A madeira-mamoré acabou. Nada é mais Madeira-Mamoré. Hoje, para falar o português claro, eu tneho até vergonha disso aqui. Eu pergunto: onde está a fábrica de gelo, as casas, os barracões?
Eu comecei a trabalhar aqui em 1934 e me aposentei em 69. Já fiz todo esse percurso da ferrovia....Continuar leitura
resumo
Dionísio Shockness é filho de imigrantes ingleses que se instalaram em Porto Velho em 1910 para a construção de uma das principais ferrovias do Brasil, a Madeira-Mamoré. Aprendeu funções da marcenaria com seu pai e posteriormente tornou-se maquinista da ferrovia construída por ele.
história
Dionísio Shockness
legenda: Homem de pé em frente a um trem. Está em um campo com uma linha ferroviária.
Dionísio Shockness
legenda: Homem dentro do trem sentado. Está apoiado em na janela do trem.
Dionísio Shockness
legenda: Homem dentro do trem sentado. Está apoiado em na janela do trem.
Dionísio Shockness
legenda: Homem de pé em frente a um trem. Está em um campo com uma linha ferroviária.
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- Ficha técnica
Depoimento Dionísio Shockness
Entrevistado por Gustavo Ribeiro Sanchez
Porto Velho, 22 de junho de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV_125
Transcrito por Andiara Pinheiro
Revisado por Fernanda P. Prado
P/1 – Para começar, a gente precisa te identificar. Eu gostaria que o senhor f...Continuar leitura
Depoimento Dionísio Shockness
Entrevistado por Gustavo Ribeiro Sanchez
Porto Velho, 22 de junho de 2010
Realização Museu da Pessoa
Entrevista MB_HV_125
Transcrito por Andiara Pinheiro
Revisado por Fernanda P. Prado
P/1 – Para começar, a gente precisa te identificar. Eu gostaria que o senhor falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Meu nome é Dionísio Shockness. Nasci em Porto Velho, quando Porto Velho era município do Estado do Amazonas, no dia 19 de maio de 1922.
P/1 – E o senhor vivia com quem aqui em Porto Velho, seu Dionísio?
R – Com meus pais.
P/1 – E os seus pais são daqui de Porto Velho também?
R – Não. Meus pais são da Ilha Britânica, da Ilha de Granada. Meu pai foi contratado pelos ingleses para a construção da ferrovia, que o meu pai era marceneiro especializado. Naquele tempo, eles não pegavam trabalhador, era homem de mão de obra especializada: chefe mecânico, marceneiro, topógrafo, engenheiro, era para eles especializado. Agora, esse pessoal ensinava os outros a trabalhar, ensinavam. Mas então, não pegava qualquer um não, trabalhador não.
P/1 – E qual era o nome do pai do senhor?
R – Charles Natanael Shockness.
P/1 – E ele era especializado, ele sabia...
R – Papai era marceneiro especializado. As casas da estrada de ferro, todas eram teladas, casa de parede dupla, forrada, tudo aí a casa da estrada.
P/1 – E o seu pai quis vir pra cá?
R – Quis não, meu pai foi contratado.
P/1 – Ele veio contratado?
R – Contratado dos ingleses. Papai chegou aqui em 1910, contratado pelos ingleses. Naquele tempo, eles contratavam engenheiro, topógrafo, torneiro mecânico, operário especializado, tudo isso eles convocavam. Não era qualquer um que eles pegavam não.
P/1 – E a mãe do senhor veio junto?
R – Veio.
P/1 – E aqui eles começaram a construir a vida deles.
R – Não, veio construída. Você acha que um operário especializado não tem uma vida contínua? Além disso, meu pai era respeitado, meu pai foi iniciado na loja maçônica na Inglaterra, não era assim, não era qualquer um não, para você ter uma vida digna. Então, papai veio para cá... Meu pai foi o único operário da Madeira-Mamoré que foi contemplado com honra ao mérito. Por quê? Quantos mil operários vieram pra cá? O meu pai foi contratado. Então, justamente isso, e a pessoa se valorizar, porque muitos que vieram se meteram na farra, bebedeira e tudo, então esses não eram destacados. Eram destacados aqueles que se mantinham na linha. Eu, pelo menos, fui maquinista aqui e nunca cheguei atrasado, daqui até Guajará-Mirim e eu era respeitado e de confiança ainda, não era assim não.
