Memória do Comércio do Rio de Janeiro
Depoimento de Maria Clara Pereira dos Santos Tapajós
Entrevistado por Paula Ribeiro e Fernanda Monteiro
Rio de Janeiro, 01/06/2003
Realização Museu da Pessoa
Código: MCRJ_HV029
Transcrito por Marllon Chaves
Revisado por Ligia Furlan
P/1- Bom dia, Maria Clara!
R- Bom dia, Paula!
P/1- Muito obrigado de ter você aqui. Eu gostaria então de começar o depoimento pedindo que você nos forneça seu nome completo, o local e data de nascimento, por favor.
R- Meu nome completo é Maria Clara Pereira dos Santos Tapajós. Nasci do dia 16 de abril de 1945, em Recife, Pernambuco.
P/1- Hum, hum. O nome dos seus pais, por favor.
R- O meu pai chama-se João Pereira dos Santos, ele é natural de Serra Talhada, no sertão de Pernambuco. Minha mãe é Maria (Rigueira?) Santos, ela é descendentes de holandeses. Minha bisavó era holandesa, mas natural de Recife. Papai veio para Recife com seis anos de idade, quando perdeu o pai e veio trabalhar em Recife. Começou menino estudando lá, foi recebido por um padre que o ajudou bastante e hoje tornou-se um grande capitão de indústria do Nordeste.
P/1- E seus avós, você conheceu? Lembra-se dos nomes?
R- Não, meus avós eu não conheci.
P/1- Nenhum dos quatro?
R- Nenhum, só a mãe do meu pai, que era uma cabocla sertaneja. Chamava-se Rita, de uma têmpera muito forte. Era uma verdadeira índia, acho que meu pai puxou muito a ela (riso).
P/1- E a história da família? O que é que você conhece da história de sua família materna e paterna?
R- A minha... Meus avós maternos eu não conheci, porque quando faleceram, minha mãe foi... Viveu com uma irmã dela, que era 15 anos mais velha. Então foi praticamente criada com a irmã dela. O pai dela faleceu, a mãe da minha mãe não, a mãe da minha mãe morreu com 100 anos e morava conosco. Quer dizer, essa eu convivi muito com a avó dentro de casa, que cuidava da despensa, que fazia doce. Enfim, eu tive uma infância muito...
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Depoimento de Maria Clara Pereira dos Santos Tapajós
Entrevistado por Paula Ribeiro e Fernanda Monteiro
Rio de Janeiro, 01/06/2003
Realização Museu da Pessoa
Código: MCRJ_HV029
Transcrito por Marllon Chaves
Revisado por Ligia Furlan
P/1- Bom dia, Maria Clara!
R- Bom dia, Paula!
P/1- Muito obrigado de ter você aqui. Eu gostaria então de começar o depoimento pedindo que você nos forneça seu nome completo, o local e data de nascimento, por favor.
R- Meu nome completo é Maria Clara Pereira dos Santos Tapajós. Nasci do dia 16 de abril de 1945, em Recife, Pernambuco.
P/1- Hum, hum. O nome dos seus pais, por favor.
R- O meu pai chama-se João Pereira dos Santos, ele é natural de Serra Talhada, no sertão de Pernambuco. Minha mãe é Maria (Rigueira?) Santos, ela é descendentes de holandeses. Minha bisavó era holandesa, mas natural de Recife. Papai veio para Recife com seis anos de idade, quando perdeu o pai e veio trabalhar em Recife. Começou menino estudando lá, foi recebido por um padre que o ajudou bastante e hoje tornou-se um grande capitão de indústria do Nordeste.
P/1- E seus avós, você conheceu? Lembra-se dos nomes?
R- Não, meus avós eu não conheci.
P/1- Nenhum dos quatro?
R- Nenhum, só a mãe do meu pai, que era uma cabocla sertaneja. Chamava-se Rita, de uma têmpera muito forte. Era uma verdadeira índia, acho que meu pai puxou muito a ela (riso).
P/1- E a história da família? O que é que você conhece da história de sua família materna e paterna?
R- A minha... Meus avós maternos eu não conheci, porque quando faleceram, minha mãe foi... Viveu com uma irmã dela, que era 15 anos mais velha. Então foi praticamente criada com a irmã dela. O pai dela faleceu, a mãe da minha mãe não, a mãe da minha mãe morreu com 100 anos e morava conosco. Quer dizer, essa eu convivi muito com a avó dentro de casa, que cuidava da despensa, que fazia doce. Enfim, eu tive uma infância muito nesse estilo de família mesmo. E a mãe do meu pai não morava com a gente, já tinha... Papai já tinha mandado buscá-la do sertão para morar em Recife. Mas era uma mulher de uma fibra muito forte, muito intensa, e teve 23 filhos. Meu pai é o caçula, hoje está com 97 anos. Trabalha bastante, tem uma cabeça incrível, um cérebro maravilhoso. Vai para o escritório ainda todos os dias, das sete horas da manhã, chega às 7 da noite.
P/1- Nossa!
R- Ele dirige um complexo industrial muito grande.
P/1- De que ramo?
R- Várias fábricas de cimento, usinas de açúcar, companhia de aviões Weston, papel, indústrias de papel. É o segundo grupo cimenteiro do Brasil.
P/1- Então me conta um pouquinho as suas memórias de infância. Como é que era a sua casa? Você tinha irmãos, tem irmãos?
R- Nós éramos seis, três mulheres e três homens, como dizia papai: “Três burros, três cargas para burro.” Naquela época a mulher não trabalhava. A minha infância foi muito bonita, foi passada na usina de açúcar, usina Santa Tereza, que até hoje foi a mãe, digamos, das indústrias dele. Ele sempre dizia que foi a vaca leiteira de tudo mais que ele tem. Papai se fez sozinho, né? E foi uma infância muito bonita, passada em um canavial.
P/1- Descreve como era um canavial, uma usina?
R- Eu acabei de estar lá domingo passado, que eu fui à festa de São João, passar o São João com meu pai.
P/1- Ah, que legal!
R- E ainda me emocionei bastante, porque a casa é lindíssima, é uma casa que tem 400 anos. É de um engenho antigo, com um terraço, uma varanda muito bonita. Isso descortina uma paisagem de um canavial sem fim. Para você ter uma ideia, essa usina fica... A Santa Tereza fica em Goiana, e do terraço da casa eu vejo até a Paraíba.
P/1- Nossa!
R- O que é o horizonte, né? É uma coisa muito bonita. E papai está muito bem. Mamãe faleceu há seis... Há quatro anos, com 86 anos. Papai está muito bem, me chamou para passar São João. O São João no Nordeste é muito forte. Então até as empresas param, não trabalham, é como se fosse o carnaval aqui, é feriado. Aí qual não foi a minha surpresa: quando cheguei tinha uma fogueira de três metros de altura. Ele mandou fazer milho assado para mim, na fogueira.
P/1- Que graça!
R- Os outros irmãos cada um estava em sua fazenda. Papai é uma espécie assim de... Daquelas famílias antigas, e um verdadeiro capitão, sabe? Ele, para a gente, significa o leme, o mastro de um navio. Fomos criados com muito carinho, mas com muita rigidez também. Eu acho que eu gostaria de envelhecer e ter minha filha que me tratasse como a gente trata ele. Porque é um mimo, todo mundo tem um medo danado, também tem amor muito grande. É aquela coisa, todo mundo está beijando na pedra, ou seja, ele... E eu fui lá passar esse feriado com ele e rememorei muita coisa da minha infância, e vi que me tocou bastante. Então foi uma infância passada com animais, com cavalo. Eu andava de cavalo, dava banho no meu cavalo no riacho, eu ia para a usina. O apito da usina é uma coisa que não me sai, da locomotiva que carregava as canas pelos engenho, levava para a usina. Muito pé no chão, muita terra, muito cheiro de terra molhada. Isso até os oito anos, quando aí eu tive a necessidade, porque naquela época não estudava em colégio. Não tinha, não era que se fosse para colégio, você tinha uma alfabetizadora em casa. A minha chamava-se dona Olindina. Aí meu irmão caçula... A gente fazia rimas horrorosas.
P/1- Horrorosas (riso). Oh lindinha!
R- É, exato, grande da perna fina. A gente fazia muita rima assim, e elas ________ de caçula, como todo filho caçula. Você imagina, já aprendeu dos mais velhos, então...
P/1- Dá o nome dos seus irmãos?
R- João Pereira dos... Rosália Pereira dos Santos − que é a mais velha, tem mais dez anos do que eu −, depois João Pereira dos Santos Filho, que morreu aos 44 anos num acidente de avião da empresa, decolando da fábrica do Paraguai. Depois vem José Pereira dos Santos. Depois Ana Maria, depois Maria Clara, depois Fernando.
P/1- Ahn, ahn! E assim, lembranças de comida, Maria Clara?
R- Só do Nordeste; pamonha, canjica.
P/1- O que é que você comia na sua casa, na infância? Qual é a tua lembrança de cheiros de comida, de...
R- Da minha avó, mãe da mamãe se queimando toda fazendo mil doces de jaca, de... Ela era a responsável. Dizia a você: “hoje a gourmet da casa, a chef da casa”. Então a gente adorava, era bolo de rolo que ela fazia.
P/1- O que é que é bolo de rolo?
R- Bolo de rolo é um rocambole bem fininho. Você tem a travessa onde você faz, onde você assa o bolo, tem quase um centímetro só. Isso tem que ser uma camada bem fininha. Depois a goiabada, mas não feita a goiabada não, _____ da goiaba mesmo que você vai passando, pondo aquela parte. Assa, depois assa de novo. Vai fazendo várias partes, até que você enrola. Seria um rocambole, chama-se bolo de rolo, é típico do Nordeste, isso. Canjica, pamonha e tanto. Galinha de cabidela, que é um negócio assim como tem no Maranhão. Cada um... O nosso folclore é muito rico. Então cada estado tem muito suas frutas, suas... E isso para mim foi muito... Nasci filha do velho Chico, rio São Francisco.
P/1- E religiosidade. A religião era uma coisa presente na sua família?
R- Oh se era! Era e muito.
P/1- Tinha alguma devoção especial de algum santo? Algum festejo religioso que você tenha marcado?
R- Tinha. Nossa Senhora da Conceição é padroeira de Recife, então tinha o dia oito de dezembro que é dedicado a ela. Mas era tão forte esta coisa de religião que a minha madrinha não é um ser humano normal, a minha madrinha é a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Eu nasci muito doente, nasci com anemia, então a minha mãe me consagrou, ela me deu ela de madrinha. E depois eu vou falar mais adiante do acidente quando eu perdi o Eduardo. Você sabe que eu invoquei ela no mar. Eu não sei nadar, não sei nada. Tive um acidente terrível do qual eu fiquei viúva. Foi a minha madrinha que eu invoquei, e eu estou aqui... Porque eu não sei nadar. Três horas no mar, em uma tempestade imensa, com um banco que afundava. O helicóptero afundou com meu marido, eu invocava muito minha madrinha Nossa Senhora do Perpétuo Socorro: “Me salve aqui”. E literalmente, ele que sabia nadar bem se foi. Literalmente, eu sou um milagre disso.
P/1- Que barato! E assim, mais memórias de criança, de quê vocês brincavam? Por exemplo, havia diferença entre a educação das meninas e dos meninos, como você falou: “um é o burro o outro é o...”, assim, havia uma expectativa diferente de educação para as mulheres, para os homens?
R- Havia, vou te mostrar até aqui a cicatriz. Havia, menina brincava de boneca e menino brincava de coisas de (macho?). Um dia eu chamei meu irmão de maricas, ele pegou a peixeira assim e jogou. (Ia?) vir no meu rosto, aí eu fiz assim, meu braço ficou quase pelo osso só.
P/1- Era uma educação super...
R- É. E ainda, como eu chorei muito alto, porque estava sangrando muito, eu ainda levei uma surra. Porque meu irmão... Eu tinha cinco anos ele tinha três, aí mamãe achou que eu estava fazendo um alarde muito grande. Com o braço pendurado, só pela pele. Só porque eu o chamei: “Ô seu maricas, me dá minha boneca.” “Maricas? Vou te mostrar quem é maricas.” Pegou a peixeira e...
P/1- Nossa!
R- Ele veio assim, eu fiz assim. Então são raízes muito fortes. Hoje em dia isso é folclore e nem existe mais.
P/1- Mas por exemplo, em termos de educação. Quer dizer, o homem... A menina e o menino, a educação era igual? Todo mundo era alfabetizado? Todo mundo era preparado para os estudos, por exemplo?
R- Ah, isso sim! Lá em casa, pelo menos, nós éramos. E todas as famílias eram. Todos ali tinham que ser preparados e muito bem preparados. E não é a toa que você tem grandes escritores no Nordeste, sabe? E pessoas tão cultas que eu não conheci no Rio de Janeiro as pessoas que eu conheci no Nordeste. Porque qual era a nossa distração? A gente não tinha televisão, não tinha nada. Era uma explicadora, isso se não fosse (alfabetizadora?), (explicadora?).
P/2- E era o que, de tarde?
R- De tarde.
P/2- Como é que eram os horários?
R- De tarde. De manhã, cultura e livros. E Recife foi conquistada pelos holandeses muito tempo. A minha lembrança também, quando eu não só estava na usina, que eu voltava para Recife... Tinha, naquela época, companhia de eletricidade, se chamava ________. Tinha muita coisa inglesa em Recife. E as pessoas mesmo, do bairro que eu morava em Recife, em Casa Forte, eram todos Ingleses. Então minha cultura... Desde pequenininha eu estava acostumada a conhecer o que era uma porcelana inglesa, o que era o chá. Porque a gente ia para a casa daquelas pessoas, dona Lucy Conrad... Os nomes eram assim, Elza Cleveland... Os nomes eram assim, entendeu? Então eram os nossos vizinhos. Eram pessoas muito educadas e muito cultas, transmitiam para as pessoas naturais de lá essa... A cerâmica da minha casa, agora mesmo eu estava na usina de São João, eu estava dizendo: “papai, essa cerâmica é tão linda e está aqui há 60 anos”. “É minha filha, essa cerâmica é inglesa”. Naquela época não tinha Portobello, não tinha Brennand, não tinha nada.
P/1- Não tinha nada?
R- Tudo era importado. Ainda mais Recife, que tudo que tinha em Recife, telégrafos... Correios era Western, era inglês. Tinha outro também que era Italcable. Quantos telegramas eu passei para o meu pai no Rio pela Italcable, que era uma companhia italiana. E essa parte de cultura e também educação era uma coisa primordial. Para os filhos da gente não tinha esse negócio de você comer sem ser com os pais, a família era muito grande, mas eram todos os lugares na mesa.
P/1- Maria Clara, em relação à vestimenta, como é que você, na infância... Como é que uma criança se vestia no Recife?
R- Não se vestia, era a mãe que vestia, então infelizmente era marinheiro e marinheira.
P/1- Tinha que aceitar!
R- E eu, como ela fez uma promessa para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, para eu ficar boa, vesti oito anos azul, só azul.
P/1- Ah, que graça!
R- É. Não sei como eu estou usando azul, porque realmente eu devo ter ficado... Era azul celeste, azul claro, era não sei que... Oito anos de promessa, era para vestir azul.
P/1- E roupa era roupa mandada fazer, né?
R- Ah, é. Não tinha, era mandada fazer, com aqueles laços enormes. Andava com saias de armar. Eu me lembro quando... Eu era muito peralta, muito levada, aí se usava, na minha época, saia de armar, tinha uns arames em volta. Eu botava uma, duas, três, quatro, cinco, assim, quando eu levasse uma palmada de meu pai, ele machucava a mão, não pegava em mim.
P/1- (Riso) Ah, está!
R- Isso é uma coisa que é muito... E aqueles decotes Gilda que tinha quando a gente era mais mocinha, cintura mais marcada.
P/2- Gilda do cinema, era Gilda?
R- Gilda, Rita Hayworth, pois é. Tem aqueles ombros de fora. Eu achava que a mulher, a adolescente nordestina, mocinha, tinha aquela coisa de recatada, mas dentro daquilo tinha muita sensualidade. Porque você vê muito nos filmes. Assim, quando o Waltinho faz um filme sobre o Nordeste − tem feito alguns maravilhosos −, você vê na moça do interior, na moça do Nordeste, mesmo que seja da capital, naquela época, ela passava uma coisa de muito recato, muito pudor, mas ao mesmo tempo muito de dona Flor e seus dois maridos, entendeu? Muito sensual, muito.
P/1- Você por acaso se lembra de lojas? De um comércio tradicional de Recife nessa tua infância e juventude? Quer dizer, qual eram as lojas conhecidas, renomadas, na época?
R- Tinha uma loja que minha mãe comprava muito chamada Fênix, que seria aqui como o (Lidador?). A Fênix ficava na rua 7 de Setembro. As ruas em Recife têm uns nomes muito bonitos. Rua da Saudade, rua da União, umas coisas bem poéticas.
