Programa Conte a sua História
Depoimento de Sônia Bischain
Entrevistada por Carol Margiotte
São Paulo, 30 de agosto de 2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV694
Transcrito por Eliane Miraglia
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Boa tarde, Sônia.
R – Boa tarde.
P/1 – Obrigada por ter vindo aqui hoje.
R – Obrigada pelo convite também.
P/1 – É um prazer! E, para começar, seu nome completo.
R – Sônia Regina Bischain Rosa.
P/1 – Local e data de nascimento?
R – Eu nasci em São Paulo, no dia 19 de junho de 1957.
P/1 – E a senhora sabe por que os seus pais escolheram esse nome, Sônia Regina? Sônia Regina, não é?
R – É. Minha mãe fala que, na época, era um nome que estava assim... Era sucesso na época. Ou seria Sônia Regina ou Vera Lúcia. Eram os dois nomes mais comuns quando eu nasci. E assim, só sei isso. Não tenho muita ideia. Minha mãe teve quatro filhos. Então, eu sou a segunda. E a primeira mulher. E ela escolheu esse nome. Não sei.
P/1 – E seus pais contavam para você como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim. A gente morava na... Meus pais moravam na Brasilândia, que é um bairro de periferia de São Paulo, numa rua sem asfalto, estava chovendo, era véspera de feriado, que era feriado de Corpus Christi que, acho que a cada... Eu diria que a cada cinquenta e sete anos caía no dia do meu aniversário, porque a única vez que foi feriado de novo, eu tinha cinquenta e sete anos. E estava chovendo. E parece que na rua havia muito barro. E foi à noite. Aí, o meu pai teve que ir buscar um carro na avenida, que era um pouco longe, o carro atolou. Todo esse drama. E eles tiveram que empurrar o carro. Meu pai se encheu de barro. Aí falam que ele chegou ao hospital e eu já estava quase nascendo. Meu pai entrou com a minha mãe numa maca para a sala de parto e acabou assistindo ao parto. E assim que acabou o parto, o pessoal falou: “Agora vamos cuidar do pai, porque ele desmaiou”. Na época, não podia ter homem junto na sala. Então é uma brincadeira que a gente faz, assim, que meu pai até desmaiou ao me ver, mas era uma brincadeira.
P/1 – E, falando nos seus pais, qual o nome deles?
R – Meu pai é Francisco, minha mãe, Vilma. Meu pai faleceu em 2015. E a minha mãe em 2006.
P/1 – Fale um pouquinho sobre eles.
R – Sobre eles.
P/1 - O que eles faziam, como eles eram também?
R – A minha mãe era mineira, veio para São Paulo mais ou menos com sete anos. A família dela era uma mistura de negro, índio e português. O pai era Manoel Rodrigues Soares, bem português. E a mãe era uma mistura de índio com negro, porque a minha bisavó – eu a conheci, eu tinha uns oito anos quando ela faleceu – tinha sido de uma tribo de Goiás, fronteira com Minas. E como todas as mulheres eram sequestradas... Na época e até hoje ainda tem essa história. E depois ela acaba casando com um negro recém-liberto, porque ela era do comecinho do século, do final do século XIX. Então, minha mãe era essa mistura.
O meu pai era filho de espanhóis que vieram para o Brasil na época da Primeira Guerra Mundial porque um dos irmãos da minha avó - minha avó se chamava Crescência - o irmão mais velho, Sebastião, foi convocado, estava sendo convocado para a Primeira Guerra. E a família foge da Espanha para o Brasil para ele não ir para a Guerra. Ele vem disfarçado de mulher dentro do navio para não ser pego como desertor. E aí eles vieram para o Porto de Santos. Eu fui até no Museu do Imigrante ver quando chegaram, tem tudo lá. A minha avó devia ter uns nove anos quando veio. E dali eles foram para o interior de São Paulo, na região de Matão. E foram trabalhar na roça. E eles achavam que iam trabalhar com rosas. Roças, de rosas, mas não era. Eram bem pobres. E depois em 1932, 1932... Vou beber água...
P/1 – Claro, pode ficar à vontade.
R – Com a Revolução Constitucionalista de 32, o meu avô tinha vinte e oito anos, também de nome Francesco, só que era Viscaíno - porque o nome do meu pai foi registrado errado, era Viscaíno o sobrenome - meu avô teve um problema no joelho e veio para São Paulo, que ele era de Matão, para se tratar na Santa Casa de Misericórdia. E aí estourou a Revolução em São Paulo e os estrangeiros foram retirados do hospital porque eles precisavam de vagas para atender os paulistas feridos. E aí meu avô saiu do hospital, voltou para o interior e o ferimento dele, que era no joelho, virou um tétano e ele morreu. Com vinte e oito anos. Meu pai tinha onze dias.
Bom, aí eles ficaram morando no interior e quando meu pai tinha dezessete anos... Então mãe viúva, tinha três ou quatro filhos, porque teve uma que morreu, meu pai era o mais novo, ela nunca mais casou - a minha avó - e eles vieram do interior depois, para São Paulo. Meu pai veio com... Veio uma irmã dele, que era mais velha, que devia ter uns quatorze anos quando ela veio sozinha, trabalhar como doméstica. E foi morar na Brasilândia, que é onde eu moro até hoje. E meu pai veio com dezessete anos. E aí ele foi trabalhar como bancário, que foi o emprego que eles conseguiram, ele tinha dezessete-dezoito, não serviu o Exército porque ele era acho que arrimo de família que eles falavam. E eles chegaram na Brasilândia em 1949. E a história da Brasilândia oficialmente começaria em 1947, dois anos antes. Então, estava bem no começo da fundação do bairro. Depois eles se conhecem, porque minha mãe foi parar na Brasilândia também, quando veio. Casaram em 1955. Nós somos quatro irmãos. Dois homens, duas mulheres. A minha irmã faleceu no começo do ano. Era mais nova que eu, mas... Aí, então, somos três agora. Um mais novo e um mais velho que eu, agora.
P/1 – E o seu pai contava a história de como foi vir para cá?
R – Porque lá eles tinham grandes dificuldades financeiras. Então veio mesmo para trabalhar. Tanto que veio a irmã antes, e depois... Ela arranjou o lugar para ficar e depois que ele vem e traz a mãe dele também para cá. Ficou um irmão no interior só, que viveu oitenta e nove anos e ficou, sempre morou lá em Matão, nunca veio para cá. E deu certo lá. Mas ele conta... Assim... Meu pai contava muita história do bairro. E acho que é por isso que eu tenho interesse em escrever, em falar histórias do bairro também. Como começou o bairro, não tinha asfalto, não tinha ônibus, não tinha luz. Eram várias dificuldades, como toda periferia de São Paulo.
Porque a Brasilândia era uma parte... Vamos dizer assim, ela estava ligada ao bairro da Freguesia do Ó, que é um dos bairros mais antigos de São Paulo. Tem mais de quatrocentos anos. E foi crescendo de tal maneira que hoje é distrito Brasilândia, distrito Freguesia, porque ela cresceu tanto indo para o lado da Serra da Cantareira, com várias vilas, jardins, parques – Jardim Guarani, Parque Pedroso, Vila Penteado – e acabou separando, nos anos 90, e virou a Brasilândia distrito, Brasilândia distrito Freguesia. Então, todas essas histórias das periferias de São Paulo não são muito diferentes da Brasilândia. A Brasilândia talvez seja um pouco mais antiga. E você tinha um bairro assim com pouca infraestrutura, faltava muita coisa no bairro: médico, transporte, esgoto, água, isso tudo foi sendo conquistado com a luta das pessoas do bairro.
P/1 – E você sabe por que eles escolheram a Brasilândia? Como foi essa decisão desse território? Como eles chegaram em Brasilândia?
R – Então... A Brasilândia, ela tinha um histórico - ela tem um histórico - que é o seguinte: quando eles começaram a revitalizar o Centro – que é a São João e a Prestes Maia – a ideia era expandir essas avenidas porque elas eram estreitas, você tinha muito cortiço ali. E a maioria era de pessoas negras. Por quê? Porque os barões do café moravam em cima, perto da São Bento, Direita, Praça Antônio Prado, tal. E os negros eram escravos dessas pessoas. E eles usavam a igreja, que ficava na Praça Antônio Prado, que era a Igreja do Rosário, no começo do século, para fazer seus cultos à noite. E o pessoal que mora lá, que eram os barões, os donos, achavam que eles faziam muito barulho. Então mandaram... Destruíram essa igreja, porque não tem mais igreja na Antônio Prado, onde tem o Estadão, o ex-prédio do Banespa, falei Estadão, não, é Banespa. E esse pessoal teve que descer e ir para o... Ali onde tem a São João, o lado de baixo, o Anhangabaú. Porque ali o que é que tinha? O rio, o brejo, era outra configuração. Então, jogaram eles para lá do rio, no brejo. E muitas famílias negras ficavam ali, depois acabaram construindo a Igreja dos Negros, que é no Largo do Paissandu. E depois eles pensaram em abrir essas avenidas para dar acesso para os bairros, e esses negros tinham que sair desse local. Então, ofereceram, nessa época, terrenos na Vila Brasilândia para essas pessoas, tipo, ganhava cinco mil tijolos, não sei quantas telhas e o terreno era barato. O lugar não era muito bom. Cheio de pedra, cheio de... Tinha rios, tinha lagos, lagoas, era bonito. Mas tinha pedra, para construir era... Fazer poço era um problema. E aí, muita gente foi para a Brasilândia porque era barato. Mesmo quem chegava de outros lugares, tinha essa fama. “Ai, é barato lá, dá para comprar”. Eu acho que a ideia foi essa. E o lugar estava aberto para essa coisa da habitação, sei lá, eu acho que foi isso.
P/1 – E a sua mãe contava a história da vinda dela para cá, de Minas para cá?
R – Então... A minha mãe falava menos. Meu pai era mais contador de histórias do que minha mãe. Mas acho que... Ela era de Montes Claros, de Minas. E eles vieram, tipo, ela tinha sete anos. Parece que eles foram para uma cidade no interior, Engenheiro Schmidt, ela falava, não sei que cidade é essa, e depois vieram para São Paulo. Os pais eram... Não sei quantos irmãos ela tinha. Porque a minha avó, essa minha avó, ela teve dez filhos, mas só quatro ficaram adultos. Então, também, eram pessoas muito pobres. E foram parar na Brasilândia. Antes disso... Sim, ela diz que eles foram para a região do Itaim Bibi, que era uma região nobre já em São Paulo. Ela fala que eles moraram também em cortiço, essas coisas, mas na mesma rua em que morava o Mazzaropi e a família do Paulo Maluf. Ela fala que os conheceu moleques, não é? O Mazzaropi acho que já era mais velho. Já era adulto. Ele já era um pouco conhecido. Mas ali também teve alguma coisa com revitalização e tiraram essas moradias. E dali eles foram direto para a Brasilândia também. Acho que pela mesma coisa, porque existia uma propaganda de que o terreno era barato.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram na Brasilândia?
R – Eu acho que foi... Eu acho, não! Eles falam que foi... Meu pai jogava bola na Brasilândia, ele era dos times de várzea lá, tal. E meu tio, que era irmão da minha mãe, parece que jogava bola também, meu tio tinha a bola. A bola era do meu tio. Parece que meu pai ia lá buscar a bola e ficava olhando para a minha mãe, que estava no quintal. E acho que numa procissão, eles acabaram... Da igreja que eles faziam lá, na época, nos anos 50. Tinha uma capelinha na rua principal, da Parapuã, na Brasilândia, e eles resolveram construir uma igreja, de fato. Aí, começaram a fazer uma série de eventos, de quermesse, para arrecadar dinheiro, para construir essa igreja, que ela existe até hoje - a Igreja de Santo Antônio que eles falam - e acho que durante essa coisa da procissão eles acabaram, sei lá, namorando, começaram a namorar. E ficaram casados cinquenta e um anos até minha mãe falecer, em 2006.
P/1 – E quando eles casaram, eles foram morar onde, Sônia?
R – Na Brasilândia, nessa casa que eu te falei. Que teve enchente, quando eu nasci. Que teve chuva. Brasilândia mesmo.
P/1 – E, além de você, você tem mais três irmãos. Fale para mim a ordem, com o nome deles por ordem de nascimento?
R – Tá. O primeiro foi o Carlos Roberto - a gente chama de Beto - nasceu em 1955, no final do ano, 15 de novembro. Depois sou eu. Depois a Sandra, que faleceu este ano, ela nasceu em 1961. E depois o Maurício, que é de 1968. Maurício é conhecido, ele é DJ, ele é meio conhecido, trabalha com eventos, música, tal, DJ Mau-Mau. Ele é bem conhecido. É meu irmão.
P/1 – Uau! E a senhora chegou a conhecer seus avós?
R – Eu conheci o pai da minha mãe, a mãe da minha mãe e a mãe do meu pai. Mas o meu avô paterno não porque ele morreu meu pai tinha onze dias. Mas o pai da minha mãe, ele morreu também eu tinha quatro anos, mas eu lembro bastante dele.
P/1 – Que lembranças a senhora tem dele?
