Projeto Conte Sua História
Depoimento de Girlei Luiza Miranda - Gigi
Entrevistada por Denise Cooke e Lara Nacht
São Paulo, 14/09/2017
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV607_Girlei Luiza Miranda - Gigi
Transcrito por Liliane Custódio - MW Transcrições
Revisado por Denise Cooke
P/1 – Gigi, você fala pra gente o seu nome, data de nascimento e lugar onde você nasceu?
R – Girlei Luiza Miranda, 17 de janeiro de 1962.
P/1 – E onde você nasceu?
R – Nasci na Rua Zilda, na Casa Verde, São Paulo.
P/1 – E fala um pouco pra gente dos seus pais.
R – Meu pais? Meus pais são, enquanto estavam juntos, até onde eu me lembro, um casal muito bonito. Muito bonito, muito harmônico, sempre gostaram muito de festas e festas, meu pai, minha mãe, de festas em casa, reuniões de amigos em casa. Eles sempre foram assim. Eu nasci em casa, esse detalhe, e minha mãe contava, e meu pai também, com muita empolgação, que no dia que eu nasci fizeram aquele samba, aquela feijoada. E acho que essa coisa tem muito a ver com o que eu faço hoje também, essa lembrança que eu tenho deles de dizer: “Poxa, a gente fez um samba, e a parteira veio, e você nascendo, e o samba lá, e a feijoada: ‘Vamos servir a feijoada. Oh, fulano, abre a cerveja. Cadê a caipirinha?’”. Imagina um samba, uma escola de samba, praticamente, dentro de casa e uma criança nascendo. Eu falei: “Mãe, a senhora é uma guerreira, porque já pensou a concentração?”. E a mulherada toda: “Ah, vai nascer”. Putz, em 62 isso, que é uma época que o país também tava numa revolução louca. Muito doido.
P/1 – Como foi a sua infância?
R – Ah, minha infância foi linda. Eu adoro dizer isso, porque eu fui criada praticamente no sítio, na Freguesia do Ó, na Vila Brasilândia ali com Penteado, na Vila Brasilândia, e numa casa onde tinha tudo. Não era uma casa, eram três cômodos de tábua. Eram três barracos assim, que a gente... E tinha um quintal muito grande, com várias árvores frutíferas, desde maracujá, a goiabas, abacate, pato, porco, galinha, galo, tartaruga. Muita coisa ali. E a gente brincava naquele quintal todo. Brincava muito naquele quintal. Brincadeiras maravilhosas. Ali é muito grande, então não tinha cerca, não tinha muro, então era muito pique-esconde, era muito pega-pega com as vizinhas. Muito legal. Muito legal. Muito divertido, muito puro. Muito inocente. Eu lembro que seis horas da tarde a gente tinha que estar dentro de casa, entrar para tomar banho. Porque a gente acordava muito cedo, ia para a escola, que era uma escolinha que tinha um monte daqueles cilindros coloridos que a gente passava: ti ti ti ti ti ti, fazendo barulho. Que era no final da rua de casa, que é uma descidinha. A gente fazia o pré, era pré-escola, para poder entrar para o primeiro ano, então eu fiz o pré, para depois entrar para o primeiro ano, porque era o que gente chamava de: “Ah, vou estudar no grupo”. Falava que era grupo, era o primeiro ano, de primeira série. Mas eu fiz o pré antes. E aquilo era muito divertido, o prazer de ir para escolinha, tudo, tinha toda uma cerimônia para ir para a escola. Então a gente brincava no período da manhã, que aí eu brincava com as minhas coleguinhas, as minhas amiguinhas, que era a Elisabete, também que chamava Elisabete, que era vizinha, e outra garota, que eu não lembro o nome. Ah, e tinha uma moça que morava em frente de casa que tinha dois ou três, dois filhos... É. Dois filhos. E ela parecia uma bruxa, a gente tinha um medo dela, mas ela era uma pessoa muito bacana, que era amiga da minha avó também. Então tenho lembrança de vários vizinhos assim. Tinha um investigador e tinha um rapaz do lado que era filho dele, que parecia o Wanderley Cardoso. Sabe, tinha uns ídolos assim que as meninas falavam, mais velhas falavam deles assim, que eles eram os bonitões da rua, sabe assim? Era bem engraçado.
P/1 – E como foi crescer com música em casa? Você nasceu e cresceu com música?
R – É. Com muito instrumento dentro de casa. É engraçado que a gente... Hoje eu vejo que eles olhavam para mim de uma forma tão carinhosa, tão cuidadosa, porque eles não tiraram nada do que eles... Eles não mudaram o cenário do que eu vivi ali, não mudaram as histórias deles. Meu pai tinha oficina de funilaria e pintura, meu pai era pintor. Eu tenho uma lembrança de casamentos, que a gente ia ao casamento de tias, de primos e tal, sabe aqueles carros da Ford? Meu pai era funcionário da Ford e ele era pintor da Ford. Então ele saiu da empresa, o que eu sei é mais ou menos isso, que eu lembro, ele saiu da empresa e acabou tendo um carro daqueles grandes da Ford assim, tipo aqueles carros de Al Capone, aqueles carrões grandões? Eu lembro que eu subia no carro, ficava pulando dentro do carro, que tinha aqueles estofados de couro, com aquelas molas, era muito engraçado (risos). Era um carro superpreto, ele vivia lustrando aquilo assim. Muito legal. E assim, a música e a oficina de funilaria e mecânica fizeram com que a gente percebesse isso, essa coisa da música, porque tudo se concentrava ali. Os amigos do meu pai, meu pai sempre foi muito festivo, ele cozinhava em casa. Ele e minha mãe tinham uma atividade muito grande com relação à escola de samba, à parte cultural, à parte da raiz mesmo de casa, da nossa história. Então essa coisa de ter tambor o tempo todo, você via, tinha tambor em casa. O que me encantou foi um amigo do meu pai que apareceu, que ele se chamava Açúcar, e um desses encontros de finais de semana, de sexta-feira era um dia que todos iam à oficina do meu pai e se reuniam para poder fazer esse lance do... De fazer uma sardinha. Eles arrumavam um motivo pra fazer uma comida pra poderem estar juntos, para poderem fazer sambas, enredos, músicas para o enredo das escolas de samba, dos blocos. E eu lembro que ele rodava um pandeiro na mão. Era um pandeiro lindo cor de rosa assim, enorme, ele rodava. O que me encantou foi aquilo. Eu queria era rodar o pandeiro na mão. E não tinha essa coisa de saber, eu não sabia que eu tinha esse dom para tocar também. Que me seduzia também a música, tudo, mas eu não sabia que eu tinha tudo ali de muito acesso, mas eu não chegava perto, eu metia outra história, queria brincar, queria comer sardinha, que gosto de peixe até hoje. Porque eu tenho maior raiva, porque ele me fazia limpar um monte (risos). No entanto, eu tenho o maior carinho, adoro peixe. Adoro. Amo. É muito legal. Enfim, é isso.
P/1 – Pensando um pouco da sua adolescência, o que você fazia?
R – A minha adolescência, poxa, eu sempre fui muito CDF. Quem diria? Eu sempre gostei de escola, ficava o tempo todo dentro da escola. Gincanas, lembra que tinha gincanas na escola? Ah, uma coisa que eu adorei, olha, quando eu cheguei na sétima série, hoje eu não sei como fala isso, não sei como usa esses termos hoje para escola, sétima, oitava, para você ir até o primeiro colegial, segundo, sétima série, sexta série, quinta série, eu participava de gincana, eu sempre fui meio líder de umas turmas assim. Eu sempre gostei de esportes. Entrei no esporte. Eu fui jogadora de voleibol. Você citou o DEF, eu joguei no DEF voleibol. Eu corri quatro por cem no Ibirapuera. Então eu fui para o esporte. Então eu ficava enfiada dentro da escola. Eu jogava dardo. Eu era pra ser jogadora de voleibol da seleção brasileira.
P/1 – E por que não foi?
R – Pois é, a música foi mais forte. Louca, né?
P/1 – Em que momento então a música entrou com tanta força na sua vida, que você decidiu que era isso que você queria fazer?
