinha uns quinze metros de cauda. Se eu trouxesse as fotografias, você ia ficar boba de ver. Tão bonito o vestido! Mas, graças a Deus, deu tudo certo. Espero que, daqui para a frente, o pedaço de vida que eu viver que continue assim. Não é?
P/1 – Eu tenho mais perguntas.
R – Pode falar, bem!
P/1 – Quando a senhora ficou sabendo que ia ser mãe? O que a senhora começou a sentir no corpo? Como veio a notícia?
R – Olha, eu engravidei logo... Acho que engravidei no primeiro dia que tive relação. Penso ali. Porque eu casei dia quinze de novembro e o meu primeiro filho nasceu dia seis de agosto. Até o pessoal achava... Falava: “Puxa vida! Nasceu antes do tempo”. Mas, antigamente, a minha mãe contava a menstruação pela lua. Contava nove luas. Hoje eles contam diferente, não é? Quer dizer que, pela contagem de tempo, o meu filho nasceu oito dias antes de fazermos um ano de casados. Eles achavam: “A Josephina já andou com homem antes da hora”. “Não! Eu casei virgem, graças a Deus”. Mas ele nasceu parece que oito dias antes, no dia seis de agosto, o meu filho mais velho. Mas você perguntou o quê? O que eu senti?
P/1 – Como a senhora descobriu que estava...
R – Estava grávida?
P/1 – Estava grávida? O que a senhora foi sentindo no corpo para pensar...
R – Eu senti que no primeiro mês... Todo mês vinha direitinho. O segundo mês veio. Aí não vinha mais, pouquinho. Aí, a minha sogra falou: “Você não quer ir fazer um exame na Prefeitura?” Porque eu tinha direito à Prefeitura, ele trabalhava lá. Eu falei: “Mas eu tenho vergonha!” Porque... Eu vou dizer uma coisa para você: médico, nunca um médico mexeu em mim. Nunca! Eu não sei o que é um toque, eu não sei o que é operação, graças a Deus! A única coisa, a vista, que eu fiz a cirurgia da catarata. Mas nunca fui num hospital. Então, nesse dia, eu fui lá. Mas acontece que, quando eu fui, a enfermeira falou para mim: “A senhora vai passar por um médico, ele vai fazer um toque”. Eu falei: “Toque? O que é isso: toque?” Ela falou: “Ele vai pôr a mão ali para ver se a senhora está grávida”. Eu falei: “Está bem”. “A senhora espera na sala”. Eu falei: “Está bem”. Quando chegou na sala eu, ó! Vim embora. Falei: “O quê? O médico vai pôr a mão em mim ali? De jeito nenhum! Já chega o meu marido que põe aquele negócio em mim, agora vai pôr a mão? De jeito nenhum!”. Aí vim embora para casa. Não fiz.
Aí, fui ficando grávida. Foi passando um mês, dois, quando chegou no quinto mês eu fui ao médico. Aí o médico já não pode fazer o toque. Ele já sabia que eu estava grávida. Tirou a fotografia, falou: “A senhora está grávida”. “Está bem, doutor!” Tive esse meu filho, que é o mais velho, em casa. Nessa casa de madeira. Ele nasceu lá, oito horas da noite. Com lamparina, porque não tinha luz. A parteira, parteira curiosa, dona Gaitanela, pegou ele ali. Nasceu ali. Parto normal. Meus filhos foram todos parto normal. Não tenho uma cesárea, graças a Deus, nada. Não tenho nada, graças a Deus! Só tinha a vista que eu fiz a cirurgia da catarata. E a coluna, que agora eu já estou na idade. Minha coluna está meio tortinha.
Mas depois fiquei grávida da minha filha, Norma. Aí eu a tive no hospital, porque como ela nasceu muito pequenininha, ela precisou ficar na estufa. Ela nasceu dia vinte de dezembro e dia vinte e cinco era o Natal. Estava uma festa pronta, de Natal, porque fazia uma festa aqui em São Paulo - o meu pai fazia - e eu estava no hospital. Aí, eu comecei a chorar, porque eu queria passar com eles. O médico me deu alta, ele falou: “Eu vou dar alta para a senhora, mas a menina vai ficar na estufa ainda. Porque ela não tem tempo de sair”. “Ah, doutor, pelo amor de Deus! Me deixa levar minha filha”. “A senhora vai ficar responsável?” “Eu fico!” De mamadeira, só dei o peito. Nada de mamadeira. O peito. “Pode, doutor, eu fico responsável”. “Então a senhora e o seu marido vão assinar um papel. Se acontecer alguma coisa com a menina...”. “Não, fico responsável, eu quero levar minha filha”. Aí eu a trouxe. Passei o Natal com ela, aí depois eu fui fazendo... Todo mês eu ia lá. Fazia entrevista.
Esse meu filho Roberto, que é pai dessa Fernanda, tive em casa também. A gravidez dele foi muito triste para mim. Ele nasceu com cordão umbilical no pescoço. Quando ele nasceu, ele estava da cor da sua blusa. A parteira curiosa também, ela falou assim para mim, não para mim diretamente, para o meu marido: “Olha, vamos tentar, mas acho que seu filho nasceu com aquela...”, porque têm pessoas que têm aquela mancha vermelha. Não tem? “O seu filho vai ser, talvez, aquele...”. O cordão umbilical apertou, ele nasceu todo vermelho. “Vamos esperar durante três dias. Se em três dias esse sangue não desaparecer, então é porque ele está com aquela mancha”. Aí meu marido não contou nada para mim. “Mas vamos esperar”. Aí, o meu marido contou para a minha sogra. Falou: “Mãe, olha, eu acho que o Roberto, eu vou ter esse filho com defeito no rosto”. “Por quê?” “Porque está tudo vermelho”. Ficou um cordão vermelho. Era o cordão umbilical que apertou a garganta dele e subiu o sangue. Ela falou: “Ah, filho, não. Vamos pedir a Deus. Se Deus quiser, vai dar tudo certo”. Aí foi indo, quando chegou quatro, cinco dias, eu estranhava de ver ele vermelho. Eu falei: “Não, está corado!”. Para mim, ele estava corado. Mas não era corado. Aí foi indo, desapareceu. Aí, quando a parteira chegou em casa, ela me contou. “Olha, graças a Deus, olha Josephina. Seu filho nasceu com aquele cordão umbilical apertando o pescoço, mas não é nada. Foi tudo normal”. E foi assim. Aí tive ele. Depois já tive o Edson, na minha casa. Olha como é a vida da gente! Por isso que eu acho que Deus é muito contato comigo, viu? Demais!
Eu morava num barracão. E tinha um córrego que passava, de água. E do lado do córrego tinha uma casa de madeira que esse pessoal... Eles trabalhavam na rua, sabe? Que fazem buraco, trabalhavam na rua. E essa mulher... Chamava-se Beatriz e o marido dela chamava-se Fraga. Ele trabalhava assim nas coisas. Mas, à noite, ele trabalhava lá na USP. Na USP, não! Onde é corrida de cavalo. É USP que fala, não é? Corrida de cavalo é na... onde correm os cavalos, lá na...
P/1 – Jockey!
R – Como que é mesmo?
P/1 – O Jockey?