R – Ele era bem... Assim... Todo mundo falava que ele era meio briguento, mulherengo, sabe assim? Mas ele saia pelas... Ele assim... Eu lembro de que ele deu um cavalo para o meu irmão, que ninguém tinha onde pôr. Ele tinha umas bizarrices (risos) que era meio... E o pessoal falava que ele era mulherengo. Minha mãe devia ter mais irmãos por aí. Então, parece que ele era meio danado. E ele vendia... Ele fazia doces, saía na rua vendendo. Então, todo mundo na Brasilândia o conhecia, porque ele andava muito. Arranjava briga e ele era bem assim bizarro. A mãe da minha mãe, que era mulher dele, ela viveu com a gente até falecer. Eu tinha dezenove anos quando ela faleceu, ela morava na minha casa quando eu era criança, e até dezenove anos. A mãe do meu pai também foi morar com a gente. Também faleceu em 1970, 1970. Eu tinha treze anos. Então, lembro bem também.
P/1 – E como é que era essa relação com as suas avós?
R – Muito boa. Era muito boa. A gente... Mais a mãe da minha... Porque assim... A mãe do meu pai, ela tinha uma filha, que morava perto, na Brasilândia também, que teve uma filha deficiente intelectual. Então, a mãe do meu pai, no caso, ficava durante o dia na casa dessa minha tia, ajudando. E, à noite, é que ela ia para minha casa dormir. Então, a gente não teve tanta convivência. Porque ela ficava mais para dormir. E alguma festa, algum fim de semana que ela ficava com a gente. E a mãe da minha mãe já ficava direto com a gente e, se ela ia viajar para visitar alguma filha, sempre levava um neto junto. Podia ser eu... Ela era a que mais unia a família. Assim... Sempre tinham os encontros. Porque minha avó fazia aniversário perto do Dia das Mães. Em maio, dia 10 de maio. Então sempre reunia todo mundo, sempre ia para o interior visitar minha tia, levava a gente, era uma pessoa que unia os primos, os tios.
P/1 – E a senhora falou que o seu avô fazia doces?
R – Porque mineiro, não é? Então ele fazia aqueles doces caseiros... Eu não sei, quando a gente é criança... Vendia na rua: quebra-queixo, cocada, esses doces... Não sei se é da tua época. Tinha mais um doce que ele fazia. Quebra-queixo, cocada... Eu não lembro dos nomes agora. Mas ele mesmo fazia e saía vendendo.
P/1 – A sua avó continuou fazendo depois?
R – Então... A minha avó trabalhou em fábrica de doce. Então ela também tinha as receitas dela. Mas aí ela fazia mais para os netos, para as festas na família. Ela trabalhou na vidraria Santa Marina, que era uma empresa muito antiga, que foi fundada antes de 1900 - um pouco antes - e fazia vidros. Porque ficava na Marginal, ficava perto da Marginal, no Rio Tietê, e eles usavam... Começou usando vidros, os vidros não, as areias coloridas que tinha no Rio Tietê, e faziam os vidros aí. Ainda existe. Eu não sei, acho que tem outro nome agora. Mas, todo mundo da Freguesia... Praticamente foi uma das primeiras empresas ali, então eles iam trabalhar na vidraria Santa Marina. Depois tinha outras coisas com brinquedos também. Umas fábricas de brinquedo. Então, as pessoas... Era muito conhecido no bairro porque todo mundo atravessava o rio e ia trabalhar na Santa Marina, que era perto da Lapa, ali, Água Branca...
P/1 – E tem algum doce que você gostava muito e que sua avó fazia?
R – Eu acho que era um doce de leite. Era muito bom.
P/1 – Você a ajudava em algum momento?
R – Sim, eu aprendi. Eu aprendi a fazer. Então... Muita gente da família já até esqueceu. Mas eu lembrava. E depois que ela morreu, continuei fazendo.
P/1 – Você pode contar para a gente como é?
R – Não, é muito fácil. Você pega, por exemplo, um litro de leite, um quilo de açúcar, uma colher de manteiga, fica lá mexendo, põe umas gotinhas de limão e depois ele dá o ponto. Ele fica meio creme escuro. Esses doces de leite que a gente compra pedaço. E demora um pouco até ele pegar o ponto. Depois você joga numa mesa de... Ou numa pia de mármore, e corta. É isso. É simples.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco dessa casa onde passou sua infância. Como ela era?
R – Então... Onde eu nasci, a gente ficou até eu fazer seis meses. Depois a gente foi para uma outra casa na Brasilândia, que a gente ficou até eu ter dois anos e meio. Era uma casa geminada, que tinha... Metade era nossa casa, a outra metade era outra casa, que era muito comum na época. E dali a gente mudou para a Vila Penteado, que foi onde eu passei... Eu estou até hoje. E eu tinha dois anos e meio. O lugar na Vila Penteado era assim bem... Não tinha asfalto, tinha um lago perto - uma lagoa, que a gente falava - um rio bem perto, tinha muito mato. Tinha frutas naturais do lugar - goiaba, pitanga, uma outra que a gente chamava de orvalho, a gente pegava amora silvestre no mato. Então, aos domingos, a gente saia para passear, andar no mato, pegar florzinha para levar para a minha mãe, pegar amora e pitanga, e fazia suco depois. Perto tinha os campos de futebol, que eles falavam que eram de várzea, muito comum na época. Tinha vários campos. Tinha o de Santa Cecília, o do Tiro ao Pombo, da Brasilândia, um pouco para lá. E meu pai jogava bola no fim de semana. Essas coisas assim... Nos times ele jogou muitos anos. Acho que ele parou de jogar... Ele começou com dezessete anos e foi parar com trinta e quatro. Então a gente ia... O pessoal ia pescar na lagoa, tinha peixe lá por perto. E a gente ia até, às vezes, até o Pico do Jaraguá, andando através... Pelos rios, pelos bairros, seguindo o rio, aos domingos assim - a gente fazia umas caminhadas assim e andava.
P/1 – Como era esse caminho?
R – Então... Pegava um pouco da Estrada de Taipas, que a gente falava. Era a antiga estrada para Campinas. Estrada Velha de Campinas. E você subia a minha rua, chegava na Estrada de Taipas e daí ia andando. Depois a gente descia umas trilhas para ir andando assim até o rio; a água era baixa, mas a água era limpa. Às vezes, a gente andando dentro do rio e a gente chegava lá. E andava e fazia muito essas caminhadas, era bem... Era bem comum assim.
P/1 – E como era a convivência em casa?
R – Sempre foi muito boa. Porque meu pai e minha mãe, a gente falava que eram eternos namorados. Eles se davam muito bem. Meu pai era muito engraçado. Ele falava que, quando ele era criança, ele queria ser palhaço. Então ele estava sempre contando piada, meu pai lia muito, estava sempre com o jornal na mão. Meu pai foi sindicalista, era bancário, uma pessoa bem... Ele só estudou quatro anos, os quatro de primário, mas era uma pessoa bem autodidata. Ele trabalhava na sede da... Dentro do banco, na seção mecanizada. Então ele mexia com os computadores, mesmo só tendo... E eram aqueles computadores monstros, não é? Do tamanho de uma sala, temperatura dezoito graus. E, às vezes, as máquinas até davam defeito, ele arrumava, porque ele se interessava e... Ele era bem inteligente. Bem autodidata. Lia muito. Estava sempre por dentro das... Então, a gente tinha uma convivência muito boa, todo mundo. Uma coisa bem tranquila assim.
P/1 – E com seus irmãos?
R – Também. Tudo... (risos)
P/1 – Vocês brincavam entre vocês?
R – Então... A gente tinha muita brincadeira, porque assim... Tinha muito mato, muita árvore, muito campo, essa coisa de sair todo mundo junto e pegar fruta no mato. De dentro de casa também, tinha árvores no quintal. Tinha muitas brincadeiras ali mesmo na rua. Hoje não tem mais. Com os vizinhos a gente tinha essa coisa de festa junina, faz fogueira, chama os vizinhos, cada vez era na casa de um. Cada um levava uma coisa. Um levava pipoca, outro levava pinhão, outro levava batata, outro... Então tinha essa coisa de organizar junto. Era uma coisa bem diferente de hoje, que você está meio que cercado, preso dentro do apartamento, só na televisão, só no celular. Era uma coisa bem mais...
P/1 – Ainda na infância, você se lembra de participar de alguma organização dessa festa? Talvez não ativa, mas vendo a movimentação em casa? Como é que era esse preparo?
R – Então... Mas tinha tudo isso. Porque a gente tinha... Por exemplo, as meninas ficavam fazendo bandeirinha. Os meninos iam procurar madeira para fazer a fogueira. A vizinha fazia... Tinha uma vizinha que era paraibana, ou uma coisa assim, do Nordeste, ela fazia paçoca em casa, então ela ficava lá batendo, a gente ficava lá olhando como é que faz. Eu não sabia fazer mas tinha essa coisa de fazer junto, de juntar todo mundo. Tinha um problema comigo, que eu tinha bronquite e era uma época que garoava muito. Às vezes eu não podia ficar muito tempo na própria festa porque não podia pegar sereno, senão ia para o hospital. Então tinha essa coisa que eu lembro bem disso, que eu queria ficar mais, mas tinha que entrar logo...
P/1 – Mas até que ponto da festa você podia ficar? Quem mediava isso?
R – A minha mãe (risos). “Está na hora de ir para dentro”. Tinha isso. Mas era gostoso. Dava para... Meu pai fala, da época dele - que já foi antes, não é? - que não tinha muita luz, não tinha iluminação nas ruas e que todo mundo fazia fogueira. Ele falava que era tanto que ficava tudo embaçado, de fumaça. E diz que para você andar, com a garoa e com as fogueiras, nessa época, você não enxergava muito à frente. Um metro ou dois só. Mas eu não peguei essa época. Mas acho interessante a imagem que ele coloca. Fico imaginando como era.
P/1 – Mas você acompanhou também a chegada desses equipamentos no bairro?
R – Equipamentos?
P/1 – Eu digo de...
R – Então... Isso foi uma luta de que eu participei mais nos anos 70. Era muito comum a gente juntar moradores, fazia comissões e fazia reivindicações. Então, eu fui de comissão de morador para conseguir asfalto em ruas, posto de saúde, creche, várias coisas. Iluminação, água, foi uma luta dos moradores. A gente tinha essa... Em termos de Brasilândia e Freguesia, a gente tinha fama de ser pessoas que iam atrás, que lutavam e que conquistavam. Conseguiam conquistar.
P/1 – Sim. Sônia, ainda na sua infância, como era a divisão dos quartos?
R – Dos quartos? Às vezes, não tinha. Tipo, você tinha, lá na minha casa, o quarto do meu pai e da minha mãe. Teve uma época em que era sala, quarto, sala e cozinha. Então, a gente dormia na sala. Você tinha sofá que você abria; poltrona que você abria e virava cama; sofá também. Então, acabava sendo... Demorou um pouco para fazer. Depois, meu pai construiu um cômodo, um outro cômodo, que acabou tendo dois quartos. Mas não tinha muita... Eu acho que muita casa não tinha... Os filhos se arranjavam lá numa beliche, num sofá que abria, iam dormir na sala. Isso era bem... Por ser um lugar pobre, de pessoas...
P/1 – E quando suas avós foram morar com vocês? Como vocês organizaram?
R – Então... Porque lá foi assim: meu pai, quando foi para a Vila Penteado, esse lugar aí, tinha uma casa na frente e um salão. E essa casa... Deixa ver se eu lembro como ela era, porque mudou tanto, mas acho que era cozinha, sala... É, cozinha, sala, quarto, mas depois a minha... Quando as minhas avós vieram, acho que tinha um quarto a mais. Eu não lembro muito bem. Eu acho que tinha dois quartos, cozinha e sala. E aí veio primeiro a mãe da minha mãe. Eu não sei direito como a avó, a mãe do meu pai veio. Eu estou tentando lembrar. Mas a minha avó, mãe da minha mãe, ficou viúva quando eu tinha uns quatro anos - por isso que eu não lembro muito bem - morou pouco tempo com uma tia e depois foi morar com a minha mãe. E eu acho que a outra avó já estava lá. A mãe do meu pai. É que eu era muito nova...
P/1 – Sim.
R – Então não lembro bem. Mas veio a minha avó com uma tia, que era solteira. E aí essa tia, para casar. Foram então construídos três cômodos no terreno, arrancaram as árvores, as nossas frutas e construíram três cômodos e banheiro atrás, dentro do mesmo terreno. E foi morar minha tia. A minha tia acho que ficou uns três anos lá e depois foi para o interior. Porque a família do marido era de Pirajuí, no interior de São Paulo, perto de Bauru. E aí, a família foi para lá e ficou esse cômodo na frente. Então cada avó foi morar em um quarto, na frente. E daí tinha um salão. Meu pai até depois abriu uma lojinha, no começo ele vendia armarinhos e material escolar porque tinha um grupo perto.
P/1 – E os filhos participavam dessas decisões em casa? De “vamos derrubar as árvores e construir um outro cômodo”?