R – Ah, que quando eu fui fazer o colegial. O colegial, o pessoal já é mais... A mocinha é mocinha, tem as histórias dos namoradinhos, eu fugia um pouco dos namoradinhos, que não era muito a minha. Com as coisas de estudar, me dava mais o lance de ter uma companheira do lado para estudar. E eu gostava muito... Essa coisa de lidar com o esporte... Eu gosto muito de arte, então eu gostava muito de Geometria, gostava muito de Matemática, gostava muito de desenho, gostava de desenhar com compasso. Tudo que era muito difícil, eu me metia. E essa coisa de estudar junto também me trazia um grupo diferente comigo. Trazia um grupo diferente que fazia alguma coisa que eu fazia, o esporte. E esse esporte puxava uma coisa da música. E eu ouvia muita música em casa, muita música que eles não ouviam, tipo, minha mãe tinha aqueles LPs 78, aquelas bolachonas de 78. A gente dava uma manivelazinha assim na vitrola e a vitrola ia lá, tal, tal. Muita coisa me fez ir para a música, as músicas mesmo. Dentro da escola a gente fazia isso. E foi lá que eu descobri que eu tocava um negocinho, alguma coisa, porque a gente começava a tocar naqueles baldes da escola, fazer o tam tam tam, tam tá tam tam, tam tam tam, tam tá tam tam. Ah, todo mundo... Começou reunir a turma: “Ah, vamos juntar com a Gigi, porque... Putz, a Gigi sabe tocar, sabe cantar também”. E eu cantava coisas que eu ouvia em casa. Naquela época era Jorge Ben, não eram Jorge Ben Jor, era Alcione, naquela época era muita coisa que minha mãe ouvia, era Ângela Maria. Tem um tango que era muito doido, como era o nome dele? Ataulfo Alves. Acho que era Ataulfo Alves. Era muito doido aquele tango. E quem ouvia era a minha avó. Era um negócio muito legal. Eu falei assim: “Um dia eu ainda vou gravar do meu jeito”. Que era muito doido. Era uma sofrência. Para aquela época era uma sofrência. Que era muito doido. E eu gravava essas coisas todas, ficava comigo essa musicalidade da minha casa, através desses discos. “Dartelo martelo...” Que era muito legal ouvir isso. Eu fui assistir Dio, Come Ti Amo no cinema, e chorei como uma doida. Sabe aquela coisa? Aí eu falava: “A música que eu queria aprender em italiano pra poder cantar e tal”. Muita coisa. E chegava à escola, eu tinha que estar com os meus, tinha que estar com pessoas que eu me identificava nessa frequência, e o esporte era muito isso, era uma turma muito legal. A professora me colocou uma turma para treinar uma turma de treinamento, de tanto que eu era apaixonada, ficava dentro da escola, porque a gente tinha que ter notas legais na época para poder participar mesmo das gincanas. Tinha gincanas, lembra-se daquelas caixinhas, saquinhos de leite que se juntavam para o hospital do câncer? Tinha gincana disso, que a gente tinha que juntar aqueles saquinhos, e a gente fazia competições entre as classes, tal, pra juntar todos aqueles saquinhos um no outro. Engraçado, que o reciclável, a gente já trabalhava isso lá atrás, e a gente não tinha... Olha, hoje assim, nem noção de quanto isso é tão importante, a gente fazia isso. Tinha aquela coisa da... Tem outro também, outro elemento, que eu lembro que tinha assim na porta do colégio, a gente formou uma montanha desse material, que eu não lembro. Acho que até esses saquinhos sim. A gente formou uma montanha desses saquinhos, de tanto que a gente pedia para o vizinho, para a tia, para todos. Eram aqueles saquinhos de leite na época. Era muito legal. Muito legal. E isso tudo fazia parte, tava tudo ligado ao esporte, porque a gente participava dessa gincana, e essa gincana era um grupo que ia fazer ou uma excursão para o zoológico, ou para o Planetário, ou isso contava nas notas, ou você tinha direito... Ah, sim, tinha essa história também, você tinha direito, se você chegasse mais cedo, você tinha direito à chave de onde tinha o material de esporte, por isso que eu treinava no fundo da escola o lance do dardo, porque era uma extensão muito grande, dentro da escola mesmo, mas nas costas das salas. Aí tinha um terreno grande assim, comprido, aí eu tinha essa coisa, pegava as lanças pra poder treinar lançar os dardos assim. Puta, muito legal. Então você tinha direito de abrir a porta, pegava bolas, pegava a rede, então você tinha direito de pegar os materiais, tinha uns privilégios, umas coisas bem legais nessa época. Essa adolescência foi... Ah, levaram a tantas coisas, porque eu acho que eu perdi um pouco o fio da meada da minha casa, quando eu fui criando um pouco mais de consciência, porque aquilo é tão fascinante. Que um bairro que eu tive oportunidade de várias coisas, eu acho que eu perdi um pouco o fio da meada, e quando eu me dei conta, meus pais estavam num processo de separação muito doido. E isso eu perdi uma relação com o meu irmão que foi muito dolorida também, a gente tinha uma relação. Não sei, eu por ser caçula, ele por ser mais velho, a gente tinha umas coisas assim... A gente não se dava muito bem, ao mesmo tempo se dava. Era uma época muito difícil. Foi uma época muito difícil, uma família batalhadora mesmo. A minha mãe sempre deu força em casa, trabalhava em casa de família. Tem uma história muito engraçada, minha mãe trabalhava numa casa de família e a patroa chamava dona Chiquinha. Ela trabalhou muitos anos, a que ajudou a gente muito em casa, a dona Chiquinha. Lembro muito, a gente ia à casa da dona Chiquinha, às vezes que ela pedia: “Ah, traz as crianças aqui” – que éramos eu e meu irmão, aí a gente comia junto com os filhos dela. Aquela coisa de levar mesmo para a sala: “O que vocês gostam de comer?”. Tinha um tratamento de igual, assim, de ajuda mesmo, uma pessoa com o coração muito bom. Ela falava pra gente: “Nunca deixem de ser iguais aos que os meus filhos são. Queiram muito a... Porque sua mãe trabalha muito, sua mãe é muito querida. Sua mãe faz parte da nossa família, vocês são nossa família também”. Minha mãe nessa história, nós fomos lá, sempre íamos. E em casa tinha porco, pato, coisas de sítio. Certo dia dona Chiquinha resolve ir lá em casa. Chegaram ao portão lá embaixo, tal: plá plá plá plá plá. Não tinha campainha, bate palma. Minha mãe: “Mãe...” – falando para a minha avó, dona Cornélia, a gente chamava de avó Neia – “Mãe, parece que é a dona Chiquinha”. E a gente tava tudo na sala assim, que a gente tinha que encerar a sala, naquele tempo tinha aquele vermelhão, aí passava aquela enceradeira bem antigona, que rodavam aqueles... (risos). “Mãe, parece que é a dona Chiquinha lá embaixo, não sei, não, tal.” E só tinha uma cerquinha no portão e aquelas árvores tudo, tal. “Mas é sim. É sim.” E, tipo, quatro horas da tarde, os patos, porcos, tudo. “Não, é dona Chiquinha sim.” Minha mãe virou para nós assim: “Não falem o nome da porca, pelo amor de Deus, hein? Não falem o nome da porca” (risos).
P/2 – O que era?
R – O nome da porca era Chiquinha (risos). “Vocês estão me ouvindo?”. Deu uma bronca em nós, nós assim: “Como assim?” – sem entender. “Não falem o nome da porca.” A gente adorava a porca: “Oh, Chiquinha, vem aqui, tal”. Putz, a patroa da minha mãe chegou lá para visitá-la: “Dona Chiquinha...”. Putz, é demais. É demais. Foi uma adolescência assim, foi uma coisa que... Muita coisa legal. Muita coisa maravilhosa, muita brincadeira, muita gente boa, muitos amigos, muitos amigos que passam pela vida da gente, é bem legal. É bem legal.
P/2 – E quando você acabou a escola, o que você fez?
R – Então, eu não acabei a escola, na verdade, eu fui emendando uma coisa na outra, porque, poxa vida, eu terminei o colegial no Professor Augusto Ribeiro de Carvalho, ali no Piqueri, quando eu saía às 11 horas da noite, trabalhava na Sears Roebuck. Eu fazia um trabalho de meio período na Sears Roebuck, ali onde é o shopping agora. Trabalhei de arquivista, fazia seis horas como arquivista, tal, depois ia para a escola, tal, pra fazer o colégio, terminar o colégio. E a música já tava no meu paralelo. Eu queria fazer Jornalismo, sabia? Depois eu falei assim: “Não, eu quero ser aeromoça” – aquela coisa da infância – “Quero ser aeromoça”. Mas depois, no meio do caminho, eu falei: “Eu quero trabalhar com comunicação, quero fazer Letras, alguma coisa assim”. Mas a minha casa tomou outro rumo, o qual tive que ir mesmo para o trabalho, me concentrar em trabalhar e falar assim: “Bom, depois eu penso em alguma coisa que eu possa estudar”. E aí onde a música entrou em primeiro lugar, porque eu não conseguia ter... Porque a música me relaxava, me tirava desse universo da minha casa, eu ficava muito mais fora do que dentro, porque aí eu ficava na casa de amigos. Tudo começou a mudar. Mudou de uma hora pra outra. Às vezes eu ia... O meu último ano, eu repeti um ano, repeti o primeiro colegial, porque eu ia para a escola e não entrava na escola. Eu ia à escola e não estudava. E começou a refletir na minha... Falei assim: “Não, eu preciso terminar. Eu preciso, porque... Depois eu vejo isso”. A coisa de “depois eu vejo”, eu fui deixando mesmo. E passou e foi difícil depois retomar a minha casa. Eu tive que partir para o trabalho real, onde entrou lá um pouco mais, com 22, 23 anos, entrou uma situação de fazer concurso público. Fazer um concurso público pra entrar na prefeitura como pajem, para poder... Como pajem, para poder ter um serviço fixo, para poder trabalhar. Tem que ter grana. Tem que ter grana, vai rolar uma separação. Ah, tudo tão difícil. Tão difícil. E logo depois a minha avó vai embora também, que é uma potência, minha avó Cornélia é uma potência de pessoa, uma pessoa muito comunicativa, muito divertida, maravilhosa, ela é o eixo, o braço direito assim da minha mãe, duas guerreiras imensas. Mas acontece. É um caminho, um percurso, que você não imagina. E eu no meio daquela... Doze anos depois veio a minha irmã, mas só que eu era a caçula, então eu segurei assim: “Oi. O que tá acontecendo?”. Então toda a minha inocência, eu acho, naquele momento de não ter visto como estava... Também eles não me mostraram. Eles não queriam que eu visse. Eles viram a minha alegria, o meu estado, o meu crescimento, a minha forma de olhar, porque eles sabiam que eu gostava muito de estudar, sabiam que eu gostava muito do que eu fazia, a minha alegria assim... Eu sempre fui líder. Eu sempre fui líder de alguma coisa. Os amigos iam em casa no dia do aniversário, faziam roda na rua: “Eeeee”. Muitos amigos. Sempre muitos amigos. Sempre gostei de acampar, sempre gostei de desbravar as coisas, gostei de ir. Eles não podaram nada disso.