R – Isso! Ele trabalhava no Jockey, de noite. E, de dia, na rua. Então, ela chegou um dia e falou para mim. Falou: “Dona Josephina…” - eu já tinha o meu filho - “... Eu acho que estou grávida”. Eu falei: “Beatriz, sabe o que você faz? Vai nas Clínicas. Já que você não tem convênio, vai nas Clínicas e faz uma inscrição, você faz um exame médico. Você precisa ter um controle com o médico”. “Ah, mas o meu marido não quer”. E foi levando a vida. Foi levando a vida. Eu sei que ela estava para ter nenê. Eu falei: “Beatriz, você não foi ainda?” “Ah, dona Josephina, ele não quis ir”. Eu falei: “Como é que você vai fazer? Eu moro aqui. Você mora aí. O que puder te ajudar, eu te ajudo”. “Ah, vê se a senhora pode me ajudar...”. “Ajudar... O que eu posso fazer? Eu não sei fazer nada. Posso lhe ajudar quando você tiver a criança”. Quando foi um dia, a mulher ruim, ruim. Era meia-noite, o Fraga veio lá na porta. “Dona Josephina!”. “O que foi, Fraga?” O meu marido falou: “Levanta, levanta. Vai!”. “A Beatriz está ruim”. “Está vendo, Fraga. Você é culpado disso! Não falei para você? Aonde você vai agora? Agora não tem parteira. Você vai achar parteira aonde agora, meia-noite? Como que vai? Vai levar nas Clínicas?” E ela lá: “Ai, ai”. Falei: “Ah, Meu Deus, seja o que Deus quiser!” E a minha mãe, quando eu casei, logo que eu casei, ela me explicou. Aí ela me explicou. Falou: “Filha, a pessoa, quando nasce o nenê, quando a pessoa puder ajudar, que não tem socorro, você faz o seguinte... É assim... A pessoa faz força, quando é parto normal, então a criança sai. Aí, você marca um palmo, corta o umbigo e amarra. Aí, você chama um socorro porque você vai salvar a criança. Depois vem a placenta, que é em seguida. Aí, meia-noite, ele me chama. Falei: “O que eu vou fazer?” Cheguei lá, e ela lá com as pernas abertas. “Beatriz, eu não falei?” “Ah, eu não aguento mais!” “Faz força”, falei. “Faz força. Seja o que Deus quiser”. Aí ela fez força. A criança nasceu. Eu marquei um palmo do umbigo dela, cortei, amarrei. Aí ele foi correndo chamar a parteira. Quando a parteira chegou lá, falou: “Quem pegou essa criança?” Eu falei: “Fui eu”. “A senhora está de parabéns. Eu quero só perguntar uma coisa: quem ensinou a senhora a fazer isso?” Falei: “Foi minha mãe”. “A senhora está de parabéns”. Tanto que a mulher, ela falou: “Eu tenho uma promessa de pôr Sônia, mas eu vou pôr Sônia Josephina”. Ela tem meu nome, a menina. E hoje eu queria vê-la. Eu a batizei. Hoje ela deve estar com uns setenta anos. Sessenta, mais ou menos. Eu nunca mais a vi. Eles eram nortistas, do Norte, baianos. Sei lá. Andei pela internet procurando o nome dela, o pai dela. Só sei que ele se chama Fraga e ela Beatriz. E ela Josephina. Sônia Josephina. Mas tem muito. Não dá para achar. Eu devia ter o sobrenome dele. Não peguei o sobrenome. Agora, o meu filho falou que se eu for ao Cartório, que lá no Cartório em que eu a batizei, eles devem ter. Eu vou tentar no Cartório ver se eu acho. E foi assim. Cheguei a pegar uma criança. Uma mulher que não sabia de nada! A gente vai aprendendo a vida, não é verdade? E eu peguei essa criança.
Aí, morei na chácara. Depois mudei para cima, num sobradinho. Foi quando o meu marido entrou na Prefeitura. Comprei essa casinha, descontando do pagamento dele, por mês. E estou até hoje nessa casa, na Pompéia.
P/1 – E o que vocês faziam para se divertir? A família toda? Os filhos, a senhora e o seu esposo?
R – O que fazia para divertir? Os meus filhos jogavam bola na rua. Pegava aquela bola de capotão, combinava com os colegas e jogavam bola na rua. Esse Edson, esse meu filho, até é feio falar, mas a gente fala que não é. Ele ia para a escola, os amigos dele eram todos amigos de alta classe, melhores. Na escola... Não é colégio. Depois ele foi ao colégio, que agora o meu filho é professor de Letras, não é? Esse Edson. Mas quando ele ia à escola, no Grupo ali, ele ia à escola e falava: “Mãe, vou levar lanche”. Falava: “Filho, é pão com óleo e sal. A mamãe não tem manteiga. Não existe manteiga aqui”. “Está bom, mãe, está bom”. Então, fazia, cortava o pão, punha o óleo, punha um pouquinho de sal, fechava e ia. Ele ia comer escondido, porque os outros levavam pão com mortadela, presunto, tudo, e ele comia escondido. Eles iam brincar na rua, na casa em que eu moro, ainda até hoje essa vizinha mora lá, só que ela mora na casa da esquina. Eles combinavam, os meninos, e iam jogar bola na rua. E, quando chegava de tarde, eles falavam: “E, vai! Vamos tomar café na minha casa”. O meu filho convidava para tomar café. E eu brigava porque eu achava: “Você não convida ninguém. Você sabe se eu tenho café para dar para eles?” Então, eu para mostrar grandeza, eu fazia o café, cozinhava mandioca, fritava a mandioca e tomava café com mandioca. Não tinha pão, manteiga, não tinha nada. Então, eu saía no portão, os meninos ali jogando bola, eu falava: “Oh, Edson, Fabi, vamos tomar café que a mesa está pronta”. “Vamos comigo”. “Não, filho, vem você, depois eles vêm. Depois eu chamo eles”. Eu não queria que eles entrassem porque não tinha pão para dar para eles. Aí, eles entravam, tomavam café, comiam pão com mandioca e iam brincar, jogar bola. A vida foi assim.
Agora, esse meu filho Edson, ele é muito inteligente, muito inteligente, vou falar! Ele estudou no colégio. Ali na Oscar Freire. Não é que eu queira gabar, ele foi o primeiro aluno da classe! Eles diziam para mim: “Mamãe, por favor, não vá na escola saber o que está se passando comigo. Eu não quero saber”. Bom, ele era um dos primeiros. Aí, chegou um dia, a professora falou para ele: “Como é, Edson, precisa ter reunião dos pais. A sua mãe não vem?” “Ah, a minha mãe não pode”. Ele dava sempre uma desculpa. “A minha mãe não pode, e tal”. E tinha aquela reunião. Aí, ele passava. Passava em tudo primeiro. Não conversava na classe, não tinha amigos, o serviço dele era trabalhar. Aí, um dia, uma professora dele mandou um papel para mim. Para eu comparecer lá, porque ia ter uma reunião. Aí, eu fui. E o Edson não foi. Nesse dia ele não foi. Estava... Não sei aonde tinha ido. Fui lá, a moça falou: “A senhora é mãe de quem?” Falei: “Sou a mãe do Edson Bello”. “A senhora é mãe do Edson Bello?”. “Sou”. Falei: “Bom, uma reclamação dele, não é?”, pensei. Eu só pensava isso. “Porque tem uma reunião aí, tem uns diretores ali e eles querem falar com a senhora”. Falei: “Ih, Meu Deus! Agora sobrou para mim”. Falei: “Seja o que Deus quiser!. A resposta já falo”. Cheguei lá, entrei lá, sentei. “A senhora é a mãe do Edson Bello?” Falei: “Sou! Tem alguma novidade, alguma…? Porque eu não estou sabendo de nada”. Ele falou: “Olha, eu chamei a senhora aqui sabe por quê? A senhora está de parabéns pelo filho que tem”. Eu falei: “Por quê?” “É o único aluno da classe que nunca me deu trabalho. É o primeiro da classe, em todas as lições”. Ele elogiou tanto o meu filho que, naquela hora, eu quase que desmaiei. Para mim, foi uma luz do céu. Porque era difícil acontecer isso na minha vida. “Por isso que eu chamei, porque eu pensei que ele não tivesse família. O rapaz nunca conversou na classe. Nunca deu trabalho. As lições dele são maravilhosas. As linguagens dele...”, elogiou demais.