R – Não. Não muito não. Acho que era uma decisão... Criança não falava muito. Era meio que ia acontecendo, você ia vendo.
P/1 – Você lembra desse dia que teve que derrubar as árvores? Você pode contar como foi descobrir o que ia acontecer? As sensações que você teve?
R – Eu devia ter uns seis anos, ou quase seis, não queria que derrubasse. Acho que sobrou alguma num canto. Mas a maioria foi derrubada. E eu me lembro que eu não gostei muito. Não queria que derrubasse. Mas não tinha muita opção assim. A gente não tinha muita voz também, quando criança. Eu não sei se não nos interessávamos, se eles não se interessavam, mas acho que não era grave assim. Não era uma coisa traumática. Mas assim... Gostaria que não tivessem derrubado. Mas não chorei.
P/1 – E a família, no dia a dia, tinha alguma tradição, tanto da avó, que era mineira, ou da parte da outra avó, que vinha de família espanhola? Tinha essa... Como é que eram essas tradições culturais? Acontecia em casa?
R – Eu acho que a mãe do meu pai era muito quieta. Porque ela ficava o dia, como eu te falei, ficava o dia na casa da tia, tal. Meio sofrida, assim. Eu achava ela uma pessoa triste. Não sei. E quieta. Meio fora de... Não sei, ela não falava muito. Era muito quieta. Ela não aprendeu a ler e escrever. Ela foi... As duas avós eram analfabetas, na verdade. E a mãe da minha mãe, sim, ela tinha um... Ela fazia coisas: por exemplo, bonecas de pano. Ela fazia dobraduras com papel, isso ela tentava ensinar para a gente, fazia os doces, gostava muito de dançar, e aquelas coisas meio que ciranda, ela ensinava as músicas da época dela, era uma pessoa mais aberta, vamos dizer...
P/1 – Você lembra de alguma ciranda?
R – Eram coisas comuns assim que a gente... Que hoje é – “Fui no Tororó, beber água”. “Sou carioca da gema” – essas coisas comuns, ela cantava. Hoje são, como fala, domínio público. Essas musiquinhas ela cantava todas assim. E ela gostava de dançar. Então tinha mais cultura vindo da... A mãe do meu pai gostava de contar algumas histórias que eram meio engraçadas assim. Ela contava umas histórias compridas assim de... Eu lembro dela contando umas histórias.
P/1 – Tem alguma que você lembre mais? Não precisa contar tudo, mas alguma para a gente saber?
R – Tem uma história de um menino que queria vender um pato. Era bem engraçado. O menino era pobre, tinha um pato e resolveu vender o pato para arranjar comida, porque já tinha acabado tudo na casa dele. E aí, toda casa em que ele chegava, ele batia palma e vinha a empregada atender o portão. E ele perguntava se queria comprar um pato e a pessoa falava: “Não! Não! Não quero”. Aí ele pensou: “Ah, essa pessoa deve estar com preguiça de fazer o pato, porque ela é empregada. Na próxima casa eu vou entrar direto para tentar vender para a patroa, direto”. Aí ele entra direto, mas chega na casa assim e acaba indo parar no quarto da mulher e, de repente, começa uma confusão, todo mundo correndo, enfiam ele e um homem dentro de um guarda-roupa. Porque o homem estava com a mulher, tal. Daí ele fala: “Moço...”- dentro do guarda-roupa - “Quer comprar um pato?” “Xi! Fica quieto, menino, que eu não quero comprar pato nenhum. Fica quieto”. “Se o senhor não comprar o pato, eu grito”. “Tá bom! Quanto que é o pato?” “Vinte contos”. Aí o homem dá vinte contos para ele. Aí ele fala: “Moço, quer vender o pato?” “Mas eu acabei de comprar o pato, menino. Não quero vender”. “Se o senhor não vender o pato, eu grito”. Vende. “Está bom! Me dá meus vinte contos”. “Não. Dez contos só”. Daí vende. E fica nisso: compra por dez o menino, e vende por vinte. E depois eu acho que o marido da mulher foi embora, tiraram eles do guarda-roupa, ele vai embora com o pato na mão e com o bolso cheio de dinheiro. Aí, ele pergunta... A mãe dele fala: “Mas o que aconteceu? Como você chegou com o pato e com dinheiro?” Aí, o menino explicou. Ela fala: “Mas está errado. Vai lá na igreja, vá se confessar. Leva o pato e o dinheiro lá e vê o que o padre acha melhor você fazer”. “Está bom”. O menino vai com o pato e o dinheiro, entra na igreja assim. Todo mundo olha para ele. Aí o padre olha e fala: “Não! Lá vem esse menino com esse pato de novo”. (risos). É uma história que eu lembro.
P/1 – Em que momentos ela contava essas histórias para vocês?
R – Normalmente à noite, porque a gente... Então... Tinha uma coisa assim... Depois das seis horas da tarde era muito comum acabar a força também. Nos anos 60, tal. E, às vezes, a gente se reunia, sentava no quintal, ficava olhando estrela, ficava contando história. Meu pai contava muita história. Minha avó contava. Sempre à tardezinha, começo da noite. Não tinha televisão, porque acabava a força. O pessoal se reunia, os vizinhos iam conversar no portão... Coisas assim.
P/1 – E tinha divisão de tarefa em casa, Sônia?
R – Mais ou menos (risos). Porque ainda era meio machista a coisa. Então, para as mulheres tinha mais coisas do que para os meninos. Mas também tinha um pouco para os meninos. Mas, às vezes, os meninos saíam para ir ao mercado, à vendinha. E as meninas ficavam mais com lavar a louça. O meu irmão mais novo já teve mais tarefa, tal, porque já estava mudando um pouco o conceito de tarefas, não é?
P/1 – E o que a menina Sônia queria ser quando crescesse?
R – “Ixi”, nem sei. Não sei se eu pensava muito. Eu acho que eu comecei a pensar... Não sei, a gente gostava de muita coisa assim, não era muito preocupante isso, eu acho. Aí, quando eu fui estudar é que eu comecei a pensar, que eu pensei em algumas coisas mas eu não decidi muito bem. Porque eu gostava muito de Química, eu gostava muito de Inglês e Literatura, mas não de Gramática. E gostava muito de Desenho. Então fiquei numas de “não sei o que eu faço”. Aí, eu fui trabalhar numa editora e gostei muito, porque tinha a ver com a Literatura, que eu gostava, e também com essa coisa da Arte. Porque a gente aprendeu... Na época não tinha computador, você tinha uma máquina IBM e todos os traços que tivesse você tinha que fazer com nanquim, na mão. Então aprendi a fazer, trabalhando. Eu fui fazer Editoração, Fotolito, Fotocomposição. E eu gostava de desenhar, de pintar.
P/1 – Mas isso na adolescência, Sônia?
R – Sim.
P/1 – Como foi essa decisão de precisar trabalhar?
R – Então... Porque eu fui trabalhar com dezesseis anos. Meu primeiro emprego foi na Sears Roebuck, que era uma loja de departamentos, e eu fui trabalhar no setor de Contas a Pagar. Tinha que fazer cheques para pagar os fornecedores da empresa. E ali eu aprendi a mexer com uma máquina, porque eles começaram a digitalizar tudo o que tinha lá, que era um setor meio que de computador que eles falam, mas não era bem, eram umas máquinas que faziam umas tiras de fita magnética, você tinha que... Não é mecanizar, é um outro sistema mais próximo do computador de hoje. Aí, eu fui aprender, aprendi a mexer nessas máquinas. Depois que eu trabalhei dois anos lá, eu vi um anúncio da Abril Cultural pedindo pessoas que trabalhavam em máquinas assim. Eu fui fazer o teste, passei e entrei na editora para fazer uma coisa que tinha a ver com mexer na máquina, mas fazia nota fiscal, umas coisas assim. E estando lá dentro, aí eu passei para a área da composição - que era onde fazia os livros - e aprendi a fazer editoração, que é como chama hoje. Antes, era composição, por causa do tipo de máquina. E aprendi toda a questão da arte-final, gostei muito. Tanto que eu não saí disso, até hoje faço isso.
P/1 – E o que você fazia com o dinheiro?
R – Eu queria mais água. Você põe? Eu posso pôr.
P/1 – Tem aí, Paulo?
P/2 – Tem.
R – Quê?
P/1 – Se ele também tem água.
P/2 – Tem bastante.
R – Então... Eu fui a primeira a ir trabalhar. O meu irmão, na época, estava para servir o Exército, essas coisas. Época de se apresentar, então ele foi depois. E o que eu fazia, você falou? Não, o dinheiro eu usava todo para mim mesma. Eu tinha que pagar todas as minhas contas, comprar minhas roupas. Gostava muito de comprar discos e livros, porque eu sempre fui de ler, desde os onze anos de idade, porque meu pai lia muito também, minha mãe lia. Então eu comprava livros, discos... Na época era vinil, não é? Roupas. E guardava um bom dinheiro. E depois que eu fiz dezoito anos, eu comecei a viajar. Porque antes também não podia, era mais difícil. Por ser menor de idade, precisava de autorização. Então, era uma coisa que eu usava para mim. E, às vezes, eu ajudava em alguma coisa - eventualidade na casa. Se tivesse alguma coisa urgente, então também ajudava, mas não era... Porque o meu pai era bancário e tinha o bazar. Então, era uma coisa... Até ir trabalhar também, antes, tinha que ajudar no bazar, porque a minha mãe é quem ficava cuidando.
P/1 – E como foi essa transição para a adolescência? Seus pais, ou sua mãe, conversavam com você sobre corpo, sobre ficar mais velha, entrar na adolescência?
R – Não, eles não falavam, minha mãe não falava muito, não. Era uma coisa que você descobria com amigos, na escola. Ela falava pouco, depois que já tinha acontecido ela falava (risos). Era uma coisa meio, não sei... Ela não falava muito, não. Mas você podia falar também, não era... Eu acho que também eu era meio quieta. E minha mãe também.
P/1 – E para se divertir, o que que você fazia, ainda pensando na adolescência, na juventude?
R – Lá no bairro tinha cinema, a gente ia. Que era um cinema do bairro. Mesmo estando estudando. Por exemplo, a gente estudava no colegial, que era o segundo grau, a gente estudava quase que na mesma rua do cinema. Então, às sextas-feiras, ia todo mundo para o cinema. Ninguém ia para a escola. (risos) Fazia isso. Saía todo mundo da classe e ia até o professor junto. Era mais comum você ir para o cinema, mas aí tinha... Era muito comum festinha na casa das pessoas, aniversários nas casas. Tinha um bailinho. Então você fazia... Era meio isso mesmo. Como eu gostava muito de ler também, eu lia muito. Eu ficava muito sentada, lendo.
P/1 – Tem algum livro que tenha sido transformador nessa época?
R – Então... Eu comecei a ler assim porque acho que tinha o incentivo da família de ler, mas quando eu entrei no ginásio, que era... Eu tinha dez anos, que eu entrei com seis e meio, dez e meio teve um primeiro livro de que eu gostei. E o segundo livro era do Érico Veríssimo, Olhai os Lírios do Campo. E a partir desse livro, eu comecei a comprar tudo o que eu podia do Érico Veríssimo e ler - a partir dos onze anos. Aí, depois, eu comecei a ler outros autores. Mas, principalmente ele.
P/1 – Por que ele?
R – Eu gostei muito do livro e aí eu comecei a ler tudo. E eu nunca parei de ler. Meu aniversário eu ia na loja e comprava um livro para mim, eu me presenteava com livro. Todo aniversário, quando eu comecei a trabalhar, com dezesseis. E se alguém perguntasse: “O que você quer ganhar?”, eu já dava o nome do livro também. E assim eu fui lendo.
P/1 – Quais os lugares em que você ia comprar livro nesse período?
R – Então... Tinha umas livrarias: Saraiva... Eu não vou lembrar tudo, e também como eu estava na editora eu já pegava na editora, porque eu fui para lá em 1975. E antes disso, na Sears - eu entrei em 1973, com dezesseis anos - vendia livro. Vendia livros e discos. Então eu já pegava lá também. E aí tinha várias livrarias: Siciliano, Saraiva já existia, eu não lembro de todas. Quando eu estava na... Trabalhando também... Eu trabalhei na Bolsa de Valores, nos anos 80, aí eu comprava ali na rua Direita, na rua São Bento, porque tinha várias livrarias. Fecharam quase todas. Então, o pessoal até me conhecia. Eu conhecia todas as prateleiras. Já ia lá.
P/1 – Você tinha um ritual seu assim, de entrar numa livraria, de quando você fosse comprar um livro? Tinha alguma coisa sua assim?
R – Não, eu conhecia meio que as prateleiras, que tipo de... Assim... Porque eles separavam: nacional, literatura estrangeira, política. Eu já tinha umas, mais ou menos eu conhecia e aí eu ia, dava uma olhada nas novidades, nos lançamentos, alguns autores de que eu já gostava, já ia direto naqueles autores também.
P/1 – E você falou que quando chegou aos dezoito anos você já pôde viajar. Fale um pouco sobre como foi a primeira viagem sozinha. Para onde foi?