P/2 – E como foi, naquela época... Se hoje já é difícil, imagina naquela época ser uma percussionista mulher, aposto que tinha pouquíssimas naquela época. Como foi pra você entrar nesse mundo, que era predominantemente masculino, não era, a percussão?
R – Totalmente.
P/2 – Como foi isso?
R – Totalmente. Olha, eu vou dizer uma coisa... Ave Maria. Hoje eu vejo como... Se eu não soubesse fazer direitinho, se eu não soubesse tocar, eu acho que eu não teria entrado assim tão firmamente, não teria encarado tantos e tantos. Porque é muito difícil. Eles realmente colocavam à prova. Até hoje colocam, mas mais sutil. Hoje a gente muito mais... Tem as guerreiras, a gente abriu muito caminho. Mas na época não, era cara a cara, era um desacato atrás do outro. Era o “não vai tocar”, “não vai pegar”, “ah, toca um chocalho ali”. “Mas como assim? Eu quero tocar esse tambor.” E você não tem o instrumento. Eu não tinha instrumento. Os instrumentos que eu tinha eram instrumentos de samba. E eu entrei num universo pop. Que aí eram instrumentos tipo tumbadoras, congas, que são instrumentos que são representativos da música pop, seria no caso hoje. Teríamos djembê, timbales, sei lá, alguns tontons de bateria, tal. Mas eu não tinha condição de ter instrumentos assim. Eu tinha instrumentos... Eu tinha acesso a instrumentos de samba. Então com essa linguagem do samba e tendo essa percepção, eu consegui chegar, porque tinha, poxa, amigos que chegavam e mostravam muita coisa pra mim. Mostravam: “Olha, isso daqui é uma conga” “Putz, um dia eu vou comprar uma conga dessa” “O atabaque”. O atabaque, eu já tinha visto o atabaque por causa da questão religiosa, nos centros de candomblé, tal, com o meu pai, com tios e tal, ia lá ver, tal, enfim. Mas nunca tinha acesso de estar ali, para por a mão ali. Então, poxa, não tinha como chegar perto. Não tinha como. Mas a curiosidade, os amigos chegavam: “Pois bem, olha, a gente vai fazer...”. Quando foi? Acho que eu fui fazer um... Engraçado, é uma coisa que liga a outra. Eu não tinha a mínima intenção de tocar. Fui a uma festa de uma amiga, muito bem relacionada, tal, que aí a gente tinha que tomar três, quatro ônibus para chegar ao Horto Florestal, que era uma casona enorme. E fui à festa de uma amiga e nessa festa tinha esses instrumentos lá, uma conga, uns timbales, bongôs, instrumentos maravilhosos, e aí onde você se sente mais à vontade pra pegar e você sabe que você tem essa facilidade de lidar com esses instrumentos. Enfim, mas para ver vários músicos tocando e você assistir a shows, e você assistir várias coisas, você não podia chegar, a gente tinha uma barreira muito grande. E aí você tem que ter coragem de poder dizer na cara deles que você: “Não, espere aí, me deixe pegar isso daí, me deixe ver. Posso tocar?”. Eu já no mundo do samba já era complicado, porque a minha paixão pelo pandeiro era tão grande que meu pai me deu um pandeiro. Eu pedi para o meu pai esse pandeiro cor de rosa: “Eu quero um pandeiro cor de rosa”. E eu ficava lá. Mas eu falei assim: “Não, espere aí, me deixa aprender esse um, dois, três, quatro aqui, pra ver como é”. E acabei gostando mesmo de tocar, então eu ia às rodas de samba e via esse pandeiro lá, e via o cara tocando, encostava do lado cara, falava: “Putz, se o cara não me der esse pandeiro... Deixe-me tocar”. Tinha aquele momento: “Ah, vamos todo mundo tomar uma água, vamos agora dar um tempinho, já, já a gente volta”. Eles deixavam os instrumentos: “Então, eu posso pegar aqui pra eu ver? Posso pegar esse instrumento?”. Pegava lá e arrasava com eles: tuc tchum tchum, tuc tic tuc, tuc tic tuc, aí começava a formar outro grupo, pra ver... “Não, mas espere aí, quem tá tocando?” Chegava lá, era eu que tava ali tocando, tal. “Olha só... Ô negona, da hora, hein? Você toca da hora. Ô, meu, deixe a menina tocar. Ou, deixe-a tocar aí, meu, tal”. As rodas do Camisa Verde e Branco, de samba, de segunda-feira, nas rodas do Unidos do Peruche, que tinha lá as rodas de samba de sábado com feijoada. Então tinha sempre um ou outro que me conhecia: “Ah, a filha do Gilberto Bonga. Ah, deixe-a tocar aí. Não, deixe a menina pegar”. Começaram a me ver. Porque eu tinha que arrumar um jeito. Mesmo assim, eram aqueles três segundos, sabe o negócio dos três segundos no garrafão? Logo você lança e faz a cesta. Ou você pega o instrumento e aproveita aquele momento, e valoriza aquele momento, vislumbra ali, ou então você não... Se você fizer uma firulinha... Não, você tem que chegar e desempenhar: tuc tic tuc, tic tchaca, com graça, pra chamar essa atenção e pra ganhar esse espaço. Para ganhar esse espaço. Isso é o pandeiro.
P/1 – E teve um momento que foi assim o seu batismo, tipo assim, você finalmente rompeu essa barreira e conseguiu mostrar, tocar, ter um reconhecimento?
R – Ah, sim. Sim. Sim. A partir do momento que eu comecei a pensar em fazer o seguinte: “Puta, minha família tem uma escola de samba, cara. Minha família tem uma escola de samba, Unidos do Peruche, tem lá. Vou começar a frequentar aquele espaço. Vou começar a me colocar ali”. E aí comecei a reunir um grupo chamado... Através de um pessoal também que a gente se encontrava lá no Ipiranga, que aí tem toda uma questão do movimento negro, comecei a me encontrar com pessoas do movimento negro, tal, que era muito forte na época aqui em São Paulo. E aí a gente começou a fazer reuniões, nessas reuniões tinha música, eu comecei a ter esse meu pandeiro junto comigo, que aí eu levava comigo, e comecei a desempenhar também, junto com eles, músicas e tal, que eram palavras de ordem na época. E tem esse espaço da Unidos do Peruche, onde eu podia juntar esse pessoal do movimento negro, tal, e fazer a música. E comecei a sacar que a música era esse elemento que podia ter para juntar, para poder fazer... Que era uma coisa do reconhecimento também enquanto negro. O movimento negro me deu esse start, me deu essa visão de: poxa, olha o meu lugar, olha só o que eu quero, essa luta racial aqui, nesse momento. Que eu já fui de corrente de mão na frente, contra o racismo, tal, já fiz vários movimentos. Nossa, muita coisa aconteceu nesse período, ao qual estava nessa transição da minha casa entrar no serviço público, porque tava acontecendo uma transformação em casa, a separação dos meus pais, e esse novo momento que aparecia na minha frente, que era o movimento negro, a música, os tambores, a referência que eu tinha, que era só homem eu tocava, e eu não poderia tocar. O meu pai me liberando, ao mesmo tempo: “Ué, eu posso?”. Meu pai era um cara rígido. Meu pai era um cara rígido. Nossa Senhora, brabo, entendeu? Mas eu tinha aquele jeito com ele, que eu conseguia... Pô, ele me deu um pandeiro. Ah, então eu posso. Então eu posso. Então eu tenho que me superar, eu tenho que estudar isso daí, eu tenho que ir a fundo. E eu comecei a gostar, eu achava muito lindo. Ritmicamente, a percussão, os movimentos e toda a sonoridade dos instrumentos de percussão são muito bonitos, são muito lindos. É maravilhoso esse universo. E aí eu comecei a gostar, porque aí tinha a bateria da escola de samba que já tinha em casa, se lembram disso? Então imagina: tche, tche tche tche, tche tche tche, tac tac chicabum, tac chiabum. E a pessoa já recebe aquela energia do samba e aí começa toda uma trajetória. E eu reconhecer o samba, eu acho que eu reconheci o samba dentro dessa história, poeticamente falando, desde a coisa da gestação. Eu reconheci. Eu me reconheci ali naquele ritmo. Reconheci-me nos tambores que os caras estavam tocando. “Por que eu não posso tocar isso?” É um desafio, aos anos 23 anos, você ali querendo cair para o mundo, não entendendo muito bem para aonde você vai, você uma mulher negra, de uma família lá de uma periferia, não sabendo muito bem pra onde vai, mas é um desafio danado, e que você respira e fala assim: “Poxa...”. E aí é a sorte, a vida que te dá pessoas maravilhosas no seu caminho, de grandes amigos: Dinho Gonçalves, Dinho Nascimento. Eu fuçava tudo quanto é conservatório. Tem uma pessoa maravilhosa antes de mim, tem a Dofona, que até hoje acho que dá aula no Ibeji. É Ibeji? Escola Ibeji, uma coisa assim?