Tudo bem. Vim para casa. Cheguei em casa, falei: “Graças a Deus!”. Aí ele chegou. Eu falei: “Edson, eu fui ao Grupo”. “Já sei! Já sei. A senhora foi saber da minha vida”. “Não. Me chamaram e eu fui lá. E elogiaram tanto você!”. “Ah, não quero saber, mamãe! Não quero saber”. Ele não queria que gabasse ele. Ele não queria que gabasse. “Não, filho, estou falando para você porque eles falaram bem de você, você estuda bem, você vai muito bem para a frente”. E foi mesmo. Porque até hoje ele é muito inteligente. Hoje ele está em Brasília, fazendo uma campanha lá em Brasília. Ele é muito inteligente. Todos os meus filhos são inteligentes.
O Flávio também trabalha. É bem inteligente. A minha filha se formou cabeleireira. Também é muito inteligente. Trabalhou no L’Officiel, na Oscar Freire. O Nelsinho trabalhou na Globo também, é o mais velho. E o Zé Roberto, que é o pai da Fernanda, também trabalhou na Prefeitura, trabalhou na praça, aposentou na Prefeitura. Então meus filhos todos, graças a Deus, estão bem encaminhados. E os meus netos vão indo pelo mesmo caminho. E assim a gente vai levando a vidinha da gente.
P/1 – Dona Josephina, se a senhora se sentir confortável, pode contar para a gente o que aconteceu com o seu esposo.
R – Sim. Do quê? De doença? Então... O meu marido nunca tinha ido a médico. E eu tinha convênio, mas eu ia muito nas Clínicas. Comecei a fazer retorno, não é? Voltar cada dois, três meses. E ele gostava muito de doce. Sabe, a minha casa foi feita com doce. Fui acostumada com a minha mãe. Era doce de batata. Até hoje eu faço. Faço uma coisinha. Aí, nós fomos ao médico. Ele falou que estava se sentindo meio angustiado. Fomos nas Clínicas. Passamos por um médico. O médico pediu os exames dele. Aí, deu que estava com diabetes. Começou com a diabetes. Ele não aceitava a doença. Porque ele nunca foi doente. Ele não tinha nada, nada. Ah, depois também tem outra coisa para contar, vou contar esse primeiro. O que acontece? Quando o médico chegou, o médico, antes de chegar e falar para mim: “Olha, dona Josephina, o seu marido está com diabetes, a diabetes não mata, se souber controlar”, ele falou. “Eu tenho paciente que dura anos e anos”. Mas o meu marido não aceitava isso. Ele achava que a diabetes matava. Então, o que acontece? Quando ele soube, ele falou para mim: “Eu vou morrer”. “Larga a mão disso, Pepe! O que é isso?” Ele era bonitão. O rosto vermelho, corado. “Larga a mão disso”. “Não! Eu estou com diabetes”. “Mas diabetes não mata, homem! Quanta gente que nasce, criança que nasce com diabetes. Tem tratamento”. “Não!” E ele adorava doce. E o médico, a primeira coisa que cortou foi isso. Mandou cortar o açúcar, cortar doce, cortar refrigerante, apesar de que não bebia, viu? O meu marido não tinha vício. Não fumava, não bebia, não jogava. Era uma moça. Mas, enfim, quando ia numa festa, bebia. Aí, um dia, ele chegou para mim e falou: “Olha, você quer saber de uma coisa? Você está escondendo os doces de mim”. Porque eu fazia e escondia dele, não é? Eu tinha duas geladeiras, uma no quarto e outra na cozinha. Eu ia na do quarto, trancava e punha os doces lá, para ele não ver. Ele falou: “Você está escondendo as coisas de mim?” “Não estou, Pepe, não estou”. “Não, não adianta você esconder. Você não quer dar aqui, eu vou na rua e vou comer”. Aí eu falava para os filhos: “Está vendo? O seu pai é teimoso. Eu escondo para não dar para ele, ele vai na rua e come”. Então foi indo, foi indo, começou a ficar doente, a diabetes ia a trezentos, ia para quatrocentos, voltava para trezentos, voltava para duzentos. Aí, entrei num convênio, que eu tenho até hoje o convênio, da Intermédica, trinta e um anos. E fui no convênio. Ele ficou lá, tudo. Mas ele foi indo, sabe? Ele falou: “Não! Eu sei que vou morrer mesmo, então deixa eu aproveitar”. Ele não comia em casa. Mas ele ia na Lapa, entrava naquelas pastelarias, comia pastel cheio de gordura, e comia e tomava. Depois ele chegava em casa e falava para mim: “Estou satisfeito”. “Já almoçou?”. “Xi, comi coxinha!”. “Está vendo? Não adianta a gente fazer sacrifício para você aqui e você destrói a sua vida na rua. Não vale a pena. Então eu vou deixar você fazer o que quiser”. Aí, abandonei. Falei: “A geladeira está aí”. Aí ele foi indo, foi indo. Quando ele ficou ruim, levamos para o hospital, lá na Santa Cecília. Ele ficou internado. Ficou oito dias internado. Depois, quando foi dar alta, era o dia do aniversário do Edson, dia 27 de março, ele morreu. No dia do aniversário do Edson. Aí ligaram para mim, na minha casa. Para eu ir pegá-lo que já tinham dado alta. Aí eu fui com uma perua e esse meu filho mais velho foi comigo. Falei: “Graças a Deus!” Esse Edson falou: “Oh, mãe, papai vai me dar um presentão hoje. Vem para casa”. Chegamos lá no hospital, na Santa Cecília. Ficamos sentados esperando dar alta. Aí, lá de cima, eles falaram no microfone: “A família de José Bello está aí?” Aí levantamos a mão e fomos. “Pode subir!” Mas quando foi para eu subir, ele teve três paradas cardíacas. Uma atrás da outra. Quando era para vir embora, não é? Mas os médicos chegaram e fizeram... Não deu jeito. Quando era para subir, era para avisar que já tinha falecido. Aí, nós ficamos lá, eu com o Edson, esperando. “Ai, o papai vai sair”. Ele falava. “Mãe, o papai vai sair”. Falei: “Vai”. Aí vieram os três médicos, com aquela capa azul. Eu falei: “Posso pegar o meu marido, doutor?” “Olha, infelizmente, eu vou dar uma notícia meio triste para vocês”. “Por quê?”, o Edson falou. “Olha, o seu pai tinha tido alta. Mas ele teve três paradas. Nós não conseguimos. A primeira, demos pulso, pulso. Não conseguimos. Veio outro médico. Ele acabou de falecer”. Aquilo já caí no chão. O Edson falou: “No aniversário meu, meu pai foi morrer?” Aí foi isso. Faleceu e enterrou no dia 28. E foi assim. Mas ele perdeu porque, sabe, ele achava que a doença o matava. Mas, no fim, aconteceu isso. Ele era um homem muito forte, sabe? Muito brincalhão. Gostava de tocar violão com os filhos. Era um excelente pai. Até hoje os meus filhos falam. “Pai, pai, pai”. O Édson fala para mim: “Mãe, dia 27 a senhora nem liga para mim, heim? Eu não faço aniversário, não”. Todo 27 de março é aniversário dele que faleceu. E tem muita coisinha de reco