P/1- Poéticas. Você morava em que bairro?
R- Eu morava em Casa Forte.
P/2- Casa Forte.
R- Isso você vê muito nos livros de Mário Pessoa, Fernando Pessoa, você... Muito falando isso também das ruas de Recife. Manuel Bandeira, demais.
P/1- Qual, por exemplo... Uma loja assim, para mulheres, de mulher?
R- Casa José Araújo, vendia tecidos que minha mãe comprava. Era família José Araújo. Tinha essa loja Fênix também que minha mãe comprava muito. Tinha o restaurante, esse aqui, esse, como você está fazendo daqui, tem o da cidade de Recife, o restaurante Leite. Eram os vidros todos bisotês franceses. Tinha umas portas de vai-e-vem como o boteco do Arnaldo aqui, mas só que com vidros bisotês, onde os homens de negócios com seus chapéus panamá, todos vestidos de branco iam almoçar. Tinham almoços de negócios e também jantava-se de noite, aí com a família. De manhã era só homens, de noite com a família. Esse restaurante Leite é um marco na cidade. Farmácias assim, que... Aquelas que você ainda sobe nas escadinhas. Isso é uma lembrança muito minha. Minha mãe ficava comprando e eu ficava vendo a escadinha para o homem ir buscar um remédio, gotas, sei lá. Mamãe usava muito, um negócio que até hoje eu peço. “Mãe, me dá gotas Arthur de Carvalho.” É bom para a digestão, é.
P/1- Que graça (riso).
R- Até hoje eu peço para minha irmã, minha mãe já faleceu.
P/1- É mesmo?
R- E é bom, sabe? Atroveran, gotas Arthur de Carvalho, ótimo para a digestão, muito melhor que um boldo, mas a essência é o boldo.
P/1- Teu pai se vestia como, Maria Clara?
R- Papai sempre se vestia de branco, chapéu de panamá e quando... Você estava falando aí de chapéu de panamá; sempre, até hoje.
P/1- É mesmo?
R- Porque no Nordeste é muito quente, e...
P/1- Praia era presente, na sua vida?
R- Muito. Porque a usina ficava perto da praia de Ponta de (Pé?) de Itamaracá. E tinha o hábito de você... Ficava a dez minutos de casa, de Casa Forte. Mas era obrigatório no verão. No verão, imagine Recife? Mas tinha o verão, porque quando não é verão, chove, e você, em novembro... A gente já ficava aguçado para passar as férias de novembro na casa da praia. Aí casa de veraneio, mas era jangada, pescador. E eu que não sei nadar até hoje, tomava uma jangada. Na minha infância ia para o alto mar com os pescadores sem medo nenhum. A onda lavava assim, sem medo nenhum.
P/1- Como era o maiô naquela época, Maria Clara?
R- Ah, era bem comportadinho.
P/1- Era de pano, era de...
R- Pano.
P/1- Pano.
R- Feito em casa, os meus.
P/1- Ah é?
R- É. Ainda era um algodãozinho assim que era forrado e tinha uns babadinhos aqui, tinha uns babadinhos aqui também. Era quase que um vestidinho.
P/2- E tinha aquela coisa de brincar na areia e fazer castelinhos?
R- Lá em Recife, castelinhos não. A gente brincava muito com o que aqui chamam caravela. Nós chamamos caravela, aqui chama água-viva.
P/2- Água-viva.
R- E como tinha muita água-viva, a gente ficava de pegar areia e jogar em cima da água-viva. De vez em quando pegava nas minhas costas, tinha que matar nas minhas costas para o raio não queimar tanto as costas.
P/1- Agora, em relação à educação: como é que então foi, você veio para o Rio de Janeiro para educar. Isso era uma prática comum no seu meio social?
R- Era. Meu pai viajava muito, porque ele tem fábricas em todos os estados do Brasil. E mamãe, para ficar sozinha dando conta desses filhos... Todos nós fomos internos. Ela tinha que acompanhá-lo um pouco, ficava esperando que ele voltasse, e tinha que dar assistência para ele. Então cada um foi para um lugar. Quando chegava certa idade, ia para a Suíça. Eu fui para Itália. Agora, ginasial era feito aqui. E todos nós saímos. Meus irmãos foram educados na Inglaterra também, mas antes foi no Mosteiro São Bento, em São Paulo. A gente teve... Engraçado, somos tão unidos e não tivemos uma convivência grande, cada um estava em um canto. A gente só se encontrava nas férias, como hoje, a gente se encontra dia de pai, é.
P/1- É mesmo?
R- Dia de Natal, Réveillon, Páscoa, Dia das Mães, essas datas assim todo mundo vai para Recife. Só eu que moro no Rio. Uma mora em São Paulo, os outros moram lá... Era uma família muito unida, mas nunca teve muita convivência não.
P/1- Mas então você veio para o Rio quando, que ano? E vai estudar onde?
R- Eu vim para o Rio em 1950. Depois... É engraçado comparar isso com Eduardo, porque o Eduardo inaugurava a Boate Began, eu tinha oito anos. Era o meu marido, o Eduardo, eu tinha oito anos, estava entrando para o Colégio Alto da Boa Vista.
P/1- Ele já inaugurando a boate.
R- Ele é mais velho que eu. E aí eu fiquei aqui até os meus 18 anos.
P/1- E como é que são as memórias desse colégio interno?
R- São bonitas, porque as freiras, como eu não saía nunca... Eu, as meninas do colégio saíam de 15 em 15 dias. Mas como eu era pernambucana e tinha muitas cearenses, eu era a única pernambucana. As cearenses tinham família aqui. Ceará vem muito morar por aqui, inclusive pelo Flamengo. Ela veio, as tias as avós moravam por aqui, tiravam, e eu não tinha ninguém que me tirasse. Eu só saía nas férias dezembro, porque julho papai achava que, como era um mês só, não compensava eu ir para Recife, porque eu ia me distrair dos estudos. Eu ficava lá e as freiras... Por isso começaram a criar um amor muito intenso por mim. Eu ia tomar banho ali, morei dez anos no Rio, mas não conheci o Rio. Saia com a freira e ia tomar banho no Recreio dos Bandeirantes. Descia ali a Taquara, que a gente ia ensinar catecismo ali na Taquara. Depois ela me levava para tomar um banho de roupa de freira. Elas mesmas tomavam, mas naquela época era absolutamente... Não tinha nada no Recreio dos Bandeirantes, nada, nada, nada. Era igual você estar em um sítio. Subíamos o Alto novamente. Eu descia... Por exemplo, dentista eu acompanhava. Eu também fui muito esperta, me ofereci para acompanhar as freiras que desciam, porque eu carregava as sacolas. Primeiro escapava da aula, segundo dava um passeio. A gente tomava um bonde no Alto da Boa Vista. Tinha a pracinha ali, descia até a usina, na usina tinha lotação. Tomava lotação − não tinha ônibus −, deixava na Praça XV. Eu fazia as compras com ela e voltava, assim escapava de estudar um pouco.
P/2- E conhecia um pouquinho do Rio.
R- E conhecia um pouquinho do Rio de Janeiro, é.
P/1- Já tinha aquela pracinha do Alto, aquele restaurante (Esquilo?)? Essas coisas já tinha?
R- Tinha. Eu conheço o Alto da Boa Vista na palma da minha mão, porque lá eu morei dez anos, e aonde eu vivia, a pé toda hora, saía tudo. Tinham os folclores, tinha os pipoqueiros de lá, onde o bonde fazia o circuito para dar a volta. Em frente era o Sacre Coeur de Paris, de (Jesus Maria?), era aqui embaixo. Os colégios disputavam com São Vicente, lá na usina. Então eu tive uma adolescência bonita; sofrida, um pouco, porque no início eu senti muita saudade, dormi chorando. Você sai de uma casa muito grande, com os irmãos, com tudo, vai para um colégio... Eu saí de um quarto com uma penteadeira que até hoje eu me lembro, tudo bonitinho, com aquela saía bem de Nordeste, tal, para um dormitório de 50 pessoas. Cinquenta camas, 25 de um lado, 25 do outro. E Rio de Janeiro um frio... Eu venho do Nordeste. Ali, cheguei lá fazia sete graus no Alto da Boa Vista.
P/1- O Alto da Boa Vista é alto, né?
R- É. Mas eu me lembro que uma vez a mamãe... Mamãe, quando vinha ao Rio ela ia me visitar e chegava lá com um casaco de pele, eu estava com um suéterzinha. “minha filha, você não sente frio não?” Estava gelado lá, mas eu já tinha me acostumado. Depois foi uma opção minha, eu mesma não quis mais voltar para o Recife. Eu disse: “não, agora eu quero ficar aqui”. Eu, quando voltei...
P/1- Você faz o quê? Você faz o primário, faz o ginásio...
R- Faço o clássico.
P/1- O clássico.
R- Na época era o clássico.
P/1- Mas você tinha alguma expectativa em termos de estudo? Por exemplo, você queria estudar uma determinada coisa?
R- Sempre eu quis fazer ou línguas ou turismo, qualquer coisa ligada com turismo. Mas não conhecia o Eduardo, não conhecia, sabe?
P/1- Sei.
R- Qualquer coisa ligada... Sempre sonhei em viajar. Eu dizia muito para minha mãe, lá na usina não passava gaivota, passava urubu. As gaivotas só na praia. Eu olhava assim: “ô, mas esse urubu vai me levar para onde é o Rio de Janeiro.” “Ah, minha filha, Deus te ouça.” “Vou nas asas dele.” Eu fiz por onde ser bem levada da breca, para poder me internarem mesmo. Aí vim para o Rio. Quando eu cheguei aqui, um dia papai falou assim... Eu fiz 15 anos e a freira me convidou para estudar no Colégio Santa Marcelina, em Milão. Papai me deu de presente: no dia dos meus 15 anos − era sábado de aleluia, sempre cai na páscoa −, eu fui recebida pelo João XXIII, com uma benção especial dele para mim. Tem as fotos, tem tudo, terço.
P/1- Que bacana!
R- E depois, mais tarde, com o João, o Papa agora, o João Paulo. Esse aqui é o segundo, né? Quando eu fui com o Sarney, na comitiva dele. Tenho uma foto até muito bonita, e foram uns 15 anos muito lindos. Na Basílica de São Pedro, e tendo sido recebida por ele. Depois, quando eu acabei o colégio, eu caí, tive um problema lá, caí e machuquei minha coluna. Daí tive que sair, ficar um ano em cima de uma cama.
P/1- Mas isso aonde, lá na Europa?
R- Eu tive que voltar para Recife. Não, eu voltei.
P/1- Passou um ano...
R- Passei um ano lá e voltei para o Santa Marcelina, daqui. Mas a freira, a irmã Maria tinha alucinação por mim. Ela falava sempre assim: “oh (figurinha?)”, sabia que alguma coisa eu tinha aprontado, mas ninguém podia brigar. Tinha umas coisas bonitas. O colégio era moderno, tinha um anfiteatro muito bonito, se passavam filmes lindos. Eu sempre perdia o filme, tinha feito alguma coisa ou saído fora do... E eu sabia que ela ia passar pelo lugar aonde eu estava, e ela dizia: “você não vai para o cinema?", eu disse: “não, a irmã Letícia me tirou, ela não deixou, eu aprontei alguma coisa assim, eu saí da fila, tinha que andar assim.” Nunca fui muito de ser limitada. Eu gosto dos limites que eu me imponho, mas se alguém me enquadra, ser enquadrada eu não gosto não. Fico assim, claustrofóbica. Ela estava passando “Por Quem Dobram os Sinos”, com Ingrid Bergman, aí ela deixou: “não, você fique do meu lado.” Eu sou desse tipo de pessoa, ainda ficava fazendo careta para a outra, porque estava lá com a superiora, então.
P/1- Então, para intervir... Quer dizer, você então volta para Recife. Você conclui os estudos em Recife?
R- Não, eu não cheguei a concluir os estudos. Só concluí depois de casada, quando eu quis fazer, realmente, depois de casada. Porque eu caí e fiquei uma semana de... Uma semana não, eu fiquei um ano em cima da cama, com o negócio na coluna. Depois também eu tive umas dores de cabeça. Estava em Recife um ano na cama com essa crise de coluna que não podia me mexer. E o doutor Pedro Nava foi quem −muito amigo meu −, foi quem me cuidava e tinha um carinho especial por mim. Ele me botou em uma cama com uns ferros pendurados, assim. Muito carinhoso. Depois houve uma suspeita que eu tinha um tumor no cérebro. O Paulo Niemayer mandou que eu fosse para o doutor _______, no Canadá. E eu fui. Lá queriam abrir meu cérebro. Não abri lá, voltei. O Paulo Niemayer disse “não”.
P/1- O Paulo velho, o pai, né?
R- O Paulo velho. “Ela não tem tumor, ela não tem nada. É excessivamente inteligente, só tem muita vivacidade.” E eu devo também, mais uma vez, minha vida a ele. Desse impasse papai estava triste, mamãe estava triste. Peguei e, porque eu queria “Papai, eu quero um presente do senhor.” Ele falou: “que presente?” “Eu quero me hospedar no Hotel Glória.” “Ah, minha filha, não é para o meu bolso não”.
P/1- É mesmo?
R- Ele só se hospedava no Hotel Serrador, é. Todos os nordestinos ficavam no Serrador.
P/2- Hotel Serrador que era onde?
P/1- Que é onde?
R- É onde hoje é o edifício da Petrobras, mas agora foi vendido, provavelmente. Ali na Cinelândia, aquele hotel redondo. Era o máximo o Hotel Serrador, também. Ele disse que não era para o bolso dele e que eu pedisse tudo menos isso. “Não papai, eu estou cansada desse Hotel Serrador. O senhor não pediu que eu escolhesse um presente? Eu quero ficar no Hotel Glória.” Aí ele se hospedou no Hotel Glória.
P/1- Isso que ano?
R- 1964.
P/1- Espera aí então, só para a gente entender...
R- Dia 31 de março.
P/1- Ih, olha que dia! Espera aí, antes de chegar nisso...
R- Mas foi dia 27 de março.
P/1- Ah é?
R- Papai naquela época tinha Gregório, Julião, Lulas da vida. Naquela época eram muito reacionários. Houve uma invasão na usina, no campo. Hoje são sem-terra, mas naquela época não eram os sem-terra, eram os camponeses mesmo, o pessoal do campo, da lavoura. Ele disse: “vou embarcar.” Ele foi para Recife e deixou eu e a mamãe hospedadas no hotel Glória para voltar dois dias depois. Acontece que foi dia 27. No dia 31 estoura a revolução, aí ele ficou preso lá e não pôde vir, porque os meios de comunicação acabaram. Eu desci para jantar no restaurante com a mamãe, tinha uma pessoa de bigode, cabelo preto assim, chegou para mim falou assim: “Ah, minha princesinha.” Eu: “O senhor pode deixar falar no telefone? Porque o meu está bloqueado, minha mãe queria falar com meu pai.” Ele disse: “mas eu não posso fazer nada.” Eu disse: “mas o garçom me disse que o senhor é dono do hotel.” Ele disse: “Não, não sou eu não.” “Então o senhor é um mentiroso.” Aí eu disse: “ou o seu garçom é mentiroso”. Ele falou assim: “o que é que você quer, minha princesinha?” Eu disse: “eu quero falar no telefone. Minha mãe quer falar com meu pai, o senhor consegue.” Ele disse: “Então vem aqui ao meu escritório.” Fui lá com a mamãe. Quando eu saí ele falou: “você quer casar comigo?” Falei: “O senhor é maluco. O senhor, de bigode... Eu não gosto de bigode, o senhor parece ser meu pai.”_____ (Riso.) Ele riu e três meses depois eu me casava.
P/1- Ah, que lindo!
R- Aí papai chegou − depois papai conseguiu voltar −, ele falou assim... Ele foi falar com meu pai, “mas eu não posso me ausentar nem uma semana da Clara. A Clara tem que estar em um colégio interno, Ceci.” Chamava ela assim.
P/1- “Essa Clara não tem jeito!”
R- “Porque três dias que eu me ausento, eu já ____________, é.
P2- __________
P/1- Então antes da gente entrar na sua vida...
R- Foi assim que eu casei, na revolução.
P/2- Como é o nome?
R- Graças à revolução
P/2- Graças à revolução, porque você precisou ligar.
R- Papai estava preso lá eu, e o Eduardo, (conheci?).
P/1- Eduardo?
R- Tapajós.
P/1- Tapajós, né? Então, antes da gente entrar nisso eu queria que você tentasse descrever para a gente como é que era esse quadro do ramo de hotéis na cidade. Na década de 50, quais eram os hotéis tradicionais? O que diferenciava um Glória de um Serrador?
R- Eu vou te falar pelo que eu sei da década de 50.
P/1- Pela experiência, sem dúvida.