R/2 – No Equipe.
R – No Equipe?
R/2 – Colégio Equipe.
R – Tem a Dofona. Ela veio antes de mim. Quando eu cheguei, ela já estava. Pelo amor de Deus. Então imagina o quanto ela não me deu força. Toquei junto com ela. Gostaria muito de fazer uma grande homenagem a ela. Assim, ainda vou ter essa esperança. Mas é, olha, se cruzar com uma Dofona, você saber que existe uma mulher dessas, daí você acabar conhecendo uma pessoa como ela, que lida com tambores na mão mesmo, espiritualmente, dá aula para criança com isso, dá aula de capoeira. Olha que pessoa... E eu conheci essa pessoa nova, foi um brilho nos meus olhos, foi a gotinha do suquinho de laranja para que eu fosse mesmo e encarasse, falasse: “Aí, meu, me deixe tocar. Deixe-me tocar esse tambor aí”. Não dava mais para tocar o pandeiro, então eu pegava já um tantan, que é outro instrumento (tocando instrumento). Dava outro ritmo no samba, que era o mais complicado. Aí já queria mais os mais complicados, já tava mais ousada. E como os outros me conheciam, começavam a dar uma reação, falavam: “Não, aquela menina do pandeiro, deixe-a pegar aí e tal”. Mas sempre nos intervalos, nunca como primeira da fila.
P/1 – E quando você virou a primeira da fila?
R – Ah, sim, aí já não precisava mais, eles me chamavam. Eles me chamavam. É bem legal. Eles me chamavam. Porque a música tem essa... “Faça-te a fama e deita-te na cama.” Porque quando você faz a coisa diferente e faz bem, esse é o grande diferencial, se a sua batalha for na verdade. Eu não tocava porque eu queria: “Ah”. Não, eu tocava porque eu gostava, gosto muito de tocar. Então eles sentiram, eles viram. Muitos viram amor, viram: “Putz, que legal, talento o nome disso” – como diz a outra. “Putz, a menina tem talento.” Legal isso. Eu não sabia nem o que era. Nada. Eu adorava estar no conjunto. Eu adorava estar no conjunto, mas via que aquilo tava dando uma transformada neles, eu via que a minha posição não era somente eu, porque aí comecei a ouvir as cantoras, tipo, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, Dona Ivone Lara, porque essas cantoras também a referência é samba. Essas cantoras também vieram pra mim com uma potencialidade, uma força, Beth Carvalho, vieram pra mim com uma força muito grande também, colaboraram muito para a minha formação musical em nível instrumental. Porque eu ficava em casa com meu pandeirinho, mas já não queria mais o pandeiro, já comecei a reunir outros tipos de instrumentos em casa, porque eu tinha essa referência do samba lá, então eu falei assim: “Ah, isso daqui eu posso tocar ali. Eu posso colocar lá no samba. Eu posso tocar lá, mas eu tenho que estudá-lo aqui”. E eu tinha um irmão dentro de casa, que foi um repiniquista maravilhoso, ganhou Repinique de Ouro, porque tinha campeonatos na cidade, das escolas de samba, de repinique, quem era o melhor repinique das escolas de samba. Meu irmão ganhava aquilo, que era um instrumento agudo, o qual se chama o samba, todas as passagens do samba, que se toca com uma baqueta só. Então meu irmão... (tocando instrumento). Acabava quando só tinha ele dentro de casa. Aí eu pedia pra ele, ele resistente. E ele tinha o repinique, tinha todos esses instrumentos lá de samba. E eu pegava: “Oh, Tico...” – Gilbernei – “Gilbernei, me ajuda aqui, me deixe ver esse negócio”. No quintal de casa: “Então é assim, tal”. Aí ele: “Não, pegue mais pra cá. Agora, olha, aqui na beirada você tem mais agudo, tal. Mas pra que você quer esse negócio, não sei o quê? Toca o seu pandeirinho lá que o papai te deu”. Aí ele não insistia. Porque o instrumento que realmente nós mulheres queremos é essa batida... Os caras acabavam se machucando, a gente via cada coisa horrível assim, cortavam as mãos, abriam as mãos. O pessoal do samba é uma coisa de doido assim. Às vezes você vê a pele do surdo do cara com sangue, eu falava: “Não. Nesse ponto eu não quero chegar, não. Não é isso que eu quero. Não é nisso que eu tô pensando. Não é isso que me vibra aqui dentro. É outra coisa, é outro bateiro, é outro pulsar que me vibra. É outro olhar, que eu não sei ainda o que é, mas eu estou apaixonada por isso e eu vou tentar encontrar qual é, onde é essa paixão”.
P/1 – E foi nessa fase dessa busca por essa paixão que você pediu exoneração? Aí foi quando você resolveu virar artista mesmo, você assumiu enquanto artista? Como foi isso?
R – Pois é. Seis anos de prefeitura, eu resolvo... Duas amigas: em memória, Dolores Furquim, e Elisabeth Belisário, vão lá à porta da creche, falam assim: “Girlei, vem aqui. Você vai voltar, você entrar lá e vai fazer...”. Porque eu já tava fazendo coisas, já tinha um grupo chamado Banda-Lá, que eu ensaiava lá dentro da Unidos do Peruche, então eu já tava mexendo com música. Eu já tava tocando tambor. O que eu tava fazendo lá dentro? E eram seis horas por dia, por que eu não segurei? Hoje eu estaria aposentada. Tem amigas minhas que estão aposentadas me chamando para reunião de aposentadoria lá da prefeitura. Minha mãe fala assim: “Olha, era pra você estar aposentada também”. Mãe, né? Falo: “Ai, mãe, você não esquece isso. Eu vou sofrer sempre com essa imagem da senhora dizendo: ‘Olha, era pra você estar aposentada de novo na prefeitura. Tá vendo, tal?’. Mas talvez eu não estivesse feliz, mãe” – sabe assim? “Não, mas tava pensando na segurança.” “Eu entendo isso. Pensando na estabilidade, na segurança, tal.” E essas duas amigas, Dolores Furquim, que já se foi, e Elisabeth Belisário, foram lá à creche uma época, e falaram: “Gigi, você acha que é isso mesmo que você quer?”. E a gente, semanas atrás, já tinha conversado. A gente conversava muito. Eu conversava muito. E eu tava muito mexida, eu tava muito incomodada, porque a coisa de estar ali fazendo aquele... Já não era mais uma paz, eu não cuidava mais das crianças, eu já colocava as crianças para conhecerem o arredor do bairro delas, eu já saía do protocolo da creche. Eu levava as crianças e fazia todo mundo trabalhar lá dentro. Porque aí eu levava instrumento para dentro da creche para as crianças. Comecei a fazer isso. Comecei a levar instrumentos, então já não tomava mais café, aquela coisa sentadinha na cadeira. Não, vou tomar lá fora, lá na mata, vamos fazer um piquenique fora, levem todos os cafés lá pra fora. Comecei a fazer umas revoluções lá dentro e comecei a ser meio marcada, sabe assim? E uma época em que a instituição, meu, a prefeitura do Estado de São Paulo. E um lugar onde tem um monte de mulheres ali concursadas, mas ela tem a enfermeira, o pessoal da cozinha, cada qual na sua área, mas eu fazia todo mundo trabalhar, não tem como. Se eu tô com 20 crianças dentro da minha sala, na idade, olha só, de cinco a seis, sete, até sete, cinco aninhos até sete aninhos assim, quase sete, pitoquinhos, então canta pra cá, e canta e tal, até uma hora que você fala assim: “Aquele espaço quadrado ali dentro da sala não me cabe mais”. A área de... Um sol desses, eu vou colocar essas crianças no sol? De jeito nenhum. Então eu arrumava lugares para eles irem. Eu os tirava do espaço. E aquilo tava me sufocando, eu tava passando mal, porque eu sabia que eu não tava dando para eles, imagine para mim. O que eu ia dar para eles? Comecei a levar instrumentos, colocar instrumentos lá dentro. Aí era barulho demais, porque tinha bebezinho, aí era barulho de menos... Porque tinha a parte do maternal, porque era bebezinho, era barulho de menos, aí porque não tinha, aí porque tava uma sala muito... Eu falei assim: “Então não vou fazer nada, tal”. Mas aquilo me perturbava, porque, imagina, 25 anos, 25, 26, dentro de um... Aquilo foi me dando um negócio. Foi me atormentando, me atormentando, e essas duas maravilhosas, esses dois anjos chegam e dão aquela injeção de falar assim: “Meu, vá fazer o que você gosta. E outra, ainda dá tempo, tem muita coisa, você tem talento”. Primeiro momento de Beth Beli na minha vida, foi esse. O segundo, ela me leva para a Companhia Brasileira de Mystérios e Novidades. Não, me leva... Assim, me leva para o Brincante, o qual a gente foi de bike, andava de bicicleta, a gente foi de bicicleta lá para o Brincante, e eu com a Lígia Veiga, uma mesa medieval linda, com um monte de gente lá que eu não conhecia, só artista, tal. E aí eu conheço Lígia Veiga lá, onde eu começo a fazer um curso de perna de pau e onde se monta um espetáculo chamado A Saga de Jorge, e onde começa toda uma história da minha vida que mudou. Minha vida mudou completamente. Outra coisa. Começou outra coisa, porque eu me apaixonei com essa atividade... Porque tinha um circo perto de casa, aí sair dessa coisa da... Não tive dúvida. Fui lá, voltei lá, comecei a assinar os lances para poder pedir exoneração. E o pessoal da creche falando: “Você é louca? Como você vai fazer uma coisa dessas? Você tá doida?”. E eu: “Não, eu quero ir embora”. E eu deixei no meio do caminho, não terminei o expediente, não. No meio do dia eu já tava indo embora. Complicado. Bateu. Batia mais forte. Eu não podia fazer mais nada ali. Não me deixavam fazer mais nada, eu ia morrer ali dentro.
