IDENTIFICAÇÃO Meu nome completo é Altamiro de Freitas e minha data de nascimento é 25 de maio de 1951. Nasci em Tupã, Estado de São Paulo. FAMÍLIA Meus pais são Antônio Ermógenes de Freitas e Ana Maria de Jesus Freitas. Vieram de Minas Gerais, para São Paulo nos anos de 46, 47. Deixaram todos os parentes e nunca mais tiveram contato. Viveram da lavoura, eram lavradores. Tenho um irmão que é mecânico. MIGRAÇÃO Meus pais decidiram vir pra Campinas porque, na época, trabalhavam em fazendas de bicho-da-seda e tinha alguns compradores de Campinas que iam para lá. Meu pai pegou amizade com aquele pessoal e arrumou um sítio para vir trabalhar aqui. Era um sítio recém formado, de uma família, e ele arrumou a casa e o trabalho para ele e minha mãe. Era um sítio de plantio geral, desde de verduras até pomar com frutas. Meus pais comentavam que ficaram impressionados com Campinas, que era uma cidade muito maior, porque eles vinham de pequenas cidades de Minas. Passaram por algumas cidades como Tupã, Duartina, cidades pequenas. Encontraram aqui em Campinas uma cidade maior do que a que eles tinham conhecido e vivido. Viemos em 1951. INFÂNCIA De criança, eu tenho memória de mais ou menos 5 a 6 anos de idade, já morando em Barão Geraldo - que é onde eu sempre morei. Lembro que eram dois ou três armazéns, uma estação ferroviária e poucas casas. Os dois ou três armazéns eram pra suprir não a cidade, mas os sítios que rodeavam as fazendas. Havia a fazenda Santa Genebra, muito grande; inclusive, uma parte dela, hoje, é a Unicamp e outra parte é a Costa e Silva; outra parte é a Vila Cury; a outra parte aqui, é o Ceasa. Então, no meu tempo de garoto, idade de sete, oito anos, eu saia muito com a minha mãe e a gente ia nessas partes das fazendas, principalmente, em época de algodão, apanhar, algodão, em locais que hoje são tudo cidade, inclusive o Shopping Dom Pedro também. Barão Geraldo era...
Continuar leituraIDENTIFICAÇÃO Meu nome completo é Altamiro de Freitas e minha data de nascimento é 25 de maio de 1951. Nasci em Tupã, Estado de São Paulo. FAMÍLIA Meus pais são Antônio Ermógenes de Freitas e Ana Maria de Jesus Freitas. Vieram de Minas Gerais, para São Paulo nos anos de 46, 47. Deixaram todos os parentes e nunca mais tiveram contato. Viveram da lavoura, eram lavradores. Tenho um irmão que é mecânico. MIGRAÇÃO Meus pais decidiram vir pra Campinas porque, na época, trabalhavam em fazendas de bicho-da-seda e tinha alguns compradores de Campinas que iam para lá. Meu pai pegou amizade com aquele pessoal e arrumou um sítio para vir trabalhar aqui. Era um sítio recém formado, de uma família, e ele arrumou a casa e o trabalho para ele e minha mãe. Era um sítio de plantio geral, desde de verduras até pomar com frutas. Meus pais comentavam que ficaram impressionados com Campinas, que era uma cidade muito maior, porque eles vinham de pequenas cidades de Minas. Passaram por algumas cidades como Tupã, Duartina, cidades pequenas. Encontraram aqui em Campinas uma cidade maior do que a que eles tinham conhecido e vivido. Viemos em 1951. INFÂNCIA De criança, eu tenho memória de mais ou menos 5 a 6 anos de idade, já morando em Barão Geraldo - que é onde eu sempre morei. Lembro que eram dois ou três armazéns, uma estação ferroviária e poucas casas. Os dois ou três armazéns eram pra suprir não a cidade, mas os sítios que rodeavam as fazendas. Havia a fazenda Santa Genebra, muito grande; inclusive, uma parte dela, hoje, é a Unicamp e outra parte é a Costa e Silva; outra parte é a Vila Cury; a outra parte aqui, é o Ceasa. Então, no meu tempo de garoto, idade de sete, oito anos, eu saia muito com a minha mãe e a gente ia nessas partes das fazendas, principalmente, em época de algodão, apanhar, algodão, em locais que hoje são tudo cidade, inclusive o Shopping Dom Pedro também. Barão Geraldo era muito pequeno, com três armazéns: do seu Paulo Lanza, que é um dos antigos; Gebraé Mocarzel e o Francisco de Barros, que tinha um, acho que era o primeiro bar, porque os outros eram armazém, e ele montou um bar, Francisco de Barros. Hoje, não existe mais isso. Até mesmo a padaria – só havia a padaria do seu Miro, que hoje está com os filhos - é um outro tipo de comércio. Então, dos antigos, eu acho que não tem mais nenhum. Os filhos do Paulo Lanza - eu não sei se ainda é vivo - não tem mais o comércio. Os filhos dele têm uma imobiliária, até uma das maiores de Barão, que é a Imobiliária Lanza. CIDADES / CAMPINAS / SP Vim tomar conhecimento da cidade a partir dos 12 anos, quando eu vim trabalhar aqui na Rua Barão de Atibaia, esquina com a Avenida Brasil. A Avenida Brasil ainda era uma mão só, não era asfalto, era paralelepípedo, e isso foi 1962. Eu fiquei por uns seis meses trabalhando ali. Depois eu fui trabalhar na Rua General Osório, 1211, uma sapataria que foi muito famosa, a Sapataria Expressa Paulista que era mais conhecida como a Sapataria do Romeu. Naquele tempo, a gente descia a rua, uma quadra pra baixo do Café do Povo, que não existe mais, e muitas outras coisas foram mudando. Grandes bares, grandes restaurante que eram famosos naquele tempo já não tem mais hoje. Campinas mudou. O Largo do Rosário era completamente diferente, os ônibus coletivos eram poucos e ainda eram da CCTC, Companhia Campineira de Ônibus, e tinha o bonde. Eu fazia muita entrega de bonde. O patrão dava dinheiro pra gente ir pra um bairro como o Botafogo, outros bairros distantes pra onde tinha bonde. A gente preferia ir de bonde porque, muitas vezes, você conseguia ir sem pagar. Porque passava de um lado, passava para outro. Mas conheci Campinas bem. O centro das atenções das pessoas que vinham dos bairros, das fazendas, era o Mercado Municipal. Não tinha terminais, nada; onde é o terminal lá do Mercado hoje, antigamente era um colégio, chamava Correia de Melo. Então, são boas lembranças que eu tenho de Campinas. Mudou muito daquela época para hoje. Depois que minha mãe se casou pela segunda vez, a gente saiu do sítio e fomos morar em Barão Geraldo. Tanto a minha mãe como meu padrasto trabalhavam na cidade e