R- Porque na década de 50 eu estava acabando de entrar em um colégio interno, com oito anos. Pelo que eu sei é o seguinte, o Hotel Glória, a gente tem que falar um pouco da história do Hotel Glória. Tinha o Hotel Serrador. O Hotel Serrador, não sei se era um hotel cinco estrelas ou quatro estrelas. Mas devia ser quatro estrelas, porque não tinha piscina.
P/1- Já tinha essa coisa de estrelas, nessa época de hotéis, você sabe?
R- Não me lembro. Não me lembro, acho que não devia ter.
P/1- Não sei.
R- Bom, não tinha piscina, mas também tinha uma boate famosíssima, que era do Carlos Machado, que era o Fred’s, e lá eu vi muito show com meus pais lá.
P/1- Fred?
R- Não. Tinha o Fred’s. O Carlos Machado foi um grande... Foi um homem que fez grandes shows no Rio de Janeiro, e ele fazia na boate Fred’s, que era aqui no posto de gasolina onde hoje é o Meridien.
P/1- Ah, está.
R- Lá onde hoje é o Meridien era uma boate chamada Fred’s. Eu vi muitos shows do Carlos Machado lá. Isso na década de... 58, 59, 60. E o outro era no Hotel Serrador, que o Carlos Machado dava o show. O Carlos Machado era assim, o máximo, de shows.
P/2- Das dançarinas?
R- Antes dessa época tinha a Boate Began, do Hotel Glória, que não faz parte da minha época, porque o Eduardo inaugurou em 51, junto com a boate Vogue, em Copacabana. Diz-se que eram famosíssimas, aonde vinha grandes artistas. E a diferença que fazia eu acho que era essa. Era um hotel, os quartos eram de móveis escuros. Mas o Glória também era, quando eu entrei, depois eu reformei inteiro. Quartos amplos, escuros, com empregados muito antigos, que ele tratava como se fosse da família. Ainda mais os hóspedes que eram muitos, muito nordestino ficava lá no Serrador. Mas os melhores eram o Copacabana e o Hotel Glória, eram hotéis mais caros. Porque eu, depois, entrei no Gloria sem querer. Eu tinha loucura para me hospedar no Glória. Mal sabia eu, que tem um detalhe: quando eu estudava no colégio, uma vez a freira deixou, porque eu tinha uma grande amiga que era a filha do Fernando Sabino, grande amiga minha. Aí ela deixou eu sair com o Fernando Sabino. Eu andava com o Fernando Sabino pelo Rio de Janeiro, Fernando Sabino me adorava. Eu, a Eliana e a Eleonora também, e nós íamos tomar banho nas pedras da praia da Glória, porque não tinha o aterro.
P/1- Ah, não tinha o aterro do Flamengo?
R- Por um acaso eu disse: “vamos em frente àquele prédio que eu tanto acho bonito.” Ficava olhando para o hotel. Eu disse: “ah, um dia eu vou entrar nesse hotel.” Isso antes de eu pedir a meu pai para me hospedar lá. “Um dia ainda vou entrar lá.” Sem saber que eu seria a proprietária do hotel.
P/1- Pois é. Essas coisas dão o que pensar, né? Assim, outros hotéis, você poderia citar, da década de 60, na cidade, que você se lembra?
R- De 60 antes tinha o Hotel Esplanada, que era Hotel Esplanada em São Paulo, mas tinha o Hotel Palace, que se não me engano era na avenida Rio Branco, que foi derrubado, Hotel Avenida Palace, que...
P/1- Hotel Avenida Palace?
R- É. Que era um espetáculo.
P/1- Que altura da Rio Branco, Clara?
R- Não posso dizer se era avenida Rio Branco ou Presidente Vargas. Mas era... Você tem que... É só você entrar em documentos que você vê. Eu não conheci, já tinha sido demolido. Mas que a atual diretoria do Hotel Glória, que já faleceu, era o Eduardo e o sócio dele, se hospedaram lá antes de comprar o Glória.
P/1- Quer dizer, o centro da cidade, a maior parte dos hotéis ficava ali...
R- Eu acho que era Presidente Vargas, o hotel.
P/1- Por exemplo, já tinha os bairros, tinham hotéis, outros hotéis nos bairros ou no centro do... Era aonde tinha mais _____?
R- Não, famoso era esse. Tinha o Palace, mas isso é antes do Hotel Glória. É da época do Hotel Glória, mas nem existia Serrador. O Palace, o Copacabana e o Hotel Glória, depois é que foi construído o Serrador. Estes hotéis assim eram os mais... Eram os marcos assim, digamos, os grandes hotéis. Os outros pequenos eu não sei, estou te falando porque eu ouvi falar, porque também não fez parte da minha época não.
P/1- Mas por exemplo, já na década de 60, quando você até casa e tudo, como é que... Qual era a diferença do perfil de hóspedes de um hotel Glória de um Hotel Copacabana, por exemplo, que hotéis tradicionais?
R- É o mesmo. Do Hotel Glória e do Hotel Copacabana era o mesmo. Agora, do Serrador diferia, porque, por exemplo, do Hotel Glória você tinha... Só de paletó e gravata você podia jantar, é. E o jantar tinha violinos, era nos salões, os maîtres, ainda vestiam casaca com aquele cravo na lapela. Os outros eram restaurantes que você tinha um garçom, você não precisava necessariamente pôr um smoking para jantar, podia jantar com um blazer ou um paletó e gravata. No Hotel Glória você tinha que botar um smoking para jantar. Era jantar à luz de velas com violinos no segundo andar, no terraço. O Copacabana era a mesma coisa. Então se diferia, você tinha que ter um... Como viajar na primeira classe de um grande navio transatlântico. Você tinha que ter um guarda roupa, tinha que ser um poder aquisitivo bem mais alto, e ali era uma vitrine onde as pessoas mostravam os seus poderes aquisitivos, digamos. Você tinha que ter um guarda roupa. Para viajar era com baús, não era mala, porque cada noite você ia mostrar suas joias, cada noite você ia mostrar seus vestidos. Como você viajar na primeira classe de grandes transatlânticos. Eu peguei alguns desses, mas não o Ponte Grande, nem nesses navios portugueses. Peguei o Frederico C, peguei o Eugênio C. Hoje eles já estão velhos ultrapassados. Mas tinha o Ponte Grande, tinha o Principessa Mafalda, que eu ouvia falar que o dono do hotel, quando veio da Itália para cá, veio nele, só que ele veio na terceira classe, também veio com 3 mil liras no bolso. Mas depois ele voltou na primeira classe. Aí você tinha que dispor de um baú de muitas roupas. Você sabe a diferença, era mais caro.
P/1- Então Clara, por favor, conta para a gente a história de fundação do hotel Glória?
R- Vou te contar porque eu entrei nos livros do hotel e porque o Eduardo sempre me passou. O Epitácio Pessoa, naquela ocasião, pediu que fosse feito um abrigo luxuoso para hospedar as delegações estrangeiras, para a comemoração do primeiro centenário da independência do Brasil. E não tinha um lugar de tanto requinte assim. Tinha o Copacabana, e foi feito então o Hotel Glória...
P/1- Você sabe de que data é o Copacabana Palace?
R- Deve ser da mesma, um pouquinho da data do Hotel Glória. O Hotel Glória é dia de Nossa Senhora da Glória, 15 de agosto de 1922. Então foi feito esse hotel para abrigar essas delegações nessa ocasião, onde hoje é o morro do Castelo foi feito. Tiraram o morro, tiraram as terras para fazer a exposição. Grandes exposições das delegações estrangeiras lá, e que depois esses pavilhões, onde eram feitas essas exposições, foram doados à cidade do Rio de Janeiro, onde hoje é o ministério do trabalho; foi doado pela Inglaterra, ali foram as exposições que eles fizeram no pavilhão deles. No da França é onde é a academia de letras, brasileira de letras, e aí foi. Essas delegações ficaram lá uns meses depois.
P/1- Mas quem construiu o Hotel Glória?
R- Quem construiu o Hotel Glória... Sabe que o Hotel Glória foi o primeiro prédio de cimento armado, concreto armado que existiu na América do Sul? Foi o Hotel Glória. Foi uma equipe de engenheiros alemães, que o engenheiro chefe deles era Alberto (Skingler?), uma coisa assim, depois... Mas o arquiteto que construiu o Hotel Glória, que é o Jean (Jimon?), arquiteto francês, você vê que ele é bem francês. Foi descaracterizado um pouco com a minha cobertura lá em cima. Ele tinha o telhado de ardósia que era meio assim. Então eu, para poder morar no Hotel Glória e também para ele não ser tombado, a gente fez.
P/1- E quanto tempo levou essa construção?
R- O hotel? O hotel não levou muito tempo não, ele deve ter levado uns três anos de construção até a inauguração dele. Quando ele foi preenchido mesmo, pela primeira vez lotado, para todas as delegações que estavam lá, foi na comemoração do primeiro centenário da independência da cidade do Rio de Janeiro.
P/1- Mas quem foi que construiu, que era o proprietário do Hotel Glória, nesse momento?
R- Era a Companhia dos Hotéis Palace, que pertencia à família Rocha Miranda. Eles arrendaram, construíram o hotel, foram eles que mandaram construir. Isso eu posso dizer, porque dona Mariazinha Guinle, que era do Copacabana Palace, ela era irmã de Evangelina Guinle. Evangeliza Guinle morava simplesmente onde é hoje o Palácio das Laranjeiras. Isso era a casinha dela, com aqueles jardins, com tudo aquilo, sem ter aqueles prédios. Então...
P/1- Onde é Parque Guinle, né, que você está falando?
R- O pai dela, o pai da Evangelina, que pertencia... Da família Guinle. Mas pertencia a essa Companhia de Hotéis Palace, que era uma fusão da família Guinle com a família Rocha Miranda, construíram o Copacabana e o Hotel Glória, a Companhia de Hotéis Palace. Eles arrendaram o hotel por 20 anos, de 1928 até 48. Quando o Eduardo, meu marido, entra, com o doutor Brandi − que era italiano, que veio da Itália...
P/1- Doutor?
R- Doutor Arturo Brandi, era um italiano que veio da Calábria. A história dele é bonita, porque ele ganhou todos os concursos do Mussolini. Todos ele ganhou, e na hora (que o?) Mussolini fecha as portas da Itália, nenhum italiano mais saía da Itália para ir para lugar nenhum. Ele ia para os Estados Unidos, devia ser uma pessoa muito rica nos Estados Unidos. Três dias antes de ele embarcar, passou em primeiro lugar em todos os concursos, Mussolini fecha as portas da Itália, “não sai mais nenhum italiano”. Após uns 15 dias ele diz... Tinha muita gente que tinha passado em primeiro lugar em concursos e tudo. Ele diz: “não, só se for para Austrália ou para o Brasil.” Ele contando a história dele para mim, ele falava assim: “então conhecer a Austrália, canguru. Brasil, cobra. Eu vou para o Brasil.”
Pegou esse navio Principessa Mafalda e veio para o Brasil. Chegou – nas palavras dele que eram tão bonitas: “Chegou com três mil liras em tasca”, três mil liras no bolso “e a educação que a minha mãe me deu”.
P/1- Ah, que bonita, a história!
R- Ele desceu no dia de Carnaval, na praça Mauá. E de repente uma confusão imensa. Ele voltou para pegar o navio e voltar para Itália, o navio já tinha partido. Se sentiu muito só. 23 anos, aqui não achou emprego, foi para São Paulo. Lá conheceu um funcionário, Alberto de Sampaio Ferraz, que já morreu, que era empregado da família Rocha Miranda na Companhia Palace. Rocha Miranda e Guinle eram as maiores fortunas do Brasil naquele momento. Eles eram donos de São Paulo inteiro. Todas as terras de São Paulo, Jabaquara, Freguesia do Ó eram deles. Ele, como era engenheiro, conseguiu emprego com esse Alberto de Sampaio Ferraz para traçar as ruas do bairro que hoje é a Freguesia do Ó e Jabaquara. Foi ele quem fez todo o traçado daquelas ruas, os loteamentos, tudo, tudo, tudo, e ficou amigo da família Rocha Miranda, que tinha o Hotel Glória no Rio de Janeiro. Mas ele sempre quis envelhecer olhando para o mar, como bom italiano. Nessa altura meu marido era o melhor químico industrial da Escola do Mackenzie.
P/1- Fala um pouco então do Eduardo. Ele nasceu...
R- Pois é, eu vou chegar lá.
P/1- Está legal, está.
R- Ele não conhecia o doutor Brandi, então o doutor sempre quis morar de frente para o mar e ofereceu aos Rocha Miranda se eles não queriam vender uma parte para ele. Eles toparam, isso foi em 1949, venderam para o doutor Brandi. Por isso que eu digo, atual diretoria... Ele já faleceu, mas está aí o sobrinho dele, que era um homem solteiro. Depois vou falar muito do doutor Brandi, porque está muito... O Eduardo e doutor Brandi está muito ligado à história do Hotel Glória. Aí o doutor Brandi comprou o hotel e foi... Ele era o dono da Viação Cometa, até uma semana, até um ano atrás, quando ele quis vender para a Mil e Um. Dono da Viação Cometa e da melhor lavanderia daqui do Rio de Janeiro, que se chamava... Naquela época não era Viação Cometa, era Viação Relâmpago, e tinha a lavanderia, que era... Me esqueci o nome agora, eu não posso dizer. E precisou de um químico para trabalhar na lavanderia. Como ele morava em São Paulo, em Higienópolis, em uma casa que era um verdadeiro palácio... Esse sim muitas vezes eu jantei na casa dele, aí você tinha que botar smoking, vestido comprido, eram aquelas coisas, lindíssima. Imagina agora, você está ligando a história?
P/1- Estou ligando.
R- Eu vim do sertão, com toda aquela vida, e venho conhecer uma vida diferente. Graças a Deus a cultura que eu recebi... Então eu fui entender italiano. O Eduardo foi apresentado como o melhor aluno da Escola Mackenzie, então ele pegou Eduardo para vir trabalhar com ele como químico na lavanderia. Quando resolve comprar o Hotel Glória, pega Eduardo e diz: “não, vamos para o Hotel Glória.” E ele morava no Palace Avenida, Eduardo também foi morar no Hotel Palace Avenida, com ele. Ele já tinha a Relâmpago aqui também, que era um viação de ônibus. Se mudaram para o Hotel Glória e ficou até Eduardo morrer e ele morrer, sempre. Mas não na minha cobertura, tinha o telhado de ardósia ainda, quando o hotel... Tenho que falar um pouco do hotel para você entender. A história do hotel eu parei no Epitácio Pessoa, que fez para essas delegações, tudo. Eu estava dizendo para você que a Companhia Rocha Miranda arrendou de 28 a 48, quando entrou, em 49, o doutor Brandi com o Eduardo.
P/1- Mas o Eduardo entra com capital, como sócio, mesmo?
R- Não, não. Eduardo entrou como funcionário do doutor Brandi, como diretor do Hotel Glória. E foi comprando, foi dando oportunidade dele comprar as ações. Os dois foram se tornando acionistas. Quer dizer, o Eduardo com 40 e ele com 60, aí ficou assim, 45 e 60. Mas o doutor Brandi nunca apareceu no Hotel Glória, ele gostava dos bastidores. Era engenheiro, foi ele que ampliou o hotel, foi ele que fez a reforma dos apartamentos. Isso até morrer, falecer, que foi em 82. E Eduardo ficou sempre o nome dele vinculado ao Hotel Glória, à imagem. Eduardo, que era o diretor presidente, foi presidente da Federação de Hotéis, da ABIH [Associação Brasileira da Indústria de Hotéis] vários anos. Se dava muito com políticos. O doutor Brandi ninguém ligava ao Hotel Glória, ninguém. Ele era o arquiteto e ficava lá nos bastidores, construindo, tal, e não sei quê. Quem era ligado ao Hotel Glória era o Eduardo, ele quem dirigia, o outro realmente não aparecia. Mas éramos uma família, muito amigos. Ele até foi o meu padrinho de casamento. Quando eu casei, eu comecei... Não ia ficar sem fazer nada, eu comecei a trabalhar.
P/1- Então me conta o seu casamento.
R- O meu casamento foi em três meses. Meu casamento foi uma coisa lindíssima. Casei em Recife, na igreja da Madre de Deus.
P/1- Ah, vocês foram para Recife casar?
R- Foi um casamento maravilhoso na minha casa, com aqueles... Doutor Brandi foi, foi o João Havelange, foram as pessoas aqui do Rio de Janeiro que eram ligadas da Cometa. Foram os meus padrinhos. E foi um casamento muito...
P/1- Que data, Maria Clara?
R- Foi oito de maio de 1965. Eduardo tinha 38 anos e eu tinha 20.
P/1- Qual é a data de nascimento do Eduardo?
R- Eduardo é três de agosto de 1928.