P/1 – O senhor nasceu e viveu aqui. O senhor se lembra da sua casa, a casa em que o senhor nasceu? A casa ficava aqui em Porto Velho? Ficava onde? Como era a sua casa?
R – Toda vida o meu pai fez a casa dele. Nós não morávamos em barracão, nem em casa de estrada, meu pai fez a casa dele lá do beque. Papai fez a casa de madeira forrada que era dos ingleses. Então ali era serraria, aqui eles planejavam madeira, aparelhava, fazia tudo aí. Comprava... Aqui eles vendiam tora, o camarada comprava, serrava de meia aí e fazia a sua casinha. Agora, tinham casas para os operários, casa de lavandaria, tinha barracão pro pessoal casado, tudo na estrada tinha, também pros solteiros. A casa três era de solteiro, a casa seis era de solteiro. Lá onde é a Marinha, era casa seis. Onde é o correio, era casa três. Onde tava aquele prédio era o Hotel Brasil, então justamente era assim.
P/1 – E o senhor tem irmãos?
R – Irmãos? Eu tinha 12.
P/1 – 12 irmãos.
R – É. Faleceu a maior parte. Agora tem somente cinco que estão vivos. Aliás, olha, o meu irmão, trabalhei com ele, ele era chefe da secção de solda, trabalhava com meu irmão. Ele era encarregado lá.
P/1 – E como é que era a casa de vocês na infância? Era muito cheia, vocês brincavam, que lembranças o senhor tem?
R – Não, cada um tinha o seu quarto. O meu pai fez quarto para mim, para mãe, dele, tudo fez quartos. E tinha sala, tinha tudo.
P/1 – E o senhor estudou? O senhor foi pra escola aqui em Porto...
R – Eu estudei aqui onde é a usina hoje aí. Eu estudei na escola no Dom Bosco, estudava na escola à noite e trabalhava de dia.
P/1 – E desde pequeno o senhor já trabalhava, então?
R – Comecei a trabalhar com idade de 12 anos. Entrei na estrada em 1934 e aposentei em 1969. Corri todo esse percurso aqui, oficina aqui em Guajará-Mirim, depósito, maquinista, tudo aí.
P/1 – E com 12 anos o senhor fazia o que aqui no Madeira, na estrada?
R – Aprendiz.
P/1 – Aprendiz.
R – Aprendiz de oficina.
P/1 – E você trabalhava com seu pai?
R – Logo no início, trabalhei com o meu pai, que o meu pai era chefe da garagem de Cegonha e eu trabalhava com ele. E hoje eu, vou falar o português claro, eu até tenho vergonha disso aqui. Eu pergunto: onde tá a fábrica de gelo? Onde tá o barracão? Onde tá a lavandaria? Onde estão essas casas? Aqui atrás tinha uma casa de madeira, com dois pisos e tudo. Onde tá? Onde tá a topografia? Onde tá a casa, que aqui era do guarda da Madeira-Mamoré, onde tá? Não tem nada rapaz. Isso é uma vergonha, isso aqui na Madeira-Mamoré.
P/1 – E seu Dionísio, então o senhor falou que era aprendiz nesse lugar aqui. Qual era o lugar que o senhor trabalhava antes?
R – Eu trabalhava na garagem de Cegonha.
P/1 – E o que o senhor fazia na garagem de Cegonha?
R – Pintava, ajudava. O aprendiz era pra fazer o pedido de material e tudo, pintava. Dependia da pessoa. E a pessoa ser honesta e cumprir o dever, era só isso.
P/1 – E quanto tempo você ficou como aprendiz?
R – Não, a gente vai passando. Conforme sua capacidade, conforme a sua inteligência que o senhor vai extrair, vai passar na prova, é de aprendiz, aí é, principalmente na classe, segundo, terceiro, primeira classe. Aí você já passa a operário. Não fica ali não. Eu trabalhei até 1941 aqui, como maquinista. Depois eu passei a ser chefe de depósito, aí esse era quem escalava os maquinistas, via se a máquina estava em condição de rodar, tirava prego da máquina, tudo isso aí era ele. Depois eu fui pra Guajará-Mirim, em 1955, como chefe da oficina de depósito lá. De Abunã pra cima, ficava tudo na minha responsabilidade, se caísse uma máquina, alguma coisa, se saía quebrada, litorina, máquina quebrada, eu recuperava tudo aí. Então eu já, por exemplo, uma máquina dessa aqui, pra você ser um maquinista, você tem que passar como foguista primeiro, ajudante de foguista e tal. Depois, você tem que saber, o maquinista tem que conhecer e saber recuperar o injetor, uma válvula de segurança, você tem que saber, porque depois que isso pegar fogo, botar lenha e fazer pressão, aí se falhar o injetor, adeus, só vai pra fumaça. Não tem como puxar água, não tem nada. Então, essas coisas, é por isso que a gente aprende...