E outra coisa: quando ele trabalhava na Prefeitura... Estou contando as coisas que estou lembrando... Quando ele trabalhava na Prefeitura, ele trabalhava com caminhão. E a Rádio Bandeirantes pegou fogo. Estava pegando fogo a Rádio Bandeirantes. Então o chefe dele, que era compadre meu, que batizou esse meu mais velho, falou para ele: “Belinho”, chamava ele de Belinho, “Belinho, pega o caminhão pipa e vai na Bandeirantes ajudar a apagar o fogo, porque está pegando fogo lá”. Eu fazia tricô, eu vendia roupa, tudo para poder ajudar a pagar o aluguel da casa, para poder viver. Porque eu trabalhei dezoito anos com Christian Grey, Avon, Rhodia, vendendo roupa... Eu era mascateira, sabe? Fazia de tudo. E eu estava na rua, trabalhando, vendendo as coisas. Aí ele foi lá. Só que, na hora em que ele chegou na Bandeirantes, com a pipa para apagar, tinha muita fumaça. E ele ficou com medo de pegar... Aqueles bombeiros, que têm aquela borracha. E soltou a borracha e ele foi atravessar a rua. Na hora em que ele atravessou a rua, na fumaça, veio um carro. O carro o pegou. Pegou e levou ele. Ele ficou embaixo do carro. O carro foi arrastando, ele segurou naquela coisa da frente do carro, não sei como é que chama aquele... Onde estão as rodas. E o carro foi arrastando. E o pessoal que estava vendo o incêndio falava para o motorista: “Para, que tem um homem debaixo”. E o motorista corria mais, pensando que estava falando para o motorista: “Corre que está pegando fogo”. Levaram ele debaixo do carro quinhentos metros, no chão. O que aconteceu? Aí, o cara viu que muita gente parou. Pegaram ele, chamaram a ambulância, levaram na Prefeitura, quando ele voltou na minha casa, eu não estava nem na minha casa ainda. Ele veio todo arrebentado. Aqui todo esfolado, a camisa, a camisa dele ficou preta assim que... Arrastando no chão, sabe? Ele ficou internado. Acho que ficou uns dois dias na Prefeitura. Depois foi para casa. Mas ficou com a marca. Tanto que, quando ele morreu, ainda tinha as marcas nos braços, aqui no pescoço, porque ele ficou arrastado por um carro. Sofreu muito também, sabe? Então, são coisas que a gente tem de lembrança aqui para contar. E foi assim a vida da gente. Mas, infelizmente, deu errado num lado mas deu certo para outro. Que eu estou bem feliz de estar com toda a minha família. Espero que Deus dê mais conforto para viver mais um pouco ainda.
P/1 – E como foi depois do falecimento dele?
R – Aí, depois, eu fiquei viúva, continuei na minha casa. Eu não quis morar com ninguém. Sempre morei sozinha, mas os filhos sempre lá. Entrava um, saía outro. Eles queriam que eu fosse para um apartamento. Falei: “Não, eu gosto da minha casinha. Eu fico aqui, levanto na hora em que eu quero, vou dormir na hora em que eu quero. Se quiser cozinhar eu cozinho, se não quiser não cozinho. Gosto muito de sair”. Eu ia para a Lapa, de ônibus. Até hoje eu vou. Ando de ônibus. Eles ficam bravos. “A senhora não pode”. Bom, no fim, a minha vida foi assim. Agora, de janeiro para cá, a minha vida mudou. Mudou um pouco mais. Porque você vê, eu moro há quase setenta, sessenta e tantos anos nessa casa. Nunca fui roubada. Ia ao banco, eu recebia o dinheirinho do pagamento do meu marido, trazia o dinheirinho, punha na minha gavetinha, lá. Pagava uma coisa, pagava outra. Toda a vida eu fiz isso. Pagava imposto, pagava luz, pagava água, pagava o convênio, fazia compra, licenciava, ia no Detran, licenciava os carros do meu marido. Eu fazia tudo! Mas depois meu marido morreu, eu continuei a licenciar o carro que tinha. Mas, em janeiro, eu fui para a praia, minha sobrinha me convidou para ir para a praia. Eu não queria ir porque quando foi dezembro... Eu tenho meu quintal, está muito ruim. Eu chamei um pedreiro: “O senhor não quer me arrumar aqui?”. “Olha, dona Josephina, agora neste fim de ano eu estou com muito serviço, mas em janeiro eu vou arrumar tudo para a senhora”. Falei: “Está bem. Certeza?”. “Certeza!” O que eu fiz? Eu fui na minha poupança, tirei o dinheiro da poupança e trouxe para casa. Porque eu falei: “Ele vai começar em janeiro, sabe como é pedreiro, eles mordem um pouquinho, antes”. Tem que dar um dinheirinho antes para começar o serviço. Depois, dinheiro para comprar o material. Então, eu fui lá, tirei o dinheiro e pus na minha gaveta. Nunca me aconteceu nada. Quando foi em janeiro, eu fui para a praia, fui na véspera de Ano Novo. Eu fiquei a véspera de Ano Novo e vim embora no dia seguinte do Ano Novo. Quando chego na minha casa, a minha casa assaltada. Levaram tudo! Levaram o meu dinheiro, levaram todas as alianças que eu tinha, eu só fiquei com essa de casamento. Levaram a aliança de bodas de prata, aliança de vinte e cinco anos de casado. Levaram corrente de ouro, que eu ganhei de casamento de um tio meu, que era irmão da minha mãe. Limparam, limparam minha casa. Tanto que eu tenho até a fotografia, eu tenho a fotografia de como eles deixaram o meu quarto. Pegaram as gavetas, jogaram tudo no chão. Jogaram toda a roupa. Levaram o dinheiro todo. Limparam. Quando eu cheguei, eu vi aquilo, meu sobrinho que me trouxe, falou: “Mas a senhora deixou o portão fechado?”. “Não, pelo amor de Deus!” “Mas a porta da sala está aberta”. “Você está brincando?” Aí eu lembrei desse meu filho mais velho, que mora na Lapa. Falei: “O Nelsinho esteve aqui. Ele me deixou a porta aberta”. Bom, falei: “Nelsinho, Nelsinho!”. Não tinha ninguém. Aí, esse meu sobrinho falou: “Mas a senhora deixou esse balde aqui, de lixo?” Falei: “Não! O balde de lixo estava lá em cima”. Quando eu fui, fui direto no quarto, que não mexeram nem na sala, nada. Não levaram televisão, nada. Quando ele foi no meu quarto, falou: “Vem ver o que fizeram”. Fiquei quase desmaiada. Limparam a minha casa e a casa da vizinha. Do meu muro, subiram na vizinha, limparam a casa dela também. Desse dia para cá, eu já fiquei muito chateada. Depois, perdi minha nora, que é a mãe da Fernanda, que eu adorava aquela moça. Aquela minha nora, para mim, era uma filha. Até hoje não me caiu a ficha. Não caiu a ficha. Vai fazer seis meses que ela faleceu. Então juntou tudo, sabe? Agora eu acho que a minha vida mudou um pouco. Já não sou aquela mulher alegre como eu era, brincava... Gosto de conversar, mas mudou um pouco o ramo de vida meu. Mas tenho muita coisa, lembrança, muitas coisas velhas ainda.
P/1 – A senhora falou que não podia esquecer de contar uma coisa, quando a gente estava conversando. A senhora lembra o que era?
R – Do quê?
P/1 – A gente estava falando do marido da senhora, a senhora “Ah, eu tenho que lembrar de falar uma coisa”.
R – Não, acho que era da fotografia.
P/1 – Ah, tá. Então tá!
R – É isso aí.
P/1 – Como foi ser avó? Como foi ser avó?