P/1 – E depois do Brincante, o que você fez?
R – Poxa, do Brincante, eu acabei fazendo assim, eu trabalhava... Eu lembro assim, que eu fazia o seguinte, eu trabalhava... Essa coisa do arquivismo, eu fazia umas coisas que eram muito legais, eu fazia uns cursos. Eu fazia uns cursos. Por que eu fazia uns cursos nesse interim? Porque eu tinha uma grana que eu recebi, que eu guardava uma grana, então eu tinha uma grana guardada. Então essa coisa da música, quando eu cheguei ao Brincante, a Lígia com seu olhar maravilhoso, falou assim: “Essa menina, a gente pode fazer uns trabalhos”. Esse meu primeiro trabalho deu uma graninha. Olha que legal. Eu falei: “Olha que legal”. Antes da Lígia tinha o Ori Axé. Antes da Lígia tinha esse bloco afro Ori Axé, que tem a ver com o movimento negro, lembra que eu tava falando do movimento negro? Que comecei a levar para a Unidos do Peruche. Aí desse movimento negro, aí vem a Kika, Carmem Silva. Carmem Silva, depois vem a Kika, que me convidou, convidou a Beth, me convidou, para fazer parte da Fundação do Ori Axé, que tinha um instituto de cabelereiro afro ali na Santo Antônio, tal, e aí a gente montou o Ori Axé, que era o primeiro bloco afro por conta disso. E eu comecei a frequentar. Ali a gente foi para a nossa primeira viagem internacional, foi para a Costa Rica. Olha que legal. Aí eu descobri que a gente cantava, que eu podia compor música, fazer música, porque eu tinha lá em casa que a gente cantava muito... Falei, a gente ouvia muito Alcione, então encerava a casa e cantava. Encerava a casa e cantava (risos). É um clássico isso. Encerar a casa, lavar a louça e cantar é um clássico. Nossa, um dia lindo assim de sol, mas não é, não? A gente encerava a casa, aquele vermelhão, que tinha passar aquela pasta da cera do vermelhão: “Ah, e cantando, tal”. E cantava. Quando chegou a esse momento, eu já tinha essa coisa de cantar, eu já não tinha... Essa timidez já não era mais minha, porque o esporte me colocou em outro lugar. Já tinha passado essa coisa do esporte, tal, de estar com muita gente, então quando chegou a esse momento no Ori Axé, já tava em outro lugar, só foi despertando. E quando você ganha a primeira grana com arte, falei: “Nossa, que legal. Que maravilhoso”. Eu achei tão bacana aquilo e comecei a procurar essa... Como chama? Essas escolas que você vai estudar música. Conservatórios. Falei: “Preciso estudar”. Olha só o que tinha passado já a família... Mas eu frequentava ainda os sambas todos. Agora já tava de samba, já podia ir às rodas de samba, que todo mundo me conhecia. E outra, ali eu era filha do Gilberto Bonga, da Unidos do Peruche, então eu tinha aquela coletividade, todo mundo me conhecia, conhecia o meu pai. Tudo em nome do pai, mas a mim ninguém conhecia. Mas eu ia lá de ousada, porque mulher não toca, então... E aí você vai, queria estudar, fazer um conservatório, ou então tentar fazer uma faculdade e tal. “Ah, mas com você vai fazer um negócio desses se a sua casa...”. Você olha para a casa de novo, voltou em casa, aí tá o caos. A minha casa parecia... E eu não via, não tinha sacado. Sabe a Família Adams? A gente foi construindo um cômodo de alvenaria, porque minha irmã tinha que chegar, então a gente construiu outro cômodo de alvenaria no terreno, aí saíram algumas árvores, alguns pés de abacate, alguns pés de maracujá, eu lembro muito bem aqui na nossa entrada, que dá aquela flor linda cheirosa. E aí os bichos começaram a sumir, os bichos todos desapare... Sabe quando você dá uma piscada, você fala assim: “Nossa, mas a gente isso”. E não tinha mais, por quê? Porque todo esse percurso que eu fiz, eu ficava na casa de amigos. Ficava na casa de amigos. Eu voltava um dia depois, ou então saía de casa com uma mochilinha, falava assim: “Ah, eu vou para a casa da Beth”. Ou então: “Vou para a casa as Solange”. Ou então: “Vou ficar na casa do Alberto”. E aí ficava dois, três dias, eu ficava nessa função. Eu fugi desse momento. Tem uma parte que eu não lembro, quando eu cheguei, tava parecendo... Era um caos a minha casa. Era escura. Escura. Completamente escura. Uma construção detonada, tudo muito escuro, tudo muito paaah. Minha mãe num processo de destruição total, numa amargura, de uma dor, tudo muito paaah.
P/1 – Onde tava o seu irmão nessa época?
R – Já tinha se mudado com uma mulher, que morava um pouco mais distante de casa.
P/1 – E a sua mãe tava grávida da sua irmã?
R – Não, minha irmã já tinha nascido. Minha irmã era pequena. Minha irmã tinha lá seus oito, nove anos. Fiquei um bom tempo com a minha irmã. É muito doido.
P/1 – E como foi, você falou da perna de pau, a perna de pau parece que foi também uma coisa que marcou assim pra você.
R – Mudou a minha vida.
P/1 – Como foi essa história com a perna de pau?
R – Pois é, uma lembrança... Até hoje tem o tal do Circo Escola. Aquele Circo Escola tinha e iam espetáculos para lá, e eu adorava ir lá ao Circo Escola, era bem legal. É bem legal, porque a gente encontrava todo mundo que a gente estudou no Chiquinha Rodrigues, no primário, no ginásio, a gente se encontrava lá no circo, que era um modo de diversão, o único lugar de diversão. Então tinha cantores que iam lá àquele circo, tal, Altemar Dutra, sabe essas coisas? Era muito legal. E o circo sempre teve, eu sempre gostei dessa atividade. Então era legal, a gente se arrumava para ir ao circo e encontrava o pessoal todo lá, sentava e assistia mesmo aos shows todos lá. O bairro tinha esse movimento cultural, que era bem legal o meu bairro. Era bem legal isso. Isso eu não posso negar. Não tinha uma coisa de malandragem, de prostituição, nada disso, tinha uma coisa que aquele circo fazia acontecer ali. Ele fazia as pessoas se mobilizarem para ir para o circo, para ir para esse evento, que era todo final de semana ali. Às vezes era de quinta, às vezes de domingo, só era quinta e domingo, tal. Isso tudo refletia na escola. Então quando cheguei... Quando a Beth me leva ao Brincante, eu conheço pessoas que eu falo assim: “Nossa, o cara tá tocando violino e andando de perna de pau. O cara tá tocando sax e andando de perna de pau”. Olha que legal. E quando eu via aquela coisa encantada que é o teatro também, quando eu entrei no Brincante, ele era rústico, não era o Brincante que era. Que agora nem é mais lá. E rústico assim, superencantador aquela coisa toda. E de repente as pessoas começaram a colocar as pernas, tal, vai lá: “Ah, coloca aí. Senta aí. Experimente” “Não. Isso aqui, eu não vou conseguir andar isso”. De repente você tá lá segurando o negócio e joelho, joelho, joelho, joelho. Quando eu me vi, eu já tava na corda, já tô com a Lígia do meu lado andando, ela é uma pessoa que tem um corpo grande, tal. E aquele movimento, eu tô lá em cima. É encanto, gente, é uma coisa que você vê a infância. Eu comecei a chorar, porque mexeu com muita coisa minha, sabe assim, interior? Eu não esperava que eu ia poder ter acesso àquilo. E ter visto lá em casa todo o movimento que a gente ia ao circo, e de repente eu tava ali. Assim, foi muito rápido. E mexeu demais comigo. Mexeu demais comigo. Eu senti que era outro lugar que eu tava ali e aquilo foi tomando conta, aquilo começou a me preencher de uma tal maneira, eu comecei a sentir assim: “Que felicidade é essa?”. Aqueles que faziam a minha felicidade, faziam a felicidade de todos, eu tô do outro lado agora, como se eu tivesse ultrapassado uma barreira, uma porta, sei lá, uma coisa tão morna que passou por mim e que me preencheu assim. E aí você olhar lá na frente, você sentir que realmente você tá em pleno estado de felicidade, em pleno estado de equilíbrio. Equilíbrio. Que louco. E a minha vida num caos lá do outro lado. O que é isso? A minha um caos. Poxa.