P/1- Ele é brasileiro, filho de brasileiro?
R- É, com descendência portuguesa.
P/1- Com descendência.
R- É. Morava em São Paulo, era paulista. Veio para cá, naquela época tinha pessoas importantes que ficavam, __________ na minha vida, que foi o presidente da Varig, um homem pelo qual eu tinha a maior admiração, foi meu padrinho de casamento também, eu adorava ele.
P/1- Que era?
R- Rubem Berta, foi o fundador da Varig. Ele morava no Hotel Glória. Como teve pessoas que moraram no Hotel Glória, ele era um que morava no Hotel Glória, e gostava demais de mim. Era um alemão muito casmurro, porque, por causa da minha espontaneidade, sabe... Todo mundo do Rubem Berta sabe quem era Rubem Berta. Passou um alemão e falou assim: “O senhor vem cá, o senhor pisou no pé, e tal.” Aí ele gostou da minha espontaneidade, porque...
P/1- Autenticidade, né?
R- Autenticidade, porque era típico do Nordeste isso. E ficou apaixonado por mim, disse: “Eduardo, adoro a sua mulher.” Eu olho daqui, foi meu padrinho de casamento. Quando o senhor Rubem Berta foi vivo... Eu viajei e viajo muito até hoje o mundo inteiro só com tapete vermelho nos aeroportos para poder eu pisar. Eu tinha 20 anos, 21 anos, 22 anos, levar cafezinho com leite para mim na borda do avião que o senhor Rubem Berta tinha mandado.
P/1- Ah, que graça!
P/2- A lua-de-mel de vocês foi aonde?
R- Ah, nós demos a volta ao mundo. Foi assim, quase três meses viajando.
P/2- Três meses de namoro, _________.
R- Foi muito interessante, conheci pessoas assim. O hotel tem uma coisa maravilhosa que o Eduardo sempre dizia isso: “é o único, a única indústria, o único comércio que você tem a oportunidade de fazer grandes amizades.” Porque nada mais nada menos do que comunicação, e você tratar bem e receber o retorno.
P/1- Clara, então para a gente assim... Você casa e vai morar no hotel?
R- Aí foi difícil.
P/1- Então primeiro, como era morar e que prática era essa nessa época, na década de 60, que se morava em hotéis?
R- Pois é, eu saí de uma casa grande, de uma família grande...
P/1- Pois é.
R- Fui morar em uma suíte muito bem decorada e tal. Mas quando eu me vi enfurnada dentro de uma suíte, de uma sala e de um quarto, comecei a passar mal, passei mal. “Que eu estou passando mal.” Passei mal mesmo, eu tive a doença do pânico, sete anos, sete anos eu tive a doença do pânico, e me curei na raça e no peito, na coragem, sem remédio, sem nada. Comecei a sentir claustrofobia, comecei a ficar com medo de tudo, enfurnada ali. Eu não trabalhava, aí o doutor Brandi falou assim: “Não, então vamos, desce aqui no meu escritório...” não, um dia eu passei muito mal com falta de ar. Eduardo estava fora do hotel, aí eu voei no escritório do Doutor Brandi. Era um escritoriozinho pequenininho que até hoje está lá, até é meu escritório de manutenção. Ele ficava muito nos bastidores. Bati na porta, entrei, ele estava atendendo, sei lá, um engenheiro. Eu disse: “Ó, eu estou passando mal. Estou com falta de ar, não posso ficar presa naquele negócio lá não.” E todo mundo temia muito ele. Doutor Brandi, uma pessoa assim mais velha; e eu nunca temi, pelo contrário. Eu via nele uma figura muito doce. E você ter medo de quê? O medo acaba quando você enfrenta. Não estou tirando a pele de ninguém, né? E ele passou a se dedicar muito a mim. “Não, não tenha isso aí. Então venha me ver trabalhar.” Aí eu desci...
P/2- Você também tinha medo de altura assim, ou...
R- Tudo. Fiquei paranoica. Mas fiquei boa, graças a Deus! Fiquei uma rocha. Imagina se... O helicóptero caiu no mar, se eu tivesse pânico estaria ferrada. Aí eu ficava lá vendo ele trabalhar e vendo como ele contratava empregado. Aprendi muito. Chegava um funcionário do Nordeste, lá no... 90 por cento do Hotel Glória − são 400 funcionários − é nordestino. Mas não é porque eu era nordestina não, é porque ele já amava o Nordeste.
P/1- Mas isso na década de 60 também era assim?
R- É. Ele já amava o Nordeste. Chegava um retirante do Nordeste, gente boa que não tinha emprego, para pedir emprego, e eu ficava para poder me curar da doença do pânico. Ele disse: “não, venha cá, fique sentada aqui, me veja trabalhar que você vai aprendendo.” E Eduardo ficava na parte comercial, na parte financeira do hotel, coisa que eu não fazia, não gostava. Naquela época número não era comigo. Eu era muito das artes, era muito mais do criar. Ficava lá, eu botei uma mesinha lá, ficava lá vendo o doutor Brandi trabalhar. Entrava um nordestino lá, ele: “vá fazer uma carta, sente ali e vá fazer uma carta.” “Fazer uma carta?” Era para que a carta, que tipo de carta? O rapaz ia fazer quando ele botava assim: “mãe, benção mãe, saudações.” Pronto, já comovia ele. Um senhor italiano da Calábria, tinha deixado a família lá, já aquele estava empregado. Quando eu comecei a perceber isso, quando as pessoas entravam que eu via na porta, eu ia lá e dizia: “ó, escreve para a mãe, pede a benção e _______ saudade.” Aí eu sabia que ele ia dar emprego, saía empregado.
P/2- Técnicas de recrutamento, né?
R- É. Saía empregado. Então coisas muito bonitas que eu presenciei em minha vida. E continuou. Não é porque eu sou nordestina não, também ele passou a gostar muito de mim também por essa − como você acabou de dizer −, essa espontaneidade, essa autenticidade. E a gente é pau para toda obra. Quer dizer, tipo, você não está acostumada a fazer aquilo mas você aprende, se dá um jeitinho, se faz, não tem arrogância. Acho que já o clima mesmo que faz a gente ser assim. Porque é sol, inverno a pele já é curtida por tanta coisa, já faz a gente ser assim.
P/1- Clara, como é que era o ambiente do Hotel Glória quando você entra lá, em 1965?
R- Uma família.
P/1- Descreve, por favor?
R- Doutor Brandi, Eduardo e os empregados, uma família só, e é assim até hoje.
P/1- Quantos empregados eram na época, você consegue...
R- Na época eram 250. Depois ele construiu o prédio anexo com 200 apartamentos, por isso que ele tirou o telhado de ardósia, para fazer minha cobertura. Sim, também que haver se eu não posso ficar morando em uma suíte, somente. Aí foi construir para mim uma casa, aí sim, um apartamento com 450 metros quadrados, com piscina particular, terraço, com tudo, com uma vista soberba que é aquela que você tem lá. Aí eu me sinto melhor.
P/1-Deu para massagear (riso).
R- Eu não tenho mais essa claustrofobia, mas também eu já estou trabalhando. Ele me dizia assim: “quando eu não estiver mais...”. Era um homem bem mais velho, morreu em 82. “E quando Eduardo não estiver mais, só você leva esse hotel adiante.” Só que ele me dizia isso, eu ainda estava com pânico. Eu dizia: “eu? Não vou nem na farmácia sozinha, vocês estão é malucos.” “Você vai ver, lá de cima eu vou estar olhando você dirigir o hotel, e como ninguém.” Mas não é que aconteceu, menina? Passaram-se 30 anos e eu penso naquelas palavras. “Meu Deus! Tudo que ele falou aconteceu.” Ele sempre dizia essas palavras. E eu não tive medo, eu enfrentei o desastre, eu estava com o Eduardo no helicóptero, e depois...
P/1- Então como é que era o ambiente do hotel? Me descreve um pouco a década de 60 no Hotel Glória no Rio de Janeiro.
R- Ah, a década de...
P/1- Quer dizer, a capital muda para Brasília, isso também...
R- Ah, mexeu.
P/1- De que forma isso interfere no hotel e na dinâmica em receber aqueles políticos?
R- Pois é, o charme estava todo aí. Voltando a falar do hotel... Por exemplo, Eduardo fez já antes de 1960, em 1955 ele fez a Boate Began, como tinha a Vogue. Nessa boate ela hospedou várias... Por lá passaram várias pessoas importantes, por exemplo, quem... A orquestra dela era uma orquestra famosíssima, francesa, que era Bernard Riudá, era uma orquestra espetacular e o crooner era a Dolores Duran.
P/1- Poxa!
R- Que conviveu, eu sei... Isso eu estou te passando porque o doutor Brandi me contava, e o Eduardo me contava. Era Dolores Duran, Cacilda Becker ficou muito lá, Josephine Baker diz que cruzava a perna, descruzava a perna, sentava no... Pessoas assim muito importantes passaram pela Began, e foi antes do Carlos Machado. Surgiu o Carlos Machado talvez por causa do Silveira Sampaio. Silveira Sampaio era um escritor, diretor e médico também, que fazia os shows da Boate Began, e aí estiveram. Eles ficavam em cartaz um ano, dois anos, para aquela época, 1955, 1956. Deram dois grandes shows, Brasil de Pedro a Pedro e No País dos Cadillacs.
P/1- Nessa Boate Began?
R- Began. Began significa “xodó” em francês.
P/1- Qual era o endereço da Began?
R- A Began era onde hoje é o Teatro Glória.
P2- Ah, está.
P/1- Rua do Rússel?
R- Rua do Rússel, esse era a do Hotel Glória como o teatro também é. A Began era exatamente onde é o Teatro Glória. E por lá passaram artistas estrangeiros, internacionais. Eduardo e doutor Brandi ficavam lá toda noite, porque o Silveira Sampaio fazia o show, mas eles tinham que receber pessoas que vinham muito para o (Beremi?) Udile, imagina, o maior tenor de toda a época. A Bidu Sayão, a Besançone cantou muito lá, Besançone foi demais lá. E eram pessoas assim, __________ que tinha o Municipal, todo mundo que vai para o Municipal fica hospedado no Hotel Glória.
P/1- Era assim?
R- Até hoje.
P/1- Até hoje?
R- Até hoje. Por exemplo o Antonio Gades. Agora mesmo, quando eu fui ver Maurice Béjart, está todo mundo lá. Porque é muito próximo ao teatro, e é um... Não só o endereço é muito próximo, como o hotel é muito bom, excelente. Ele fez esse prédio anexo, aumentou mais em 300 apartamentos. Hoje nós temos 623 apartamentos, mas quando o Hotel Glória foi inaugurado só tinha 180. Hoje tem seiscentos e tanto. Depois que o Hotel Glória foi inaugurado era só o quadrado, aí foi feito, não... Era um “C”. Essa parte de trás onde fecha o quadrado, que são os apartamentos de luxo, foi feito já em 1955, 56. De 62 a 64 foram construídos mais 200 apartamentos, que é do 26 ao 57, a gente chama de cantão. É uma faixa do hotel que se estende para o Outeiro da Glória, na ladeira.
P/1- Mas dá de frente também para a Baía?
R- Não.
P/1- Não? Dá para trás?
R- Dá para os jardins do Hotel Glória, que são lindíssimos. E da janela do lado direito você vê a Baía de Guanabara, do lado esquerdo você vê a cidade e o Outeiro da Glória. São 200 apartamentos aí. Mais tarde... Aí eu já estava no hotel, nessa época, cheguei no hotel quando estavam fazendo essa parte de 200 apartamentos. Depois, em 1980, por aí, foi feito o prédio anexo, com mais 200 apartamentos. Está com 623 apartamentos, era até mais, é que a gente transformou em escritórios. 623 apartamentos, todos reformados, você a de ver que o Hotel Glória é antigo, mas não é um hotel ultrapassado. Porque meu pai sempre... Aprendi isso com meu pai, passo sempre adiante: “um hotel, como um navio, não pode criar cabelo branco. Se criar cabelo branco outros vão passar na sua frente.” Então você vai para Paris, eu conheço o mundo inteiro, frequento os melhores hotéis. Os melhores hotéis são todos como o Glória e o Copacabana. São hotéis tradicionais, hotéis muito antigos, como o Plaza Athénée, como o George Sand, como o Crillon, como o Ritz. Mas por dentro eles têm se adaptado e reformado. Então o hotel já sofreu várias reformas, antes com o Eduardo e com o doutor Brandi e depois comigo.
P/1- Mas quando você vai para lá, em 65, o que o hotel tinha, o que oferecia ao hóspede do hotel? Para a gente depois fazer esse contraponto da década de 60 e 2003. Que é que tinha na década de 60? O que é que era um grande hotel na década de 60? O que é que ele oferecia?
R- Basicamente hoje é mais simplificado. Naquela época, como eu lhe disse, havia mais requinte. Então por exemplo, o maître vestia casaca, hoje tinha que se botar um paletó e gravata para entrar em um bar ou para entrar no restaurante. Tirando isso os ambientes são os mesmos. Você pode... Aqui as peças não foram trocadas porque são obras de arte, então são conservadas. O Hotel Glória, quando sofreu uma das reformas, foi logo a primeira que o doutor Brandi comprou. Ele fez do primeiro andar uma réplica do Mosteiro de São Bento, onde tem o Bar Chalaça, daí Chalaça é o bobo da corte portuguesa. Você tem a réplica do corredor das celas dos padres, até com sino que chamava eles para almoçarem, né? Do mosteiro de São Bento é uma réplica. A porta do restaurante colonial que é uma capela, é uma porta toda em jacarandá com uma rosácea em forma de abacaxi. Foi de uma chácara da... Onde hoje é o viaduto da chácara da Dona Paulina, lá em São Paulo. E a reprodução dos azulejos de Rugendas, que isso é uma maravilha. São nos arcos do primeiro andar, chama-se salão Rugendas, é uma beleza mesmo. Esse é um ambiente muito requintado que continua, nada foi trocado lá, porque é uma coisa assim, é o máximo, é uma joia. Quem passa pelo Hotel Glória não pode imaginar que tem aquilo lá dentro. Mas o serviço é que mudou. Eu acho que antes era um serviço mais luxuoso, um serviço mais... Hoje seria uma coisa over. Hoje, se eu dissesse para você: “Não, sem, paletó assim você não entra no bar.” Nos tempos de hoje não dá. Até mesmo nos navios e nos aviões. No Teatro Municipal, que eu frequento há tanto anos, hoje você pode ir para o Teatro Municipal vestida mais esporte, antigamente você não entrava.
P/1- Mas o que é que tinha, por exemplo, na década de 60, assim, refinado? Tinha um prato especial? Tinha um cardápio muito...
R- Tinha algumas coisas que tinha assim... O que eu posso dar de referência? A sauna era a melhor sauna do Rio de Janeiro. Tinha o baile dos artistas. Então foi a primeira...
P/1- É dos bailes, depois temos que falar.
R- A sauna foi muito famosa a sauna do Rio de Janeiro, do Hotel Glória no Rio de Janeiro. Muito famosa, porque era a única sauna finlandesa mesmo que você caía em uma piscina gigantesca, que ela tem toda uma forma de oito, com pedras de gelo. Tinham um bar de pedra chamado Bar Baridade, que ficava ao lado da sauna. A sauna foi uma coisa muito requisitada por todas as pessoas. Era muito famosa, era chique tomar sauna no Hotel Glória. Era chique, por exemplo, almoçar na pérgula com o Ibrahim Sued do Copacabana Palace. Mas muito mais chique era fazer a sauna no Hotel Glória, ou frequentar a Began no Hotel Glória, tinha o golden room, mas a boate era a Began. Cada um tinha o seu...
P/2- Essa coisa de boate em hotel, sempre teve assim ou...
R- Depois foi fechada a Began, quando começou o baile dos artistas que todas as...
P/1- Que ano, Clara? Só para a gente...
R- O baile dos artistas deve ter começado, não posso dizer certamente, mas em 1955, década de 50, que aí eu me lembro das fotos da Gina Lollobrigida, o Rock Hudson e Vivien Leigh, do “Vento Levou”. Tantas pessoas vieram ao baile dos artistas. Teve até um episódio famoso, que ela não veio para o baile dos artistas, a Ava Gardner veio fazer aqui aquele filme aqui, A Condessa Descalça, e desembarcou num porre federal. Eduardo estava esperando Ava Gardner na boate Began com Ibrahim Sued. Então ela entra e vai para o quarto. Acho que não estava com vontade de descer, o que era, não sei quê. O Eduardo, quando sobe, para buscá-la, ela tinha um contrato que ia descer na boate, tal. Ela quebra o quarto inteirinho. Aí ela é convidada a se retirar para o Copacabana. Mas do Copacabana foi expulsa e, saindo pelas portas do fundo, foi para a Venezuela.
Mas em todos os jornais saíram assim: “o porre do Glória. O porre glorioso do Glória”.