P/1 – Senhor Dionísio, deixa eu te perguntar uma coisa: o senhor se lembra da primeira vez que entrou numa locomotiva?
R – 1941.
P/1 – Foi a primeira vez que o senhor conduziu?
R – Não, mas eu trabalhava de foguista, eu não passei a maquinista assim não. Você entra de foguista, vai aprender a queimar lenha, tudo isso. E saber, pra você ser maquinista, não vai pegar qualquer um não. Você tem que saber, conhecer e saber mudar uma peça e consertar, porque quando sai daqui de Porto Velho para Guajará-Mirim, é só você... A oficina é aqui. Mas se quebrar uma coisa, você tem que saber fazer, não é brincadeira não. Então tudo tem que aprender.
P/1 – Entendi. Então, você tinha que aprender de tudo. Depois que o senhor aprendeu tudo, você se lembra como é que foi a primeira vez? Como é que o senhor se sentiu a primeira vez que o senhor virou maquinista?
R – Foi em 1941, rapaz, que eu comecei a dirigir, 1941. Eu já tinha passado de foguista de terceira classe, foguista de segunda, foguista de primeira; praticante de máquina e depois maquinista. É um percurso que a gente faz.
P/1 – E o seu pai continuava trabalhando aqui?
R – Meu pai era chefe da área de Cegonha. Papai começou em 1910 e aposentou em 1954, porque naquele tempo não tinha Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não, era carta e pensão. Então o meu pai, com aquele tempo perdido. Meu pai aposentou em 1954 e morreu em 1956.
P/2 – Com quantos anos ele morreu?
R – Papai?
P/2 – É.
R – 93. Mamãe foi mais, mamãe morreu foi com 98.
P/1 – E a sua mãe, ela fazia o que aqui na cidade?
R – Dona de casa, rapaz.
P/1 – Os seus outros irmãos também trabalharam aqui na...
R – Todos não. Quem trabalhou aqui na estrada de ferro fui eu, Silas, Dionísio, Elísio, Paulo, só. Os outros não trabalharam na estrada, os outros fizeram trabalho de pedreiro, outros arte aí mas não fizeram. O meu irmão mais velho também, o Caetano foi chefe da secção de solda e tudo, eles trabalharam.
P/1 – Porto Velho, nessa época, era como? O que o senhor se lembra de Porto Velho nessa época?
R – Melhor do que hoje.
P/1 – E como é que era? O que é que tinha?
R – É, melhor do que é hoje. Porto Velho era município de Manaus. Aqui tinha de tudo. As coisas eram baratas, se comprava uma penca de banana por cinco cruzeiros; abacaxi, laranja, tudo era aí. Todo mundo que plantava sua rocinha, tinha leite, tinha tudo aqui. Melhor do que hoje.
P/1 – E como era a vida na comunidade? As pessoas se davam bem, como é que era?
R – Melhor do que hoje. Aqui a estrada de ferro, ela tinha comissária da estrada, mandava buscar mercadoria, que a comissária era bem ali. Vendia vale de dez mil réis, 20 mil réis, você tinha um rancho. Tudo aí comprava, era brique, lajota, borseguim, tudo aí tinha... Você com o vale, tinha aí, não é como hoje não.
P/1 – Senhor Dionísio, o senhor falou que estudava e trabalhava ao mesmo tempo, né?
R – Estudava à noite e trabalhava de dia, não era ao mesmo tempo não. Naquele tempo, a escola era no turno Dom Bosco, era ali, na esquina ali onde é o serão. E tinha também o Colégio Maria Auxiliadora, lá em cima, e tinha também o Grupo Barão de Solimões, que foi feito pela Madeira-Mamoré.
P/1 – O que é que era esse grupo?
R – É um grupo escolar.
P/1 – É um grupo escolar.
R – É, ainda hoje tá lá, Solimões ainda, pela estrada de ferro. Muita coisa aí.