R – A primeira foi para Recife e Olinda, porque tinha um pessoal que eu conhecia, que morava lá. Que estava ligado à Service, que eu falei para você. Então, fui de ônibus, quarenta e oito horas. Na época não se pensava em avião porque era muito caro. Foi em 1977. Ou foi antes? Não sei. Eu tinha ido para o Rio, acho que duas vezes em 1976, talvez. Mas aí foi com um pessoal... Meu irmão trabalhava no BANERJ - meu irmão mais velho - e acho que foi um ônibus levar lá o pessoal que era funcionário do BANERJ e eu me enfiei no ônibus e fui junto. E aí eu fui para o Rio. É, foi 1977 que eu fui para Recife e Olinda. Fiquei um tempo lá com o pessoal que eu conhecia. Umas duas semanas. Mas bem interessante assim. Porque estava... Eu estava dentro de um ônibus, queria ver tudo, não queria dormir. Dois dias. Uma doideira. Mas eu me lembro... Da primeira vez que eu estava dormindo, à noite, de repente começou muito barulho dentro do ônibus, muita gente falando e eu acordei. E, na verdade, a gente estava passando pelo rio São Francisco. As pessoas que estavam no ônibus - a maioria era nordestino que estava voltando para lá depois de ter vindo para São Paulo... A primeira vez... A maioria estava conseguindo voltar para ver a família, porque juntou um dinheirinho e estava voltando. E aí, eles estavam assim: “Ah, o São Francisco, o São Francisco!” Como se fosse uma coisa sagrada mesmo. Assim... E eu fiquei bem impressionada... O quanto aquele rio era importante para aquelas pessoas. Porque eu acho que a única coisa que dava vida para o Nordeste, era o rio. E eles estavam assim deslumbrados. E eu lembro que tinha lua e o reflexo da lua brilhou no rio e aí eu achei muito emocionante, até de falar eu fico... Foi uma coisa que eu não esqueci, porque eu vi a importância que aquilo tinha para aquelas pessoas. E a simplicidade delas também. E acho que da viagem - que foi a primeira - a coisa que mais marcou foi isso. E achei legal que eu fui de ônibus. Não tinha como ir de avião nessa época, mas eu pude ver isso. Achei bem legal.
P/1 – E como foi a viagem? Como era organizada a viagem? Foram dois dias? Como eram os pontos de parada? Alimentação?
PAUSA
P/1 – Sônia, a gente estava falando da viagem de ônibus. Conte como era esse dia a dia. Foram dois dias de viagem. Quais eram os pontos de parada, como era organizada essa viagem?
R – Então... Era... O que eu percebi... Eram dois motoristas, eles se revezavam. Aí, tinha os postos em que eles paravam, os lugares em que você podia comer - almoço, janta, café da manhã. Tinha alguns lugares em que você podia tomar banho, porque eles já tinham... Uma vez por dia ele ia parar em um lugar que dava para tomar banho. Normalmente, você pagava essas... Para tomar banho, pagava para comer. Aí você vai, por exemplo, daqui até o norte de Minas; é tranquilo. Aí começa. Você vê que são lugares mais pobres. A comida você acha meio... Isso na época. Hoje não sei como está. Porque 1977... Você achava mais duvidoso, aí comprava fruta. Depois melhora de novo. Assim... Você passa por alguns lugares que você acha muito pobre. Eu me lembro daquela parte de Sergipe, Alagoas, mesmo olhando na estrada você sentia que a população era muito mais pobre, sofrida. E depois, já quando você chegava em Maceió, eu lembro que aí eu vi tudo verde de novo. Eu falei: “Ah, acho que tem vida aqui”. E antes não. Você sente... Do norte de Minas até Alagoas e Sergipe, parecia muito pobre, tudo muito seco, muito problemático. Então eu fui registrando algumas coisas no caminho. Ou coisas muito bonitas na paisagem, ou coisas muito pobres. E as paradas eram isso. Você tinha um horário em que você podia... Às vezes tinha parada de uma hora, vinte minutos, dependendo da situação. Mas é uma aventura mesmo assim, de... Eu acho que você consegue ver algumas coisas pelo país. O quanto é grande, o quanto de distância tem entre as pessoas, entre as cidades, entre as coisas, porque a gente vive em São Paulo. Você vai vendo o quanto este país é grande e o quanto é diferente um lugar do outro. Com necessidades diferentes.
P/1 – E o que você buscava nessas viagens, Sônia?
R – Eu acho que era... Eu sempre quis conhecer também. Conhecer um pouco do país, um pouco da terra, um pouco das pessoas. Eu tinha muito envolvimento com as pessoas no próprio lugar em que eu morava. Muita luta com o povo ali. Em São Paulo, por ser periferia, tinha muita gente do Nordeste morando. Então, para você entender também as coisas que eles contavam. Nada como você ir ver a origem de onde eles vieram. Eu acho que isso dava uma luz para aquilo que eu estava envolvida com as pessoas.
P/1 – Mas você tinha uma pergunta que você queria responder quando você ia para esses lugares?
R – Não. Eu acho que era meio conhecer mesmo, curiosidade, conhecer. Eu acho que era um pouco isso.
P/1 – E como era a volta para São Paulo?
R – Você volta cansado, para começar. Mas é... Era bom ir, era bom voltar. E é lógico que férias e passeios, é sempre agradável. E, às vezes, você quer voltar, às vezes você quer ficar lá mais um pouco. Mas era tranquilo.
P/1 – Eu queria que você falasse, Sônia... Está tudo bem?
R – Está.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouco desse seu relacionamento, dessa sua relação, na verdade... Dessa sua relação com o seu bairro. O que você frequentava? Se você tinha alguma ação, algum posicionamento na época...
R – Então vamos lá. Eu acho que começa mais ou menos em 1972, que eu estava fazendo... Quando eu entrei no colegial - que a gente chamava - eu fazia parte do grêmio da escola. E a gente criou grupos para fazer coisas culturais ligadas ao pessoal da escola. Então a gente tinha... Eu estudei na Brasilândia, que era a escola João Solimeo, e a gente foi fazer... Por exemplo, a gente foi tentar escrever o histórico do João Solimeo. Quem seria esse homem? Aí descobrimos que ele era de Duartina, uma cidade do interior de São Paulo, que ele foi para lá, para a Brasilândia, como Secretário. Nós fomos à cidade dele fazer entrevista para saber quem era ele. Então... Ele veio para São Paulo como Secretário e ele tinha feito todos os armários que existiam na Secretaria. Porque ele também mexia com madeira, e a gente nem sabia disso. Porque não sei em que ano ele foi Secretário, eu não lembro, a gente fez o levantamento mas foi bem antes, tipo, ele veio nos anos 60 e a gente quis fazer esse levantamento nos anos 70. E aí, a gente fez entrevista, tudo, descobriu, a gente fazia... Depois ele virou diretor da escola; de Secretário, ele virou diretor por muitos anos. E lá em Duartina tinha todo o histórico dele, porque saía nos jornais a nomeação, não sei o quê, e eles guardaram. E, dentro da Escola João Solimeo, a gente não sabia nada. E aí a gente também fazia... Além desse histórico... Só estou falando isso porque eu sempre me interessei pelas histórias do bairro, pela memória, sempre foi uma coisa do meu interesse. E aí a gente também fazia coisas culturais. Então, tinha um clube lá, que era o clube Tiro ao Pombo, onde eles faziam tiro ao pombo - depois foi proibido atirar em pombo - eles jogavam prato e atiravam. Era um clube de campo que fazia isso. A gente podia ocupar - tinha espaço - a gente conseguiu ocupar para fazer algum evento. A gente fazia festival de música nos fins de semana. Aí, chamava jovens do bairro, que tinham banda e iam fazer esse festival; chamava-se pessoas que se apresentavam, não era uma coisa - como é que fala? - não era um concurso, nada. Era só apresentação. Aí, tinha isso. Depois a gente começou a fazer uma coisa chamada Arte na Praça, que era... A gente arranjava lá com os comerciantes do bairro, papelão, papel, cartolina, lápis, tinta e fazia umas coisas nas praças - tinha bastante praça - com a molecada. Então levava tinta, a molecada pintava, colocava no mural. Se tinha algum grupo do bairro que sabia fazer um teatrinho, ia se apresentar; músico, ia tocar uma música; a gente conseguia fazer essas coisas. Era uma vez por mês, aos domingos, e sempre a gente trocava de praça. Mas isso estava ligado com esse grupo de gente, de jovens...
P/1 – Tinha um nome?
R – Não. A gente chamava de Arte na Praça. E aí tinha várias pessoas assim do bairro, que era tudo molecada jovem, de dezesseis, dezoito, e a gente fazia essa atividade.
P/1 – Mas o grupo tinha um nome ou não?
R – Não. Era meio solto assim. Meio a turma do bairro. Bom, aí eu entrei mais ou menos em 1973 para a comunidade - que eram as Comunidades Eclesiais de Base - numa igreja na Vila Penteado. Essa época era época de ditadura, e tal. Então você não tinha muita voz, tinha problema de censura, tinha várias coisas. E aí a gente procurava então informar às pessoas, fazer encontros de estudos, ouvir as músicas, muita música foi censurada na época, ninguém conseguia ter as letras. Então, a gente fazia reunião e tentava informar. Porque, por causa da censura, não chegava quase nada. E a gente começou a se envolver com os problemas do bairro. Eu, nessa época, fui coordenadora dos jovens na comunidade e aí eu comecei a participar das comissões de moradores, a gente ia lá fazer reivindicação, sei lá, para asfaltar uma rua, não tinha creche, não tinha pronto-socorro, não tinha hospital na região, posto de saúde, tinha muita carência. Tinha ruas que tinha uma pedra no meio, não passava nem caminhão de lixo, nem nada. Tinha loteamentos clandestinos, que as empreiteiras fizeram uma planta e, por exemplo, onde tinha que vender um terreno de 10 metros por 20, aí eles cortavam ao meio, vendiam dois. E o registro, a escritura, e tudo isso, não tinha. Tinha rua que você tinha que comprar o botijão de gás e carregar nas costas, porque não passava o caminhão. O lixo não passava porque tinha pedra. Mas, ali na planta estava escrito que estava tudo certo. Por isso não dava para regularizar. E a gente começa a entrar nessa luta, com pessoas ligadas a essa Comunidade Eclesial de Base, moradores, e reivindicar essas coisas.
Então eu me envolvi nesses trabalhos, teve até uma ocasião de um governo itinerante do Paulo Maluf, em 1980, em que ele ia nos bairros e falava que ouvia as reivindicações das pessoas. Aí ele foi na Freguesia, que era Freguesia-Brasilândia - na época não era separado - e o pessoal é recebido com pauladas, soco inglês, cassetetes. Então, teve um evento em que todo mundo apanhou, que ficou conhecido como Pancadaria do Ó. Saiu até no exterior, jornal fora, tal, e por conta desse evento em que a gente estava e todo mundo apanhou, a gente conseguiu o pronto-socorro, que até levou o nome de 21 de Junho, que foi a data da pancadaria. Consegue uma creche na Vila Penteado, o posto de saúde, asfalto em algumas ruas. Então, eram lutas em que a gente estava envolvida. A maioria era de mulheres, porque as mulheres é que estavam no bairro, os homens saiam para trabalhar, a maioria era de mulheres nesses movimentos. Depois, nos anos 90, eu já não estava atuando muito, mas o pessoal conseguiu um hospital também. As mesmas mulheres. Aí, tinha esse movimento.
Dentro então das Comunidades Eclesiais de Base também começou a surgir movimento político das pessoas: as lutas pela anistia, pela volta dos exilados, pelo fim da censura, pelo fim da ditadura. Eu também me envolvi nesses movimentos. Isso de 1976 em diante, mais ou menos, é que ficou mais forte.
P/1 – E como era esse período da ditadura para vocês jovens da periferia?
R – Isso é uma pergunta que o pessoal faz, porque normalmente você... As notícias que a gente tem desse período foram escritas, livros e tudo, por pessoas de outra classe. Classe média, média-alta, pessoas que faziam universidade, essas coisas todas. Eu não sei se, no geral, as pessoas tinham consciência disso. Mas a gente estava num bairro - Brasilândia, Penteado, tal, esses lugares - que foi considerado um lugar de desova de corpos da época da ditadura. Então, era comum você, criança assim, estar andando e deparar com uma rodinha, tinha um corpo lá. Então, o pessoal até do Esquadrão da Morte... Às vezes não eram só questões políticas, mas criminosos comuns também que eles eliminavam - não sei qual é a palavra - e jogavam por lá depois. Então, você via, às vezes, corpos. Eu cheguei a ver, de criança até. Eu acho que o que a gente coloca é mais ou menos assim: não sei qual era a consciência geral das pessoas, mas essas pessoas ligadas à Igreja, era junto a elas que nós conseguíamos obter essas informações e sabíamos, mais ou menos melhor, o que estava acontecendo. Porque, através das missas, através de Dom Paulo, chegavam notícias do que estava acontecendo. Então, coisas que estavam censuradas e que não se falava nos rádios, a gente conseguia ter notícia e ficar sabendo.