P/1- Ah, que graça!
R- Saiu muita coisa assim, e episódios também que o Eduardo presenciou − eu não presenciei −, por exemplo, o Antônio Calado, fazendo uma manifestação ao Castelo Branco, quando ele tinha acabado de iniciar a ditadura... Isso foi nas portas do Glória, com o __________, foi no centro de convenções.
P/1- Porque também é muito tradicional na cidade, né?
R- Muito, muito. A OEA foi toda feita lá, né? A OEA e depois agora a Eco-92. Nós fomos a sede da Eco-92. A Eco foi realizada do parque do Flamengo, nós fomos a sede da Eco.
P/1- O Hotel Glória também tem uma tradição de hospedar os presidentes brasileiros, quer dizer, a gente...
R- Desde Epitácio Pessoa que pediu para construírem o hotel, acho que foi isso.
P/1- Quer dizer, tem o Getúlio, que é conhecido. O Sarney, mais recentemente.
R- Primeiro foi o Getúlio, mas o Juscelino se hospedou lá.
P/1- Juscelino.
R- O Juscelino era amigo pessoal do Eduardo, se hospedou algumas vezes lá. Morava aqui no Rio de Janeiro, mas de vez em quando passava...
P/1- Getúlio também, Getúlio Vargas?
R- Getúlio também, antes do palácio ser construído. Getúlio morou no Hotel Glória, até que o Palácio do Catete ficasse pronto.
P/1- Hoje o presidente Lula se hospeda no Glória?
R- O Lula fez a campanha toda lá. Foi muito engraçado, porque foi o Lula, o José Serra, o Ciro Gomes e o Garotinho a campanha foi toda, os quatro debatiam lá.
P/2- Devia fazer um debate.
R- E o Lula adora. O Sarney entra sempre pela mesma... Tem umas superstições, entra pela mesma porta que dá sorte para ele. O Lula falou: “Esse hotel me deu sorte, graças a ele” − ele se hospedou lá − “eu fui eleito presidente.” Mas só que o Lula tem vindo ao Rio e tem voltado no mesmo dia. Mas toda presidência fica lá, o staff dele todo lá. Se ele tiver que... E a suíte presidencial tem que fazer a varredura para poder... Se ele pernoitar, eles bloqueiam a suíte, fazem a varredura, ele está lá. Mas ele tem voltado mais cedo, acho que...
P/1- Varredura?
R- Varredura é quando chega o presidente da república, a presidência toda se instala lá. Então eles têm que... Varredura eles têm olhar e fiscalizar toda a suíte. Embaixo da cama, atrás de cortina, ver tudo. Uma vez que eles fiscalizam, eles lacram a suíte e mais ninguém entra, só o presidente com eles.
P/1- Está bom.
R- Para saber se tem grampo ou se não tem grampo. Por exemplo, na época do Itamar teve até um escândalo que o Itamar...
P/1- Pode falar.
R- O Itamar disse que o telefone dele foi grampeado quando ele falou com aquela mocinha, aí houve aquele escândalo, saiu no jornal ________ “o telefone do Hotel Glória foi grampeado.” E não foi vou te dizer por que, porque nós temos o melhor sistema de telefonia, o mais moderno da América Latina. Sempre foi assim. O melhor PABX foi o nosso. Quando todas as operadoras de PABX trabalhavam com 36 telefonistas, nós trabalhávamos com seis, isso era uma mesa já hoje ultrapassada. Hoje nós temos um equipamento da Siemens que todo o sistema de telefonia do Hotel Glória é comandado por três computadores pequenos. E Fernando Henrique Cardoso inaugurou essa sala, tem lá o retrato dele inaugurando com Eduardo. Depois comigo ele inaugurou a nossa videoconferência. Nós podemos fazer conferência como quatro ou seis do mundo ao mesmo tempo. As pessoas no Japão falando em Nova York. Fernando Henrique inaugurou, que está lá a plaquinha dele. Ele sempre se hospedou lá com dona Ruth. E não só ele não, vários ministros de Estado. Depois você parte para os grandes artistas: Montserrat Caballé... Tem tudo isso no livro de ouro do hotel, todos eles dedicam; o José Carreras, o Plácido Domingo, Luciano Pavarotti. Quantas vezes eu emprestei meu carro para o Luciano Pavarotti, quantas vezes o recebi na minha casa.
P/1- É mesmo?
P/1- Bom, Clara, então vamos retornando um pouco aos serviços do Hotel Glória, né? Por exemplo, o Hotel tinha tradição na década de 40 e 50 dos bailes de formatura. Uma faculdade de direito, uma faculdade de engenharia, medicina. Ainda existem os bailes de formatura?
R- Isso permanece até hoje, só que hoje não só de faculdade, mas muito Santo Inácio.
P/1- Ah, é?
R- São Vicente de Paula. Essa garotada toda que se forma no Santo Inácio e São Vicente de Paula adora. Para eles é o máximo ter a formatura no Hotel Glória. E olha, é tranquilo. A gente acha que estraga porque são 1500 pessoas jovens, não. É mais tranquilo às vezes do que até um congresso, um baile de... Um encerramento de congresso aonde você tem tanto stands. Você sabe que o Hotel Glória tem 12 salões.
P/1- Pois é, descreve o Hotel Glória, hoje.
R- O segundo andar do Hotel Glória foi construído um centro de convenções com entrada independente do hotel. Essa entrada − que é na curva da rua do Rússel −, você entra e tem a parte de secretaria, a parte de vestiário, toaletes, lavabos, isso já no primeiro andar. Segundo andar você já cai no segundo andar, aí sim no prédio principal do Hotel Glória, onde nós temos 12 salões. Nós temos salões para fazer congressos na capacidade de duas mil pessoas.
P/1- Sim.
R- O que seria sim o máximo se um dia pudesse abrir o jogo no Rio de Janeiro, porque o Hotel Glória estava simplesmente, totalmente equipado. Era só colocar as máquinas e se teria o melhor cassino, talvez, da América Latina.
P/1- Já teve jogo no Hotel Glória?
R- Não, nunca teve. O único jogo que houve foi no Cassino da Urca, mas é muito maior que o Cassino da Urca. E nesses salões é que abrigam esses congressos, que é muito interessante, porque cada hora, cada dia... De manhã está uma coisa, de noite está outra. Às vezes eu mesma me assusto, eu que moro no Hotel. Tem uma conferência, por exemplo, da Varig, você tem o formato em “U”, o formato em “L”, o formato em “V” com cadeiras. Uma recepção de casamento da filha do presidente da Varig, do vice-presidente da Varig que foi lindíssima, foi lá no Hotel Glória. É, no dia seguinte esse pessoal − isso o hotel é uma máquina −, as pessoas acabam uma festa às três horas da manhã, vão embora para casa pensando, “bem, aqui acabou a festa.” Entra uma turma de gente trabalhando que vira a madrugada inteira, para às sete horas da manhã estar montado para uma coisa que nada tem a ver com a festa. Aí são stands de máquinas de oftalmológicas, de Siemens. Um congresso médico, por exemplo, cardiológico; aí tudo aquilo entra stands, verdadeiros equipamentos pesados que entram pela portaria de serviço. As portas são grandes que dão acesso a esses salões e muda a paisagem completamente. E isso sem as pessoas que foram embora no dia anterior e as que estão chegando, nem as que estão entrando às sete horas da manhã puderam nunca imaginar que há três horas estava sendo realizado uma festa ali. Nem as que foram embora poderiam imaginar que no dia seguinte...
P/1- É, mas...
R- Em quase três horas. É uma equipe muito grande. É como um teatro. Se você vai nos bastidores do Teatro Municipal, a gente vê só o espetáculo, aplaude, acha que é tudo muito fácil. Eu costumo visitar os bastidores e os meandros de todos os teatros, gosto muito de teatro, os melhores teatros do mundo inteiro. E é muito parecido com hotel, aeroporto também é muito parecido. Mas o teatro eu acho muito, porque você vai na casa de máquinas, vai na casa dos ar condicionados, vai naqueles fios todos que fazem tudo aquilo ocorrer. Ou seja, o verdadeiro cenário, troca de cenário, por baixo daquilo é uma cidade. Então o hotel, atrás daquilo... Os bastidores do hotel é uma cidade para fazer ele viver tantas coisas diferentes em um espaço curto, para roçar cenário, né?
P/1- O que eu acho interessante é que no fundo mudou um pouco o papel, entre aspas, do Hotel. Quer dizer, quando o Hotel Glória é fundado, na década de 20 por exemplo, não tinham esses eventos.
R- 22.
P/1- 22, né? Então, quando é que os hotéis passam a também servir de lugar para congressos, para eventos, festas de casamento?
R- O Glória, quando o Eduardo, junto com o doutor Brandi... O doutor Brandi foi quem construiu o centro de convenções. O Glória não tinha. O Glória, na sua inauguração, tinha dois salões, duas salas e 180 apartamentos.
P/1- E os salões eram para quê?
R- Esses dois salões eram restaurantes que era com aquela varanda, aquele terraço que fica de frente para... No primeiro andar. No segundo andar, que fica de frente para a Baía de Guanabara, e ali um salão; só que tem umas colunas gregas bonitas, uns lustres franceses maravilhosos, e ali que era feito o salão de estar e o outro salão onde se comia ao som de violinos, daqueles mestres de casaca e tudo. O salão, o centro de convenções foi feito em 1956.
P/1- Foi o primeiro da cidade, você sabe?
R- Foi o primeiro, foi o primeiro da América do Sul.
P/1- Quer dizer, e também um hotel fazer um centro de convenções, também o Glória foi pioneiro, neste sentido?
R- Foi pioneiro. O Glória foi pioneiro no sistema de computação, a contabilidade era toda feita à mão em todos os hotéis. O Glória foi o primeiro hotel a ter a contabilidade feita em computadores. O PABX também, a primeira mesa mais moderna telefônica foi do Glória, e o centro de convenções e o maior hotel da América Latina, com 623 apartamentos até então, né?
P/1- Hoje, com essas modernidades todas, tem que ter mil tomadas, essas coisas. Teve mudança nesse sentido? Todo mundo tem computador, tem celular...
R- Como eu te disse, o hotel não pode criar cabelo branco. Então hoje você, quando... Não é que se reforma o hotel, o hotel está sempre sendo reformado. Eu acabei de reformar o prédio anexo inteiro. Tem 15 dias que as obras acabaram, ele está uma joia, uma beleza. Mas nunca parei no prédio principal. Porque você tem quartos que estão bonitos, vou ver o quarto, toda essa parte do Glória quem toma conta sou eu. Não só da decoração, como jardins, o Glória tem um jardim imenso, uniformes, piscinas, empregados, restaurantes de empregado, cozinha de empregados, tudo sou eu que faço. E vale à pena visitar, porque não tem diferença nenhuma da cozinha dos funcionários do que da cozinha dos três restaurantes. Nós temos cinco cozinhas, todas são iguais, todas são muito modernas. Isso foi fazendo ao longo dos anos. São muitos anos que eu trabalho lá e venho fazendo isso, nunca deixei os quartos, porque basicamente o que é um hotel? Ele vive de quê? De quartos, ele vive de hospedagem. Então ele vive de congresso que vão alugar os salões? Mas o que interessa para o hotel sobreviver é quem vai se hospedar no hotel. E se a pessoa chega no hotel e sente um quarto que tem vontade de sair, “ai, aqui eu estou me sentido mal, estou me sentindo claustrofóbica”, como eu falei, não, não quero. Eu inovei um pouco essa coisa dos anos passados. Porque o mobiliário era todo em jacarandá, eram móveis pretos, cores pesadas. Hoje você não se sente com essa coisa de clean, com essa coisa de astrologia, essa coisa do bem estar. Hoje você quer tudo assim, verde que te quero verde, né? Tem aquela... Barulhos da natureza, você quer quanto mais clarinho o quarto melhor você se sente.
P/1- Descreva um quarto na década de 60 e um quarto hoje, em 2003.
R- Quando eu cheguei no hotel, até bem pouco tempo atrás os quartos eram todos pesados. Não tinha nem carpete, eram assoalhos de madeira, escuro, pesada. Aquilo era passado com enceradeira. Enceradeira escovão antes, não era nem elétrica, à escovão. Certos pisos eram feitos de linóleo, que era uma espécie de um plástico verde, uma tinta verde que você encerava. O banheiro era todo feito em azulejo ou então em pastilha, daquela pastilha bem... Como se fosse um mosaico árabe, aí piso em cerâmica. Tinha ainda aquelas mesas de cabeceira, que eram chamados de criados-mudos. Tinha aquele negócio para você botar o penico, não tinha o... Certos apartamentos não tinham banheiro, nem todos os quartos tinham banheiro. O banheiro era no corredor e olhe lá. Então tinha o penico, você botava embaixo. O italiano chamava zipêpe, aí você botava embaixo do criado-mudo. Isso foi todo... Foi se reformando.
P/2- E ar condicionado?
R- Não tinha. Outra coisa, o Glória foi o primeiro hotel a ter ar condicionado no Rio de Janeiro, e com o sistema de tratamento de água renovado a cada 12 horas, e água gelada. Foi o ar condicionado supermoderno central. Não foi de aparelho, central. Depois nós fizemos... Cada andar naquela época tinha uma copa, tinha 180 apartamentos; você já imaginou o trabalho que é você fazer em cada andar o café e levar para o quarto? Isso encerrou, porque entrou uma mentalidade americana de hotelaria.
P/1- Quando, Clara?
R- 1958, 60, 62, por aí. O americano começou a dominar na hotelaria, que entrou com um negócio chamado room service, ou seja, serviço de quarto. É muito mais prático, você tem a sua cozinha embaixo, o quarto pede, sobe o monta carga com elevador, com a comida e para no andar. Isso evita que você tenha o material... Em cada andar uma copinha, material, aquilo vai se quebrando e também dá barata, dá bicho, dá barata, porque em uma copa você tem sempre tendo que dedetizar. Mas sendo uma coisa já feita para isso, toda em aço inoxidável, grande, é mais difícil. Mas em cada andar, em que os quartos todos lá, era uma coisa muito do passado.
P/2- Então, então (antes?)...
R- O Serrador, o Hotel Serrador eu me lembro quando eu me hospedava lá, tinha copa nos andares. Quando você pedia qualquer coisa no quarto, o garçom subia naquele andar e ia fazer. Então tinha tudo: louça, faqueiro, copo, fogão; ele fazia ali no andar e levava.
P/1- Você tem louça própria com timbre do hotel? Me descreve a louça.
R- Toda a louça é Limoges. Ainda sobrou bastante peças de Limoges branca, essas aí eu guardei para banquetes. Louça do hotel a gente já comprou, e os faqueiros também, não são... São da Fracalanza. Mas os faqueiros antigos do hotel, da inauguração, com emblema, ainda tem, nós usamos para banquetes. Toda de Limoges branca com frisos dourados e o emblema do hotel.
P/1- E como é o emblema do hotel? Descreve o emblema do Hotel Glória, por favor.
R- O emblema do hotel é... Como você tem ele em forma de medalhão, e que está... Você está com o emblema aí?
P/1- Não, não tenho aqui. Mas assim, o antigo era o Pão de Açúcar, né?
R- O Pão de Açúcar está no centro do medalhão e está escrito Glória embaixo do bonde do Pão de Açúcar, que une os dois morros.
P/1- Eu não consigo ver.
R- É porque é muito pequenininho, _________.
P/1- Não dá para ver aqui.
P/2- Esse logo ainda é o mesmo?
R- É o mesmo.
P/1- E isso está impresso nos pratos?
R- Não, o que está é a logomarca do hotel, o brasão do hotel.
P/1- O brasão do hotel está na louça?
R- E nos copos também, no faqueiro também.
P/1- Você sabe quantificar copos, pratos, talheres do hotel?
R- Sei. Se você vai comprar para o banquete, pelo menos você tem que ter três mil peças, se o banquete é para duas mil pessoas. E para o hotel você tem que ter umas 4500 peças para servir os 600 apartamentos. O Hotel Glória nunca compra... Tecido nunca compra menos de mil metros. E tudo isso é feito lá, nós não fazemos nada fora do hotel. Eu tenho o estofamento lá, eu estufo todos os móveis, sou eu que digo como eu quero. Esses estofadores que vieram lá de Cabrobó, lá do Crato, lá do Ceará. Meu pintor que faz tromplein (trop plein?). Vocês têm um tromplein maravilhoso aí, que é essa paisagem. Eu tenho um pintor que faz tão bonito quanto esse, e todas as paisagens do hotel nos quartos que eu faço tromplein também, foi eu ensinando para ele. Quando eu viajo para a Itália eu trago estêncil, ensino para ele: “faz assim”. Hoje ele se tornou um exímio pintor, e faz tromplein, faz tudo. Assim como o outro gesseiro... E a curiosidade é que não me deixam, porque tem um amor à dona Clara, por isso que eu te falei que o hotel é uma família. Têm um amor à dona Clara, então eu brinco muito com meus funcionários, eu digo: “olha gente, se eu me candidatar a vereadora, eu ganho assim, disparado.” Porque “dona Clarinha assim é a mãe de todos nós”, é como eles me chamam. É literalmente uma família. Mas eu ouço a história de cada um, paro para ouvir a história de cada um. Como são nordestinos, tem muita... Afagam em mim, recebem muito afago de mim. Se brigaram com a mulher, se estão se separando da mulher − que não separa − as coisas passam, as coisas se ajeitam. Correm tudo para mim, sou uma verdadeira mãe a bordo.
