Eu jamais poderia contar a minha história sem lembrar de minha melhor amiga da infância toda: a minha avó. Claro que havia 70 anos de diferença entre nós, entretanto, desde o momento em que nos encontramos nesta vida, nos amamos incondicionalmente. Acho que poucas vezes podemos dizer isso sobre...Continuar leitura
Eu jamais poderia contar a minha história sem lembrar de minha melhor amiga da infância toda: a minha avó. Claro que havia 70 anos de diferença entre nós, entretanto, desde o momento em que nos encontramos nesta vida, nos amamos incondicionalmente. Acho que poucas vezes podemos dizer isso sobre nossas relações com as pessoas, mas essa era de verdade. Para começar, para ela eu tinha uma identidade secreta: eu era a “Mila”. E esse nome me preenchia de um outro significado, incompreensível aos olhos dos outros.
Para mim, ela era uma rocha, uma mulher forte, daquelas que trabalharam na roça, que lavaram roupa no rio, que colheram café. Aliás, o café era um momento mágico Não era de manhã, era às três da tarde, depois da nossa sesta. Nessa hora, a luz do sol entrava por uma frestinha pela porta da cozinha e formava um único raio que atravessava o vapor da água fervida e refletia formas na parede. Ela ia passando o café e eu, viajando naquelas formas e naquele silêncio que nos envolvia.
Mas vovó não era assim liberal, como se pode imaginar. Não. Ela era uma pessoa rígida, usava o cabelo sempre todo preso, vestidos e tamanquinhos de salto (acho que foi com ela que aprendi). Além disso, tinha todo aquele ritual das seis da tarde, “Hora de Maria”, porque vovó era muito católica. Ela ouvia a missa pelo rádio e tinha uma infinidade de santos e santas, cada um para uma causa.
Ela plantava, cozinhava, dava bronca. E sempre era a pessoa mais consistente do mundo, naquela simplicidade de quem não pôde aprender a escrever nem o próprio nome. No entanto, foi com ela que aprendi a costurar, a ver as horas passando, a sentir as estações se alternando, a perceber que atrás de uma só palavra há um oceano de ideias.
Bem, o tempo também passou, impiedoso como sempre, e eu cresci, tive que sair de casa e buscar outros mundos. E ela se transformou em criança novamente, como acontece com quem vive muito tempo. Virou estrela e partiu para buscar outros mundos. Mas, sapeca como ela só, às vezes vem me visitar, e eu a sinto na maneira como me visto, ajo, reajo, vejo o mundo e vou me desvendando a cada dia. (Depoimento de setembro de 2008)Recolher