R – Nossa! Foi uma alegria. Primeiro neto, que é o Marcel. E eu o batizei, é meu afilhado e meu primeiro neto. E amo de coração. É o mais velho já. Ele já é pai agora. Marcel já é pai. Eu tenho uma bisneta, filha dele, que vai fazer três aninhos. Três, já fez dois. Depois tem os outros netos, não é? Para mim os netos são todos... Mandam mensagem para mim: “Vovó, a senhora está bem? A senhora está boa?” Como eu estava te falando, estou morando sozinha, porque eles querem que eu vá morar... Não quero morar com ninguém, minha cabeça está boa ainda. Eu falei: “O dia em que a minha cabecinha ficar ruim, eu não quero dar trabalho para nora nenhuma. Eu pego, vou a um asilo, me encaixo lá, vocês se reúnem, cada um dá um pouquinho, paga para mim a mesada lá, aí eu fico para lá. Não quero a casa de ninguém. Por enquanto, não. Se Deus quiser, não”. E estou lá na minha casinha. Eles querem me levar... Como a Fernanda quer me levar hoje lá para Jaguariúna. Falei: “Não vou não, Fernanda. Vou ficar aqui na minha casa”. Eu comprei um armarinho, agora eles vão me trazer o armário. Eu vou tirar aquelas louças que estão no armário velho, já vou passar para o outro, então já vou me distraindo. Mas eles me querem muito bem, viu? Não tenho queixa dos meus filhos, dos meus netos. E vamos assim.
P/1 – A gente está caminhando para o fim já, dona Josephina. Mas tem alguma história que a senhora ainda tem que contar para a gente?
R – Nossa, bem, eu tenho tanta coisa para te contar...
P/1 – Então vamos lá!
R – Nossa, mas é tanta coisa!
P/1 – Então vamos lá!
R – Mas é coisa que tem que pular de uma coisa para a outra.
P/1 – Tudo bem!
R – Tem também a minha sogra, convivi com ela. As minhas cunhadas, que me queriam muito bem. Fui morar... São coisas que talvez nem valha a pena falar, porque águas passadas não movem moinho. Como fala o outro, não é? Mas é. Estou contando mais o que eu tenho na minha vida, em felicidade. Que eu passei tudo em felicidade. Agora, as coisas passadas, que a gente ficou magoada, não precisa nem contar, porque isso se passou, passou.
P/1 – Mas se a senhora quiser, a gente...
R – Nem vou contar. Se for contar... Vizinhos que roubaram a minha casa. Levaram... Vizinha minha, com quem eu tinha contato, levaram o enxoval da minha filha, nem vou contar, não vale nem a pena. Apesar de tudo, essa pessoa é assim comigo agora. Me trata na palma da mão. Então, eu pus uma pedra em cima e vamos acabar. São coisas passadas. Mas a minha vida particular, que eu contei para vocês, são coisas que eu tenho saudades. E tem mais coisinhas de escola, que eu tenho saudade. Que a gente usava aquele... A gente usava um suspensório aqui e a sainha. Quantas meninas chegavam e batiam a mão. “Larga a mão de bater que essa é minha roupa nova”. Eu tinha ciúme das minhas coisinhas. Sempre gostei das minhas coisas. Até hoje. Até hoje, meu neto está lá, é até feio falar. Aqueles potinhos de requeijão, ele come e joga. “Não joga!”. “Vovó, mas a senhora vai querer isso aqui?” “Sabe o que é, filho, sabe para que serve isso aí? Sobra um restinho de óleo, assim, a gente põe aí. Vai que precise de óleo para engraxar alguma coisa?” Até hoje eu sou meio assim, sabe? Mas são coisas mínimas, não é? Mas o resto está tudo bem. Se tiver mais alguma pergunta que eu possa responder...
P/1 – Eu tenho mais algumas perguntas finais. Mas, Gabi... Paulo? Eu posso caminhar para o fim ou tem mais alguma coisa boa que a senhora quer contar para a gente? Tem mais alguma história dessa parte boa que a senhora quer contar?
R – Não, não é história. É que eu escrevi, eu falei, eu contei um pedaço da minha vida. Só que nessa história eu não pus o meu nome, inventei o nome de uma mulher. Que eu fiz assim, que o casamento não é... O casamento é um matrimônio definitivo. Eu acho, na minha opinião, que eu escrevi, eu acho que o casamento é sagrado. É o primeiro casamento e é o último. Para mim. Agora, existe... Não, tem o primeiro casamento, tem o segundo, tem o terceiro, tem separação. Então, eu fiz esse pedaço. Até eu ia trazer. Depois falei: “Não vou levar não, porque é meio desagradável, não é?” Porque eu acho que fiz aquilo de cabeça. Pus uma atriz como nome, que ela se separou do marido. Por que ela se separou desse homem? Ela estava tão bem! Homem que tratava ela bem. Está com dois filhos maravilhosos. Eu pus na minha cabeça, escrevi. Até eu falei para a Fernanda: “Eu não vou levar, não, porque é coisa que para eles lá não vai interessar”. Vai interessar o que eu passei na minha vida. Então, por isso eu nem trouxe isso aí. Mas tem muita coisa que eu escrevo, assim, às vezes eu quero mandar, mas não mando não.
P/1 – Mas o que que motiva a senhora a escrever?
R – Eu acho que, escrevendo, eu me sinto mais útil. Entendeu? Que eu estou falando assim com você... Desculpe falar você... Que a gente... Estou falando assim porque eu acho que estou te falando. Mas se você me der uma caneta e falar: “Josephina, escreve aí papai, mamãe, eu acho que sou mais esperta do que falar”. Eu acho que para mim, a mão, eu gosto mais de escrever. Eu quando não tenho o que fazer... Não, porque uma mulher tem sempre o que fazer... Ou eu faço palavra cruzada, ou eu faço tricô, ou vou escrever. Eu não gosto de assistir. Filme eu não gosto, porque não entendo. Não é que não entendo. Quando passa o filme, enquanto eu vejo a imagem, eu vou ler, já perdi a noção. Não dá tempo de ler. Porque quando eu vou começar a ler, a imagem já foi embora. Então eu prefiro... Não assisto novela também. Assisti muito antigamente. Eu prefiro ver um desenho, que é coisa de criança. Ou senão desligo a televisão. Vou escrever. Faço uma palavra cruzada. Ou faço um tricô. Eu acho que a minha cabeça dá mais para o tricô. Fiz muito tricô. Vendi muitas toalhas bonitas, sabe? Que eu tenho até no meu celular, eu tenho aí. Fazia bolsa de latinha de tampa de cerveja. Aqueles ilhoses de cerveja, fazia aquelas bolsas. Vendia aquelas bolsas, naquela época, imagine? Que hoje eu nem sei quanto está. Vendia a R$ 2,00, R$ 3,00 cada uma. E vendia, viu? Inclusive, até tenho lá as tampinhas, eu vou fazer uma bolsinha vermelha para essa minha bisneta. Que eu vou dar de presente agora no Natal. Já tenho tudo preparado. Vou começar na semana que vem a fazer. Essas coisas eu gosto, sabe? Agora ler, para ler eu leio, leio. Eu leio muito a Bíblia, sabe? Eu leio bastante. Mas eu tenho muita coisa da Bíblia na minha cabeça. Mas muitas coisas eu não guardo. Não dá para eu guardar assim direto. Ler, eu leio. Se for preciso escrever, escrevo. Receita de bolo, escrevo. Prefiro mais escrever porque aí já vejo a noção que é. Mas outra coisa eu não... Gosto de trabalhar. Agora, tricô, eu gosto de fazer. Adoro fazer tricô. Mesmo com uma vista atrapalhada, que a outra está um pouco melhor, ainda vou tricotando.
P/1 – E dona Josephina, como foi comemorar os noventa anos?