P/1 – E você estudou até quantos anos?
R – Eu fiz o quinto ano completo.
P/1 – Da escola, o senhor tem alguma lembrança específica? Alguma coisa da escola que o senhor se lembra?
R – Não.
P/1 – Algum professor, algum amigo.
R – O pessoal, todos já passaram pra eternidade. O Padre Pedro, o Esídio Butiones, o pessoal já morreu, não existe mais.
P/1 – E o senhor viveu na sua casa até que tempo? Vocês sempre viveram na mesma casa, o senhor se mudou, como é que foi?
R – Não. Eu só saí da casa dos meus pais quando eu fui constituir matrimônio, mas antes disso todo tempo foi na casa...
P/1 – E vocês eram muitos irmãos. Como é que era a vida em família? Vocês se davam bem?
R – Rapaz, era melhor possível. Primeiro o papai era evangélico, papai era maçon, então tinha uma vida exemplar. E, naquele tempo, os filhos obedeciam aos pais, era como tá na Escritura Sagrada: “Honra o seu pai e a sua mãe para que seu dia possa aumentar, Jesus possa te dar.” Era mais ou menos como uma promessa. Filho que não honrava pai e mãe... Hoje o que a gente tá vendo faz vergonha; filho que responde o pai, filho que não respeita o pai, filho que não respeita mãe, tudo isso aí. E tá cada vez pior. Eu não tenho mais esperança, que ele disse: “O temor do Senhor é o princípio da sabedoria”. Então Jesus também tem isso, tem que ter temor a Deus. O governo para governar, tudo tem que ter temor do Senhor. Hoje em dia não, filho responde pro papai, responde mãe, faz tudo. Não tem mais aquele respeito, aquela honra e tudo, não tem.
P/1 – E o senhor disse que trabalhava de dia e estudava à noite. E nos fins de semana o senhor trabalhava?
R – Não, trabalhava de segunda a sábado.
P/1 – Segunda a sábado.
R – Domingo a gente ia pra igreja...
P/1 – E vocês iam pra igreja, a família toda junta? Como é que era? Porque hoje em dia o pessoal não conhece...
R – Tudo, tudo. Naquele tempo, os pais dominavam. Eles eram chefes da casa e diziam: “Meu filho, pronto pra ir pra igreja?” “Meu filho, faz isso.” E fazia. Hoje em dia, não.
P/1 – O senhor disse que só saiu de casa quando constituiu matrimônio. Onde o senhor conheceu a sua mulher?
R – Saí da casa dos meus pais e já maior de idade.
P/1 – E onde o senhor conheceu a sua mulher? Quando foi?
R – Eu casei em 1954, com o consentimento do meu pai e do pai dela também.
P/1 – E o senhor a conheceu aqui em Porto Velho?
R – Ela era professora da Escola Normal Carmélia Dutra, tudo aí.
P/1 – E vocês se conheceram como? Onde?
R – Por convivência rapaz. Ela falava inglês, meu pai falava inglês, minha mãe falava inglês, o pai dela falava inglês. Aquele tempo, aqui em Porto Velho, era como uma família. Não se via ninguém matando. Se você tivesse um sítio com laranja, você dava tudo pro seu vizinho, tudo era tipo uma família. Daí não se pode dizer. Não tinha nada, nada, nada.
P/1 – Aí o senhor se casou e mudou. Foi morar onde depois?
R – Lá na casa. Eu mudei em 1954.
P/1 – Desde 1954, o senhor vive lá?
R – Vivo lá.
(PAUSA)
P/1 – Senhor Dionísio, agora o senhor me falou uma coisa interessante. Em 1910, o senhor falou que já tinha três mil habitantes. Eu queria que o senhor contasse, porque pra quem não conhece, não sabe como é que era Porto Velho, então conta um pouco. O senhor falou que tinha três mil habitantes. O que é que já tinha na cidade? Tinha comércio?
R – Tinha de um tudo rapaz, tinha de um tudo Porto Velho. Em 1910, com três mil habitantes, como é que não vai ter nada. E aqui era município de Manaus. Daqui até Santo Antônio, pertencia ao Amazonas. E Santana pertencia ao Estado de Mato Grosso. Aqui tinha de um tudo. Comércio, tinha tudo. E o pessoal da estrada era servido pela estrada e tinha comissária, tinha tudo aí, que comprava as coisas aí, e tudo. A estrada tinha navios que traziam mercadorias que controla tudo e não tinha nada.