P/1 – E você foi para a Europa com essa perna de pau?
R – Eu fui, cara. Eu fui tocando zabumba. Cantando e tocando zabumba. Fazendo a Saga de Jorge, a história de São Jorge. Cada espetáculo que eu fazia, eu chorava. Cada vez que tinha que segurar a lua: “Com a medalha da lua cheia” – eu chorava. E ali, olha. E aquela multidão, aquele monte de gente, eu falei: “Nossa, o que me reservaram. Olha o que eu tô fazendo. Eu tô fazendo arte para as pessoas”. Será que todas aquelas histórias de tocar depois da faculdade no barzinho, tocar com a turma... Olha o que eu tô fazendo. Ah, que isso, foi incrível. Incrível. Incrível. Incrível. Mas o mais incrível é a aceitação disso, é manter. Porque começou a acontecer uma coisa dentro de mim, que ao mesmo tempo que foi muito bom, ao mesmo tempo eu falava: “Meu, e agora? E a minha casa? E a minha família? E como eu vou poder ajudar isso?”. E a coisa também de não ter noção de que isso poderia me dar sustentação, que eu poderia ganhar uma grana pra poder ajudar, que eu tinha que estar bem. Foi lindo. Aconteceu comigo. Aproveita, usa isso agora. Hoje eu tenho consciência disso, mas na época não tinha nada. Na época foi uma revolução. Eu não posso estar bem, sendo que os meus não estão bem. Essa cobrança. Eu sou capricórnio, gente. Eu sou capricórnio. Imagina. O estágio de sobriedade é tão grande, que... Nossa. E ao mesmo tempo, falava assim: “Nossa, que doideira”. E eu tenho isso. E eu tenho tudo isso aqui. Então é essa a minha missão? Então é isso que eu tenho que fazer? Eu tenho que trabalhar com o público e passar essa alegria, passar essa confiança, passar essa determinação, passar que há esperança, passar que é possível. Mas como eu vou passar para mim primeiro? Porque ali, eu tô com uma família ali. É outra coisa. É desesperador.
P/1 – Como você lidou com esse dilema, com essa cobrança sua?
R – O tempo. Eu tive várias crises. Eu tive várias crises. Várias crises. É um disparate muito grande. Imagina, um dia você dorme num quarto todo paaah. Eu sou brônquica. Eu tenho bronquite asmática. Graças a Deus eu posso dizer que eu tinha. Não, porque eu ainda tenho uns gatinhos aqui ainda, que aparecem os gatinhos, aí eu tenho que tomar inalação (risos), tal. Comprei inalador, tem aqueles remédios ainda que eu uso. Mas tinha várias crises, porque eu somatizo. Eu somatizo. Era assim, fazia assim, olha: pá. Várias vezes parava no hospital e tomar Berotec, Aerolin. Berotec na veia. Porque tinha aquele... Eu não conseguia resolver, eu falava: “Não...”. Imagina, descrédito. Arte não dá dinheiro, arte não é nada, gente. Você é louca? Minha família? Arte? Por mais que todos sejam maravilhosamente artísticos, meu pai diretor de bateria, minha mãe saía de baiana até pouco tempo na ala das baianas do Rosas de Ouro. Pois é, Carnaval, eu quero saber onde tá a grana pra você se manter. É isso que eu quero saber. Arte. Mas a arte circense ainda? Tocar tambor? Imagina, você vai viver como? Várias crises. Várias crises. E o tempo que urge. É o tempo que vai, são amigos que ajudam, são coisas naturais. Eu passei muito tempo doente, muito tempo tendo crise, é mel, é própolis, é Do-in, é acupuntura e aí vai. E aí vai, e aí vai, e aí vai. Então eu passei muito tempo usando bombinha, dependente mesmo de bombinha, por conta desses... A sensibilidade. Acho que aquele momento que você tem a plena consciência que você é artista, que você vai ter que lidar com a arte e depois vai sair desse universo maravilhoso e cair numa realidade outra, aí que é o grande x da questão. E eu não tava preparada pra isso. Eu não fui preparada pra isso. Eu não fui preparada pra ter essa consciência que eu tinha esse dom, que eu poderia fazer tanto quanto já fiz, e que eu posso fazer, e vamos fazer, e você pode fazer. Eu não tinha essa... De jeito nenhum. E me veio tudo muito assim, tudo forte, é tudo muito grande, é tudo magnificante, sabe assim? Tudo marcado, tudo muito intenso. Ali, agora, já.
P/1 – E quando você entra na Escola de Teatro da Lígia Cortez?
R – Ali, pois é, por conta de todas essas situações de espetáculos, de... É coisa do amigo mesmo. Esse Antônio Brandão, que eu tava gravando um CD-ROM com ele, que eram músicas, eu comecei a fazer essas coisas, as pessoas me chamavam para gravar algumas coisas, e nas gravações eu ganhava uma grana, então eu falei assim: “Putz...”. E eu não tenho nenhuma responsabilidade de pagar aluguel, de pagar contas em casa. Eu não tinha essa responsabilidade de bancar, de ter que assumir. Eu não tive essa responsabilidade. Por um bom tempo eu não tive essa responsabilidade. Então tudo que eu ganhava era pra mim, então eu podia fazer alguns cursos, eu podia, no caso, me dar ao luxo de... Então eu ficava na casa de amigos, que me davam orientações musicais, que conversavam. No meio de artista, de pessoas que estavam: “Puta, Gigi, fica aí”. Eu tinha que atravessar duas pontes para chegar à casa. Chegar à casa para... E era outro tempo. Ás vezes eu vinha, ia para casa de amigos, ou para casa da Rose, ou para a casa da Beth, que elas moravam juntas, irmãs, eu chorava demais. Chegava lá: “Putz, lá em casa tá assim, não sei o que fazer” – chorava. Ela: “Pô, Gigi, fica aí”. Elas me abraçavam, me acalentavam, me ajudavam, me davam outro olhar, né, pra poder... Nossa, Regina Helena, pessoas assim, Lili. Muitas pessoas me ajudavam assim, que viram que eu tava sofrendo muito com aquilo. Que era outro universo mesmo, outro... Eu só motivava coisas que não eram minhas. Eu tomava a coisa... A separação dos meus pais, eu tomei a briga da minha mãe com o meu pai, tomei para mim. Imagina.
P/1 – E você parou de falar com o seu pai?
R – Você acha? Cortei a relação. Imagina. Muita coisa dura, muita coisa doída. Imagina, quem lida com arte, quem compõe, música, alegria, de repente ter que enfrentar umas coisas tão dolorosas e não estar preparada para isso. Aliás, a gente não está preparada para nada nessas situações que mexem muito interiormente com a gente. E eu não estava preparada para isso. Eu não estava preparada até mesmo para ter que assumir uma situação de ser artista, no caso, de trabalhar com arte, de trabalhar com música, de trabalhar com o povo, de dar aula para criança, de relacionar a questão afro-brasileira, tanto espiritual, quanto a minha própria identidade. Eu não tava preparada pra nada disso. Eu tinha uma referência do samba, que é a grande magnitude da minha família, que eu via aqueles ritmos todos. Era isso.
P/1 – Mas obviamente você conseguiu fazer tudo isso. Como foi? Como você superou?
R – Pois é, essa questão da superação, eu acho que ela veio... Nem é uma questão de superação, é você se apropriar. Eu me apropriei mesmo disso. Eu me apropriei do que mais me alimenta, do que mais me deixa forte, o que mais me sustenta enquanto pessoa, enquanto mulher. Eu acho que o instrumento, a música, o som dos tambores, começaram a fazer sentido na minha vida, porque eu comecei a usá-los para poder resolver principalmente a minha doença interna, a minha bronquite, a minha renite, as minhas amarguras, as minhas indecisões, para onde eu vou. Eu preciso ter um porto seguro. Eu preciso ter um lugar onde eu tenho que ficar. Eu já sei que eu não posso isso, então eu preciso ter... Então a primeira atitude que eu ia fazer era poder dar um mínimo de estrutura, dar uma ajeitada no mínimo da estrutura de onde era a minha casa para eu poder estar lá. Aí comecei a construir uma casa em cima, um quarto, uma casa em cima da casa da minha mãe, fiz algumas colunas pra poder dar sustentação e comecei a construir um espaço na casa da minha mãe pra eu poder estar lá. Graças a Deus, dentro de todo esse processo, minha mãe maravilhosamente mudou da água para o vinho, é uma pessoa maravilhosa, e todo processo começou a mudar consigo mesmo. Minha irmã voltou pra casa, começou a voltar pra casa, que morava com o esposo, e as coisas começaram a acontecer. Mas eu tive que assumir, falar assim: “Não, é isso mesmo, é o tambor. É o instrumento. E a música”. E sem dor. Por mais que eu visse, eu não poderia ir lá ver, e sentir aquilo, e não conseguir reagir, e voltar e chorar na casa dos amigos. Eu tinha que encarar. Eu tinha que encarar. Por mais que doesse, eu tinha que encarar e segurar essa minha amargura e colocá-la em música também. Porque aí eu comecei a sacar que: “Poxa, que legal”. Tem coisas tão lindas. A gente começou a ganhar instrumento. Eu a Beth ganhamos um aparelho de seis tambores da Contemporânea. É Contemporânea? Contemporânea. Nós íamos à fábrica. Fomos à fábrica do rapaz que nos cedeu. A gente queria tanto, tanto, tanto alguns tambores, que a gente acabou ganhando. Olha, a gente não tinha nada.