P/1 – Mas como isso? Como vocês se reuniam?
R – Porque a Igreja... Então... Aí, o que acontecia? Eu também trabalhei na editora. Então, eu talvez fosse um caso à parte. Dentro da editora chegava informação. Tinha livro lá que chegava para você digitar e que depois era censurado. Ou que você fazia e depois ia para a censura e voltava com um monte de coisa carimbada que estava censurada e aí você tinha que mandar para o escritor de volta para ele reescrever um pedaço ou como é que ia tirar aquilo sem quebrar a história, tal. E muita coisa que chegava, às vezes até depois, não saía. Então, eu tinha algumas informações, assim. Dentro da Igreja, você tinha o folheto da missa, por exemplo, que acabava tendo alguma referência, alguma coisa que foi censurado, alguém que foi morto, alguma coisa: “Vamos fazer uma oração por Fulano de Tal, que morreu”. Você acabava sabendo de alguma coisa, os padres na nossa região eram bem ligados à Teologia da Libertação, eram pessoas que tinham feito opção pelos pobres e que passavam mais informações. Não todas as igrejas, elas não eram iguais. Você tinha umas de gente conservadora que não ia passar essas informações, mas, na região não era assim. Dom Paulo era uma pessoa aberta para socorrer também, e tinha o Jornal O São Paulo, que às vezes saía, que era feito pela Igreja, pela Cúria, que saía algumas notícias. E quando era censurado, vinha um negócio em branco, eles não punham nada no lugar. Ficava um buraco branco. Você sabia que teve alguma matéria ali, censurada. E você tentava ver quem é que sabia da notícia.
Por exemplo, Dom Paulo é o primeiro, acho que por ele... Quando morreu o Herzog - Vladimir Herzog - ele falou: “Vamos fazer a missa na Praça da Sé”. Eu estava na missa, porque as igrejas sabiam e iam para lá. E aí, o que ele faz? Os caras então falaram: “Não faz! Não faz que nós vamos lá invadir”. A repressão fala que não. Ele fala: “Nós vamos fazer”. Então foi uma coisa, fecharam Metrô, tinha cavalaria para todo o lado, policial para todo o lado, mas ele fez e a partir daí começa a abertura, de alguma maneira. E várias outras coisas que ele faz. Então, por exemplo, quando eles fizeram o traslado do corpo do Frei Tito, que morreu na França, ele tinha sido torturado aqui e tal. E quando acharam o corpo do Vannucchi, na vala de Perus, então foi junto, foi uma missa em 1983, eu acho, para o Vannuchi. Finalmente encontraram os restos mortais, e o Tito, que veio da França, os restos também. Então, fizeram a missa na Praça da Sé. Assim, quando você está... Porque nós participávamos das igrejas, a gente sabia dessas coisas, então a gente ia. A gente era convidado, era anunciado nas missas: “Vai ter”. Então, tinha informação. E eu acho que tinha um grupo de jovens que tinha essa informação porque estava mais dentro. Eu não sei se todo mundo tinha. Mas a gente acabava se envolvendo nas coisas do bairro, se envolvendo com os problemas do bairro, ajudando como podia, juntando moradores.
Era muito interessante porque você não tinha internet, não tinha telefone, a maioria, não tinha celular e era através dessas missas que a gente acabava convidando, conversando, se encontrando e, junto com isso, a gente tinha um trabalho cultural. Então, você promovia lá um baile, um forró, dança de salão, às vezes você promovia, fazia uma peça teatral, você fazia os festivais de música, fazia jogo de futebol com os moleques que gostavam de jogar. Também criamos uma entidade chamada Ação Comunitária Todos Irmãos, que foi criada em 1975, ela ainda existe. Eu não trabalho mais, mas eu participei da primeira, desde o começo - de 1975 a 1992, mais ou menos, eu participei dentro da diretoria. Era sem fins lucrativos, a gente não ganhava nada, era um trabalho voluntário e a gente conseguiu convênio depois com a Prefeitura. E a ideia era cuidar, fazer creches, porque não tinha. Como eu falei para você, a gente teve que fazer uma luta por creche pública, não tinha na região. E a
gente criou creches e projetos, com menores de sete a quatorze anos, usando o salão das igrejas. Então, havia quatro lugares de início, que a gente conseguiu fazer, uma média de quinhentas e quarenta crianças. Distribuídas em: aqui, cento e vinte, ali... Depois a gente conseguiu uma creche que o prédio era da Prefeitura, muitos anos depois. Depois a gente conseguiu um totalmente da Prefeitura, mas antes não tinha. E eu acho que teve umas vinte e sete igrejas no bairro que fizeram isso. Ocupavam o salão para fazer projeto com menores, ou com creche. Então foi uma luta também que a gente acompanhou, que eu estava junto.
P/1 – Como vocês comemoravam essas conquistas?
R – Então... A gente conseguia. Mas a gente fazia festa que juntava todo mundo, fazia encontros, era bem interessante porque... E acho que isso dava força para as pessoas continuarem e tentarem mais, muita... Eles tinham muitas mulheres envolvidas. Nessa época, tinha uma coisa do Clube de Mães, nas igrejas. Então elas iam nas regionais, nas reuniões com a Prefeitura, para falar o que que era mais importante no bairro. Às vezes dava certo, às vezes conquistava. Às vezes ficava lutando, lutando, não conquistava. Mas não desanimava! Então, acho que teve muita conquista. Muita coisa boa.
P/1 – E eu queria, Sônia, se você pudesse falar um pouco mais sobre a sua atuação lá na editora, ainda nessa época em que havia a censura. Se você pudesse descrever como era o trabalho que você fazia e como era receber essa informação de que uma parte estava censurada? Quais eram as sensações que você tinha, porque além de tudo você era uma leitora.
R – Sim.
P/1 – Então, se você pudesse contar um pouco disso.
R – O bom era que eu conseguia ler, mesmo o que foi censurado (risos). Era bem interessante, mas era bem cansativo, porque tinha... Eu lembro que a gente fez um livro do... Eu acho que era do Millôr Fernandes, que eram coisas que ele publicou no Pasquim, por exemplo, eu não lembro o nome. E o negócio ia e voltava. Ia e voltava, ia e voltava e não ficava pronto, porque toda hora arrancava um pedaço e ele tinha que substituir, depois arrancava outro. E assim ia. E, por outro lado, por exemplo, o que vinha do Nelson Rodrigues, que parecia pornográfico, passava! Embora também tenha tido uma época em que eles censuravam coisas pornográficas. Mas você sentia que tinha uma coisa que censurava mais política, coisas políticas, do que pornografia. Então, teve uma época também... A gente tinha um... Um primeiro diretor, um senhor que se chamava Rastelli, e o cara era muito bom em Literatura. Então ele escolheu ótimos livros para publicar. E depois parece que você tem um prazo de três anos para dar certo. Porque essa editora era assim. Ela foi criada pela Abril Cultural, chamava Editora de Bolso, para lançar livro de bolso. Então, ela deveria viver três anos e começar a dar lucro depois desses três anos em que eles estavam investindo em maquinário, pessoal, tal. E aí, quando começasse a dar lucro, incorporava como departamento da Abril. A Abril era a grande acionista desse lugar, e tal. Então, quando deu os três anos, eles trocaram por outro diretor que trabalhava com embalagem. Embalagem. Então o que ele tinha que fazer? Vender o produto. Já não interessava se era bom ou ruim. Então, quando entrou esse outro, o tipo de livro que se colocava era muito mais comercial, não é? Então: autoajuda, jogos eletrônicos - que estava começando a ter - tinha os joguinhos que eles faziam com calculadora eletrônica, como jogar, não sei o quê, porque não existia esses aparelhos que a gente conhece hoje: nem videogame, nada. Então, a ideia depois era colocar alguma coisa bem comercial, que vendesse. Muito livro de autoajuda; espiritismo, que acho que vendia bastante na época; um pouco de pornografia, tal. Então, mudou tudo. Aí ficou meio ruim. Antes a gente, nessa primeira época dos três anos, tinha livros muito bons, depois mudou. Porque o alvo, o público-alvo, acho que eles queriam que fosse outro. Depois incorporou à Abril e eu saí na época. Eu fui para... Eu fui trabalhar em um colégio, fazendo apostila para vestibular. Então, o que eu não estudei de curso superior, aprendi um pouco ali. E depois que eu saí do colégio fui para a Bolsa de Valores, fiquei dez anos. Aí eu tive LER, tendinite, sei lá, e depois saí. E fui trabalhar em casa.
P/1 – E como foi para você... Como era para você... Como você recebia esses materiais dos escritores, como eram entregues os livros para vocês?
R - Então... Tinha... Porque aí, nesse caso, eu digitava e fazia alguma arte, se tivesse que fazer um nanquim. Porque não tinha computador, do jeito que a gente conhece hoje. Desenho, essas coisas, era feito no nanquim, à mão. E aí, como eu falei antes que eu gostava de desenho, com aquilo acabei desenvolvendo um pouco essa parte do traço, do desenho à mão. Então passava pelos revisores, tinha coisa que era livro que já foi publicado, tal, meio que vinha pronto só para você fazer a edição de bolso. Mudava o formato, o tamanho, o tipo de papel, mas podiam ser livros que já foram publicados. Mas tinha aqueles também que eram primeira edição e que passavam por esses editores que faziam o copidesque. Ia para corrigir, ver se a linguagem estava legal, eles podiam mexer. E depois deles vinha para a gente. A máquina era uma máquina da IBM, chamada composer eletrônica, e ela fazia... Ela tinha uma memória, acho que cabiam três páginas do livro. Tudo isso! (risos). Então, você batia duas páginas e dava para revisão. Enquanto eles estavam revisando, você fazia a terceira página, daí vinham as duas corrigidas, você corrigia. A gente imprimia num papel chamado poliéster, que era meio leitoso, transparente, e esse papel ia direto para a gráfica. E se tivesse que fazer algum desenho, você ia riscar depois de digitado, você ia riscar nesse papel. Aí você fazia de três em três páginas. E cada vez que você fazia três páginas, você apagava aquelas. Se tivesse algum erro, você teria que fazer ou um past-up, ou bater de novo se não desse para “pestapar”. O past-up você fazia só o pedacinho, colocava numa mesa de luz, recortava, colava com durex atrás, e era assim que funcionava. Um trabalho meio artesanal, era gostoso, eu gostava de fazer, era trabalhoso.
P/1 – Teve algum marcante de ser feito, algum livro?
R - É engraçado. Tem alguns. Mas eu acho que um dos livros mais empolgantes foi o livro Drácula (risos). Por incrível que pareça. Eu não era desse tipo de leitura. Mas a gente fez... Tem uma outra história também, depois eu falo. Mas a gente fez o primeiro, a primeira história escrita. O primeiro livro escrito sobre Drácula, que era de 1800 e pouco. E era muito interessante. Muito diferente dos filminhos que passava. E aí eu ficava doida para voltar no dia seguinte para continuar sabendo da história, não é? Tinha muita coisa diferente do que a gente conhece e era muito inteligente o negócio. E eu... E o pior é que eu não peguei esse livro. Porque acho que eu acabei saindo antes da impressão. Não sei. Mas eu fiz ele inteiro. Mas, às vezes, eles vendiam livro e daí ia lá imprimir, ia para as bancas de jornais, não sei o quê. Até voltar para você, demorava. Eu não me lembro por que eu não consegui pegar esse livro. Porque fim de ano eles davam lá sete livros que você escolhia e levava para casa, de Natal, vamos dizer, não é?
Um outro caso que foi interessante foi o Quarto de Despejo, da Carolina Maria de Jesus, porque foi lançado em 1976 e ela foi pessoalmente lá. Então eu a conheci. Para fazer, fechar o contrato, ela foi algumas vezes. Aí ela, sabe, era um pessoa super simples, gentil e educada também, foi bem legal. Tanto que a gente fez o livro, daí ela morreu antes do livro circular, porque o livro saiu - acho que o livro saiu... Porque quando ela fez o contrato, quatro meses depois ela morreu. Então, até que a gente fizesse, tudo, e começasse a circular... Mas ela não pegou essa edição. Mas ela existe. Uma edição de bolso do livro dela, de 1977.
P/1 – E ela acompanhava vocês, vendo vocês trabalhando?
R – Não. Ela foi algumas vezes. A gente ficava lá em volta dela, conversando. E ela estava meio que fechando contrato. E ela não acompanhou. O pessoal fazia reuniões com os escritores que iam para fechar contrato. Então... E como ela foi umas vezes, umas quatro vezes, e aí todo mundo ia em volta e ia conversar com ela... Foi bem interessante ter participado disso.
P/1 – Você lembra de alguma conversa que tinha nessa rodinha?
R – A gente perguntava. Porque ela estava já numa casa, e estava com bastante dificuldade porque o livro, ele foi... Ele saiu nos anos 60 e essa edição era de 1976, mais ou menos, que começou a negociar. Então, tinha uma... Eu acho que rodava em torno da vida dela, contava a dificuldade que estava tendo. O fato de lançar o livro, então. Meio que era isso.