P/1 – E tinham muitos ingleses na cidade também? Porque o senhor falou que o seu pai sabia falar inglês, seus amigos sabiam falar inglês. Tinham outros ingleses? Que outros imigrantes tinham na cidade?
R – Olha, tinha de tudo. Inglês, americano, tinha italiano, português, espanhol, barbadiano, jamaicano, granadino, tinha tudo.
P/1 – E todos vieram por causa da estrada?
R – Italiano. Todos. Mas todos não vieram.
P/1 – A maioria?
R – Só os contratados é que vieram. Esses outros que vieram depois arrumar emprego, vieram procurar trabalho, mas todos não.
P/1 – O senhor tinha falado que casou e se mudou. Eu queria voltar um pouco pro seu trabalho aqui. O senhor falou que teve vários empregos na estrada e que vocês tinham que aprender tudo antes de trabalhar como maquinista. Então, conta um pouco dessa trajetória detalhadamente. O senhor foi aprendiz durante um bom tempo, depois de aprendiz o senhor foi fogueiro?
R – Trabalhei como foguista aqui na locomotiva. Porque o maquinista dirige e o foguista é que põe lenha na fornalha, então...
P/1 – E depois o senhor virou maquinista?
R – Virei não, consegui pela minha capacidade e minha inteligência, porque lá pra ser maquinista, você tem que passar por teste, não é assim não. Você tem que passar por um teste, pra ver se você tem capacidade de dirigir uma locomotiva, não é qualquer um que é maquinista assim não. Tem que passar por um teste. Você tem que saber o nome das peças, saber tudo, tem que saber tudo, não é assim não.
P/1 – Quando o senhor foi maquinista, o senhor se lembra de algum caso específico? Se teve algum problema alguma vez, ou algum caso marcante senhor pra contar pra gente?
R – Não, só o única caso que eu sofri foi um acidente com aquela locomotiva que tá lá dentro, a máquina 15. Ela virou comigo no quilômetro 35, viraram quatro carros de borracha e a máquina puxou o tender, eu fiquei só com a locomotiva em cima. E graças a Deus não aconteceu nada comigo. Essa parte virou, o carro virou todo lá, aqui perto, 35 quilômetros daqui. E foi uma coisa, mas graças a Deus não aconteceu nada comigo.
P/1 – O que vocês transportavam? O senhor falou que transportava borracha. Que outras mercadorias eram transportadas?
R – Olha, a estrada de ferro foi construída para socorrer a Bolívia, que a Bolívia tinha perdido os mares para o Chile e toda carga da Bolívia passava por aqui. Então, nós tínhamos que trazer carga da Bolívia, ao longo da linha tinha seringa, lixa, com borracha também, o Comodato dos Reis, o Geraldo Perez, todo, Abunã, ela puxava tudo. E logo na linha, tinham as residências, as pessoas que moravam ao longo da linha e tinha comércio em Abunã, Jaci-Paraná, tudo era mantido pó essa ferrovia que suprimia tudo, né?
P/1 – O trecho que o senhor fazia era daqui até Guajará-Mirim?
R – Olha, Guajará mesmo era o fim da linha.
P/1 – Era o fim da linha?
R – O trem saía daqui seis horas, almoçava em Jaci-Paraná, pernoitava em Abunã; no dia seguinte, saía de Abunã, almoçava em Vila Murtinho e depois voltava pra Guajará-Mirim.
P/1 – E essas outras cidades como é que elas eram na época? Jaci-Paraná, Abunã...
R – Eram vilazinhas.
P/1 – Eram vilas. Elas existiam por causa dos...
R – Elas existiam porque elas eram da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Jaci-Paraná tinha a estação. Na estação, é lógico que tinha comércio ali pra vender a sua comida e tudo, até Guajará-Mirim. Se fosse uma rocinha e tudo, tinha tudo.
P/1 – Mas todas elas eram estação da estrada?
R – Não. A estação da estrada era Jaci-Paraná, Abunã, Vila Murtinho e Guajará-Mirim. O resto tinha casa com telefone pra saber e tudo aí, mas também era habitado.
P/1 – Seu Dionísio, deixa eu matar uma curiosidade: teve uma grande leva de imigrantes no começo do século XX, então 1910. E depois os outros trabalhadores foram saindo do próprio Brasil e foram treinados? Como é que foi isso?