R – Ah, os noventa anos, eles fizeram uma surpresa para mim, menina. Nossa senhora! Eu sempre falei: “Nossa, será que eu chego aos noventa? Será que eu chego aos noventa?”. E todos eles... E sabe como eu vou fazer? Chamei meus filhos e falei: “Olha, vamos fazer o seguinte... Vamos combinar... Eu dou um pouquinho, cada um dá um pouquinho, vamos num restaurante, aí eu convido todo o meu pessoal, as minhas amigas, todas as pessoas conhecidas”. Porque aí eu tenho gente. Se eu mostrar para você, o meu celular não para. Mensagem, me mandam. Gente que: “Oi, Josephina, você é tão amável. Como eu gosto de você!” “Que mulher boa!” Meu filho falou: “Mãe, eu não acredito como a senhora é assim. A senhora se dá com todo mundo!” Falei: “Me dou!” “A senhora pega amizade tão fácil”. “Eu pego, meu filho. Eu tenho muita educação”. Se eu entro em uma condução, eu falo: “Boa tarde”. Se a pessoa quiser responder, responda. Se não responder, não tem problema. Eu, quando entro no ônibus, falo para o motorista: “Bom dia!” Se ele quiser responder... Se não quiser, não tem importância. Eu desço: “Moço, por favor, dá uma paradinha! Obrigada. Vai com Deus. Deus te acompanhe”. Entende? É meu modo. Eu sempre fui assim. Então, como eu estava te falando. O que é que eu estava falando mesmo? Que agora saiu da memória.
P/3 – Da festa de noventa anos.
R – Ah, da festa. Então... Aí eu queria fazer uma festa. Queria fazer, ninguém se tocou. Falei: “Puxa vida! Não tem importância, vai!” Aí eles combinaram. A Fernanda, com a irmã dela e a minha filha combinaram de fazer uma festa surpresa no apartamento da minha neta. E o dia estava chegando, ninguém se tocava. Ninguém me telefonava, nada. Eu fiquei triste. Falei: “Puxa vida, noventa anos, eu vou passar em branco. Mas não faz mal”. Falei: “Seja o que Deus quiser”. Quando foi um dia, a Fernanda ligou em casa: “Vovó, eu quero que a senhora vá lá na minha casa”. Falei: “Fernanda, não vou porque eu não gosto muito da casa... Eu gosto de ir de manhã para voltar de tarde”. “Não, a senhora vai à minha casa que eu quero falar com a senhora”. “Não. Você vem aqui e conversamos aqui”. “Não, não”. Aí elas estavam combinando as festas, tudo. Aí, um dia... A Fernanda. Um dia, a minha filha chegou em casa. Eu falei: “Como é? Eu vou fazer um bolo, você fala, combina com os teus irmãos, a gente faz um bolo, a gente compra umas pizzas e faz o aniversário aqui”. E, nesse meio tempo, eles já tinham convidado todo o pessoal. Todos que estavam convidados, ninguém telefonava para mim. Porque eles pediram: “Não liga para minha mãe! Não liga, não fala nada. É uma surpresa”. Veio uma japonesa que eu não via há mais de vinte anos. Quando eu vi aquela mulher, eu quase que desmaio só aí. Eles quase me mataram. “Não comenta nada!” Ela descobriu essa japonesa, que era minha amiga. Meu Deus do Céu. Aí, quando foi um dia, ela falou: “Mãe, a senhora não vai comprar uma roupinha boa?” Eu falei: “Para que eu quero roupa boa, se eu tenho tanta roupa aqui, cheio de roupa?” “Não, não. Eu vou dar uma blusa para a senhora”. Essa minha neta me deu uma blusa, compraram uma calça. “A senhora vai bem... Eu vou levar a senhora... A Carol... para um restaurante. Nós vamos comer umas pizzas no restaurante. Então, a senhora vai bem arrumadinha, porque no restaurante tem muita gente. A senhora vai ver gente lá”. Nem a ideia passou. Falei: “É lógico. Restaurante sempre tem gente, não é? Mas quem é que vai?”, eu falei. “Não, vou eu com o Valtinho”, que é meu genro. “Vai o Beto com a Sônia”, a Sônia era viva, não é? Porque faz seis meses que ela morreu. “Vai o Beto com a Sônia. E a Carol com a Fernanda. O Edson não vem”. Que é esse que mora no Guarujá, que é esse que está em Brasília. “O Edson não vem. O Fabi também não vem, porque ele está viajando”. E estava tudo já preparado. “O Nelsinho também está trabalhando, não vai poder vir. Só vou eu e o Beto, com a Sônia e as meninas”. Eu falei: “Tudo bem”. Eu falei: “Eu vou com esse sapato”. “Não. Não vai com este sapato, não. Vai com aquele ali, que está mais bonito”. “Mas eu não gosto daquele sapato, Norma. Eu quero esse aqui”. “A senhora vai com esse aqui”, porque era o melhor, sabe? O outro é que eu andava muito ali, não é? “Vai, põe uma roupinha melhor”. Aí me puseram no carro. Quando eu fui no carro – na esquina – eu vi uma moça conhecida, minha vizinha, que ela estava convidada para ir. Ela estava esperando eu chegar, para ela ir de carro na frente. E fomos embora. Fomos embora e o pessoal todo lá. A mesa arrumada, todo mundo lá. Eu falei: “Mas onde é esse restaurante que vocês vão? Vocês vão me levar aonde?” “É perto da... Não falei para a senhora que é perto da casa da Carol? A Carol mora no apartamento e o restaurante é ali. Restaurante não, é uma pizzaria. Nós vamos comer pizza. Não é restaurante, mãe. Não vai pensar que é comida, não. É uma pizza que a Fernanda vai pagar e o Beto”. Está tudo bem. “A Sônia vem?”. “Vem. A Sônia está esperando”. Aí eu vi que eles entraram por uma rua, depois entraram por outra, eu estava na mão deles, não é? Aí, ela falou: “Vamos descer aqui que a Carol também vai”. Que era o apartamento em que mora a Carol hoje. Aí desci lá no apartamento. Ela falou: “Espere, eu vou abrir a porta e vou chamar a Carol”. Menina do Céu, sabe que eu chorei? Eu... Me deu uma emoção tão grande quando ela abriu aquela porta, todo aquele povo em cima de mim. Esse meu filho falou que não vinha, veio. Todo mundo. Me abraçaram. Eu falei: “Meu Deus!”. “Mãe, tem uma novidade aqui”. Quando eu vi, a jap... Nossa! Eu fiquei ruim, menina, você sabe? Eu quase desmaiei. Precisaram me dar água com açúcar. Que eu fiquei num estado que eu falei: “Eu não sei se vou chegar a ir para casa”. Eu falei: “Eu não sei se vou chegar a ir para casa”. Mas, graças a Deus, fizeram uma festa para mim que eu não esperava. Uma festa maravilhosa. Todos os meus filhos. Todos os meus netos. As bisnetas. Amigas, conhecidas, cunhadas. Nossa! Aquilo me emocionou demais. Aquilo ficou... Ficou no meu coração. Até hoje não esqueço.
Agora, você vê. Fiz noventa e um anos já, não é? Já não teve nada. Não teve nada não, compraram umas pizzas e fizemos em casa. Porque os meus filhos falaram: “Mãe, noventa anos são noventa anos!” Daqui para a frente, é como eu falo, é tudo lambuja. Mas, olha, fizeram uma festa maravilhosa. Essa minha neta ai e a irmã dela e a minha filha conduziram tudo aquilo. Mandaram... Compraram tudo feito: coxinha, empadinha, salgadinho, elas fizeram doce, enfeite. Você tinha que ver os enfeites. Noventa anos, puseram aquela bexiga enorme, noventa anos. Tiraram fotografia. Nossa, você tem que ver! Eu não sei se o álbum está aí. Me deixaram ficar... Nem sei. Foi uma felicidade que eu acho que nunca mais eu vou ver essa felicidade. Vou ver na fotografia. Mas em vida mesmo... Mas foi assim, foi maravilhoso, viu? Espero que... Agora, noventa e um, noventa e dois é uma idade que todo mundo já passa, não é? Mas os noventa anos foram bem maravilhosos, mesmo.