P/1 – Tinha algum outro escritor que você conheceu?
R – Bom, tinha muita gente com quem a gente falava por telefone, não é? O Millôr... Porque, às vezes, eles não iam, eles mandavam entregar o texto. Depois, se tivesse algum problema, eles ligavam. Então, o próprio Nelson Rodrigues ligava muito. Mas ele era muito complicado, eu não gostava. Porque qualquer pessoa que atendesse o telefone, ele era um pouco brusco. Era outra coisa, se você fosse comparar a Carolina com Nelson Rodrigues. O cara era muito autoritário, então era difícil. Até quando era ele no telefone, um queria que o outro atendesse (risos). Passava para o outro, porque era difícil de conversar.
P/1 – Você lembra de algum diálogo que você teve com ele?
R – Normalmente ele ligava para reclamar se alguma coisa na prova estivesse errada. “Tem um erro na página tal. Está faltando uma vírgula”. Era coisa desse tipo (risos). Então, a gente dispensava. Quando você percebia que era a voz dele: “Espera um pouquinho, um minutinho”, passava para outro (risos). E assim ia.
P/1 – E com o Millôr?
R – Era tranquilo. Só tinha essa inconveniência de toda hora estar censurado:”Tem que trocar, tem que trocar”.
P/1 – E como era isso? Como você recebia isso? Que sensações você tinha quando vinha uma censura numa parte? Pode até ser sentimentos de revolta, mesmo. Porque você já tinha lido, não é? O que você sentia para além desse esforço do trabalho?
R – Era confuso, porque isso estava em toda... Não só dentro da editora. A gente sentia isso em todas as coisas. Mesmo dentro dos trabalhos da igreja, da nova igreja também; tanto é que a gente criou uma luta contra isso. Para acabar com a censura, para ter anistia, para libertar os presos políticos, e tudo isso fazia parte de uma luta que a gente encarava como uma coisa que realmente estava acontecendo. Não tem como omitir. Não tem como esconder. É fato. Você comprovava. Porque, às vezes, tinha gente que não acreditava muito. “Ai, isso é besteira. Isso é coisa de subversivo. Isso é coisa de comunista”. E muita gente que não estava por dentro das coisas, às vezes desacreditava, achava que era exagero, não sentia. E também essa coisa de periferia. Para a periferia, sempre foi difícil. Para a periferia, sempre teve gente sendo presa, sendo morta, sendo torturada nas delegacias de bairro Então, para a periferia, para muita gente isso não era nada de excepcional. Vamos dizer, uma coisa comum, que acontecia toda hora e que assim... Sempre foi sofrido. Então, a ditadura era uma coisa a mais, era um sofrimento a mais. Mas que eles não diferenciavam, às vezes, muito. Não era um estado de exceção, era uma coisa comum, que acontecia a toda hora. Então, para a gente que estava tentando mudar isso, envolvido numa outra luta, era mais uma constatação. O que era interessante é que eu levava essas coisas para as reuniões, eu mostrava, eu conseguia informar outras pessoas dessas coisas, então eu acabava levando isso para as reuniões que a gente fazia, das Comunidades Eclesiais.
P/1 – E como era sua relação com São Paulo mais central, para além do seu bairro? Você ocupava outros espaços?
R – Então... Não tanto, porque a gente ia... Eu gostava de teatro, alguma coisa, mas tinha muitos eventos que eram, às vezes, gratuitos, você ia. Porque não tinha muito dinheiro para se envolver. E mais assim, porque ia trabalhar. Trabalhei no Centro, trabalhei na Lapa, então você tinha um pouco mais de envolvimento. Mais nos horários de trabalho, na hora do almoço ou, às vezes, você saía, tinha uns eventos no Centro ali - quando eu trabalhei na Bolsa, por exemplo - na Biblioteca Mário de Andrade. Tinha uns eventos culturais gratuitos, tinha no Sindicato dos Bancários. Então, sexta, seis e meia, você saía, ia na biblioteca e via um bom show gratuito, ou no Sindicato dos Bancários. Você acabava tendo... Tinha uma coisa na São Bento, quando eu estava lá. No Sindicato dos Bancários, o Plínio Marcos ficava sentado na frente do Sindicato com os convites das peças teatrais, e ele ficava tentando vender livro. Se você comprasse um livro, aí ele lhe dava um ingresso para o show. E aí ele guardava a banquinha dele dentro do Sindicato, e eu ia muito no Sindicato. Eu assisti tudo quanto foi peça dele, porque pegava, às vezes, para mim. Nem precisava comprar livro, porque era comum a gente se encontrar ali. Ele ficou uns anos ali. Depois, quando eles criaram o Centro Cultural Vergueiro, aí ele pegou a banquinha dele e foi para a Vergueiro. Aí eu perdi um pouco de contato porque eu trabalhava ali na São Bento. Eu trabalhava perto do Largo do Café, na Álvares Penteado. Então, tinha essas coisas. No Centro, você tinha acesso a várias coisas assim gratuitas, você acabava encontrando. E acho que a relação era meio essa: de ir a um cinema, ir a um teatro, de trabalhar ali. De almoçar por ali, quando trabalhava ali. Meio isso.
P/1 – E, Sônia, ainda em relação ao seu trabalho, você participava do lançamento dos livros?
R – Então... Esses lançamentos de que eu falei eram meus mesmo. Livros meus, porque assim... Eu participo do Sarau da BRASA desde 2008. São dez anos, eu sou uma das coordenadoras. Que era na periferia, na Brasilândia, dentro de um bar de periferia. A gente viu um pessoal que foi na COPERIFA, foi no Sarau do Binho, que são os mais antigos, falou: “A gente queria fazer um Centro Cultural aqui na Brasilândia, mas não tem espaço, não tem dinheiro”. E daí foram ver esses dois Saraus e falaram: “Sarau dá para ver”. E eu acho que a gente foi o quarto Sarau a ser criado em São Paulo. Depois surgiram... Hoje tem mais de duzentos. Tem muitos. Então, a gente criou em 2008, em julho, eu entrei em agosto, um mês depois. Eu não estava no primeiro Sarau. Que eram os amigos dos meus filhos que começaram o Sarau. Aí, os meninos vinham em casa, sabiam que eu lia, que eu tinha um monte de livros, eu emprestava livros para eles, eu, às vezes, pintava ou então desenhava alguma coisa. Quando eu... Não sei se eu falei para você... Quando eu estava na entidade que cuidava das crianças, as creches, eu fazia um jornalzinho interno ali. E a gente distribuía no bairro para as mães dessas quinhentas crianças. E a gente punha coisas do bairro e tal, porque eu trabalhava na editora com máquinas assim; na Bolsa, sempre trabalhei fazendo - na Bolsa, eu fazia um boletim diário de informações; no colégio eu fazia as apostilas pré-vestibular. Então, eu tinha acesso à máquina, não é? Na hora do almoço você usava e fazia o jornalzinho. E aí eles sabiam que eu fazia essas coisas, que eu lia, que eu tinha livros e me convidaram para fazer parte do sarau, logo no começo. Então, começou em 2008. Em 2009, a gente ganhou um edital do VAI, e daí era: “Vamos fazer livro então”. Eu sabia fazer livro. Os outros, eles sabiam disso também. A gente fez um primeiro livro que era... Era um livro meu, de poesia, junto com outra menina. Metade do livro era meu, metade era dela. Da Bárbara Lopes. E foi o primeiro livro que o Sarau publicou. Nesse mesmo ano, com esse dinheiro, a gente fez mais quatro livros. Com esse dinheiro do VAI. A gente fez uma antologia com quarenta autores e depois mais dois livros com oito outros autores. Um que é misto. Não, acho que o de oito... Acho que só com rapazes. Depois, outro só com mulheres. Mas eram poemas, tal. Poemas e contos. E depois, no próximo ano, em 2010, nós pegamos o VAI de novo - podia pegar duas vezes seguidas - e a gente fez mais alguns livros. No total, deu onze livros que o Sarau publicou. E aí, a gente promovia lançamentos em outros saraus, no próprio Sarau. E nisso, eu fiz então dois livros, nessa história de VAI: um de poema, junto com a Bárbara, e um sozinha, que era romance. Foi o Nem Tudo é Silêncio, que foi publicado em 2010, primeira vez. Eu fiz uma segunda edição em 2017, agora.
P/1 – O que você fez com a Bárbara como chama?
R – Chama: o meu era Rua de Trás, aí você vira de ponta cabeça o dela era Poemas e Prosa de um Eu, Bárbara Lopes.
P/1 – Você pode ler um? Não sei se tem um que você gosta mais.
R – Deixa eu ver. Pegar o óculos que ficou lá, não é?
P/1 – Quer que eu pegue?
R – Se quiser... Deixa eu ver o que eu poderia ler.
P/2 – Continua gravando?
R – Deixa eu pensar. Ela me pegou de surpresa agora. Meu Deus! É que são coisas meio compridas, depois dos vinte precisa de óculos. Deixa eu pensar aqui o que é que eu faço. Que tipo de coisa que...
P/1 – São poesias sobre o quê, Sônia?
R – Olha, está bem variado esse livro, viu? Fiquei perdida aqui. Acho que eu vou pegar o primeiro, logo de cara. Vou pegar o primeiro, que chama Rua de Trás, que é o título então.
Rua de trás, lado de cá do rio, área de riscos
Risco de desmoronamentos, risco de inundações
Risco de ignorância e analfabetismo
Risco de abandono, fome e carência
Risco de doenças, contaminações e epidemias
Risco de roubos, de bala perdida, risco de morte
Rua de trás, lado de cá do rio, área de risco
Diante de olhares incrédulos
Contamos, enfim, o nosso lado da história
A história do lado de cá do Tietê
Da área de risco da rua de trás.
Fala muito do bairro.
P/1 – Sim.
R – Muitas coisas. Algumas coisas fala da família, tem vários assuntos.
P/1 – E por que chama Sarau da BRASA?
R – Porque é Brasilândia, e o pessoal falava: “Eu sou da Brasa, eu sou da Brasa, eu sou da Brasilândia”. E aí é por isso.
P/1 – A gente pulou uma parte importante, que você já começou a falar dos seus filhos, não é?
R – Falei?
P/1 – Falou: “Ah, meu filho veio com os amigos para fazer o Sarau”.
R – Ah, sim!
P/1 – A gente já pode falar sobre a questão da família ou tem alguma outra coisa que você...
R – Pode.
P/1 – Pode ser? Se ficou alguma coisa, a gente volta. Mas, se quiser...
R – Não, está tranquilo. Vai indo assim.
P/1 – Ah, eu queria saber como foi. A senhora casou?
R – Casei. Ainda estou casada com a mesma pessoa, casei em 1983. Meu marido chama-se Marcos. É músico. E a gente acabou se conhecendo porque tinha um... Criamos um grupo dentro da igreja, essas coisas de que eu falei, de... Culturais... Com os amigos, nós criamos uma banda, chamada Bando da Rua. A gente tocava MPB, rock, essas coisas. Eu cantava. E a gente acabou conhecendo o Marcos, que era meio que amigo da minha irmã, que tocava guitarra e outros instrumentos. Ele acabou entrando na banda e acabamos casando. E aí tivemos três filhos: Fernando, que nasceu em 1984; a Flávia, um ano depois - tinha um ano e três dias de diferença, a Flávia, em 1985; e depois o Ian, em 1992. São três. Nessa época, eu trabalhava na Bolsa de Valores. Apesar de que eu saí em 1990. O Ian nasceu em 1992.
P/1 – E como foi descobrir que ia ser mãe?
R – Eu não sei. Acho que não tinha planejado nem casar, nem ser mãe. Aconteceu. Mas eu fiquei feliz as três vezes. Nenhuma vez eu pensei em não ter, quando eu soube. Não tinha planejado, mas quando eu soube que estava grávida, eu fiquei feliz. Deu muito trabalho, porque eu trabalhava. No começo, o dia inteiro, na Bolsa de Valores. Depois é que virou meio período - depois de um tempo. E eu morando na Vila Penteado, eu demorava, tipo, levantava seis horas da manhã para chegar lá às oito numa época, depois teve uma época que era às nove. Saía às seis e chegava às oito de volta, então tinha que deixar... No começo eu deixava com a minha mãe meio período. Arranjei uma escolinha. Meio período na escola. Aí, tinha que passar por lá para pegar os filhos. Meu marido trabalhava num teatro e ele saía do teatro depois da meia-noite. Então, a folga dele era às terças-feiras. Sábado e domingo ele trabalhava. E eu tinha que ficar com os filhos, sozinha. Levando e buscando. Foi bem complicado. Mas sobrevivi. Mas foi difícil.
P/1 – Você quer falar um pouco sobre a escolha do nome dos seus filhos?