P/1- Tem um empregado mais antigo?
R- Tem.
P/1- Quem é?
R- O Parrocas, 40 anos de casa.
P/2- 40 anos?
R- Eu tenho empregado assim... É. Mas ele hoje está tão velhinho, puxa a perna, está aposentado. Não pode mais carregar uma mala − que ele era mensageiro. Mas fica lá para dar um bom dia, porque é muito importante o atendimento. O cartão de visita de um hotel é a recepção.
P/2- Quais são os cargos que tem, as funções? Só para a gente ter uma ideia.
R- O organograma do hotel é o seguinte: diretoria, vem Maria Clara; depois vem gerente geral, Fabiana Espanhol. Isso é uma história bonita, porque essa menina tem 33 anos. É uma águia, um doce de pessoa também, e o destino dela cruzou com o meu. Eu estava na Suíça com Eduardo e ela trabalhava na recepção do melhor hotel de Genebra, chamado La Reserve. E ela namorava um carioca que fazia hotelaria com ela. Fez hotelaria com ela no Porto, terminou gerente de alimentos e bebidas, o marido dela. Mas só que ela voltou, os pais dela eram diplomatas da ONU e estavam em Genebra. Ela formou-se no Porto, veio para o Rio e foi para a Suíça. Ela queria encontrar com o namorado que era paixão da vida dela. Sabendo que eu era hoteleira, com Eduardo, ela pediu para fazer um estágio. Veio para cá e fez o estágio conosco, foi excelente. Eu disse... Eduardo estava acostumado à diferença de 60 para cá, os empregados quanto mais velhos, mais status davam. Então o gerente ficava bem se fosse mais velho, cabeça grisalha, paletó e gravata. Imagina uma gerente de 33 anos. Mas esse gerente − isso eu mudei muito a concepção do Hotel Glória −, esse gerente, ele não saía da recepção, só ficava: “Como vai, seu Garcia? Como vai, não sei o quê.” Em geral era português, e era só madame para cá, madame para lá e não passava disso, entendeu? Um gerente, a meu ver, tem que ter dez pernas, ele está em todo lugar ao mesmo tempo, o gerente geral. Porque tem vários gerentes, gerentes executivos comandados por ela. E ela tem essa garra, tem essa vitalidade, tem muita astúcia, é muito viva. E eu disse: “Essa menina eu fazer ela gerente geral, Eduardo.” E Eduardo: “Você está maluca, porque você gosta de gente jovem.” Eu disse: “Eduardo, ela tem garra para isso.” Assim foi minha governanta geral, que era a minha melhor arrumadeira. E todo... Porque a governanta geral tem que ser líder. Ela não precisa ser estúpida para poder ser obedecida. Você pode falar muito baixo, ser muito carinhosa e todo mundo lhe temer. Doutor Brandi era uma pessoa assim. Com a minha vivência com a vida eu aprendi. Nem sempre, necessariamente... Aliás, pelo contrário, quanto mais você eleva sua voz, quanto mais grosseiro você é, mais você perde a razão, menos você é respeitado. Então se você fala calma, se você procura ouvir mais que falar e depois baixinho você só: “não é bem assim, acho que o correto é assim, assim. Vamos trabalhar desta maneira?” Vera era um perfil desses, botei Vera como governanta geral. Hoje eu tenho uma equipe, depois que Eduardo faleceu em 98... Não, eu já fiz essa equipe com Eduardo. Eu posso viajar sossegada, e logicamente eu viajo, mas sempre ligada com o Hotel Glória, porque nada, nada... Não é mais como antigamente. O dono saía, tinha que deixar alguém no lugar assim, ai meus Deus, se algum parente... Não. O staff é muito bem treinado por mim. Eu dou esse treinamento. Hoje em dia, quando você liga para o Hotel Glória, vai ouvir: “Hotel Glória, Cristina, boa tarde!” É muito importante. Nós temos um sistema de telefonia que também é muito moderno, como eu te falei, que tem um visor. Se você se hospeda em qualquer apartamento, ela vai dizer, vai aparecer lá o seu nome, Paula. Por isso que a telefonista atende e fala assim; “Boa tarde Paula! Cristina falando, posso te ajudar?” O seu nome está lá. Mas isso, para quem não sabe, que está lá em cima, dá que esse hotel é personalizado. Mas era impossível ela guardar seiscentos e vinte e tantos nomes.
P/1- O que faz ser uma boa governanta de hotel?
R- Olha, sobretudo ter essa capacidade de liderança, que eu acho isso importantíssimo. Segundo, ser extremamente organizada. Eu poderia ser, porque se eu era péssima em matemática... Sabe por que eu passava de ano? Porque naquela minha época que eu estudava, tinha uma matéria que chamava-se “ordem”. Então as meninas, minhas amigas eram muito bagunceiras. E aí eu aproveitava e faturava um dinheirinho, porque eu pedia um dinheiro assim: “eu arrumo o armário para você, mas você tem que me pagar.” Um centavo que fosse, eu fazia a cama delas, que elas tinham horror a fazer cama como ninguém. Por isso que eu pude ensinar bem a Vera. Eu fazia isso, passava, porque eu estava sempre no quadro de honra em ordem, e em inglês, francês e latim, que eram coisas que eu gostava. Matemática, filosofia eu gostava também. Geografia eu costumo dizer assim: “passei lá foi de noite. Não me lembro muito bem” (riso). O pessoal começa a rir, porque eu viajo, viajo, viajo e minha filha diz: “mamãe, você não sabe onde é que fica.” "Está, minha filha, espera aí. Passei lá foi de noite. Não me lembro muito bem.” Então é, eu acho que basicamente é ser ordeira.
P/1- Como é que é o trato com o cliente? O que tem que ser? Qual a boa relação entre uma atendente de hotel, por exemplo, com esse cliente? Entrar no quarto, bater...
R- Pois é, a governanta, em geral, tem uma supervisora, tenho três supervisoras, uma para o prédio anexo e duas para o prédio principal, que é grande. Então essas supervisoras ensinadas por ela, porque isso é uma hierarquia. A arrumadeira vai lá, arruma a sua cama. O rapaz limpa o banheiro, que bota as toalhas, faz tudo direitinho. Então a supervisora vai lá ver se você arrumou mesmo, se o arrumador arrumou bem. Depois da supervisora passa a governanta geral. Mas quando ela passar, se a cadeira, em vez de estar assim, estiver assim. Isso tudo sou eu que quando entrego o quarto. Eu moro naquele quarto, eu tomo banho naquele chuveiro, fiz o quarto todo com meus _________, arrumei tudo. Botei a colcha linda. Eu faço todo quarto do hotel Glória, nenhum é igual ao outro. São 600 apartamentos, todos diferentes um do outro. Então, se você... Por isso que os políticos adoram, as pessoas que moram lá adoram. Porque o quarto não é standard. Não tem, não é nada igual. Tanto que me dá um trabalho imenso, porque nem sempre, quando a cortina estraga eu não posso pegar a do quarto e botar no outro, cada quarto é diferente. Então a supervisora fiscaliza isso, a Vera. Eu sou quem digo, como eu te disse, eu moro no quarto. Para tomar banho, para saber se o chuveiro está bom, se está faltando alguma coisa, ver se o quarto funciona. Sempre eu faço isso. Agora que eu estreio, então eu digo que eu viajo muito, moro no Hotel Glória, mas estou sempre morando. Fiz um quarto novo, estou sempre mudando de quarto. Durmo aquela noite naquele quarto, depois volto para minha casa. Eu sei o que falta, o que não falta, só dessa maneira eu posso saber, vivenciando o quarto.
P/1- O que não pode faltar no quarto do Hotel Glória?
R- Em primeiro lugar limpeza. Lençol rasgado, fronha com furo. Agora, o que pode, o que é bom ter: o requinte. O nosso, que a gente... Chama-se pedido vip. Umas flores, mesmo que você não seja um vip, mas nós não temos sempre vip dentro do hotel. Não sobram as flores? A pessoa bota sempre as flores, bota petit-four no quarto, que é isso que você me ofereceu aqui. Chocolate, que é caseiro, feito no hotel também, na nossa padaria, que é maravilhosa, o padeiro. Bota-se chocolate nesse cristal bacará que eu compro nos antiquários. Aí o hóspede vai embora às vezes de noite, passa dois dias. A flor não ficou bonitinha? O hóspede que está no quarto ao lado é uma pessoa da Petrobrás, uma pessoa... Um funcionário, não é nenhum vip, não é nenhum ministro de estado, não é nenhuma pessoa assim, que está pagando uma suíte, ou enfim, convidado. Eu ensino até no próprio jardim, que é muito grande. A governanta geral que faz ela ser boa, ela pegar... Cai um jasmim manga que tem lá, tantos.
P/1- Ai, que lindo!
R- Pegar, na pista de cooper do hotel, bota em um jarrinho, uma florzinha ou outra que vai gostar disso. É atenção.
P/1- Como é que é a suíte presidencial do Hotel Glória?
R- A suíte presidencial do Hotel Glória é toda feita em gamacho de seda pura francesa, eu fiz toda ela. O quarto tem assim, uma sala e o quarto. Mas esta sala seria os aposentos íntimos do presidente. Depois tem a sala onde ele despacha, que é toda em estilo francês. É muito luxuosa, com lustres de bacará, com peças de dinastia Ming e Tang chinesas, tapetes persas em três opções também, tapetes franceses. É uma decoração bastante de época, diria, Luís XVI, Luís XV. Francesa de muito requinte e muito conforto. Mas banheiros novos, banheiros, instalações novas, modernos.
P/1- Sem ser o presidente da república, quem mais se hospeda em uma suíte presidencial?
R- Um Pavarotti, um Plácido Domingo, um José Carreras, um grande nome, uma Alicia Alonso. Um grande nome internacional da arte, seja no campo do balé, um pianista, um violoncelista. Desde que seja uma pessoa mundialmente famosa, certamente será na presidencial.
P/1- O Hotel Glória recebe bandas de rock?
R- Recebe. Agora mesmo esteve o Rouge lá. Agora mesmo esteve lá na academia do hotel. Porque o Hotel Glória não tinha academia, foi feita há pouco tempo.
P/1- Então conta um pouco para a gente. Quais são as inovações e por que você trouxe essas inovações para o hotel?
R- Porque senão seria criado cabelos brancos. Hoje em dia um hotel de cinco estrelas, se ele não tiver o que os outros têm, ou se ele não oferecer muito mais... Hoje, com essa... Hoje há uma... O mundo mudou. Nós, seres humanos, mudamos. Antigamente você nunca... Eu nunca na minha vida usei filtro solar. Eu usava era Coca-Cola, óleo de beterraba com cenoura e óleo de urucum para ficar bem moreninha na praia. Hoje vem com essa coisa: “olha o filtro solar, olha a mancha.” Por isso que estou meio manchadinha aqui. “Olha a mancha, olha não sei o quê, olha o colesterol, e olha isso.” Então hoje há uma coisa que está dominando o mundo que se chama: saúde, saúde, saúde. A gente não tinha noção disso, achava que era saudável. Também as pessoas estão vivendo muito mais tempo do que vivia antigamente. Colesterol alto não pode, porque tem que emagrecer, porque tem. Tudo hoje funciona em torno de wellness, bem estar. Fitnes, SPA; as comidas são light, diet, são... É o vocabulário atual. Então você tem que ter na cozinha pratos light para você não ficar ultrapassado. Isso é que é algo mais que o hotel te dá. Aí tem uma seção toda no restaurante diet.
P/1- Quando é que você introduz isso no Hotel Glória? Consegue me datar isso aí?
R- No buffet, ah, agora. Isso fui eu mesma que fiz, questão de dois anos para cá.
P/1- Dois anos?
R- É, porque começou muito essa onda. E eu viajo muito também, e sou muito observadora.
P/1-Você está antenada.
R- Eu também faço isso, também procuro muito me cuidar. Eu vou direto à seção light. Então assim, como eu gosto, boto para os outros. Eu procuro fazer, porque acho que uma boa hoteleira... Primeiro, aquele que mora no hotel, ele tem muito mais vivência. Porque eu moro no hotel há 40 anos, eu vivencio o hotel. Histórias maravilhosas há 40 anos. Gente, quer dizer, é muita coisa. Eu participo da vida do hóspede, então eu quero para ele o que eu quero para mim. Por isso que as cartas de sugestões, ah, eu adoro, adoro estas cartas.
P/1- Como é que é? O que as pessoas deixam registrado como sugestão para o hotel, Clara?
R- Que o hotel é maravilhoso. Eu posso te mandar algumas cartas de sugestão. Que o hotel é maravilhoso, que este hotel não existe igual, que a gente é tratado divinamente bem. Porque cada quarto é diferente do outro, porque aqui eu me sinto em casa, não sinto nem saudade da minha família. Tem umas coisas muito engraçadas.
P/1- Mas teve críticas, já? De alguém comentar, falar: “Poxa, eu senti falta das flores...” ou senti...
R- Não. Ultimamente nunca tivemos críticas fortes não.
P/2- Algum pedido, assim?
P/1- Algum pedido?
R- Pode ser que a gente... Os homens do restaurante tem tido elogios. Mas as críticas que eu tenho lido é coisa assim: “Por que não tem uma mesa de sinuca?” É que me falta espaço para ter essa mesa de sinuca, porque tudo é centro de convenções. Ou é: “Eu queria mais opções.” Já o minibar tem muitas opções, mas a pessoa de repente quer uma bala de café dentro do minibar. Quer dizer, coisas assim que são meio que irrisórias, você não... Essas cartas são todas respondidas: “Eu vou pensar no seu assunto, mas não tem tanta demanda assim.” Porque o hóspede se sente... “Eu mandei uma carta e me responderam”.
P/1- Isso já conta a beça.
R- Tem uma pessoa que só faz isso, é. Mas tem que responder de acordo com a carta, não é uma carta formalizada, para responder.
P/2- E pedidos assim, de artistas que querem... Tem casos assim, né, que eles vêm e fazem cada pedido para... Frutas e...
R- Tem umas exóticas, assim. Tem aquele Rickson Gracie, aquele lutador, ele pediu não sei quantos, uma caixa de mamão. O café dele era assim, 20 mamões com requeijão. Então umas coisas meio engraçadas assim, de gosto mesmo deles.
P/1- E outra coisa assim, a gente falou de comida. O que se mantém do cardápio do Hotel Glória, de 1922 até hoje? Existe um item que se mantém? Um prato?
R- Profiterole de chocolate, que é para sobremesa. Esse ficou no mundo inteiro até hoje. Tem um suflê pernambucano, que de pernambucano... Tem coco, mas não tem nada. É uma coisa deliciosa, que é da época do seu Vitório, um cozinheiro italiano, que veio da Itália.
P/1- O que é o suflê?
R- É um suflê de coco e de chocolate quente.
P/1- Ah, doce?
R- É. Com coco por cima, com uma calda de chocolate. É uma delícia. Não sei por que, antes de eu chegar no hotel chamava-se suflê pernambucano. Estava fadado, o hotel, a ter uma pernambucana.
P/1- Isso se mantém?
R- Se mantém no cardápio e ______ com laranja, pato com laranja, também.
P/1- O cardápio é em que língua?
R- O cardápio é em português e francês, né? Em geral, menu ou menu, tal, menu em português, menu em francês. Um restaurante fino que se preze vai ter sempre em francês e a tradução em português, então o nosso a gente mantém assim, tradicionalmente todos os bons restaurantes fazem.
P/1- E assim, um recepcionista do Hotel Glória. A primeira pessoa que o cliente tem contato, quem é? Qual é a formação deste teu empregado?
R- Aí é que a gente faz o treinamento. É muito importante. O principal de um hotel é a recepção. A pessoa chega cansada ou estressada porque a viagem não foi boa ou porque ficou muitas horas no aeroporto e a viagem foi longa, chega. Quando você chega ao hotel, você já chega louco para deitar, para chegar no seu quarto. Então o sorriso... Por isso que eu tenho lá no hotel em todas as paredes lá, “sorria! Você está em cena”.
P/1- Ah, que graça!