P/1 – Muito bem! Posso fazer as duas últimas perguntas?
R – Pode! O que você quiser perguntar para mim, eu respondo.
P/1 – Tem mais alguma coisa que a senhora queira contar, antes de...
R – Minha filha, eu tenho tanta coisa para contar, se eu contar, você sabe? É como eu falei: “Eu vou embora daqui à meia-noite”.
P/1 – (risos)
R – São coisas pequenas que você guarda. Depois tem que distribuir assim. Tem muita coisa. Muita coisa.
P/1 – Mas se a senhora quiser falar alguma coisa agora...
R – Não, você pode perguntar. Se eu lembrar alguma coisa, eu falo.
P/1 – Então eu tenho mais duas perguntas. A primeira é: como foi para a senhora vir aqui contar a sua história de vida?
R – Pela Fernanda. Ela chegou um dia e falou: “Vovó, a senhora...”. Eu falei: “Fernanda...”. Eu falei para ela: “Fernanda, eu vou fazer um romance”. “Como?” “Eu vou fazer um livro. Das coisas da minha vida, de quando eu tinha sete anos. O vestidinho que minha mãe me deu”. Sabe? As coisas que eu trouxe aí. “Eu vou fazer um livro”. “A senhora faz?” “Faço!” Aí o meu filho, o Flávio, trabalhava na Globo, ele, um dia, ele veio em casa, eu não sabia, ele estava gravando e eu não estava sabendo. Ele, conversando comigo, falou: “Mãe, conta...”. Eu falei: “Ah, Fabi, a mamãe esteve na escola, com sete anos...”. Ele foi gravando. Ele gravou um pedaço enorme. Tanto que eles devem ter ainda no celular. Não sei se está no celular deles. Depois, ele desligou tudo, ele falou. Aí, ele ligou. E eu falando. “Espera, o que é que foi? Quem está falando, Fabi?” “A senhora”. “Como eu estou falando?”. Aí, eu não sabia. “Eu gravei a senhora”. Aí, foi quando eu falei: “Não, então é sinal de que eu tenho capacidade para lembrar muita coisa”. Aí foi quando eu comecei a escrever. Porque aí eu vi. “Tudo isso? Eu lembro de tudo. Eu tenho vestidinho até de três anos”, que eu trouxe até aí. Meu vestido de batizado, que a minha mãe me deu. “Então eu vou escrever um livro. Eu tenho... Eu não estou caduca. Eu não estou velha, não! A minha mentalidade está boa”. Aí foi que eu falei, aí eu contei para a Fernanda. “Vó, eu vou arrumar um lugar”. Eu falei: “Você não vai deixar eu passar vergonha. Se vão me filmar lá, alguma coisa, vai na televisão, eu em televisão não vou. Não vou, não. Até vou, porque eu não tenho vergonha”. Ela falou: “Não, não”. Aí foi quando elas arrumaram vocês. Porque teve uma época em que eu tive uma perua muito velha, estava no sítio. E a Fernanda queria que eu mandasse uma carta para... Para aquele que fala... Na Lata Velha, sabe? Só que tinha que ir lá na Globo. E eu falei: “Eu vou!” Que se fosse para ir, eu ia. Aí, esse meu filho falou: “Mãe, a senhora vai lá no palco, eles vão fazer a senhora cantar”. “Eu canto!” “Vão mandar a senhora pular”. “Eu pulo!” “É vergonha para nós. Eu trabalho ali. Eles vão dizer: ‘Olha, é a mãe do Bello na televisão”. Eles me tiraram da minha mente. Mas eu ia fazer isso, viu? Então, por isso que eu falo que é coisa que eu escrevo... Aí, a Fernanda descobriu vocês aqui. Não sei como foi. Mas ela sempre falava. Falei: “Eu vou, heim? Mas eu vou falar o que eu sei. Eu vou falar tudo o que eu sei”. “Não. Ela vai perguntar, a senhora fala”. Depois, no fim, ela brincou comigo: “Olha, vovó, a senhora vai mesmo?” Falei: “Vou!” Mas eu falei: “Não é coisa de ir na televisão, com artista, assim, porque eu, perante esses mais grã-finos, eu não sei conversar direito. Eu vou contar o que eu sei”. “Não, não. A senhora pode ficar tranquila”. “Está bem”. Aí foi que ela marcou com vocês. Tinham marcado, acho que era na quarta-feira passada. Não deu certo, não é? E elas marcaram hoje. Ainda falei: “Olha, terça-feira faço fisioterapia, faço acupuntura por causa da coluna. Quinta-feira eu tenho oculista, aqui em Pinheiros. Então, eu preciso ver o dia em que você vai, porque eu não posso perder esses dois dias”. “Não, não, vovó, está marcado para quinta-feira. Pode ficar tranquila”. Agora, na quinta-feira que vem eu vou ao oculista. Passei para quinta-feira que vem. E hoje eu vim para cá com ela.
P/1 – E esse livro que a senhora começou a escrever, da sua história, tem um nome?
R – Não, não. Eu escrevi num papel. Eu que falei. Eu escrevi tudo num papel. Num caderno. E eu ia pôr o nome do livro, não é? Ia pensar que nome eu ia pôr.
P/1 – Que nome seria?
R – Olha, eu tinha pensado em pôr As Três Maravilhas. Porque eu achei um papel de três meninas, são três irmãs, está escrito: Três Maravilhas. Eu não cheguei a ler esse livrinho. Não é livrinho, é um... Como se fala? Aqueles pequenininhos, sabe? Tipo romance pequeno. Eu vi esse ai. As Três Marias. As Três Meninas. Se eu escrevesse, que eu não vou escrever, que eu... Não vai ter capacidade, eu queria pôr esse nome, que eu achei muito bonito.
P/1 – E como foi para a senhora hoje? O que a senhora achou de contar a sua história para a gente?
R – Maravilhoso. Gostei demais. Adorei vocês. Maravilhoso. Se precisar novamente mais alguma coisa é só vocês ligarem. Eu venho. Tá?
P/1 – Está bom!
P/1 – Aproveitar que ainda estou com a... A minha vida está boa ainda. Eu tenho fé em Deus que eu não vou perder a noção. Sabe, a gente fica meio esquecida, não é? Mas, graças a Deus, muita coisa eu sei. Muita coisa passada. Coisas ruins que passaram na minha vida. Sabe? Que nem eu falei esse negócio, que me roubaram, vizinho. Então, isso tudo eu já... Eu pus uma pedra em cima. “Deixa para lá. Vamos viver a vida agora, não é?” E é assim.
P/1 – Eu tenho uma última pergunta.
R – Pode falar.
P/1 – Antes, vocês têm alguma?
P/3 – Tenho. Eu fiquei curioso. A senhora falou do vestidinho, que vestidinho é esse?