eu tinha um irmão que já morava fora; ele morava com umas pessoas aqui no Botafogo, trabalhava e morava aqui. Eu era sozinho em casa e fui, praticamente, criado como aquele moleque de rua. E, tinha adoração - como todos os meninos da minha época - por caminhão. Eu pensava em ser motorista. A única coisa que eu nunca pensei em ser foi sapateiro (risos). Minha mãe me trouxe na cidade para falar com o sapateiro: “Olha, se o senhor quiser ficar com ele aí para trabalhar, você só me paga a passagem de ônibus que eu não tenho condição de pagar, e ele fica por aí trabalhando para ir aprendendo alguma coisa, porque em casa ele não tem o que fazer, fica na rua e tal”. E aí, comecei a trabalhar com ele. Isso em 62, em maio, e, graças a Deus, fui bem. Primeiro mês, já tive um ordenado, que foi uma coisa gozada: eu recebi 25 cruzeiros, cheguei em casa e dei para minha mãe; no outro dia, minha mãe perdeu o dia de serviço para voltar comigo no serviço para perguntar se, realmente, ele tinha me pagado aquele dinheiro (risos). Ela era uma pessoa muito enérgica, gostava das coisas muito direitas. Eu estou há 44 anos nisso e se fosse para trocar de profissão hoje, eu preferia a mesma. Gosto muito do que eu faço. Eu era um menino que brincava muito. Em sítio, a gente brincava muito de pega-pega, a gente ia nadar. Tinha fruta aonde a gente morava, mas ia pegar fruta no pomar do outro, que era mais gostoso. Era aquela brincadeira bem sadia, bem coisa que não se vê mais em menino, brincadeira de artes e molecagem sem nada de hoje; os meninos de hoje são mais sábios, vêem muita televisão, muita internet. No meu tempo, eram aquelas brincadeiras comuns, fazer carrinho. Naquela época, o lixo de Campinas - isso nos anos 56, 58 - era vendido para as chácaras, a maioria em Barão Geraldo, porque naquele tempo, o lixo não tinha plástico, então ele apodrecia e virava húmus e esterco. O sítio ali mesmo onde eu morava, e outros sítios vizinhos, pegavam o lixo, e a gente que era menino ia muito para o lixo e achava brinquedo velho, brinquedo quebrado. Comia muita coisa que vinha no lixo, que criança daquele tempo não tinha oportunidade que os outros têm; então, se achava alguma coisa diferente, uma bala, não interessava se estava no lixo (risos). Achava pedaço de carro - porque ninguém tinha condições de ter os carrinhos, principalmente a gente que morava em sítio - fazia os brinquedos. Até mesmo aqueles filtros de óleo de caminhão - que tem um furo no meio -, passava um arame, que tudo era brinquedo. Era assim... Era uma coisa que se a gente analisar e dizer pra uma criança o que a gente fazia naquele tempo, eles não querem nem olhar, mas pra gente era muito porque não tinha outra coisa. Ninguém tinha nada de especial, de poder comprar um carrinho. Chegava Fim do Ano, no Natal, às vezes, o pai comprava lá aqueles que vendiam muito no mercadão, uns carrinhos de madeira, uns caminhõezinhos, mas era assim. Uma vida de moleque muito ativa, de caçar passarinho, fazer armadilha para caçar passarinho, caçar com estilingue e, às vezes, trabalhar também. Na idade de seis, sete anos, menino, naquela época, quando chegava a época, ia tudo para o algodão, catar algodão junto com a mãe. COMÉRCIO DE CAMPINAS Eu lembro de um empório muito grande que a gente ia, na General Osório com a José Paulino, chamava, Sebastião Maria. A gente vinha de Barão Geraldo a pé, que era estrada de terra - a ligação entre Barão Geraldo e Campinas era terra - e a gente vinha a pé pra esse empório, chamado Sebastião Maria. Eles tinham pneu de bicicleta, bala de revólver, o que se pensasse. Era como se fosse um hipermercado hoje, só que era um armazém. Depois ele acabou, foi vendido para uma Benson Calçados, que depois incendiou-se. Hoje ali é outra coisa. Mas eu me lembro bem que vinha, mais ou menos em 55, 56. Naquele tempo, quase todo tipo de compra era feito no mercadão. Era roupa, tudo e o pessoal que vinha das cidadezinhas circunvizinhas, de distrito, como eu de Barão, o pessoal não se expunha muito em andar na cidade; então, localizava tudo no mercadão, tudo o que tinha que comprar se fazia ali. Não havia, assim como hoje, outros lugares diferentes. Naquele tempo, São Paulo, para nós, era muito diferente, era uma coisa muito longe (risos), muito distante. FORMAÇÃO Eu freqüentei a escola em Barão Geraldo. Antes de fazer a primeira escola grande em Barão Geraldo, tinha uma escola, que hoje é uma firma chamada Sun Sing New, que era do seu Gibraé. Esse que é Gibraé Mocarzel, ele cedia duas salas para as aulas das crianças. Depois disso, foi construído um ginásio que chama Grupo Escolar Barão Geraldo Rezende. Aí eu me mudei dessa escola, que era das duas salas, pra esse Grupo Escolar, que é uma escola grande, que até hoje tem em Barão. E lá eu tirei o meu diploma de quarto ano. Conheci muito as escolas aqui da cidade, mas sem ter freqüentado. TRABALHO Minha mãe queria que eu me ocupasse. Só que naquele tempo o trabalho era muito difícil. Minha mãe sempre falava que jamais queria que eu fosse como ela; que me criasse na lavoura como ela foi criada. Fui trabalhar logo depois que eu tirei o diploma. Naquele tempo, um diploma de quarto ano de escola era uma grande coisa. Então, ela disse: “Você sabe ler, você sabe escrever, você tem que arrumar um serviço melhor. Tem que arrumar um serviço na cidade que é para você conhecer a cidade.” Em Barão Geraldo existiam pessoas com 30, 40 anos que não vinham para cidade, que tinham medo da cidade, tinham medo de andar, não conheciam. E minha mãe achou que seria uma abertura pra mim, começar naquela sapataria que, inclusive, o dono falou: “Ah, eu não tenho muito serviço, mas ele vai ficar aí pra desmanchar algum serviço, fazer alguma entrega”. O que realmente ela queria, era que eu não tivesse o mesmo futuro de outros garotos que continuaram trabalhando na lavoura. Se a lavoura fosse nossa era outra coisa, mas éramos empregados. Às vezes, os pais pegavam uma empreitada para fazer, levavam os filhos pequenos para ajudar, mesmo sem um ganho. Acho que, talvez, ela pensando mais