R – O nome, eu não sei... O Fernando, eu achei que ele ia homenagear um pouco o meu irmão, que é o Maurício, Mau-Mau - Maurício Fernando o nome dele. Aí eu pus no Fernando, porque eu era muito ligada. Porque o Maurício tem dez anos menos que eu. Quando a gente era criança, eu que ficava com ele porque minha mãe trabalhava. E assim a gente era - é até hoje - muito ligado um no outro. Então, eu escolhi Fernando. A Flávia, eu não sei... Achei que ficava bonito Flávia, mas se fosse homem eu não queria pôr Flávio. Não sei por que eu achava bonito no feminino. E depois, o Ian. Eu estava lendo um livro e era um nome meio hebraico, só que com M, eu achei que significava mar. E ele tinha o olho muito claro, eu achei que combinava. Não sei. Eu fiquei pensando: “Vou pôr esse nome”. E aí eu coloquei. Ian. Mas foi uma briga, porque todo mundo queria opinar e ninguém decidia. Porque o Fernando e a Flávia estavam com seis e sete anos. E aí um falava uma coisa, o outro achava ruim. Então eu falei: “Não. Deixa eu pensar em uma coisa bem diferente, bem curtinha, bem fácil de falar”. Para os dois aprenderem. E aí eles concordaram e acabamos colocando Ian. Mas um queria Lucas, o outro queria sei lá o quê. Então, estava uma briga para escolher. Eu acabei enganando os dois.
P/1 – E quando você assumiu esse lado de escritora, Sônia?
R – Então... Desde que eu lia muito, nova, aí eu comecei a escrever umas coisinhas, uns poemas, uns negócios desde nova - quatorze, quinze anos. Eu fazia muito... Na escola, eu fazia a redação de todo mundo (risos). E eu gostava muito de escrever. As cartinhas para as amigas… Elas me mandavam escrever cartas. E quando eu falei para você que eu estava na entidade, que eu escrevia no jornalzinho, daí, de vez em quando, eu fazia a redação, pegava as notícias com outras pessoas da comunidade, das creches; então, a gente ia entrevistar o administrador regional, o Secretário não sei das quantas, e jogava. Essas matérias, eu que redigia isso. Quando estava na editora, eu ajudava… Na hora em que não havia serviço, eu ajudava o pessoal da revisão a revisar. Então, eu aprendi com eles a revisar. E aprendi muita coisa. Porque eu acho que o Português que eu sei, eu aprendi com eles. Não na escola. Porque quando eu errava, eles me chamavam, me corrigiam: “Olha, você está errando sempre essa palavra, eu acho que é vício seu”. Aí explicava por quê. Então eu aprendi a corrigir e, automaticamente, a escrever. E aí, no jornalzinho, eu fazia às vezes uma matéria, um poema meu e colocava lá também. Publicava. Então já tinha... Tinha essa ideia de fazer um livro, um dia. Só que eu tinha trabalhado em editora, sabia o quanto era caro na época. Era uma coisa que eu pensava que eu queria fazer, mas que para mim era uma coisa impossível, longe, distante. “Não vou ter dinheiro. Isso é muito caro”. E aí, com essa coisa dos projetos de incentivo à cultura, foi possível. Porque a gente tinha verba e a vontade eu já tinha. E mais ou menos eu já sabia fazer, porque eu já fazia o jornalzinho. O jornalzinho, a gente tinha fundos da própria igreja, que ajudava a gente a imprimir. Tinha amigos que imprimiam de graça. Eu fazia de graça. Então, era fácil da gente... Era uma coisinha pequena também, com poucas folhas, poucas páginas. Então, eu tinha uma coisa já meio... O primeiro livro, Rua de Trás, já tem poemas, porque ele foi feito em 2010, mas tem poemas de 1975, 1978, 1980, que eu já tinha guardado, eu tinha escrito. E muita coisa se perdeu também, dessa época - de 1980 para trás. Eu perdi muita coisa porque a gente estava num período de ditadura, isso e aquilo. Foi um pessoal do DOPS atrás e a minha mãe queimou um monte de coisa (risos), porque ela ficou com medo. Um dia, eu cheguei em casa estava um fogaréu no quintal, com todos os meus papéis. Então, o que eu lembrava de cabeça ainda está nesse livro. O que eu não lembro, perdeu. Foi isso.
P/1 – Mas qual foi a sua reação quando você chegou na sua casa e...?
R – (risos) “O que está acontecendo...?”. Foi difícil. Porque tinha muita coisa interessante. Eu tinha livros, jornais - Movimento, Pasquim eu colecionava - e, de repente, não tinha mais nada.
P/1 – E você conversou com sua mãe sobre isso para entender como que...?
R – Não. Eu entendi, sim, o que tinha acontecido. Porque a gente ainda estava num período que ainda tinha perigo. Tanto é que ainda teve gente que morreu nessa época, tal. Mas, por eu ser das Comunidades Eclesiais de Base, a gente já estava também com essa coisa de movimento de criação de partido político, tá? Um partido que representasse a gente, tal. Então, era tudo muito visado. E a gente já percebia, fazia muito tempo que tinha alguém seguindo aonde eu ia, tinha gente seguindo, tal. Aí, um dia, os caras vão atrás do meu pai e fazem uma super pressão de que eu estava me envolvendo com pessoas subversivas. Mas isso tinha a ver com essa coisa da Igreja mesmo e dos partidos e sindicatos, porque a gente fazia os movimentos de bairro também, porque era o que acontecia. A gente de periferia também era visado quando fazia reivindicação de creche, disso, daquilo. Eles não queriam nada disso. Porque você estava apontando o dedo para essas pessoas, dizendo: “Não está bom aqui. Queremos mais. Queremos nossos direitos”. Então, eles ficavam de olho. Nas missas, tinha gente que ficava gravando as missas, fotografando as caras da gente, então, se você fazia uma manifestação na rua, que era comum a gente fazer também, você estava sofrendo toda essa repressão que tinha na época. Os caras começaram a... Eram dez caras que me seguiam, meio que assustaram meu pai. “Toma cuidado, olha com quem ela está andando, são subversivos, comunistas, são sei lá o quê. A gente vai na tua casa na semana que vem”. E aí eu estava trabalhando, quando eu cheguei... Então eles acharam: “Ah, esses caras vêm aqui, então é melhor que a gente queime tudo”. Tinha um monte de papel no meu guarda-roupa, minha mãe pegou tudo e queimou. E aí, dos poemas sobrou um pouco do que eu lembrava de cabeça; na época, ainda lembrava alguma coisa, hoje já... E alguma coisa eu não sabia, mas perdeu mesmo.
Então, quando eu fiz esse livro, Rua de Trás, que foi o primeiro - são poemas, em sua maioria - eu lembrava de alguns que estavam na minha cabeça e coloquei ali. O resto são coisas novas. E depois desse, eu fiz um livro que era um romance, pegando... Contando bastante coisa sobre essa época da ditadura e tal, mas inventando uma família, inventando uma situação, e em que eu coloco várias coisas reais, também, que aconteceram durante a ditadura, do bairro. Essa coisa que eu te falei que era comum encontrar corpos... Então, isso tem alguma coisa, uma referência disso no livro, que é o Nem Tudo é Silêncio.
P/1 – É um capítulo, não é um poema?
R – Então, esse segundo livro é um romance e acaba tendo as histórias da formação do bairro, porque a ideia era acho que justamente guardar a memória, você ter... Porque a memória depois se perde, você não passa também para essas pessoas. Então eu resolvi escrever tudo o que eu lembrava da formação do bairro, de criança, e fui inventando uma família. E fui contando.
P/1 – E qual a sua relação hoje com o bairro?
R – Então... A gente tem esse trabalho mais com o Sarau mesmo. O Sarau a gente faz em um bar, mas a gente vai em bibliotecas, em escolas da região: estadual, municipal, escolas públicas a maioria. Também se chamarem para outras ideias, a gente vai. A nossa ideia foi divulgar e incentivar a Literatura entre os estudantes mesmo do bairro, entre os moradores. E a gente percebeu que... Porque tinha uma ideia de que ninguém lê, quem dirá escrever, não é? Mas a gente percebeu que, incentivando as pessoas, elas começam a ler, elas começam... Depois de um tempo, elas começam a escrever também. Tanto é que a gente fez quatro antologias, com mais de quarenta pessoas cada uma, com poemas e tal, dessas pessoas do bairro. E, nas escolas, aconteceu uma coisa interessante: muitas pessoas que frequentavam os saraus eram professores da região. E eles falavam que os alunos não queriam ler nada. Não gostavam, porque tinha que ler os clássicos, essa história de estar na grade, no currículo. Muitos não queriam ler, não tinham interesse nenhum e eles começaram a pegar os nossos livros, porque quando a gente fez o livro pelo VAI, a gente teve que distribuir 30% dos livros. E aí a gente começou a distribuir nas escolas, ou para esses professores levarem, tal. E fala de quê? Fala de coisas simples do bairro, que esses alunos conhecem; da vida deles. Aí, eles começaram a se interessar a ler, começaram a ir ao Sarau. Muitos deles começaram a escrever, e daí para passar para os clássicos, que eles não queriam, foi um pulo. Muitos estão lendo. Então, tem esse trabalho, que está bem ligado à Literatura e Cultura, porque o Sarau, você pode ir lá e fazer uma peça teatral, você pode fazer um grafiti, você pode expor uma foto, você pode escrever um poema, você pode cantar um música, fazer uma dança, então, está aberto para qualquer tipo de Arte. Isso acaba atraindo essa molecada. E o que é legal? Por ser no bairro, você tem... É um tipo de lazer também, não é só Cultura. Você não precisa pegar ônibus para ir para o Centro procurar esse tipo de lazer ou de Cultura. Muitos também são... Muita gente desempregada, muito jovem que não tem condições para ficar pegando ônibus pra lá e pra cá. E aí você ter isso no bairro, acho que essa é uma relação bem forte assim. Que me agrada muito estar fazendo, sabe? Você sente que está abrindo um pouco ali a mente dessas... Eu acho que é bem interessante, sim.
P/1 – E como é para você pensar a sua trajetória, que está tão unida com a história do bairro também, não é? E ter esse olhar de antes e de como ele está hoje, com todas essas transformações?
R – É difícil. Porque acho que, ao mesmo tempo que chega alguma coisa de progresso - asfaltou rua, chegou pronto-socorro, chegou a creche - mas você sente que a questão da criminalidade aumenta. O bairro, ele foi crescendo de maneira desordenada, muitas favelas que não existiam surgiram, muita violência. É um bairro de maioria negra, então essa... Acontecem várias coisas que você lê, a maioria dos jovens mortos nas periferias são negros. Muitos não estão ligados a nenhum tipo de criminalidade, são vítimas de uma polícia às vezes violenta. São vítimas por várias coisas: uma escola que é ruim, a questão da saúde é ruim, a questão do emprego é complicada. Então você vê, a gente consegue fazer muito pouco para o que precisa. Isso sempre foi assim, você sente que mudou, mudou um pouco. Porque na época em que eu comecei, a gente lidava com muita gente nordestina, que veio para São Paulo, mas que tinha chegado... Hoje você está lidando com neto, filho, em outra realidade, e muito mais desenvolvida a criminalidade, com a droga. É bem difícil. Mas o que é legal é que a gente consegue fazer e algumas coisas, que é aquilo que não está na TV, porque na TV e no jornal eles estão mostrando só o lado ruim da Brasilândia, e a gente está conseguindo lidar com os jovens, com um monte de gente que tem ideias boas, que tem boa vontade, que tem uma atuação legal no bairro e que não está ligada à criminalidade. Você está conseguindo mostrar um outro lado. Isso é muito gratificante.
P/1 – E como é para você, sendo mulher, branca....
R – Estar nesse meio? Porque, desde sempre, eu estive ali no meio desse pessoal. Então, não tem preconceito nenhum comigo. Nem eu com eles, não é? Nem sei se essa palavra é certa, acho que não é. Porque é diferente quando você sabe que a pessoa está junto, entendeu? O tempo todo. Não caiu de paraquedas. Às vezes, isso de cair de paraquedas acontece muito em época de eleição, agora é época de eleição. Alguém que nunca fez nada pelo bairro, não conhece ninguém, chega prometendo isso e aquilo, dizendo que vai fazer isso e aquilo, mas nunca esteve junto. O pessoal hoje, por exemplo, não é partidário, a maioria. Não vota. A maioria nem vota. Porque desacreditou, desanimou de toda essa questão que está por aí, política. Já acabei com a água?
P/1 – Não, tem mais. (risos)
R – Eu falo para caramba. Começa a secar. Então, eu acho assim: que está tendo muito desânimo com relação a essas coisas todas. Você... O povo se sentiu muito traído o tempo todo com essa questão toda da corrupção. E, na periferia, a coisa fica pior, entende? Porque as dificuldades são mais, são maiores, E o que eu vejo na molecada hoje. Não sei se este ano vão votar, mas eles estavam bem desanimados com relação a isso. Não acreditam em ninguém, não conheço ninguém!. E você... Eu acho que eu mexi aqui, será que eu tirei?
P/2 – É só....
R – (risos) Eu comecei a mexer nos óculos.
P/1 – Eu fico com o óculos.