R – De 1910, era pessoal contratado. Agora, depois de 1910, quando a estrada começou a funcionar em 1912, aí todo mundo voltou. A Bolívia, a carga já vinha toda por aqui. Aqui pra Bolívia passava a gasolina, tudo passava por aqui. Ela chegava ao navio, desembargava aí e embarcava num lugar bom.
P/1 – E a estrada funcionou de que ano até que ano? Quando ela foi desativada?
R – Em 1972. Mas a estrada de ferro hoje que está aqui, agradecemos a administração brasileira, porque até 1931 ela dava lucro. Quando passou a administração, não dava mais lucro, era só déficit, déficit, déficit, até que ela... E o Ministério cooperava. Então, de 1931 ela começou a morrer, como começou a morrer, por falta de honestidade, sinceridade e trabalho.
P/1 – Depois de maquinista, o senhor trabalhou como o quê? Maquinista foi a sua última função?
R – Depois, eu fui chefe da oficina em Guajará-Mirim, trabalho de oficina lá, chefe da oficina. Eu tava chefe do depósito, chegava máquina quebrada e eu recuperava, chegava um carro eu consertava. Aí de lá, quando eu vim pra Guajará-Mirim em 1969, eu já vim aposentado. Quando o batalhão tomou conta em 1964, já tava preparando para sair. Tinha tempo de serviço pra aposentar, pra sair.
P/1 – Como chefe de oficina, o senhor tinha que morar lá em Guajará-Mirim?
R – Mas lá tinha uma oficina da estrada de ferro. Lá tinha depósito... Quando a máquina saía daqui, se não tivesse abrigo pra pegar lenha, óleo e tudo, tinha que ter lá.
P/1 – E o senhor morou lá.
R – Morei, como em Abunã também tinha outro abrigo lá. Chegava lá pra... A máquina chegava daqui e ia abastecer em Jaci-Paraná. Depois ia abastecer de lenha em Abunã, de lenha de novo em Vila Murinho e ia abastecer por último em Guajará-Mirim. E tinha os mecânicos lá, que qualquer coisa que desse um pane, ou alguma coisa, tinha quem consertasse.
P/1 – E a vida em Guajará-Mirim era muito diferente daqui de Porto Velho?
R – Não, não tinha diferença não. Não tinha diferença porque a gente já saía daqui com o pagamento e tudo e não tinha diferença não.
P/1 – E o senhor tinha a sua casa lá.
R – Lá tinha casa da estrada pra gente morar.
P/1 – Ah, você morava na casa da estrada?
R – Da estrada, é. Quem era chefe da oficina ou do depósito, tinha casa lá, pra gente. O trem saía daqui e tinha pernoite da estrada de ferro pro pessoal dormir, maquinista, foguista, e tinha pernoite, tinha tudo, era bem organizado. Daqui até Guajará-Mirim.
P/1 – O senhor já era casado quando era chefe de oficina, ou não?
R – Já.
P/1 – E sua mulher mudou com o senhor pra Guajará?
R – Foi, foi pra lá.
P/1 – Vocês tiveram filhos?
R – Cinco.
P/1 – Cinco filhos. E como foi ser pai? Quando o senhor virou pai, mudou muito a sua vida?
R – Não. Eu tenho cinco: duas meninas e três homens. A mais velha é uma menina, ela é enfermeira; o segundo é engenheiro florestal; o terceiro só teve o primário; o quarto é engenheiro civil e a outra menina fez psicologia, psicologia clínica. Agora, lá não tinha. Quando eu vim de Guajará-Mirim pra cá, lá não tinha colégio, não tinha nada. Meus filhos estudaram fora, meus filhos estudaram fora. Até vou ler aqui onde eles estudaram. Eli Windi Shockness, engenheiro florestal, formado pela Faculdade de Engenharia Florestal de Curitiba. Eliésio Windi Shockness, segundo grau completo. Elci Windi Shockness, formado pela Faculdade Santa Úrsula. Elizabeth, ela é formada pela Faculdade Especial do Estado do Amazonas. Porque eles foram todos estudar fora, que aqui não tinha faculdade, não tinha nada naquele tempo.
P/1 – Quando eles foram pra faculdade eles foram embora daqui?
R – Não, tão todos aqui. Eles todos estudaram fora.