R – É um vestidinho que eu trouxe aí, de organdi, que minha mãe batizou, eu fui batizada com esse vestido. Mas é um vestidinho que, olha, eu até falei para a Fernanda: “Eu queria passar a ferro”, porque ele está todo amarrotado. E ela ainda marcou, na caligrafia dela, Josephina, para eu não esquecer que era meu. Mas eu falei para a Fernanda: “A mãozinha é uma coisinha de nada, é um vestidinho...” Antigamente eles batizavam as crianças com um mês, dois meses. Não esperavam ficar grande. Esse vestidinho, acho que eu devia ter mais ou menos uns dois meses quando a minha mãe me batizou. Aí, quando já fiquei moça, ela falou: “Olha, esse vestido é seu, do batizado”. E esse vestidinho que está aqui, esse outro, foi a mamãe que fez, viu? Ela falou. A minha mãe quem fez. O que eu trouxe aí. Um velhinho. Até é bonitinho, o modelinho. Mas eu trouxe aí. Eu nem... Eu ia passar a ferro. Mas a Fernanda falou: “Ih, vovó, se a senhora passar, é capaz de encolher”. Porque é um organdi, essa fazenda nem sei se existe mais hoje. Eu trouxe aí também, esse vestidinho. E trouxe o sapato do meu irmão. Do meu irmão também. Se tiver mais alguma coisa...
P/1 – Por que é que a senhora guarda tanta memória?
R – Você vê! Tanta memória e tanta coisa na minha casa que eu guardo. Se você visse o que eu tenho na minha casa! Eu falei para os meus filhos: “No dia em que eu morrer, vocês vão me xingar tanto!” Vocês vão falar: “Ai, aquela velha”. Olha, menina. Eles falam que eu sou muito, como fala? Não é bagunceira. Como que é? Tudo que eu vejo, que eu gosto, eu guardo. Qualquer papelzinho que eu vejo, que está marcado ali, eu guardo. Marco tudo. Menina, eu marco tudo, tudo. Se eu vou... O dia que chega o gás, o dia que eu tenho que pagar uma conta, o dia que eu tenho que fazer um exame. Tenho tudo marcadinho ali. Às vezes, eu falo: “Ah, está lá marcado, vou lá. Tal dia eu tenho que ir em tal lugar”. Eu tenho coisa. Nossa! Eu tenho botões, que quando eu trabalhava na fábrica de botão, que eu trabalhei, costurava botão no papelão, caixa de botão assim que, quando sobrava, eles davam para a gente. Está tudo guardado. Ainda hoje falei para a Fernanda: “Olha quanta tranqueira eu tenho que jogar fora”. Muita coisa. Eu guardo tudo. Eu não sei por quê. Meus filhos falam: “Mania de velho!”. Guardar bagunça. Se tiver alguma coisa que eu possa responder, eu respondo.
P/1 – Eu tenho mais uma pergunta para a senhora. Pode pensar um pouquinho antes de responder. Quais são seus sonhos?
R – Como?
P/1 – Quais são seus sonhos?
R – Os meus sonhos? É de ver meus filhos com bastante saúde. Quero ver, quero viver um pouco mais para ver eles todos com saúde. Depois aí a vida pode me levar. Eu quero passar um pouco mais com eles. Ver meus bisnetos crescerem um pouquinho mais. Ter mais um pouco de regalia com eles. Não faço... Não tenho ganância por dinheiro, para ganhar. Não jogo em loteria, porque se eu jogar sei que vou ganhar, para mim não vai adiantar nada. Eu só peço a Deus saúde para mim, para os meus filhos, meus netos e para os meus familiares, as pessoas que gostam de mim. Porque eu faço as minhas orações. Rezo toda a noite. Rezo para quem gosta de mim. Eu peço oração para todos eles. Recebo muita graça. Entende? Isso é o que eu quero. Não quero mais nada. O resto está tudo bem para mim. Tudo encaminhado.
P/1 – A senhora fica pensando em quando chegar a hora da senhora?
R – Não. Às vezes, eu falo: “Ah, meu Deus do Céu!”. Não, nem quero pensar. Porque eu quero viver um pouco mais. Eu falo: “Não, meu Deus. O Senhor gosta tanto de mim, deixa eu ficar um pouco mais aqui, para me divertir mais um pouco. Depois o Senhor me leva”. Mas eu converso com Ele. Eu sento na cama, eu falo com Deus. Falo com Ele. Falo com meu Santo. Às vezes, eu estou rezando, o meu neto chega lá: “O que está fazendo?” Eu não converso com ele. Estou rezando. Vou falar o que estou fazendo, não é? Quando eu termino de rezar, eu falo: “Você não está vendo que a vovó está rezando? Eu estou fazendo a minha oração”. Eu ponho um banquinho ali e fico. Tem um altar lá no meu quarto. A Fernanda sabe, viu. Tenho todos os meus santos lá. Sou muito católica. Não sou de viver em igreja. Como se diz: é beata. Não sou beata. Vou à igreja quando posso. Mas a minha igreja está dentro da minha casa. Lá eu rezo para os meus filhos. Para o Anjo da Guarda de todos eles. Para a minha família toda. Quando eu vou para a rua. Eu vou lá pedir para eles que me tirem da minha casa e me levem para a rua. E da rua me tragam para minha casa. Minhas orações sagradas. Minha vida é essa. Gosto muito de conversar, quando as pessoas... Uma conversa gostosa, sabe? Um ambiente que dá para... Mas muita patacoada assim eu já corto um pouco no meio. Mas eu gosto muito da minha vida. Graças a Deus. Tenho saúde. Uma mulher... O que é que eu tenho no meu corpo? Só a coluna que, de vez em quando, dá aquelas quebradinhas. Você vê, as minhas pernas estão fracas. Mas também, com noventa e um anos, eu quero mais o quê? Não é verdade? Trabalhei muito. Fui uma dona de casa muito grande. Meu marido sempre me elogiava. Eu fui o esteio da casa. Ele falava para mim. “Você é o esteio da casa”. Ele recebia o pagamento, punha na minha mão. Eu fazia de tudo! Ele não sabia o que é sair do portão para pagar uma conta. “Quem vai pagar a conta?” “É a mamãe!”. “Quem vai fazer isso?” “É a mamãe!”. Sabe? Só tem uma coisa: eu tirei carta, mas não sei dirigir. Porque depois ele morreu. Não dirigi. Se eu soubesse dirigir hoje, ninguém me segurava mais em casa. Pegava o volante. Ia na casa de um, passear, visitar. Gosto muito de viajar, mas não estou nem viajando. Já fui para a Argentina. O Flávio pagou passagem para mim. Fui eu com o meu marido. Conheci a Argentina. Também só a Argentina que eu conheci. Santos, essas cidades para cá. Agora esse meu filho quer que eu tire passaporte, quer me levar para a Itália, passear. Eu falei: “Filho, tira essa jogada da sua mãe, que agora eu estou com noventa e um anos. Eu não tenho mais condições de pegar um avião e ir para a Itália”. “Não, a senhora vai!” Ainda ontem. A Fernanda está de prova. Ainda ontem eu falei para ele: “Não vou, não. Eu não vou tirar passaporte porque eu não vou”. “A senhora vai sim. Já liguei para lá, só que precisa pegar o passaporte. Pelo menos a senhora tem uma cidadania italiana”. Porque eu sou neta de italiana. E assim. Mas estou bem feliz. Isso para mim, de estar com vocês aqui, vocês são maravilhosos. E se precisar mais alguma coisa que eu possa lhe ajudar, você fala com a Fernanda que eu venho novamente. Está bom?
P/1 – Combinado! Dona Josephina, muito obrigada!
R – Imagina, eu que agradeço.
P/1 – Foi lindo ouvir a senhora hoje.
R – Eu que agradeço, de coração. Gostei muito. Espero que esta entrevista tenha dado certo. Porque às vezes tem que pular um pouco, porque às vezes “gargajeio” uma fala, uma coisa errada...
P/1 – Foi tudo certo. Foi tudo lindo. Muito obrigada, dona Josephina.
R – Eu que agradeço vocês.
FIM DA ENTREVISTA
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