numa liberdade pra mim, mais pro comércio, um aprendizado, conhecer melhor a cidade... Depois de uma semana, por incrível que pareça, eu já estava... Não sei se por ter sido o meu primeiro serviço, mas eu já estava me apaixonando por aquilo que eu fazia. E fazia cada vez melhor e cada vez mais. Tanto é que com, mais ou menos, cinco meses de serviço, uma pessoa que trabalhava nessa sapataria comentou com esse senhor que era dono dessa sapataria - que era a maior sapataria que teve em Campinas: “Olha, tem um neguinho trabalhando, assim, assim, assim, ele é bom. Você não quer trazer ele para cá?” Ele me convidou, me ofereceu três vezes mais do salário que eu ganhava. Aí fui trabalhar com ele. Essa é a Sapataria Expressa Paulista. Ficava na Rua General Osório 1211. O proprietário dela é vivo até hoje, chama-se Romeu Mosqueta. E lá, eu fiquei por seis anos. JUVENTUDE A minha juventude foi tumultuada. Eu saí de casa em 1969, fiquei quatro anos e meio fora de casa. E nesse tempo eu andei por 20 Estados do Brasil. Eu ia trabalhando, pegava um dinheirinho, trabalhava um mês, 15 dias, dois meses, às vezes, pegava algum dinheirinho que desse pra ir pra um outro lugar, e eu ia. Assim foi passando. Durante esses quatros anos e oito meses, eu rodei 20 Estados. Fui do Oiapoque ao Chuí, desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte, por vontade de conhecer. Sempre pensava em conhecer, em conhecer. E, um dia, trocando idéia com uma pessoa, ele falou pra mim: “Mas por que você não vai trabalhando?” E, nessa época que eu fui, era muito fácil o trabalho de sapateiro; não é como hoje. Hoje, não é que o trabalho é difícil; difícil são os profissionais para trabalhar, porque existem muito poucos. E na minha época, não. Existia em muitos lugares, porque, a maioria dos sapateiros não só consertava, como fazia calçados. Você ia numa cidade, pedia serviço, não tinha; outra, tinha e você trabalhava ali alguns dias. E nisso eu fui passando. Onde eu fiquei mais tempo, sete meses, foi no Rio Grande do Sul, que lá, na época também, era um pólo de trabalho muito maior. Depois, teve um tempo, uma fase na minha vida, que eu fui alcoólatra. Trabalhava normalmente, mas bebia muito. Quando eu estava com 32 anos, eu me amasiei com a minha esposa, vai fazer 26 anos que nós estamos juntos. Ela conseguiu me tirar do alcoolismo, o que foi muito bom. Na época, eu trabalhava de empregado também, numa grande sapataria aqui de Campinas, a Sapataria Mug. Eu trabalhei muito tempo lá, e, por incentivo do meu próprio patrão, resolvi abrir uma sapataria pra mim. Comecei aos poucos. Hoje tenho quatro funcionários, tem mais minha esposa que ajuda, graças a Deus, tenho além da minha expectativa. Eu era, na juventude, um assíduo freqüentador de bar. Tomava conta de time de futebol. Participei muito de comunidade, tanto comunidade de jovens católicos como sociedade amigos do bairro. Cheguei a ser presidente da Sociedade Amigos do Bairro. Cheguei a participar de congressos em Brasília, da Conam, Confederação Nacional das Associações de Moradores. Sempre tive muito envolvimento com o trabalho político. E, aquele trabalho não para mim, trabalho político para comunidade, era necessário, a gente, principalmente, time de futebol, precisava de um jogo de camisa, dumas bolas. Então, nós íamos atrás de um político, quando era época de eleição, “vamos trabalhar para você e tal”. Eu tive muito envolvimento com isso. Trabalhei em circo, como palhaço. Quando o circo era ao redor de Campinas, eu sempre ia, e o pessoal já me conhecia, fazia participações neles. Nunca viajava pra longe, sempre estava aqui em volta. Alegria e festas, eu gostava muito. Era muito divertido em partes de excursões que hoje quase não têm mais. O pessoal fazia uma excursão para Santos, principalmente, eles me davam uma passagem de graça, só porque eu ia bagunçando, ia cantando, o pessoal gostava muito. Sempre fui uma pessoa muito descontraída. E, apesar de ter perdido muito tempo da juventude com o alcoolismo, eu tive uma juventude ótima. Eu viajei, mais ou menos, de 68 a 73. Eu acho que tive todo o tipo de transporte, muito mais de ônibus. Ônibus, a pé, carona, e até mesmo de charrete, de jegue, que eu fui para o Norte, Nordeste, também. Cheguei a andar de trem. Eu acho a viagem de trem maravilhosa. Se tivesse hoje pra tudo quanto é lugar, jamais eu iria num ônibus. É uma viagem lenta, quer dizer, lenta nos trens de antigamente, mas muito confortável. Você pode sair, pode ir a um toalete, pode ir a um restaurante e voltar. Então, eu acho ótimo Eu acho que é uma perda irreparável tirarem os trens de circulação como tiraram. TRANSPORTE Eu ia para o trabalho de ônibus. Morava em Barão Geraldo que não tinha mais o trem por volta de 62 para 63. Barão Geraldo não tinha ônibus. O ônibus vinha de Paulínia, passava por Barão pra vir a Campinas. Passava por uma estrada que, hoje, chama-se Rodovia Milton Tavares. Vinha por aquela estrada que era sem asfalto, de terra, uma pista só. E, se eu não me engano, o asfalto de Barão Geraldo a Campinas foi inaugurado em 1960 no governo de Rui Novaes. Antes não tinha, era terra. CASAMENTO Na época, eu coordenava uma comunidade de jovens e eu tinha uma amiga que me ajudava. A minha esposa tinha separado, acho que há três anos do marido, e ela se sentia muito sozinha. Essa amiga a convidou pra ir na comunidade, pra se enturmar com o povo, apesar de ela ter dois filhos: uma menina, com quatro anos e o menino com um ano e pouco. Aí, ela começou a freqüentar e a gente começou a se conhecer. E num Natal, nós fizemos uma festa na minha casa. Ela foi. Eu comprei um ramalhete de flores, já estava gostando dela, e levei. E dali, a gente começou a se entender, a se conversar. Depois de seis meses fui morar com ela. A gente alugou uma casa, não tinha condições de muito... Eu trabalhava, era empregado, ganhava pouco, mas achamos uma casa. Aí comecei a minha vida. Quando fomos morar juntos, dormíamos os dois numa cama de solteiro, porque não tínhamos de casal e nem condições (risos) de comprar. Ela trabalhava e