P/1 – E você disse que em 1964, o batalhão assumiu a estrada.
R – 1964.
P/1 – Mudou muita coisa com o batalhão assumindo a estrada?
R – Olha, não mudou nada não. Eles continuaram a tocar até 1972, quando foi desativada.
P/1 – O senhor se aposentou em que ano?
R – Em 1969, eu aposentei.
P/1 – E depois que o senhor se aposentou, passou a fazer o que, seu Dionísio?
R – Eu fui trabalhar na Caerd (Companhia de Águas e Esgotos do Estado de Rondônia), porque o meu ganho era pouco pra poder dar melhores dias pros meus filhos. Eu os formei porque arranjei esse outro emprego, na Caerd de Água e Esgoto. Agora eu quero lhe fazer uma intervenção aqui: o meu pai, olha, vou ler aqui. “Charles Natanael Shockness, natural da Ilha de Granada, localizada na Antilha perto do Oceano Atlântico da América Central. Nasceu em 24 do cinco de 1885. Filho de José Shockness e Helena Shockness. Casou-se com Catarina Thomás Shockness. Desembarcou em Porto Velho no ano de 1910, para ser contratado pelos ingleses, tendo exercido várias funções. Aposentou como encarregado de Cegonha. Por seu extraordinário exemplo de amor ao trabalho na Estrada de Ferro, foi condecorado pela Western Standard Company do Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 24 de setembro de 1952 com a medalha de Honra ao Mérito. Terminado o seu tempo e sua atividade na estrada de ferro, a quem tanto amou, dedicou 48 anos de serviço, aposentou-se em primeiro de janeiro de 1954. Foi iniciado na Loja Maçônica da Inglaterra no dia 6 de outubro de 1908, recebendo o certificado da grande potência inglesa, tendo sido um grande um grande obreiro, dedicado a arqui real, pai de dez filhos, nascidos no Brasil, possuidor do seu... E dedicação do exemplo de cumprimento do seu dever, bem quisto e local por todo, o exemplo de coragem do trabalho e honestidade. Faleceu 5 de outubro de 1955.” Aqui está Aluísio Ferreira que era deputado, colocando a medalha. Aqui está Honra ao Mérito, o certificado. Então justamente é isso. E minha vida tá aqui também. Tudo, como eu trabalhei e tudo.
P/1 – Depois que o senhor se aposentou, o senhor foi trabalhar para ajudar a pagar a faculdade dos seus filhos.
R – Aposentei, trabalhei na Caerd de Água e Esgoto.
P/1 – O senhor fazia o que nessa empresa?
R- Eu era encarregado da manutenção da rede geral, para instalar as redes hidráulicas, esgoto, água, e tudo o que eu instalei lá. O primeiro hidrômetro que instalou fui eu, que eu fiz o curso pela Caerd, no Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo reparem. Então, o primeiro hidrômetro instalado aqui em Porto Velho fui eu. Aí depois com a idade a gente já vai deixando tudo aí.
P/1 – Então, o senhor chegou a sair de Rondônia, viajar pra fora de Rondônia... O senhor fez o Liceu de Artes e Ofícios em São Paulo?
R – A viagem que eu fiz foi pra fazer esse curso em São Paulo.
P/1 – Foi a única viagem que o senhor fez?
R – Sim, foi a única viagem.
P/1 – E quando o senhor viu São Paulo, era muito diferente? Como é que foi?
R – Não, eu passei lá 15 dias aprendendo lá. Que era para montar o hidrômetro e ferir, tinha a mesa, tudo. Foi isso só.
P/1 – Senhor Dionísio, o senhor foi trabalhar para poder ajudar os seus filhos. Como era a sua relação com eles? Eu vi que o senhor se preocupava muito com eles...
R – Não, mas se eu não tivesse boa relação, né? Mas como eu ia educar eles assim?
P/1 – Mas é o que o senhor tá dizendo.
R – Mas é justamente isso. Você não precisava nem perguntar. Se eu trabalhei para educá-los, porque aqui não tinha faculdade, é porque eu queria ver o bem estar dos meus filhos.
P/1 – E depois que o senhor parou...
R – É porque quem tem filho e deixa o filho sem estudar, não zela pelo filho e tudo. Desde quando alguém bota um filho no mundo, ele quer responsabilidade, ter responsabilidade. Educar e tudo, manter, até que ele possa também se manter e outra coisa: quando a gente bota um filho pra estudar, pra formar um engenheiro, um qualquer coisa, ele quer ver o bem estar, porque uma pessoa que é formada, ele não passa necessidades, porque é pelo estudo que a gente vê a capacidade dele.