P/1 – O que você e a Beth estavam fazendo nessa época?
R – A gente tinha o Grupo Banda-Lá, que era percussão e dança afro-brasileira, que a gente ensaiava dentro da escola de samba. A Beth4 trabalhava dentro de um consultório de acupuntura.
P/1 – E isso evoluiu, foi evoluindo para o que é o Ilú hoje?
R – O Ori Axé. Veio o Ori Axé primeiro, depois Ilú Obá. E ali no Ori Axé, a gente criou toda uma estrutura pra gente ser o que a gente é hoje. Ali no Ori Axé sim a gente lidou, a gente viu o quanto a gente tinha de bagagem cada uma, porque a Beth veio de um processo, minha vizinha lá de samba, e elas vinham aqui em casa, porque eu dei aula de reposição para o pessoal do segundo ano, eu tava no terceiro, então a professora de Educação Física pediu pra que eu treinasse a turma que ia competir no segundo semestre do Ibirapuera Voleibol, e nós estávamos já no estadual. Então: “Putz, que legal. Muito obrigada, professora”. Olha, graduada já. Se eu quisesse fazer Educação Física, olha que legal. Então do terceiro ano, a professora falou assim: “Olha...”. Chamou a turma toda, falou: “Olha, ela vai treinar vocês”. Porque eu tava na turma das que estavam no estadual, então vocês me obedeçam. Umas mulheronas desse tamanho (risos). E aí eu conheci a Rose, que é a irmã da Beth. Muito legal. E aos finais de semana, a gente ia para a rua da casa da Rose e jogando voleibol, que eu tinha uma bola de voleibol, pegava lá na escola a redinha e ficava jogando o final de semana. Lindo. Lindo. Aí elas iam em casa, que tinha samba sempre, algum movimento, samba rock, muitas festas em casa. Isso foi o contato de família. Essa foi a relação de toda uma história que tenho hoje com a Beth. E toda minha vida teve, começou a entrar pessoas, começou a aparecer coisas em nível musical, justamente por conta dessa história de como o esporte, de como o amigo, o outro faz toda uma importância muito grande na vida da gente. Se a gente não souber... Que eu tive, entre altos e baixos, eu tive muita gente boa. Muita gente boa. Até hoje eu tenho. Mas também tive muita gente que, putz, não presta pra nada. Que você fala assim: “Putz, meu, pra que eu fui ficar até três horas da manhã tomando várias?”. Você é nova, você é garota ainda. Você: “Poderia ter ido pra casa”. Daí você fala assim: “Puta, tô embriagada, não posso nem ir pra casa. Não consigo chegar à casa”. Na sua maior sinceridade. Mas aí você vai tomando e também conta que isso também tá te prejudicando ali, porque tem toda uma relação na sua casa, tem toda uma responsabilidade ali dentro da sua casa também, enfim.
P/1 – E a sua participação no Meninas do Conto?
R – Ah, foi tão lindo. Foi tão legal. Eu trabalhei na Casa do Teatro, e lá na Casa do Teatro eu conheci a Simone e a Kika. A Simone Grande e a Kika Antunes. Que elas começaram a fazer, eu trabalhava com específico, que a Lígia me contratou pra dar aula de samba. Na verdade, foi muito doido, porque aula de samba. Porque elas conheciam toda a minha trajetória dentro da escola de samba, de família de samba. Então: “Vou dar aula de samba aqui”. Nossa, montei um Olodum. Fiz todo mundo tocar tambor ali. Muito legal assim. Montei uma escola de samba ali, foi bem legal, com todos os alunos. E a Simone Grande e a Kika Antunes, elas tinham um grupo de contação de histórias fora a Casa do Teatro, aí me colocaram uma vez para musicar algumas partes dos espetáculos, daí foi um casamento perfeito, que se desdobrou com dez anos juntas. E começamos com a A Princesa Jia, depois Por Que o Mar Tanto Chora.
P/1 – Ganhou prêmios.
R – Os que ganharam. Princesa Jia, Por Que o Mar Tanto Chora, Papagaio Real. E As Velhas Fiandeiras, eu não cheguei a fazer o espetáculo, nem estar Nas Velhas Fiandeiras, porque lá no começo, quando eles começaram a trabalhar As Velhas Fiandeiras, eu viajei para a Europa, fui fazer essa turnê com a Lígia. Que aí foi a Nina Blau que entrou no meu lugar. Mas foram dez anos maravilhosos, assim, com muito amor, que foi Simone Grande, Kika Antunes e Luciana Viacava, e Girlei Miranda, são as quatro mosqueteiras aí do teatro infantil, que eu amo de paixão, que é muito demais trabalhar, foi uma experiência única na minha vida, que mudou totalmente. Outro momento que também fez muita mudança em mim internamente, porque eu descobri que eu tenho um dedinho lá com a criançada. Eu descobri que eu consigo chegar até lá e... É muito legal você trabalhar com criança. Eu acho que tem um cronômetro assim, uma coisa da criança. Não dá pra mentir pra criança, né? A criança, ou ela gosta, gosta de se rasgar, ou então fica naquela imparcial, ela fica totalmente ali... Até o papai falar: “Olha, vem aqui tirar foto”. Não. E o meu não podia parar no set, acabou o espetáculo, bah, vinha todo mundo em cima dos instrumentos, aí tinha que tirar, aí tira uma, tira outra: “Não, calma. Calma”. Sempre foi assim. Eu agradeço demais a elas por essa experiência e dez anos, que me emociona demais. Ser diretora musical, participar do espetáculo, e outra, uma coisa que eu gosto muito, outra paixão. Olha que doideira, eu queria ser o quê no começo, que eu falei?
P/1 – Aeromoça, jogadora de vôlei.
R – Aeromoça... Nossa Senhora.
P/1 – E, Gigi, você contando toda a sua história, me dá a sensação que no Ilú, de alguma maneira foi o lugar onde você conseguiu juntar os vários desejos que você tinha do movimento da mulher, das suas origens africanas, da música do tambor e tudo mais. É um pouco isso? Como é o Ilú assim? Conta um pouco pra gente da história do Ilú.
P/2 – Como ele começou?
R – Ah, olha, essa coisa do Ori Axé. O Ori Axé. E a Beth chega, fala assim: “Olha, tô querendo montar um grupo. Vamos montar um grupo nós? Mas a gente tem que limpar umas coisas. Porque a gente não pode deixar as pessoas...”. A gente tinha tanta responsabilidade ali com o Ori Axé, e aí de repente deixar a Kika sozinha seria por demais, diante de todo um trabalho que a gente tinha feito ali também, na Bela Vista ainda. Nossa Senhora, era bem legal. E ali tocavam homens, mulheres juntos também, tal. “E vamos juntar?” No mesmo dia na casa da Beth ali na Eduardo Prado também. E aí: “Vamos, vamos, vamos. Vamos ver o que a gente tem pra montar esse nome”. E a Beth fez uma pesquisa e veio com esse nome, Ilú Obá De Min. E a gente começou a chamar as pessoas, as meninas que eram do Ori Axé, pra poder compor.
P/1 – Já era só de mulheres?
R – Não. O Ilú Obá?
P/1 – O Ori Axé.
R – O Ori Axé tinha homens.
P/1 – Tinha homens.
R – Tinha homens tocando.
P/2 – Mas aí vocês resolveram fazer uma coisa só para mulheres.