eu, mesmo trabalhando de empregado, comecei fazendo uns bicos, à noite em casa, consertando sapato. Ela me ajudava. Ela trabalhava de manhã, fazendo faxina; à noite, ela ia à casa da mesma pessoa para ficar com as crianças, para pessoa fazer faculdade. E, me ajudando sempre, como até hoje me ajuda. E, graças a Deus, a gente conseguiu, hoje, ter uma boa casa, ter um comércio com portas abertas, dar serviço pra mais quatro, cinco pessoas. Tudo isso, eu devo muito a ela também, que ela sempre fazia um esforço tremendo. Até hoje, ela fica em casa, às vezes, na maioria dos dias até a hora do almoço, e depois do almoço, ela vai lá para sapataria. E faz pintura, conserta, bola, faz sapato, tudo. Nós temos uma filha, que é a nossa caçula, que está com 20 anos. Tem uma outra, que é só filha dela, com 29, que nos deu um neto que está com dois anos e meio; é o xodó da casa. Eu me considero um vencedor em tudo. Lembro que eu era bem pequeno e meu pai sempre dizia pra mim e pra meu irmão: “O negro não pode fazer bem, ele tem que fazer melhor. Ele tem que ser melhor em tudo para nunca sofrer preconceito”. E pus isso na cabeça. Realmente, eu nunca sofri preconceito. Se eu tive, eu não fiquei sabendo (risos). Porque eu sempre procurei andar direito com as minhas obrigações, trabalhar. Hoje eu sou praticamente uma das pessoas do comércio - caso alguém perguntar - das mais conhecidas de Barão Geraldo. Todo mundo me conhece. Eu tenho que agradecer muito a Deus, à minha esposa, que me ajudou muito, e aos meus clientes, que sempre me prestigiam. Eu nunca tive oportunidade de fazer propaganda, nada, a propaganda era sempre o meu trabalho. SAPATARIA Eu 88, eu comecei a trabalhar por conta, trabalhava na minha casa. Só que meu serviço era muito pouco. Então fazia bico em outras sapatarias por fora, dois, três dias por semana, trabalhando para algum outro sapateiro. E fazia o meu serviço em dois ou três dias. Às vezes, à noite, para poder me manter. Aí, o meu estabelecimento, foi aberto em 94. Logo depois tive que contratar esse rapaz, que trabalha comigo. Já antes de 94 tinha contratado ele, mas eu não tinha uma firma aberta nem nada. Depois que a coisa foi dando certo, quando começou a engatilhar, eu fiz abertura de firma. Estou batalhando até hoje, graças a Deus. De lá para cá, as mudanças foram muitas. O acréscimo de trabalho foi muito grande, muito. Muito mais dinheiro, muito mais preocupação, muito mais despesas (risos). Eu acho que fui um cara abençoado por Deus, com muita sorte de ter montado um comércio, apesar de sempre ser morador de Barão Geraldo. A maioria dos meus fregueses não são nem pessoas antigas, que me conheciam de antes, são pessoas novas da Cidade Universitária. Eu dei muito certo em Barão porque sapataria só dá certo em lugares assim, onde tem classe média e média alta. Duas classes não consertam sapato: nem rico e nem pobre. Porque o pobre já compra um sapato que não tem conserto, uma coisa muito barata, não tem como consertar. E o rico? O rico não conserta o sapato, o rico que eu digo, é o bem rico. Então, o sapato fica entre a classe média e a classe média alta. Porque você comprando um sapato de 50, 60 reais compensa você gastar dez, cinco reais. A madame já compra um sapato de 200, 300, ela gasta até 20, 30 conto num calçado. A pessoa que montar uma sapataria num bairro pobre, passa fome. Agora o bairro rico, não, porque o bairro rico, hoje em dia, ele é o bairro, nome de bairro rico, mas, geralmente, quem mora nele são pessoas da classe média alta. Como a Cidade Universitária é tido como um bairro de rico, mas é classe média alta. E os ricos, que eu digo, são aqueles milionários que nem sabem que existe sapateiro (risos), porque não precisam disso. Apesar de que eu tenho muitos fregueses de posse financeira que vão lá consertar sapato comigo. Tem, inclusive, ali em Barão Geraldo, muitos artistas, pessoas famosas. Bem perto de onde eu tenho a sapataria têm três companhias de teatro: tem o Lume, que é da Unicamp; o Barracão do Teatro, que é escola, também de teatro; tem o Teatro da Verônica, que agora, ela comprou uma casa ao lado, que está fazendo um salão para o teatro. Lá é lado de muito pessoal que vive de arte. Muitas pessoas famosas da Unicamp, cada um no seu segmento. Vão lá, levam o calçado para eu consertar. Um senhor que está sempre na televisão, além de freguês, é meu amigo, morei vizinho dele, que ele é Pró-reitor da Unicamp, senhor Mohamed. Várias pessoas importantes que vão e é como digo: “São pessoas importantes, que dão importância pra gente também”. Porque por mais importante que a pessoa seja, ninguém vive sozinho. Eu me sinto muito lisonjeado das pessoas freqüentarem. Esse aqui de Campinas que é, inclusive, o Maurício, do vôlei, esteve lá. Minha filha foi pedir autógrafo pra ele. Então, são pessoas bacanas que têm certo conceito, um certo conhecimento, que dão preferência pra gente. E Barão Geraldo tem outra coisa de bom: o povo que mora em Barão Geraldo, principalmente, o povo da Cidade Universitária, dá muita preferência para o bairro. Porque existem bairros que eu conheço de Campinas, que a pessoa sofre muito porque a pessoa deixa o que tem no bairro e vai dar preferência ao centro da cidade e outros lugares. E Barão, não. O pessoal da universidade faz de tudo pra que não precise sair de lá. Agora, o refúgio deles, um pouco, é Barão e o Shopping Dom Pedro. É bem pegado. Isso é muito gratificante. Eu sempre tenho a dizer que o povo de Barão Geraldo, me acolheu e a gente procura retribuir o máximo pra conservar, porque eu construí uma freguesia fantástica e, às vezes, o duro é conservar a freguesia. OFÍCIO DE SAPATEIRO Estou tendo, de tempos para cá, muito problema, porque eu não tenho mão-de-obra. Na minha profissão não existe mais mão-de-obra especializada. Às vezes, é muito serviço para pouca gente trabalhar. As pessoas não têm mais interesse em aprender o ofício porque, isso, para os países desenvolvidos, já é passado. Como na Europa, dificilmente, se acha um sapateiro, não tem mais. E aqui o que acontece? Nessa