P/1 – O senhor tem uma relação muito afetiva com a estrada Madeira-Mamoré. Qual é a coisa que o senhor mais sente falta da estrada? O que o senhor mais gostava no seu trabalho?
R – Eu não... O meu trabalho, eu dava conta do meu trabalho. De fato, quando a pessoa era escolhida para fazer um serviço assim, por exemplo, fui escolhido pelo diretor, porque ele sabia que eu tinha capacidade de desenvolver aquele trabalho. Então isso aí não tinha...
P/1 – Mas o senhor não sente falta de dirigir uma locomotiva, por exemplo?
R – Não, eu não sinto falta porque quem acabou foi nós mesmos. Se tivesse nas mãos de estrangeiros, ainda estava rodando isso aqui. Pra dizer a vergonha que a gente passa.
P/1 – Mas ainda assim o senhor não tem vontade?
R – Acabou por causa da péssima administração da Madeira-Mamoré. Hoje ela não tem nada aí.
P/1 – Mas o senhor não sente nem falta de entrar lá?
R – Não, não sinto nada. Sinto é vergonha do que isso era e não ficou. É, eu não sinto nada não. A pessoa que tem... Isso aqui é a estação. Isso aqui devia estar um brinco, tudo reparado e não mexer em nada. Recuperar tudo como ela está e não fazer o que está fazendo aqui. O que é que diz aqui? Onde é que está a máquina? Onde está a serraria? Onde tá o escritório, não tem nada rapaz!
P/1 – Então o senhor sente falta dela ser...
R – Falta não, eu não sinto falta porque eu não sou responsável por isso aí.
P/1 – Pro senhor não faz diferença.
R – Não sinto falta não. Eu só lamento a péssima administração quando passou pra nossa mão, só isso. Mas falta não.
P/1 – O senhor já é avô? O senhor tem netos?
R – Tenho cinco.
P/1 – E ser avô foi muito diferente de ser pai?
R – Eles são pequenos ainda. Agora, os pais têm que zelar pelos filhos, tem que encaminhar, orientar os filhos. Então isso aí, quando o pai orienta o filho, que bota num bom caminho, por exemplo, o meu pai lá das Ilhas Britânicas... a Bíblia Sagrada não sabia, é como o Português, a Matemática, tem que ter pra conhecer. Então justamente isso é que se dá, se conhecer. Quando os filhos obedecem, seguem o exemplo, por exemplo, eu nunca botei um cigarro na minha boca, nunca botei um copo de cachaça, nunca... Por quê? Porque o meu pai não bebia e nem fumava, então eu segui o exemplo dele. Mas aí isso é quando o filho não tem nada.
P/1 – Tem alguma coisa que eu não perguntei pro senhor que o senhor gostaria de falar? Que eu não registrei, que eu não fiz pergunta pro senhor? O senhor queria falar alguma coisa que sentiu falta?
R – Não. O que eu lamento é só o estado em que se encontra a Madeira-Mamoré.
P/1 – E da sua vida tem alguma que eu não perguntei que o senhor gostaria de falar?
R – Não, o que eu falei da minha vida, é que eu trabalhei, criei os meus filhos, eduquei e tô satisfeito com a idade que eu tenho de 88 anos que não é todo mundo que tem 88 anos e está firme como eu estou. Porque diz também a palavra sagrada que o homem é predestinado a viver até os 70; o que passa de 70 é dádiva de Deus. Ele diz lá: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça, e as demais coisas serão acrescentadas”. Quando a pessoa anda direita, que é séria, sincera, então Deus acrescenta à vida da pessoa. O que está passado agora é questão de vida, assim é tudo.
P/1 – Eu queria te agradecer e pedir desculpas, seu Dionísio, se tem alguma pergunta...Recolher
Título: Vida sobre trilhos
Data: 22/06/2010
Local de produção: Brasil / Porto Velho
Personagem: Dionísio Shockness Autor: Museu da PessoaO Museu da Pessoa está em constante melhoria de sua plataforma. Caso perceba algum erro nesta página, ou caso sinta falta de alguma informação nesta história, entre em contato conosco através do email atendimento@museudapessoa.org.
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