R- Isso fui eu quem coloquei, é. O sorriso é principal. Você chega na recepção e a pessoa: “Como vai? O senhor está descansado?” E tem aqueles que estão pagando o preço normal. “Mas olha, você me dá um up grade, me faz um up grade?” E o recepcionista tem que saber que em certos casos ele tem que fazer realmente up grade, porque aquilo tem um retorno, há um retorno até na mídia. Você chega, uma pessoa que está sempre lá, que é hospede sempre, que pode trazer outras pessoas. É, e também saber quem é quem, né?
P2- É o feeling, né?
R- Um jornalista. A pessoa... Saber quem é quem. Você trata, você liga e a pessoa tem que saber como a dona Cleuza te tratou. Aí disse: “Olha, eu queria falar com a senhora.” Você tem que tratar bem, ouvir a história. Agora, também tem o seu... Tem pessoas incríveis... Grossas, tipo assim. Você tem que ouvir e nunca responder, aí falo: “olha gente, você... O cliente aqui é nossa mercadoria”.
P/1- Ah, que graça!
R- “Então você não pode, absolutamente... Tem que contar 20, assim, para baixo. Conta 20, volta e pede desculpa. Eu não estou conseguindo resolver o problema da senhora, mas eu vou tentar. “Mas dona Clara, de vez em quando a gente quer explodir”. Mas você não pode explodir, você tem que deixar a pessoa explodir, mas você não pode explodir, porque senão você vai estragar a mercadoria e vai acabar com o hotel. É como se o hotel fosse um mercado que vendeu uma fruta podre. Não dá, é a mercadoria que você está recebendo e tem que ser tratado como se ela fosse de primeira, embora ela não seja. Porque às vezes a pessoa é grossa mesmo.
P/2- Quanto tempo dura um treinamento de um funcionário, quando entra? Um camareiro, um...
R- Todo dia. Porque não adianta você dar um treinamento de três em três meses. O pessoal vai embora, outro esquece. Aí você... Tem que ser todo dia, todo dia. Por isso você tem que estar em cena. Eu passo, aí a pessoa às vezes se esqueceu de me dar bom dia. Eu volto − e ela morre de medo − aí eu volto, disse: “bom dia! Como é que você está?” “Ai dona Clara, desculpe, bom dia!” “Ó, mas não é comigo não, é com todo mundo.” Essa brincadeira assim que a gente faz, todo dia tem que ser assim.
P/1- Tem rotatividade de empregados?
R- Não. Até que lá a gente tem uma rotatividade mínima. Ao contrário, empregados até mais antigos. A Fabiana, como eu estou te dizendo, que eu trouxe da Suíça para cá: ela veio para cá, adorou o estágio, ficou como gerente geral. Casou com o marido dela na minha casa. Eu fiz o casamento. Por isso que o Hotel Glória é uma família. Ele ficou gerente de alimentos e bebidas e ela gerente geral. Fiz, e construí a casa dela no mesmo andar que o meu, no Hotel Glória, só que olhando para o Outeiro da Glória.
P/2- Para o outro lado.
R- Então eu ainda tenho uma vizinha ótima. Trabalhamos juntas. Adoro ela, ela me adora, porque não tem essa relação empregado e patrão. Nós temos uma relação. Uma pessoa muito educada, e será a minha amiga até debaixo d’água. Até quando eu morrer, no outro mundo ela vai ser minha amiga.
P/1- Mas como é que é então, na tua vida... A tua vida se mistura totalmente com o Hotel Glória, né? Quer dizer, como é que é isso? Você...
R- Eu não saberia viver sem o hotel. Outros me telefonaram. Várias pessoas telefonaram que o hotel estava à venda, que se vendia o hotel. Mas eu já não aguentava mais dizer que não. Isso não procedia, que o hotel não estava à venda. Você sabe que deixaram de ligar quando eu dei essa resposta: “mas por que a senhora não vende? Tem que ter um preço, não é possível que isso não seja invendável.” Eu disse: “olha, o que eu posso lhe dizer o seguinte: qual é o preço que o senhor vai dar para eu lhe vender o sentido da minha vida?” Nunca mais. Acabou.
P/2- Também...
P/1- Clara, então assim...
R- Não vou vender o sentido da minha vida, não tem preço. Vou deixar de viver?
P/1- Assim, é um assunto delicado, né? Mas a gente sabe que no final da década de 90, você ficou viúva do proprietário do Hotel Glória. Quer dizer, isso foi um marco...
R- 98, é.
P/1-1988. Quer dizer...
R- Quase no finzinho.
P/1- O que mudou do ponto de vista profissional, assim, na sua vida? Porque você assume completamente, porque até então o Eduardo Tapajós era...
R- Não. Era, era, primeiro era único. Era presidente, eu estava nos bastidores. Porque o doutor Brandi morre em 82, e como ele dizia: “só você pode assumir o meu lugar.” Realmente assumi. Fiquei eu, porque ele era engenheiro, aí fiquei eu sem ser engenheira, sem ser arquiteta a botar um tijolo aqui, um tijolo ali, ________.
P/1- Quer dizer, cruzava as funções. O senhor Brandi, o Eduardo Tapajós e a Clara, você não...
R- Não. Ele era uma coisa, Eduardo era outra. Eduardo financeiramente. Ele construía. Eu que ocupei o lugar dele, porque aí eu passei a fazer as reformas. Ele era mais conservador, mais italiano, por isso os móveis eram mais escuros. Quando eu entrei... Só que você aprende muito a trabalhar com ele. Então, quando eu entrei no lugar dele, até assumi o escritório, que ele sempre me pedia isso. Passei a reformar, sabendo o que era bom gosto, sabendo tudo que ele tinha, mas com tons mais claros, mais femininos. Aí você vê muito a mão de uma mulher no Hotel Glória. E quando o Eduardo faleceu, o que ocorreu de mudança na minha vida é que eu entrei em uma área a qual eu desconhecia completamente. Eu, uma semana depois, disse: “eu não acredito, meu Deus do Céu!” Quem me ajudou muito foi meu pai. Porque como o doutor Brandi morreu, ficou o sobrinho dele, que é meu sócio. Estou lá pensando que ele ia me convidar para ser diretora do Hotel Glória: “Clara, você vai entrar no lugar de Eduardo, você é diretora.” Porque eu sou acionista grande do Hotel Glória, tenho 46%. Só somos nós dois, e ele não vem ao Rio, passou 20 anos sem vir ao Rio.
P/1- O sobrinho do Brandi?
R- É, o que morreu. Ele passou 20 anos sem vir. Só somos nós dois. Ele tem a minha idade, vive viajando. Vendeu a Cometa, vive viajando, tal e coisa. Vendeu para a Mil e Um. Ele vinha agora, vinha quinta-feira para falar comigo. “Não, não precisa mais não Clara, o Hotel está maravilhoso.” Entrega na minha mão, acabou.
P/2- Ou seja, só você.
R- Então ele me convidou para ser a diretora. Eu disse: “você está maluco!” Eu estava com uma semana de viúva. 32 anos casada, super feliz e tal. Duas condições que eu engoli muita água, quase morri. Não é que eu não sei onde eu estava com a cabeça, que eu disse que aceitava? “Aceito sim.”
P/1- Mas o que te moveu a isso?
R- Sei lá, eu estava em estado de choque, estava até com meu irmão. Foi depois da missa de sétimo dia. Meu irmão olhou para mim assim e disse: “Enlouqueceu. Mas você sabe o que é que você aceitou, Clara?” Eu disse: “não.” “Você aceitou a presidência, a diretoria do Hotel Glória.” Disse: “foi mesmo? E aí?” E disse: “não, eu te ajudo. A gente vai conversando, vai conversando, vai conversando.” Eu peguei essa parte toda de contabilidade, essa parte financeira. Vou te dizer uma coisa, sou um gato para aprender, de sete léguas. Hoje eu passo um ______ em quem me ensinou. Ele mandou umas pessoas da empresa de papai. Papai é um grande industrial, né? E ele disse: “A senhora saiu de encomenda.” Hoje eu entendo leis trabalhistas, eu entendo... Acho que eu saí de encomenda mesmo. Entendo mais do que qualquer outra pessoa. Fiquei com tudo, a parte da decoração, a parte toda financeira do hotel. Porque isso vai por si só. O que é a parte financeira do hotel? Eu só não tenho tempo de fazer o que Eduardo fazia. Ia muito à Brasília em contato com políticos, em contato... Era presidente da federação. Ele não era só do hotel, era da ABH e da federação de hotéis.
P/1- O quê que é ABH?
R- ABH é o órgão que comanda todos os hotéis do Rio de Janeiro. Órgão de hotéis e restaurantes, tudo que é alimentos e bebidas.
P/1- Isso é...
R- Restaurantes...
P/1- Uma associação dos sindicatos?
R- É. Sindicato de bebidas e similares, bares e similares.
P/1- Que é o sindicato a que você está ligada. É a associação que o hotel...
R- Todos os hotéis estão ligados, só que eu não tenho tempo para me dedicar a essa entidade. Eu fiquei... O Eduardo tinha. Eduardo fazia o hotel, tinha o staff dele, mas fazia tudo isso. Ele era o presidente de várias outras entidades, eu não. Eu disse: “Bom! Vou ficar só com o que é meu e acabou. Trabalhando.” E é um prazer para mim. Eu continuo reformando os quartos. Quer dizer, como eu te disse, nunca para. Você chega aqui, uma pinturinha, está ali. Isso já ficou mais, sei lá, escurinha. Está na hora de retrocar isso, fazer uma cor mais clara, deixar o sol entrar aqui, iluminar e tal, não sei o quê. Cada hora eu estou fazendo uma coisa assim. Estou fazendo, e aí nunca fica uma obra grande, porque um hotel de 600 apartamentos, se você para um tempo, daqui a pouco tem que reformar o hotel inteiro. Aí não há caixa que aguente. O Hotel Glória não tem uma dívida, nunca teve uma dívida, é o único hotel que tem dinheiro em caixa, e faz tudo com seus próprios pés. Não dá o passo maior que a perna. Isso eu aprendi não só com a minha família, como aprendi com Eduardo, como aprendi com doutor Brandi. Então, como o hotel está indo tão bem, você... O meu sócio está em São Paulo. Veio aqui uma vez para me dar um beijo, para votar, me dar um abraço. Foi embora, não aparece.
P/1- Sim...
R- Ele sabe, por isso a dona Cleuza vai trazer. Ela é a alma do Glória. Por quê? Sai em todas as revistas. O nome do Hotel Glória é ligado a Tapajós, sobretudo à Maria Clara.
P/1- É porque o Hotel Glória tinha um pouco a imagem do Eduardo Tapajós. Era uma imagem construída, ligada ao Hotel Glória, quer dizer...
R- Totalmente. O Hotel Glória é Eduardo Tapajós. E passa-se muito a ser Tapajós. É direto Tapajós. Todo mundo sabe, Maria Clara é quem faz, por isso é que tem muita mão de mulher lá, sabe?
P/1- Você tem uma prática... Por exemplo, tem certas pessoas que vão se hospedar, por exemplo... Você vai ao encontro? Você vai receber, por exemplo?
R- Ah, sim.
P/1- Por exemplo, se você sabe...
R- Ah, tem umas histórias tão engraçadas. Eu fui receber o Fidel Castro, né? O Fidel Castro chegou meio invocado. E ele deve gostar muito da figura feminina, né? Menina ele...
P/1- A Clara é educada.
R- Ele recitava tanto poema lindo do Garcia Lorca, no pé do meu ouvido, assim. Sabe? Eu achei o máximo, muito engraçado. Ele subiu para jantar com... Da Venezuela, o Soares. Assim, chefes de estado certamente eu estou na porta e recebo. Fernando Henrique, o Lula, a Marisa, o Itamar. E como eu moro no décimo andar, ao lado da presidencial...
P/1- Fica fácil, né?
R- É engraçado, é. De vez em quando o próprio presidente vai lá e me pede uma coisa. Esqueceu de trazer uma coisa assim, me pede, vai lá.
P/1- Como é que é, por exemplo?
R- O barbeador. Esqueceu de trazer o barbeador, ai diz: “Clara, tem um?” “Tenho.” Uma pasta de dente: “tenho”. E isso, a parte que a gente acaba se tornando amigo, então passam sempre lá. Toca a campainha direto, sem segurança, sem nada, para me cumprimentar. Se eu estou em casa, se eu não estou em casa.
P/1- Agora, em termos de negócios, o hotel... Existiu um momento de pique maior? Ainda se hospeda muito? Que tipo de perfil é o seu cliente?
R- No passado as férias eram o momento. Dezembro e janeiro, quando o hotel tinha mil hóspedes estava ruim, porque ele tinha que ter 1200 hóspedes.
P/1- Mas data um pouco isso. Que década?
R- Dezembro, janeiro. Ah, isso na década de 65 até 80. Dez anos depois...
P/2- Carnaval?
R- Carnaval. Mas eu estou dizendo férias, mês de janeiro e fevereiro, 1200 hóspedes, sempre. A piscina não dava vencimento, por isso que nós construímos outra piscina. Hoje o hotel tem outra piscina aquecida. Ficou aquela grande sem ser aquecida e fizemos outra aquecida, porque não dava vencimento.
P/1- Mas era um perfil o que, eram hóspedes brasileiros ou eram estrangeiros?
R- Eram hóspedes brasileiros, hóspedes estrangeiros que vinham passar férias no Rio. Muito de São Paulo também, e estrangeiros. Isso mudou, isso mudou com o quê? Eu não diria nem com a violência do Rio de Janeiro, isso mudou com os resorts do nordeste.
P/1- Ah!
R- O Nordeste até então era desconhecido, você ia para as capitais. Mas você não ia para Muro Alto, não ia para Porto de Galinhas, que isso não existia. Não existia Noronha, não existia Canoa Quebrada, não existia Jeriquaquara. Enfim, não existia Ilha de Comandatuba, nem Transamérica, muito menos Porto Seguro, nem Arraial D’ajuda. Hoje você tem um complexo imenso, como o complexo de Sauípe. Você tem a contar nos dedos milhões de resorts, milhões de lugares no Nordeste com infraestrutura legal para você ir. E as pessoas que não conheciam o Nordeste, eu como sou nordestina, é lindíssimo. É muito mais. Primeiro: é certo o clima. Quando você vai para lá, você sabe que não chove. Aqui você vem pode ser um janeiro que tenha chuva, pode ser que não tenha chuva. Depois é que eu venho com a violência. Eu acho que o principal dos turistas terem saído do Rio de Janeiro − eu estou falando também de estrangeiros − foi os voos charter da Varig direto Alemanha/ Paraíba, Alemanha/Fortaleza. E esse pessoal que sai de lá no frio, ele vem em busca, literalmente, não é de lugar bonito não, vem em busca de sol.
P/2- De praia.
R- De praia, passar o dia se torrando. Nada melhor do que o Nordeste. Eu acho que aí começou a mudança.
P/1- Você sentiu isso no seu negócio?
R- Senti. Porque os meses de dezembro e janeiro foram os mais fracos. Porque eu não tenho conferência, não tenho congresso, ninguém vai fazer congresso no mês de férias, então ou eu faço uma promoção de que criança até dez anos não paga, ou eu faço um pacote especial para as férias de janeiro, aí eu tenho que baixar muito o preço. Era contrário no passado, você elevava o preço.
P/1- Ah, que interessante!
R- E para poder receber essas pessoas e você sobreviver... Graças a Deus o hotel vem uma ocupação de 80 a 70 por cento, o que um hotel de 623 apartamentos é ideal. Agora que tem certos finais semana que chegou a cair para 46. Mas eu, com 46 de ocupação, tenho o Copacabana lotado. Eu tenho 623 apartamentos, se eu tiver 40% de ocupação, eu tenho o Meridien lotado.
P/1- E qual é o mês hoje, em um ano como o nosso, que enche mais?
R- O nosso é o segundo semestre. É trabalho, executivo e é congresso. Ou seja, de julho aí vai até novembro. Congresso para mil pessoas, 1500 pessoas. O hotel vem bastante cheio, e o movimento, assim como Vale do Rio Doce, como BNDES, como Petrobras, pessoas que hospedam lá. Executivos, pessoas que trabalham nessas entidades.
P/1- E o mês de mais baixa?
R- O mês de mais baixa hoje em dia é o mês de Natal, dezembro. O primeiro semestre não foi ruim não. É porque nós estávamos com muitos gastos, porque eu não parei de investir. Porque é no momento de crise que eu acho que você cresce. Infelizmente uns quebram no momento de crise, outros é quando deslancha e aumentam seu patrimônio. Porque se ele tinha um capital estocado, se ele tinha um pouquinho de dinheiro de capital de giro, é naquele momento de crise que ele vai investir no negócio dele. Não estou dizendo gastar com ele, gastar no negócio dele. Então ele aproveita nesse momento de crise que tudo você vai conseguir mais barato. Mão-de-obra mais barata... Porque se está em crise todo mundo, o pintor vai te fazer um preço, o móvel vai fazer outro preço lá embaixo, senão não faço. Ele está sem serviço. Você tem um dinheirinho guardado lá no teu cofrezinho, aí você diz: “Olha, é agora que eu vou investir.” Porque você está remodelando o seu negócio, está investindo no seu negócio. Passa a crise, quem não teve esse dinheiro para fazer seu negócio ficar melhor, vai entrar competindo com o que fez. Em geral sempre... Infelizmente a lei é assim, o mais fraco é que sobe. Vai ficar, coitado... Saiu da crise devendo não sei quê, ficou com o negócio dele estagnado, vai deslanchar dali. E o outro que tinha o dinheiro estocado, aproveitou que era um momento de crise, digamos que vai estourar os outros. Fez por um preço muito mais barato e remodelou, mas porque tinha dinheiro em caixa.