profissão é muito difícil um garoto se interessar. Antigamente, os garotos se interessavam até porque eram engraxates. Já partia daquela coisa de engraxar sapato pra entrar numa sapataria. E hoje, nem engraxate existe mais. Hoje em dia, as poucas profissões que se dizem profissões “sujas”, porque é mão-de-obra, trabalha com a mão, se suja, e os garotos querem apenas neste tipo de trabalho, a oficina mecânica. Não tanto pela oficina mecânica pela mecânica, mas pra dirigir um carro, pôr um carro para dentro da oficina (risos), tirar, aprender a dirigir. Então, eles se interessam, mas na minha profissão, não. O grande problema hoje é que a maioria como nós, que temos nossa sapataria um pouco maiores, nós não temos condições de ensinar. Você tem que pegar alguém que resolva. Se você for parar para ensinar, você se atrasa. E o interesse, também, é muito pouco. Às vezes, passa a mãe lá, fala: “Oh, você não está precisando de um garoto para ensinar?” Mas é mais aquela coisa de tirar o garoto da rua. E você traz para ensinar, primeira coisa que ele entra e pergunta pra você: “Quanto é que eu vou ganhar? O que eu vou fazer? A que horas eu vou sair? Quando são minhas férias?” Então, é muito difícil, sabe (risos). Tem o negócio da informática... Isso tudo dificulta. COTIDIANO DE TRABALHO Tenho tido algumas negligências. Porque quando eu comecei, eu fazia. Hoje, eu não sento mais para fazer o trabalho, eu administro. Fico focado só no balcão, só no atendimento. Até assim mesmo, ainda tem um, às vezes, mais um ou dois para me ajudar a atender. Então, passa despercebido, às vezes por causa, da correria. E eu tenho tido, até mesmo, reclamações de freguês: “Ah, mas quando o senhor fazia não era assim e tal”. E isso acontece, mas é a conseqüência do aumento; às vezes, você não dá conta. A minha quantidade seria, mais ou menos, de 70 a 80 pares de sapato por dia e 20, 30 bolsas e malas. São coisas pra se administrar. Eu tenho comigo que cresci muito, desordenadamente. Eu não imaginava. O crescimento foi aparecendo tão rápido que eu não tive um tempo pra parar e começar a pensar de ter outra pessoa para dirigir, ter uma pessoa pra ficar no balcão. Tanto é que eu tento deixar outra pessoa no balcão pra eu poder trabalhar, mas eu não consigo. Porque o pessoal chega e quer falar comigo. Então, torna-se difícil. Eu tenho consciência de que tenho algumas falhas. Geralmente, com uma boa conversa, a gente acaba explicando para o freguês, e ele acaba entendendo. A gente não pode é perder o freguês. O freguês, como se diz, “sempre tem razão”. Sempre tem mesmo porque eu dependo dele. Ele vai, às vezes, e o serviço não está pronto, não está de acordo como ele quer. A gente conversa, fala: “Não, o senhor vem apanhar mais tarde, ou eu mando entregar na tua casa”. Ou se a gente vê que o serviço foi feito de um modo que não é o correto, fala: “Não, o senhor vai deixar aí que eu vou reparar isso para o senhor”. Tiro, mando fazer tudo de novo. Mas eu acho que não é só da minha profissão, todo tipo de profissão tem sempre uma divergência de um freguês que não gosta de alguma coisa. Eu conserto calçados, também, pra algumas lojas. O pessoal vai lá, compra sapato e ele vem com defeitinho. Às vezes, mandam pra fábrica. Às vezes é no Sul, às vezes é de Franca. Então, pequenas coisas, eles mandam pra mim e eu faço os reparos. Acontece também de a pessoa vender sapato, a pessoa vai lá, vai brigar com o vendedor. Às vezes, ele nem sabe qual o defeito porque existem defeitos mínimos. O vendedor não sabe que o sapato está com uma tirinha começando a descosturar, que precisaria olhar. Acho que são conseqüências do comércio em geral. E lidar com o publico é uma questão de arte, que é muito difícil, e é muito gostoso. Mas é muito difícil. A gente encontra pessoas de todo tipo. Pessoas que elogiam, pessoas que criticam e a gente tem que rebater as críticas com os elogios, e ir tocando o barco. Na época em que eu comecei a trabalhar eram muito poucos os consertos de sapatos. Eram, geralmente, de sola, saltinho de mulher, principalmente. O saltinho começou a aparecer bem depois de 65, 66, que houve uma mudança de salto fino para... Eram muito poucas as pessoas. Eu ainda cheguei a fazer muito esse tipo de trabalho, porque eu trabalhava nessa sapataria aqui na General Osório. Era conhecida por toda a classe alta de Campinas. Então, ainda existiam sapatos de salto. Mas em bairro, as pessoas dificilmente usavam sapato de salto, eram apenas sapatos baixos. O conserto era bem menos. Hoje, o conserto maior é saltinho de sapato de salto, que tem muito, que as mulheres usam mais constante, é mais social. As solas também, antigamente, você punha a sola no sapato, ela durava quatro, cinco anos; hoje, são três, quatro meses. Hoje, quase não se trabalha com couro, se trabalha com borracha e com sintético. A mudança de quem trabalhou naquele tempo para cá foi muito grande. A qualidade dos materiais de antigamente, tanto dos sapatos, como dos materiais que a gente trabalhava, é muito diferente. Hoje, realmente, as coisas são descartáveis. Até o material que a gente coloca, a gente sabe que não tem uma boa ação, mas não existe outro, é aquele. É a lei do consumo. EMBALAGENS Antes os sapatos eram feitos e quando prontos, colocávamos, numa prateleira. Um em cima do outro; dividia o branco do escuro para não sujar e colocava um em cima do outro. As sapatarias menores usavam jornal, embrulhavam com jornal. Aquelas que já eram um pouco mais sofisticadas tinham aquelas bobinas de papel, aquele papel rosa, tiravam, embrulhava e levava o calçado. Hoje, já é diferente. Na minha sapataria tem uma série de prateleira que tem, mais ou menos, 650 caixas de sapato. Assim que eu termino o sapato, eu abro, ponho dentro da caixa e ponho uma etiqueta com um clip grande; uma etiqueta para o lado de fora com o número porque é dada uma notinha com dois números para o freguês. Os sapatos ficam dentro da caixa e assim que o freguês chega, eu retiro de dentro da caixa e coloco numa sacola. Essa sacola plástica que eu compro, essa