R – Não, agora eu não vou ler, se for ler... Ficou? Tá! Então, fica bem difícil. A minha filha é candidata. Mas eu sei que o pessoal que eu frequento, muitos não votam em ninguém. Então a gente nem faz campanha lá. Uma das regras do próprio Sarau é que você não fale nem de religião, nem de partido político. Você pode falar de tudo quanto é assunto - não falar no sentido de tentar convencer as pessoas - você pode falar sobre qualquer assunto. Mas você não pode falar de partido político, especificamente. Mas você pode ir lá e fazer uma discussão: porque teve uma greve não sei aonde; porque teve uma ocupação de uma escola; esclarecer, contar... Porque, se a gente começa a defender algum partido no Sarau... Ou você ou levar uma pessoa para fazer uma discussão dentro do Sarau, você teria que estar aberto para todos os partidos. E tem um monte com que a gente não concorda e que a gente não queria lá. Então, por segurança nossa também, para não ter que levar pessoas em que a gente não acredita, então a gente não conversa sobre essas coisas. Assim, partidariamente. Mas você pode conversar sobre situação política. E pode até fazer reuniões, encontros, se quiser.
P/1 – Você está escrevendo alguma coisa atualmente?
R – Escrevi há pouco tempo, este ano, pela primeira vez, um livro de contos. Mas eu não joguei, eu mandei para uns concursos. Eu não acredito muito em concurso, mas só para testar. Então, deve ter resultado disso no final do ano. Enquanto isso eu me contenho. Porque quando você escreve, você fica doido para tentar achar dinheiro e imprimir, não é? Publicar. Mas eu mandei de propósito também, para me segurar um pouco e também para testar, não sei o que vai dar. Vamos ver.
P/1 – Muito bem, Sônia, estou caminhando para o fim. Não sei se tem alguma coisa que a gente acabou não abordando aqui.
R – Eu acho que a própria Literatura em si; onde me levou. Não sei se você queria...
P/1 – Não, pode ir!
R – É o que eu estou falando. A gente começou escrevendo através do Sarau, e acho que foi um movimento grande de São Paulo, porque ele foi crescendo e começou a atingir outros lugares, outros estados, outras cidades além de São Paulo. E, no fim, a gente acabou indo para alguns lugares por causa desses escritos. A gente tem uma....... Deu branco... Mas uma.... Espere aí um pouquinho, deixe eu lembrar a palavra.... Através desses grupos de Sarau a gente conheceu a Lucía Tennina, que é uma argentina, ela veio fazer mestrado e doutorado porque ela dava aula, sei lá, de Literatura Brasileira em Buenos Aires. E ela conheceu os movimentos de sarau. Foram tese de mestrado e doutorado dela. E ela fez uma compilação de uma antologia, em que ela colocou uns quarenta autores brasileiros, e escreveu um livro. Esse livro foi lançado na Argentina durante a 40ª Feira de Buenos Aires, que é uma feira bem reconhecida. E nisso, a gente foi e lançou o livro com o poema A Rua de Trás, esse de que eu falei. É uma antologia bilíngue, chama-se Saraus e está em Português e Espanhol lá. E a gente foi para a Feira do Livro na Argentina, que, em 2015, eles estavam homenageando a cidade de São Paulo. Aí, junto com a Biblioteca Nacional, eles conseguem levar quinze Saraus para participar dessa feira, porque São Paulo estava sendo homenageada. E o livro é lançado na Argentina. Depois, em 2016, ele é lançado no México. Aí, no México, não pude ir porque eram outras circunstâncias. E depois ele é lançado no Chile, e ao Chile eu fui. Nessa Primavera do Livro, no Chile. Outra coisa também de que a gente participou foi de um Encontro, em Havana, que foi o 4º Encontro Internacional de Poesia Hablada. Havia pessoas da Bélgica, dos Estados Unidos, Brasil, Argentina, então foi um encontro internacional. A gente ficou nove dias lá. Foram dez pessoas de São Paulo e eu estava junto. Também teve um Encontro no Paraguai, que foi o Encontro Latinoamericano e Caribenho pelo Direito à Memória. Aí, porque... Como eu escrevo sempre coisas ligadas à memória, também me convidaram. E eu fui falar nesse Encontro, que foi no Paraguai, em Assunção. E do livro Nem Tudo É Silêncio, como ele fala dessa questão também da ditadura, ele foi parar nas mãos de uma pesquisadora de Brasília, que é uma professora doutora lá, Regina Dalcastagnè, e também de um outro professor doutor de Brasília, que é o Paulo Thomaz. O Paulo Thomaz leu o livro e foi falar em um Encontro - 6º Colóquio Internacional de Língua Portuguesa, em Santiago de Compostela, na universidade lá, e aí ele fala sobre o meu livro, que depois chegou nas mãos de um pessoal que está fazendo doutorado na França, em Sorbonne, e me convidaram para ir lá em 2017, no final do ano, para falar desse livro num tema que era um Encontro sobre Literatura e Ditaduras, no mesmo Encontro. Encontro não, no mesmo evento. Na mesma data, eu fui convidada também por um outro professor - Leonardo Tonus - a falar num evento que ele fez também na Sorbonne, sobre os refugiados. E aí ele me convidou, se eu queria falar alguma coisa. Eu escrevi um poema sobre refugiados e li lá nesse evento dele. Chamava La Espera - A Espera. Que estava falando das pessoas que cruzam as fronteiras e ficam num local esperando uma decisão das autoridades sobre o que vai acontecer com eles. E aí eu escrevi um poema sobre isso.
P/1 – Você sabe de cabeça esse poema?
R – Ele está num papel aí. Ele é grande. Você quer?
P/1 – Ah, eu quero! Pode? Deixa que eu pego para a senhora! Se a senhora se sentir à vontade, não é?
R – Não, tranquilo. É grande! Bem grande. Deixa eu ver.
P/1 – A senhora que escolhe, se quiser só um pedaço também...
R – É que fica meio picado. Vamos ler. Depois você corta, se precisar. Está bom?
P/1 – Não vou cortar nada!
R – Chama-se Travessia.
Ficar não mais é possível, procuro um lugar para sonhar.
Sonho mundos sem cercas, sem bandeiras.
Partida, travessia: sol escaldante, chuva, vento de inverno.
No corpo, farrapos. Nos pés, lesões da longa caminhada.
Caminho sem olhar para trás.
Tento esquecer a hora trágica dos que sucumbiram,
dos que não chegarão a lugar algum.
Tudo ficou no passado, a vida me cabe nas mãos.
Levo apenas memórias, ou o que delas restou: feridas na alma.
Travessia, estado de espera.
Quisera eu ser água, vento, luzes, transpondo fronteiras.
Sou um frágil vaso, vazio. Sou incerta morada.
Minh’alma se desprende de mim, grita e chora,
segue o vento, e nada de novo.
Espero, contemplo, e nada. De novo!
Quem ousei chamar de irmão guarda silêncios!
Então, deixarei de ser vento, serei somente espera.
A cada alvorada, sinto esgueirar-se
a magia da esperança, me furtando as forças.
Prostrado espero, me perco.
Não sei mais o que sou, sou sombra, sou gente? Existo?
O mundo não me abraça.
Sou onze milhões de refugiados.
Sou sessenta e cinco milhões de deslocados.
Sou palestino expatriado em meu chão.
Sou haitiano, venezuelano, mexicano.
Sou angolano, congolês, sírio, somali.
Sou mulher, sou homem, sou idoso, sou jovem, sou criança.
Sou resistência, rompendo cercas, muros,
cruzando desertos, mares.
Estou na Palestina, na Jordânia, na Turquia, no Paquistão,
no Líbano, na África, na Ásia, nas Américas, vivendo tantas mortes.
Travessia… Serei apanhado, preso, abatido?
Serei humilhado, devolvido, faminto e aos farrapos,
a uma terra devastada?
A escuridão da noite, traiçoeira,
me sepultará nas profundezas do oceano?
Os filhos que me restam, sucumbirão comigo?
Serão enviados ao desconhecido?
Falarão outros idiomas, conhecerão outros costumes?
Travessia… Ficar não mais é possível.
A luta é maior que o medo. A dor, maior que a luta.
O mar, maior que a dor. A fome, maior que o mar.
Ah, imensidão de mar!
Que suas águas não me entreguem
em praia estrangeira, desfalecido, sem vida.
Travessia… Serei acolhido? Terei um novo lar?
Sobreviverei pela ajuda humanitária?
Viverei à espera, em campo de refugiados?
Retornarei? Contemplarei, um dia, minha terra restaurada?
Bato às portas do mundo civilizado: o mundo dos que têm.
Sou o outro lado: o mundo dos que carecem.
Sou estranho pesadelo.
Levantei dos escombros, das cidades destruídas,
das armas químicas, sou herança de muitas guerras.
Minha boca secou.
P/1 – Uau! Quer falar um pouco sobre como foi a criação desse, Sônia?
R – É a realidade, não é? Como o assunto era esse e a gente estava indo para a França, e então a Europa é ali aonde chega a maioria dos que estão tentando sair dessas situações, desses lugares, e aí foi uma coisa meio que de observação, o que está acontecendo, não é uma coisa... É um monte de pergunta só. Não é uma resposta.
P/1 – E pensando esses conhecimentos todos, pela Literatura, como é essa repercussão no bairro?
R – É engraçado, porque eu não sei. No Sarau, como eu falei, eu sou fotógrafa também, acho que eu acabei não falando isso. Eu faço muitas fotos dos saraus, dos eventos, e a sensação, às vezes, é que eu sou mais conhecida pela fotografia (risos) do que pela Literatura. E é lógico que tem essas pessoas que... Mas esse livro Nem Tudo É Silêncio, que eu fui falar na França, ele foi escrito em 2010 e chega nas outras pessoas depois, não é? Então, eu fui falar em 2017. Agora, este ano, eu fui para Brasília, também num evento que tinha a ver com esse livro, lá na UNB, que é 2018. Então eu acho que o caminho é lento, não é? Eu não sou muito de pegar microfone no Sarau, de ficar falando. Aí tem assim essa coisa de que foi um pouco distribuído mais no bairro, a gente distribuiu no CEU, nas bibliotecas do bairro. Mas também fui fazer exposição fotográfica na biblioteca do bairro, então tem essa coisa que, às vezes, as pessoas me perguntam se eu escolho entre a fotografia e a escrita, a Literatura. Para mim são duas coisas de que eu gosto muito. Eu não saberia escolher. E, às vezes, eu fico pensando... Talvez se eu me dedicasse a uma coisa só (risos), chegaria mais longe. Mas isso também não é interessante. Não é importante. Não que não é interessante. Não é importante, porque eu acho que você vai fazendo aquilo que você gosta e que lhe faz sentir bem - em que você acredita. Então, eu vou caminhando junto, sem divulgar tanto, e aos pouquinhos vai chegando em algumas pessoas, como saiu um pouco do Brasil, foi em alguns lugares, aí tem uns livros meus por aí. Tem uma amiga na Alemanha que tem uma biblioteca de Língua Portuguesa, que pediu os livros e colocou lá. Então, de pouquinho, vai andando, vai acontecendo. E também não é... Eu faço pelo prazer mesmo de fazer. Sabe? Não é tão importante assim essa coisa de ficar conhecida. É muito ilusório isso também.
P/1 – Sim, sim. Mas pensando nessa sua trajetória na Brasilândia, mas aí pensando nas pessoas que a senhora conseguiu trazer para esse movimento literário, como que é nesse meio, no próprio Sarau, ver essa repercussão?
R – É gratificante, porque você vê que está servindo para alguma coisa. Muita gente... Essa história que eu falei: não escrevia, começou a escrever; não lia, começou a ler. Acho que isso é muito... É um prêmio até, assim. É bem legal. Você saber que, de alguma maneira, é referência. Eu acho legal.
P/1 – Muito bem. Paulo, tem alguma questão? Podemos caminhar para o fim, já, Sônia? Eu tenho mais umas duas perguntas para fazer. A primeira: como você se sentiu hoje, contando a sua história?
R – Tem que ficar lembrando. Eu gostei. Foi tranquilo. E você, eu acho que você se colocou bem, soube perguntar. E me levou a ir lembrando as coisas. Comentando. E eu gostei.
P/1 – Se sentiu à vontade?
R – Sim. Tranquila.
P/1 – Ótimo! Ótimo! E para finalizar, quais são os seus sonhos?
R – Não. Não tenho muita... Acho que eu faço as coisas de que gosto e continuo fazendo, e não tenho muito projeto não, sabe, assim. Você fica querendo sempre escrever mais, fazer mais fotos. Mas nada... Eu acho que faço, me sinto bem. Não tem assim... Não tem uma perspectiva de falar: “Não consegui tal coisa, sonho em ter”. Não. Eu gosto das coisas que faço. E quero simplesmente continuar fazendo. Não tem uma coisa que eu falo: “Ah, quero fazer tal coisa”. Eu quero continuar escrevendo, eu quero continuar fotografando, e estou feliz com isso que faço. Então, não tem nada que eu estou almejando assim, que seja muito difícil, nem impossível. Só seguir assim em frente e fazendo o que eu já faço.
P/1 – Muito bem, Sônia, então, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada! Foi uma delícia te ouvir hoje.
R – Ah, que legal. Obrigada pelo convite então.
FIM DA ENTREVISTA
Recolher