P/1- Nesses seus últimos 40 anos de experiência de hotelaria, você pode citar hotéis antigos, que fecharam, no Rio? Você falou da cidade, mas, por exemplo, na zona sul?
R- O Palace, o Serrador.
P/1- O Serrador fechou.
R- O Serrador fechou. A Petrobras depois comprou, agora deixou, vai voltar a ser hotel de novo. O Serrador e tantos outros. O Othon ficou ruim, né, cadê Othon? Eram tantos hotéis...
P/1- A Barra tinha o Nacional, que fechou também.
R- O Nacional. O Nacional, eu conheci muito o José Tijuris, muito, muito, era um empreendedor − se vivo.
P/1- Hum, hum! Algum outro, assim? Por exemplo, na orla de Copacabana, na orla, de uma maneira geral, assim?
R- Na orla fecharam hotéis pequenos, não fechou nenhum hotel assim, de porte não.
P/1- Qual hotel pequeno? Você conseguiria citar algum, Clara?
R- Lá no final da praia de Copacabana. Não me lembro nem o nome dele, lá no posto seis.
P/1- Ah é.
R- Como era o nome daquele hotel pequeno, aquele... Fechou, era...
P/1- É perto ali da Rainha Elizabeth, né?
R- Exatamente, quase esquina.
P/1- Eu sei. É, fechou aquele hotel. Esqueci o nome também.
R- Hoje é um prédio de apartamento.
P/1- Hm, hm!
R- O Leme ficou meio mal também, mas está funcionando. Enfim, acho que a posição do Hotel atual no mercado é muito boa, excelente.
P/1- É boa?
R- Não quero comparar. Do hotel Glória é. Não quero dizer que seja a melhor, porque eu acho que é uma prepotência, sabe, então você não... Um pouco prepotente. Mas lá no fundo do meu coração, com muita certeza eu digo: “não, um hotel com a situação financeira nossa...”
P/2- Mas o perfil, então, de cliente, agora, é de negócios mais do que turistas e famílias?
R- É. Mas o hotel tem esse centro de convenções grande por estar muito próximo, privilegiadamente situado.
P/2- Próximo ao centro né.
R- Porque com aquela paisagem da Baia de Guanabara... Como se não fosse o bastante, ele está a dois minutos do Santos Dumont.
P/1- Se faz a diferença num hotel?
R- Ué, lógico que faz! Com o trânsito do Rio de Janeiro. Você vem de São Paulo, ponte aérea, você pega ali, está a dois minutos do Santos Dumont. O preço do táxi é muito inferior do que ir para o Galeão. Tem o Galeão e agora eu construí, há um mês, um heliponto, em cima, sem tirar a estrutura. Se o hotel fosse tombado eu não podia fazer isso.
P/1- O prédio não é tombado?
R- Não é tombado. Então eu fiz, lá nos fundos do Outeiro da Glória tem um heliponto que comporta você pousar com um helicóptero de dez mil toneladas, dez mil quilos para 8, 12 pessoas. Um Augusto, um Bell 460.
P/1- E é usado?
R- Foi usado. O Lula mesmo ficou encantado. Quando vier agora pode vir. E sabe por que nós fizemos isso? Isso foi o Eduardo que conseguiu na época no governo Sarney, até a licença para fazer o heliponto. Quando os políticos... O Hotel Glória é preferido pelos políticos, e quando os políticos se hospedam, eles passam um certo constrangimento das manifestações que ficam na porta do hotel, cartazes, não sei que, não sei quê lá. Aí um constrangimento de chegar ao carro e ir embora. Vem com aqueles batedores, vem com aquelas polícias. Mas aí, até parar, afastar o povo... Eu acho isso ruim para o povo e ruim para ele, porque mostra uma coisa assim, povo lá, político cá. Isso existe, mas é uma coisa que choca, né? Então se evita esse constrangimento não só para o político, como para o povo, como para o hotel. Essa balbúrdia que acontece nas portas dos hotéis que ficam os ministros de estado e políticos em geral, que sempre ficam no Glória, se a pessoa sai do Galeão, vem de helicóptero, pousa direto lá, já cai no décimo andar, já está na suíte presidencial.
P/1- Você tem um nome de uma pessoa que você diria que foi a pessoa que teve mais ou recepção ou manifestação do lado de fora do hotel? Ou para o bem, ou para o mal, ou contra, a favor.
R- Fica difícil. O Sarney teve muitas, tanto é que jogaram pedras no ônibus em que ele estava. O Sarney teve muitas, Itamar teve algumas. Fernando Henrique não teve, Fernando Henrique não tem. O Lula está começando agora.
P/1- E artistas, assim, de fama, ficar...
R- Ah, mais aí não jogam pedras nas manifestações. Aí é mais gritaria, desmaios. Tem muitas. A Gisele Bündchen está vindo aí fazer uma propaganda lá no Hotel Glória, vai todo mundo procurar.
P/1- Assim, já que a gente falou de pessoas, ainda de hóspedes, é famoso que o Einstein quando veio ao Brasil se hospedou...
R- Fez a teoria da luz no 400.
P/1- É verdade?
R- É verdade. Está lá a teoria na porta, a plaquinha, escrito por ele, assinado por ele. Eu trouxe, está no livro. Toda a teoria da luz e assinado por ele, com a data. Tem a placa no apartamento e eu fiz esse apartamento de suíte Tapajós em homenagem a Eduardo, depois de 98. Redecorei a suíte inteira, está lá na porta da... O próprio embaixador Corrêa da Costa fez um livro agora que teve os melhores prêmios na França e ele me pediu muito que eu botasse a plaquinha na porta do quarto dele, porque ele fez o livro na suíte, ele mora no Hotel Glória. No Hotel Glória morou o João Néder, Otávio Mangabeira, moraram várias pessoas. Esse francês que eu te disse, que era um engenheiro francês, velhinho, ele dormia com a corda amarrada no dedo. O João Néder morreu até lá no Hotel Glória. Tem essas coisas. Por exemplo, você vai bater, arrumadeira bateu, ele estava morto lá.
P/1- Quem é João Néder?
R- João Néder foi um médico muito importante. Mas mais do que isso, foi uma pessoa muito expoente na sociedade do Rio de Janeiro. Era muito de Juscelino, era da época de Juscelino.
P/1- Ainda se mora hoje, sem ser você?
R- Agora estão pedindo pessoas para voltar a morar, não sei se é por causa de violência, se pessoas mais velhas e têm certa posição financeira, “Maria Clara, será que você me mostra uma suíte para morar?” “Não, lógico, se você está pagando.” Sai muito mais caro do que você ter...
P/2- Do que um aluguel.
R- Mas para eles não, porque se você vai contar a casa, os empregados que pagam e as despesas de supermercado, sai mais em conta o hotel. E outra coisa, com as pessoas mais velhas eu tenho a impressão que elas se sentem muito sós. Ou vão para uma casa de asilo ou é mais fácil você ter uma enfermeira numa suíte de hotel. Sem aborrecimento com casa, com piscina, com fitness, com academia maravilhosa, com pilates. Até agora eu viajo muito, e agora está em moda massagem das pedras quentes; pois você acredita que tem uma cascatinha dentro do hotel? Eu tenho umas pedras lá que eu fiz uma cascatinha, meu jardim japonês que eu adoro. Eu fiz uma choupana na cascatinha que você vê o barulho das pedras, que é onde você faz massagem de pedra quente. Você vai ver que eu tenho um jardim de meditação lá. Tenho a pista de cooper, academia... Um espetáculo, toda pela tecnologia. Não. O hotel está muito adaptado para essa parte de saúde.
P/2- A Academia inaugurou quando?
R- Ah, já tem uns quatro anos.
P/1- Bom Clara, para a gente ir encerrando um pouco. Você tem filhos?
R- Eu tenho uma filha, tem 30 anos.
P/1- O nome dela?
R- Fabiana. Fabiana adora, tem paixão por cozinha. Então ela me dá muito palpite, é uma gourmet por excelência. Me dá muito palpite, me ajuda muito nessa parte da cozinha, me refaz os menus do hotel. Ela troca: “mamãe, encaixa esse prato, encaixa essa sobremesa, encaixa esse vinho.” Ela entende um pouco dessa parte enóloga. O que sai... Muito lida, uma menina muito culta. Então tudo disso que sai que ela ama, né? Porque é tanta coisa na minha cabeça que essa parte eu entrego muito para ela. Ela fica em contato com o gerente de alimentos e bebidas, ela já diz: “Carlos, substitui esse menu, vai isso aqui.” Ela adora cozinha. Até pratos que ela inventa ela bota. O hotel não _______ dela no prato.
P/2- Ela trabalha, então, lá no hotel, com você?
R- Ela... Não especialmente dentro do Hotel Glória, porque ela mora em São Conrado. Mas ela trabalha no seguinte, me assessorando nessa parte toda, que ela entende muito bem, dá um show nessa parte de culinária, que é importantíssima num hotel.
P/1- Mas você tem uma expectativa de continuidade? A Fabiana, para você, você tem uma expectativa de que ela vá continuar com o Glória?
R- Ah, certamente. Certamente, mas eu acho que ela vai deixar eu mais um pouquinho. Quando eu passar, pendurar a chuteira, ela entra. Porque a Fabiana é muito parecida com a mãe. Ela não gosta de ser comandada, gosta de comandar. Ela prefere trabalhar, me ajuda de longe, porque senão ela vai ter desavença comigo. Não, porque eu quero assim, ela quer assado. Porque ela vem com ideias muito novas. Você tem que... Não há ninguém que aceite mais as ideias novas do que eu, mas tem que ser tudo com parcimônia, não pode ser assim. E depois, ela não tem a experiência que eu tenho. Vivenciar, morar 40 anos no hotel é uma experiência. O hoteleiro, não adianta você fazer hotelaria. Isso a minha gerente sempre me disse. Você vai se formar, a grande hotelaria é o dia a dia, o rala rala de todo dia é a experiência que você tem do hotel, ainda mais um hotel como o Hotel Glória. Fabiana pode dirigir qualquer hotel, depois dirigiu o gerente geral do Hotel Glória. Qualquer hotel é café pequeno para ela.
P/1- Mas por exemplo, você gostaria que ela morasse no hotel com você e estivesse mais perto?
R- Não, eu estou falando da Fabiana Espanhol.
P/1- Ah, eu estou falando da Fabiana tua filha.
R- Da Fabiana filha? Eu gostaria, mas Fabiana adora o apartamento que eu dei para ela, em São Conrado. Ela se radicou muito por lá. Toda a vida dela é feita lá. Ela vem para o hotel, fica até muito longe. Ela vem, me faz esse menu .
P/1- Ela é casada?
R- Ela é casada, mas o marido dela até me ajuda muito no hotel. Ele trabalha com marketing, bota eventos no Hotel Glória, trabalha com marketing de eventos. Ele não só no Hotel Glória como em outros lugares também. Agora mesmo essa festa no Rio, dessa moda, ele está colocando. Então vários eventos importantes... Agora teve um do Félix Pacheco, grande, foi ele quem trouxe para o Hotel Glória, ele como outros agentes também. Nisso ela é muito boa, em eventos, também. Porque a Fabiana conhece o Rio de Janeiro inteiro e é muito bem relacionada, muito educada.
P/1- Ela é carioca?
R- É. Muito comunicativa, muito querida. É uma personagem da figura do Rio, muito querida. Não há ninguém que não adore Fabiana, então: “ô Fazinha, não sei quê.” E ela bota muita coisa no hotel também.
P/1- Clara, como é um dia seu, hoje?
R- Meu dia é assim, seis horas da manhã eu levanto, vou para a academia. Faço três horas de ginástica, porque eu faço hidroginástica também, tem no hotel. Faço duas horas lá, faço uma hora e meia de academia. Depois desço e faço hidroginástica às oito, de sete e meia às oito e meia, e faço meia hora de pilates, porque nós temos pilates no Hotel Glória, alongamento.
P/1- Você faz junto com os hóspedes?
R- Não. Não é só para hóspede não. Tem hóspedes também, mas é academia terceirizada, então ela recebe pessoas de fora também.
P/2- Ela é aberta?
R- Ela é aberta.
P/1- Ela é aberta.
R- É considerada a melhor academia do Rio. Muito legal, porque você tem todo desse espaço aberto dentro do verde. Eu faço com pessoas, as outras pessoas que... Hóspedes também. Petrobras faz muito lá. Aí eu pego esse horário que é bom para mim. Eu faço pilates, que é o primeiro... Acho que não tem pilates em nenhum hotel, e é o melhor do Rio. Realmente, é um espetáculo, o pilates. A sala é maravilhosa, e tudo isso dando para um jardim lindo. Às nove horas eu subo, tomo um banho e desço. E eu vou... De manhã e até às três horas da tarde, só vou para a diretoria às quatro horas. Aí é que eu despacho, assino cheque, faço tudo. Vejo na contabilidade o que eu tenho que fazer. Normalmente o trabalho meu, é... Você nem acha, porque nem ______ eu posso ter, é descendo as escadas do hotel vendo como é que está na limpeza. Tem a Vera, que faz isso, tem a supervisora. Depois da Vera ainda tem meu olho. Se tem um durex ali, eu vou, tiro. Um aranhãozinho cá, mando ver. Por isso que é tão bem cuidado, o hotel. Aí eu vou de quarto em quarto. Eu passo pelo restaurante, vou ali, vou acolá. Na piscina estou vendo se a toalha está manchada − são duas piscinas imensas −, se a cadeira está um pouquinho... A tira está soltando. Tudo isso eu vejo.
P/1- Você, como consumidora de hotel, do exterior, qual é a coisa, primeira coisa que você olha quando entra em outro hotel, que não o seu?
R- Mas aí fica difícil. Vejo da recepção, do quarto?
P/1- Não. Quando você entra no hotel, o que é a primeira coisa... Talvez a sua maior preocupação? O que você olha, o que chama mais a atenção ou você repara num outro hotel?
R- Bom, nisso aí eu quero ficar como igual no meu quarto. Quero ficar assim, num hotel super aconchegante, super charmoso. Se for um hotel velho, de portaria, assim, eu disse: “mas não vou ficar aqui não.” Pode até uma pessoa me tratar muito bem, mas eu olho a claridade... Pronto, Maria Clara olha a claridade do hotel.
P/1- Está no nome.
R- Ah, e o aconchego é a primeira coisa que eu olho. Pode ser um hotel muito luxuoso como pode ser um hotel simples, mas tem que ser aconchegante e charmoso.
P/1- Como o Hotel Glória.
R- E de preferência, é. De preferência eu gostaria que não fosse tão grande como o Glória, prefiro um hotel menor. Conviver num hotel tão grande... O hotel menor você é mais_____ , né? Você tem mais privacidade, tem mais... É menos gente para tratar. Aqueles hotéis pequenininhos, hotéis de 12, 16 quartos. Se eu pudesse me hospedava num hotel desse. É tão fácil.
P/1- Bom, então está. Então uma pergunta assim: o que você achou, então, de ter participado de um projeto de memória do comércio da cidade do Rio de Janeiro?
R- Ah, eu tenho que agradecer muito a você, porque eu sou uma gotinha nesse oceano. Vou contribuir para falar um pouco, porque essa nordestina que veio, cinco mil quilômetros de distância, ser entrevistada para falar de um hotel que eu já dizia: “esse hotel é tão bonito, eu tenho muita vontade de um dia conhecer esse hotel.” Eu estar falando desse hotel... Para mim, me vem lágrimas nos olhos. Porque imagina, nunca pensei isso, nunca pensei nem sequer entrar no hotel Glória, muito menos ser dona do Hotel Glória, morar lá. E muito menos, como dizia o doutor Brandi, trinta e tantos depois estar dando uma entrevista sobre o Hotel Glória. Me lembro as palavras dele. “Olha, menina, só você pode nos substituir”. Então eu fico bastante comovida e agradeço a Deus: muito, muito, muito obrigada, porque ele tem sido muito generoso comigo.
P/1- Está bom. Então eu agradeço a sua participação. Muito obrigada pelo bonito depoimento, Clara!
R- Eu que agradeço muito a vocês. Todos foram uns amores.
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