embalagem. Algumas sapatarias seu nome timbrado na sacola. A minha não tem, é uma sacola comum, mas eu compro as sacolas novas e os fregueses levam na sacola. OFÍCIO DE SAPATEIRO A estrutura de móveis de uma sapataria mudou muito. Antigamente, a sapataria precisava de poucas coisas. Havia a banca de sapateiro que era uma mesinha quadrada com várias repartições em cima, feitos com umas tabuazinhas, mais ou menos, de um centímetro e meio a dois, tipo umas caixinhas onde se colocavam os pregos. Havia também a cadeira que é chamada tamborete, um quadrado com tiras de couro, em que se ficava sentado o dia todo ali, e uma máquina de acabamento. Então, a diferença duma sapataria de antigamente para a sapataria de hoje chega a ser bem grande. Hoje, já não se têm mais – quase - aquela banca; trabalham com prateleira, usa-se muito pouco prego. Antigamente, sapataria, você entrava na sapataria era prego; hoje não, hoje é cola. Quase tudo à base de cola porque os calçados de hoje nem dão para pregar porque por dentro as bases não são de couro, são de papelão. Se você prega, o prego passa pro outro lado. Tudo é muito diferente do tempo em que havia os pequenos sapateiros que usavam sovela, as costuras de mão. Hoje, já tem máquina para costurar a sola. A mudança da minha época de 40 anos atrás para cá é quase uma mudança do dia pra noite. Poucas coisas que um sapateiro antigo usava são usadas hoje, com exceção das ferramentas, que são quase as mesmas. Antigamente, havia uma tina de água pra molhar a sola; precisava molhar e bater a sola. Hoje, as solas vêm cilindradas, não precisam mais ser batidas. Já não têm aquelas sovelas que fazem costura a mão, as máquinas fazem. A transformação facilitou muito porque um garoto que trabalha, hoje, há dez anos como sapateiro, talvez, ele não faria 20% do serviço que era feito há 30, 40 anos atrás, que era tudo manual. Hoje é fácil preparar, lixou, vai lá a máquina costura, vem, a outra máquina faz isso, a outra faz aquilo. Naquele tempo, a gente fazia até o serviço de lixa; era feito com caco de vidro, era tudo completamente diferente. Inclusive, tem ferramentas da minha época que esse garoto mesmo que está há 15 anos comigo, ele nunca viu, não conhece, porque não tem mais necessidade dela, pela modernização. FORMAS DE PAGAMENTO Eu trabalho sempre com pagamento à vista. Alguns fregueses me dão cheque pré-datado. Agora, inclusive, estão pra ser instaladas nessa semana, devido a muito pedido, duas máquinas de cartão, do Visa e do MasterCard. Porque lá o pessoal usa muito cartão. Inclusive, bem próximo à minha sapataria tem uma moradia dos estudantes da Unicamp e estudante só lida com cartão. Às vezes, o dinheiro é regrado pelo pai, então vou pôr essas duas máquinas de cartão para facilitar o cliente a me pagar em duas ou três vezes. Mas o pagamento, geralmente, é à vista. A não ser quando são muitos pares de sapato, mas, geralmente, são coisas de dez, 20, 15, 30 reais. Aí, quando são vários pares, pode atingir 40, 100, até mais. O serviço mais corriqueiro é o conserto de saltinho de mulher, que, geralmente, custa sete, oito, dez, todos com pagamento, praticamente, à vista. CLIENTES Conserto, também tênis. Estudantes usam muito tênis, usam muito Hoje em dia, o tênis é um dos calçados mais difíceis de consertar. A sapataria tem o seguinte: sapato sempre sobra. Todo fim de ano você tem um monte de sapato que o freguês levou e não foi buscar. E se tiver 200 pares de sapato, dez são tênis, 190 são sapatos. Tênis, o pessoal não deixa. Geralmente, o estudante usa até estourar tudo. Quando estiver bem estourado (risos), ver que não dá para andar mais, aí troca. E sempre a gente dá um jeito. Inclusive, para os estudantes - tenho um conceito - sempre tenho um precinho acessível, porque o pessoal ali, da moradia da Unicamp, são pessoas pobres que não conseguem pagar um aluguel numa república. Sempre procuramos fazer um precinho melhor para eles. Já aconteceu de pessoas que eu conheci como estudante, que se formaram, que continuam sendo meus fregueses, depois de médico, depois de advogados. Inclusive, tem uma cliente minha que eu sempre fazia os serviços, sempre fiz num preço bem baratinho para ela, porque ela se formou, ela era muito doente. Conseguiu se formar médica, escreveu um livro, lançou o livro esses dias. Uma pessoa fantástica Filha de um servente de pedreiro e de uma empregada doméstica. Era de São Paulo e se formou médica na Unicamp. Ela tem essa doença que o nome popular é “bicho de porco” na cabeça. Ela esteve internada muitas vezes, fez uma série de operações e conseguiu se formar, conseguiu escrever um livro da vida dela e continua sendo minha freguesa. Nós sabíamos das dificuldades dela. Às vezes, fazíamos alguma coisa e nem cobrávamos. São pessoas que merecem, têm consideração. Eu sou assim, no meu trabalho, também, procuramos ajudar os outros. Os sapatos que ficam lá um tempo, mando para algumas entidades circunvizinhas do Barão. Dou uma cooperação da minha firma que é tão pouquinha, mas eu coopero com três entidades mensalmente. Alguns trabalhos que vão lá pra eu fazer, como já foi, do Boldrini, faço e não tem custo para eles. Eu tenho alguns tipos de serviço que são supérfluos, são serviços caros, como cobrir um sapato para casamento, fazer uma bolsa e cobrir do mesmo tecido. São serviços que eu cobro bem; as pessoas reclamam e eu falo: “Gente, isso é supérfluo, isso é para quem tem dinheiro, você tem? Paga. Você não tem? Vai fazer o quê?” Mas, a gente procura ajudar. Tem pessoas que vão lá, precisando de um calçado: “Ó, arrumei um serviço e não tenho um sapato para ir, só tenho esse velho, você me arruma? Só que eu não tenho dinheiro”. Já cheguei a arrumar, e realmente, as pessoas vêm pagar, são pessoas honestas. O comércio mostra muito o lado das pessoas. A gente que está nele há muito tempo conhece com facilidade a pessoa que realmente é honesta, que realmente está precisando, ou não. É muito bom. Só é possível retirar o sapato mediante o pagamento. De dois anos para cá, eu optei por 50% adiantado. Não são todos