R – Olha, que eu vou dizer um negócio pra você, a intenção era essa e bem legal. Foi se formando conforme o tempo, conforme o ano. A gente não esperava também. A gente não esperava também que as pessoas fossem nos acompanhar da forma que acompanhou, fossem acreditar na proposta do jeito que... E a gente também ia ter aquela proposta que a gente participa, então onde vamos ensaiar agora? A gente não pode entrar em confronto com a Kika, porque o Ori Axé tá ali. Enfim, acho que teve coisas que hoje a gente... Eu vejo por mim, no meu sentido de compositora do Ilú, ter orgulho dessa questão da Beth estar lá dirigindo. Eu me coloquei nessa posição: “Não, eu quero compor, eu quero dar aulas, eu quero tocar, sabe, eu quero cantar”. Porque é um trabalho que a gente realmente realiza todas os nossos sonhos. Eu sou amante, sou apaixonada pelo Ilê Aiyê. Então você vai à Bahia, não subiu Curuzu, no Ilê Aiyê, e a gente vivia cantando ali no Ori Axé, e na Banda-Lá, e quando a gente se encontrava, a gente vivia cantando as músicas do Ilê, do Ara Ketu, são as nossas referências. Aqueles blocos afros da Bahia, o Muzenza. Então a gente vivia cantando tudo isso. A gente ia para o Rio de Janeiro, via lá o... Como é o nome daquele grupo maravilhoso? Ah, meu Deus, não vou lembrar. Mas, enfim, que tinha a Noite da Beleza Negra. E aí a gente via também, via que aquele bando de gente do Ilê, com aqueles tambores aquelas mulheres com aqueles touros, aqueles turbantes imensos, dançando. Aquilo fazia a gente chorar, arrepiar. Poxa, por que não em São Paulo a gente não podia fazer um negócio desses também? Por que a gente não podia... Com tanta referência que a gente tem musical, a gente o samba, a gente tem as nossas culturas afro-brasileiras dentro do sincretismo. E aí passando, lembra que eu falei, eu fui fazer uma inscrição pra fazer um curso de Percussão Erudita, na Universidade Livre de Música, e aí acabei dando aula ali. Eu já tava dando aula sem saber que tava sendo contratada pela Universidade Livre de Música. Olha que louco. Que legal. E ao mesmo tempo falei assim: “Poxa, mas eu quero fazer tímpanos” – que são aqueles tambores, soam maravilhosamente bem. Todos reverberados e aqueles pedais, fazer aquela sonorização, aquela coisa. Eu queria fazer muito aquilo. Aí fui para o Souza Lima, onde a gente também no Ori Axé, a gente teve várias mulheres que estavam com a gente: Valquíria Rosa, Miriam Capua, várias, várias guerreiras. Mulheres que já estavam começando a tocar, já começavam a tocar instrumentos de percussão, que começaram a aparecer várias mulheres de instrumentos de percussão. E aí eu conheci também... Fui para o Souza Lima, essa coisa também de tocar, aprender. E lá tava a Miriam Capua também dando um curso de percussão, grande amiga, até hoje ela dá curso lá. E aí conheci Dinho Nascimento, conheci Dinho Gonçalves, um grande percussionista que tinha acabado de chegar da África, com vários tambores cubanos: tum dum, tidum, tududum, tuc tá, tum dum. E aquilo tudo, e a gente fazendo curso com ele lá, porque a gente queria ser alimentar e estudar pra poder ter um pouco mais de elementos ali da área do samba. E ritmos que têm a ver com tambores. Isso tudo foi muito gratificante. Dinho Nascimento com aquele berimbolão, com a orquestra de berimbau hoje, já tava no processo, eu toquei com Milton Nascimento. Milton Nascimento não, Dinho Nascimento. Toquei com Dinho Nascimento, um baiano maravilhoso, ali no Morro do Querosene. Imagina, um ídolo. Um ídolo. Eu o via no palco lá, de repente tava eu, uns anos depois, tocando com ele. Uma mulher tocando com um cara que só tinha banda dos caras. Eu falava: “Nossa, que legal. Obrigada pelo convite”. Um grande querido. Tião Carvalho com o Bumba Meu Boi lá do Morro do Queronese, a gente chegava a enlouquecer. A gente a enlouquecer com aqueles pandeiros: tu dá dá, tum tum. Chegava a enlouquecer: “Só vamos nós lá”. A únicas mulheres que pegaram, sem as mulheres de lá deles, que fazem parte do Cupuaçu. Nós pedíamos licença. “Não, pode tocar, a gente vai ensinar pra vocês”. Maravilhoso. O Ilú Obá hoje, nossa, a gente realiza e estamos para realizar muito mais ainda. Que tem muita coisa pra ser feita ainda. Musicalmente, historicamente, muita coisa pra ser feita.
P/1 – E o que você enxerga no seu futuro? O que você ainda quer fazer? O que você ainda quer almejar? Com o que você ainda sonha?
R – Eu acho que, assim, eu sou uma pessoa que não... Hoje, eu penso em gravar um disco meu. Meu disco. Hoje eu penso em fazer um show meu. Meu show. Eu sempre toquei para... Eu mostrei para vocês lá: “Olha quem me convidou pra tocar, tal”. Pois é, eu me envolvo sempre no projeto do outro. Eu tô sempre no projeto do outro. É bacana, é legal, é maravilhoso, é uma experiência, mas, poxa. Eu fico pensando, eu quero muito ter a minha bandinha, sabe? Eu quero muito colocar as minhas músicas. O Ibeji tá com as minhas músicas. Tem um grupo cantando uma música minha. As meninas lá no Ibeji estão cantando uma música minha, da cigana. Eles mostraram, mandaram, foram para Cuba, levaram a música, tal. E aí colocaram lá no Face, aí a Luciana me mostrou: “Olha, você viu isso daqui? Olha a sua música como está”. Todo mundo dançando e cantando a sua música. Putz, que legal. Mas é muito legal mesmo, porque eu tenho várias. Eu já chorei muito, não só no Carnaval, como em eventos que eu vou, eu vou ver algum amigo: “Ah, vem cá, Gigi, canta essa daqui. Vamos cantar essa daqui. Toca esse negócio”. Aí eu vou lá cantar, ensino uma música minha, aí todo mundo canta a sua música. É a coisa mais maravilhosa você ver as pessoas cantarem a sua música.
P/1 – Você não quer cantar alguma coisa pra gente? O que você preparou pra gente?
R – O que será? Nada.
P/1 – Ah, mas então deixa...
R – A gente não prepara.
P/1 – Então deixa fluir aí.
R – A gente não prepara. O que eu tava falando...
P/1 – Canta uma música sua.
P/2 – É. Lógico.
R – O que eu sonho... Vou falar assim, eu acho que todo artista gostaria mesmo de ter as suas coisas registradas. Eu tenho pouca coisa minha registrada. Eu tenho algumas músicas minhas que ainda estão no celular.
P/1 – Então registra agora.
R – “Bate tambor de couro, tem um pedido que eu tenho que lembrar. Bate tambor de couro, tem um pedido que eu tenho que lembrar. Cigana aê, cigana, eu me ajoelho é no pé da sua cama. Tenho vestido, charutos, moedas, pra nossa vida melhorar. Te dou vestido, charutos, moedas, o que você pedir pra nossa vida melhorar. Eu vi Ogum na pedreira conversando com Xangô. Eu vi Ogum na pedreira conversando com Xangô. Ogum falava dos problemas que o povo esqueceu, que a natureza é seu amor. Ogum falava dos problemas que o povo esqueceu, que a natureza é seu amor. Caô, cabecilê, caô, meu pai Xangô. Caô, cabecilê, caô, meu pai Xangô. Galhinho de arruda atrás da orelha espanta o mau olhado, um tantinho de sal grosso, pimenta vermelha, espantam o mau olhado, foi assim que Ogum falou. Foi assim que Ogum falou. Foi assim que Ogum falou. Caô, cabecilê.” A cara dele (risos). A expressão (risos). “Caô, meu pai Xangô.” Eu já ouvi cantarem assim. Quando você faz uma música, aí você ouve todo mundo cantando: “Caô, cabecilê...” Você fica pensando na multidão cantando isso. Eu já ouvi isso assim: “Caô, meu pai Xangô...”. Você fica vislumbrando. Ah, eu quero muito paz. Eu quero que isso mesmo aconteça, que as pessoas ouçam e levem a música a todos os tambores, num lugar bem especial que possa realmente... Tem uns tambores que são tambores de cura, tambores xamânicos. “Um índio Guaporé me banhou no Igarapé. Um índio Guaporé me banhou no Igarapé. Oooohhhh ooohhh. Me dê um machado de Xangô, colar colorido de pajé, colar colorido de cauri, que lindo esse índio Guaporé. Me dê um machado de Xangô, colar colorido de pajé, colar colorido de cauri, que lindo esse índio Guaporé. Oooohhhh ooohhh. Um índio Guaporé me banhou no Igarapé. Igairajá, assaipa berebá, uxuá, uxuá, bucurutu, tupatuá. Igairajá, assaipa berebá, uxuá, uxuá, bucurutu, tupatuá. Um índio Guaporé.”
P/1 – (aplausos).
P/2 – (aplausos).
P/1 – Muito lindo. Maravilhoso.
P/2 – Além disso, ela tem uma voz linda.
P/1 – Como se não bastasse ter essas mãos de fada, ela ainda tem uma voz.
R – Tenho que conter esse negócio aqui.
P/1 – Nossa!
R – Tenho que conter as duas coisas, senão se você não consegue.
P/1 – Você quer falar alguma coisa mais?
R – Ah, querida, eu quero agradecer. Eu quero agradecer, agradecer, agradecer, sei lá, a oportunidade de falar algumas coisinhas. E tentar resumir um monte, mas eu quero agradecer pelo carinho, pela ternura de vocês. Eu acho que a história da gente sempre serve, alguém ouve e fala assim: “Ah, que legal. É possível”. E foi num momento muito, muito, muito maravilhoso. Eu tive uma infância linda, maravilhosa, a qual eu consegui construir esse momento especial que eu estou vivendo hoje na minha vida. O ano que vem eu tô fazendo já quase que 30 anos de carreira, então é bem legal fazer... Eu acho que isso é um começo... Olha que legal, os amigos, novamente os amigos, gente do bem, e que isso possa dar uma luz para as outras pessoas, pra quem assistir, pra quem ouvir. Dar uma luz que fale assim: “Olha só que bacana, existe uma pessoa com uma história também tão parecida, ou parecida com a minha, e tá aí na luta, sobreviveu, na força”. E dizer uma coisa muito legal, que a melhor coisa é você ter a família também, os amigos, isso é muito legal. Não perder a esperança, que uma hora você acha seu caminho assim. É bem legal. Vocês não vão me chorar de novo. Chega. Um beijo na alma.
P/1 – Obrigada.
FINAL DA ENTREVISTA
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