que pagam, mas muitos pagam e às vezes chegam até a pagar o total. Mas eu não sei o que acontece, às vezes, de deixar sapato. Existem sapatos bons, novos, que a pessoa deixou pago e não vem mais buscar. Existem pessoas que esquecem, por incrível que pareça. Existem pessoas que mudam, pessoas que morrem; é uma série de coisas. Os estudantes, muitos da moradia não são brasileiros, são colombianos, peruanos, chilenos. Chega o fim do ano, às vezes, só está fazendo doutorado, já vai embora. Deixa um sapato, uma bolsa, correria do fim, ele arruma a mala e vai embora para o Chile, etc, não volta mais. Já me aconteceu de pessoas irem lá, véspera de casamento do filho, brigar comigo, fazer o maior “brigueiro”. Nossa, me pôs louco Tinha que levar o sapato do filho para engraxar para o casamento, chegou em casa, ligou pra mim: “O sapato está aqui no porta-malas, eu não levei”. Então, existe esse tipo de coisa, sabe? (risos) Eu acho que a correria hoje em dia faz muito isso. Como a gente dá um comprovante, às vezes, a pessoa perde, acha que, também, perdeu o sapato, então não vai mais atrás. Acaba ficando. Faz parte. PROPAGANDA A única publicidade que eu faço, acho que, há uns cinco, seis anos, é uma lista telefônica, chamada Onde Comprar. Inclusive, ela faz sobre Barão Geraldo, mas ela é daqui de Vinhedo e faz essa publicação, é conta telefone. Eu faço só nessa lista, eu não tenho outro tipo. Me ofereceram em jornais, em revista, tem revista da Unicamp, têm dois jornais em Barão Geraldo que já me ofereceram para fazer. Mas é o seguinte: eu, modéstia à parte, eu não dou conta do meu serviço. Então, não posso propagar muito; depois o serviço vem demais e eu não tenho como. PROMOÇÕES O que eu faço, é assim: mais ou menos, cada um ano e um mês, um ano e dois meses, eu separo uns sapatos que ficam lá, com essa data já há mais de 12 meses. E alguns que são serviços grandes, serviços que eu investi material, porque eu pago funcionário, pago aluguel, material. Alguns dos serviços que são bons sapatos, eu faço um tipo de um bazar. Até a minha mulher que se incumbe de separar e vender. Aí, vende pelo preço do conserto, dez conto, cinco conto, quanto for. Se o sapato custa 100 conto e o conserto dele foi cinco, ele vai por cinco. E alguns outros eu dôo. Dôo para umas duas ou três entidades lá que fazem bazar. Inclusive, esses dias, eu dei para uma aqui de Campinas que eu não sei nem o nome, eu sei que ela passa lá, eles deixam panfleto, e eles me pediram e falei: “Toma, isso aí e tal.” Mas eu gostei do modo que eles me pediram e mandei para eles. Eu ia mandar para outra, mas eu não tinha prometido. Eles disseram que não aceitavam dinheiro. Eu acho que quando uma entidade não aceita dinheiro, eu acho que é séria (risos), não é não? Então, disse que não aceitavam dinheiro, só se tivesse alguma coisa para doar. Eu mandei uns dois sacos de sapato. E alguns, a gente vende. Meio receoso, porque não existe lei. A lei do consumidor só favorece o consumidor. Se você deixar o sapato lá um ano, se eu vender o seu sapato e você tiver o comprovante, você pode reclamar na justiça e eu tenho que te pagar. Então, realmente, é o país que mais tem lei errada e descumprida, porque ninguém cumpre. É assim: eu pago água, luz, meus impostos, aluguel, compro o material, emprego e faço, e deixo ali. Agora a pessoa não vai mais buscar e eu não posso me desfazer deles. FAMÍLA Eu tenho essa minha filha com certo interesse pelo comércio. Apesar de ela estar com 20 anos agora, e ela pretende fazer um técnico ou uma faculdade mais em engenharia de alimentos, em nutricionismo. No fundo, no fundo, vocação não tem não. Ninguém se interessa muito não. Talvez, tem a outra minha filha... Tenho um filho, que é um filho da minha esposa que tem 29 anos, ele tem um retardamento de idade, então, ele não trabalha. Esteve por muito tempo aqui numa escola especializada, não conseguiu alfabetizar. É uma pessoa normal, se você ver, conversar com ele, você não vai nem perceber. Tem essa outra filha que é casada, que tem o genro que trabalha comigo. Ele tem dois trabalhos: comigo e no clube da Petrobras. Como ele é guarda à noite, trabalha uma noite sim e outra não, ele faz um bico comigo. Tem interesse. Já está comigo há três anos, já aprendeu muita coisa. Não sei se o interesse é pela profissão ou porque ele é o único herdeiro (risos). Tenho a intenção de parar futuramente. Eu gostaria muito, se um dia, tivesse condições com uma aposentadoria mais ou menos, de vender aquilo e parar. Aí, talvez, eu iria fazer o que eu queria: pegar dois ou três garotos, montar uma coisa bem pequenininha e poder ter tempo para ensinar esses garotos para que essa profissão não acabe, mas é meio difícil. É uma profissão que está se acabando como já acabaram os alfaiates, vão se acabando os sapateiros e costureiras... DESAFIOS Um dos maiores desafios que eu tive foi deixar de beber. Eu era um alcoólatra consciente, trabalhava, mas tomava, mais ou menos, um litro de cachaça por dia. Isso me prejudicava muito. Isso foi um grande desafio. Outro desafio foi começar do nada. Quando eu trabalhava, estava numa garagem, todo feliz e satisfeito. Tinha comprado um carro, estava todo feliz, porque morava numa casa de aluguel; pagava um aluguelzinho bem barato. Estava tudo bem. Mas, o dono da casa chegou e pediu a casa urgente. Eu não sabia para onde ir com a sapataria, com nada. Eu vendi o carro, comprei um terreno e construí uma casa de 200 metros; construí em três anos, sozinho. Não sei onde eu arrumei o dinheiro, mas eu arrumei. Fiquei três, quatro anos pendurado nos bancos, nas financeiras, mas, graças a Deus, consegui pagar. Eu acho que foram os grandes desafios. E um dos maiores foi que eu consegui alguma coisa na minha vida, o dia que eu pensei que ter dívida não era o fim do mundo. Eu comecei a pôr na cabeça que os outros ficavam devendo, por que só eu tinha que ser honestíssimo? Pagar tudo, não sobrava nada. Tinha medo de fazer uma dívida. Através de umas palestras que eu freqüentei com um amigo da Seicho-No-Iê, eu consegui deixar minha liberdade, de começar: “Não. Eu vou botar a cara, eu vou comprar isso. Mas eu não posso Não Eu posso, eu sei que eu posso”. Acho que confiar mais em mim. Um dos grandes desafios da pessoa é saber aquilo que ela pode; você tem medo de fazer, mas você pode. Então, você deixar de ter medo e fazer. Entrar em dívida. Vamos comprar. Ah, não pagaram. Vem a cobrança hoje, não deu. Nunca dever pra gente pequena, nem pra parente; quando dever, dever pra banco, pra financeira (risos) que não vem bater na tua porta para cobrar. Mas, realmente, foi um dos desafios. Eu acho que é tudo assim, muita, muita força de vontade. É pensar que é possível, pensar que você pode. Não ficar subestimando, achando que você é menos do que ninguém; que fulano é isso e você não é. Sempre pus na minha cabeça que pode ter gente igual a mim, mas melhor do que eu não tem: “Ah, mas fulano faz isso. Mas ele não faz uma sola igual a que eu faço”. Acho que todos nós temos os nossos dons. Eu acho que desde o gari até o presidente da República é muito útil. COMÉRCIO DE CAMPINAS Comercialmente, Campinas não é uma cidade tão forte. Campinas é uma cidade muito forte num nível bancário, no nível financeiro. E o comércio de Campinas, eu acho que ele é um bom comércio, só que, hoje em dia, ele está sendo para classe média baixa. Simplesmente, pela violência. A pessoa prefere pagar um, dois reais mais caro e ir num shopping center que é muito mais seguro, do que subir e descer uma Rua Treze de Maio. Acho que o comércio de Campinas perdeu muito com os shoppings. Perdeu em termos: perdeu o comércio e ganhou o povo que vai a um Shopping Dom Pedro e anda a vontade sem saber que vai vir um pivete atrás, puxar sua bolsa e sair correndo. E o que acontece muito na cidade é a violência. Eu acredito que o centro comercial de Campinas nunca foi muito evoluído, nunca ofereceu muito, pra ela própria. Você vê que em matéria de couro, você sai de Campinas e vai a Serra Negra. A diferença é do dia pra noite. É de 50% a diferença do preço. Porque Campinas sempre foi tida como cidade de rico, mesmo não sendo. Tudo aqui parece que tem que ser mais caro. Tenho uma vizinha que faz três, quatro vezes por mês, uma excursão daqui pra 25 de março [rua de comércio popular em São Paulo, capital]. Leva o pessoal pra fazer compra em São Paulo porque aqui o comércio não oferece muito. Eu me considero campineiro, mas Campinas não oferece nada, não oferece comércio, não oferece lazer. A pessoa fala: “O que tem em Capinas?” “Tem a Lagoa Taquaral”. Só pra você ir lá e andar. Ela cresceu muito financeiramente. É cidade de transação bancária que cresceu, evoluiu muito. Mas o comércio de Campinas, acho que deixa muito a desejar em preço. Lá em Barão Geraldo - eu tenho o privilégio de morar ali - o que eu tenho ali? Tenho um Makro, o Atacadão, o Supermercado Tenda, o Iga, o Carrefour e está abrindo um outro grande lá, que eu não me lembro o nome. Estão a dez minutos da minha casa. Eu tenho um cunhado que mora lá no Campo Grande. O cara tem que atravessar a cidade inteira para ir ao hipermercado. Então, acho que ela é muito mal dividida, localizaram todos os grandes hipermercados de um lado. Você vê, ali tem o Ceasa, tem tudo, e esse lado daqui nada. Por aqui nessas regiões do Campo Grande, do Ouro Verde um dos mercados mais próximos que vão encontrar - já entrando aqui na cidade - é o Extra. Eu acho que é um comércio mal dividido. Agora estão fazendo outro aqui, mas parece que é o Extra, onde era o falecido Eldorado. Campinas tem muito comércio, mas a pessoa sai daqui vai a Serra Negra, vai a Salto, Itu, comprar vestuário. Campinas não oferece isso, para que as pessoas venham para cá. Não tem nada de extraordinário. O que tem é que as pessoas vem no Shopping Dom Pedro; fazem as compras, mas vêm pra visitar o shopping, pra conhecer. Inclusive, eu tenho uma sobrinha que mora em Goiânia, sai de lá em excursão pra ver o Shopping Dom Pedro (risos). Incrível MEMÓRIAS DO COMÉRCIO DE CAMPINAS Quando me ligaram pela primeira vez, eu fiquei meio na dúvida, mas quando falaram sobre o Sesc que há muitos anos atrás já fui associado, quando eu era empregado, eu falei: “Não, então, se é um Sesc é uma coisa séria.” E, até depois estive conversando com o seu fotógrafo quando ele foi lá. Ele esteve me dizendo, mais ou menos como era o projeto, cheguei a ver esses livros editados, tal. Eu acho que foi uma satisfação dar essa entrevista. Eu acho que tudo que se faz, hoje em dia, pra guardar memórias, deveria fazer muito mais. Eu vejo algumas fotos de Campinas, não tão antigas, porque não estou tão velho (risos), de 35, 40 anos atrás, e a gente fica olhando... Deveria ter uma biografia maior dos grandes personagens de Campinas que eu conheci na minha época, como Mané Falaó, a Gilda e outros personagens tradicionais da cidade. Lugares como o Bar Rosário, o Bar Ideal, Café Caruso que não dá nem pra você contar uma história pra um filho seu, do que foi Campinas antigamente. Porque eu acho que Campinas está muito pobre de historiador, tinha o Lombardi Neto e alguns que já faleceram, que falavam muito de Campinas. Hoje o pessoal, acho que vive muito na atualidade. Não que você tenha que olhar pra trás, mas eu acho que recordar... Essa entrevista minha quando for publicada num livro, daqui a 20 anos, 30 anos, um neto da gente pode pegar e ler; pode falar: “Puxa, isso foi meu avô e tal.” Então, eu acho que o povo, hoje em dia, está evoluindo demais e estão esquecendo dos seus antepassados. Antes de ontem fez o aniversário da morte do Toninho [ex-prefeito de Campinas, assassinado]. Alguma rádio falou de manhã, outras nem comentaram... Quer dizer, foi um homem público da cidade. Deveria ter alguma... Nós temos memória curta, todo mundo esquece tudo muito fácil. Passou, passou, acabou. Mas tenho uma satisfação muito grande de fazer essa entrevista com vocês. E eu acho que é bem mais pra mim do que pra vocês, porque tanto comércio que tem em Campinas, eu tive a sorte de ser um dos escolhidos. É muito bom
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