10 anos da Fundação Gol de Letra
Entrevistado: Averaldo Nunes Cordeiro
Entrevistadora: Ricardo Pedrone e Cláudia Leonor
São Paulo, 18/06/2009
Entrevista: FGL_HV003
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Tereza Ruiz
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Boa tarde, seu Nunes.
R – Boa tarde.
P/1 – Pra começar eu queria que o senhor dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Averaldo Nunes Cordeiro, nasci no dia 18 de outubro de 1953.
P/1 – Onde é que o senhor nasceu?
R – Na cidade de Águas Belas, estado de Pernambuco. Aí perguntei pro meu pai: “Por que Águas Belas?”... Porque eu não conheço a cidade, eu cheguei no meu bairro com quatro anos de idade. Quatro anos de idade eu cheguei a São Paulo. “Ah, porque lá tem um rio muito grande, muito caudaloso, rio Ipanema, e muitas minas e tal, por isso que tem o nome de Águas Belas”. Mas aí eu fui pesquisas, não fiquei só com a informação dele, fui pesquisar e encontrei a história correta do nome Águas Belas, por que Águas Belas.
P/1 e P/2 – E que história é essa?
R – Ah sim! Então, Águas Belas era só um povoamento indígena. Então tinha lá duas tribos, Carijós e Tupiniquins, se não me falha a memória. E ia passando por lá um ouvidor do estado a serviço, ele vinha de uma cidade pra outra, ia passando no território dos índios, não tinha ainda homem branco. E ele tinha passado por uma região que ele só tinha bebido até aquele momento águas salobras − acho que é salobra o nome −, ele bebeu daquela água da cidade e falou assim: “Mas que água doce, água boa. O nome desse lugar aqui não pode ser chamado de povoado de Ipanema”. Era o nome antigo, por causa do rio Ipanema que corta a cidade, “Essa cidade tem que ser chamada de Águas Belas, que eu não vi nessa região toda um lugar com uma água tão gostosa como aqui”. Aí adotaram o nome de Águas Belas.
P/1 – Entendi. E qual que é o nome dos pais do senhor?
R –...
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Entrevistado: Averaldo Nunes Cordeiro
Entrevistadora: Ricardo Pedrone e Cláudia Leonor
São Paulo, 18/06/2009
Entrevista: FGL_HV003
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Tereza Ruiz
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Boa tarde, seu Nunes.
R – Boa tarde.
P/1 – Pra começar eu queria que o senhor dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Meu nome é Averaldo Nunes Cordeiro, nasci no dia 18 de outubro de 1953.
P/1 – Onde é que o senhor nasceu?
R – Na cidade de Águas Belas, estado de Pernambuco. Aí perguntei pro meu pai: “Por que Águas Belas?”... Porque eu não conheço a cidade, eu cheguei no meu bairro com quatro anos de idade. Quatro anos de idade eu cheguei a São Paulo. “Ah, porque lá tem um rio muito grande, muito caudaloso, rio Ipanema, e muitas minas e tal, por isso que tem o nome de Águas Belas”. Mas aí eu fui pesquisas, não fiquei só com a informação dele, fui pesquisar e encontrei a história correta do nome Águas Belas, por que Águas Belas.
P/1 e P/2 – E que história é essa?
R – Ah sim! Então, Águas Belas era só um povoamento indígena. Então tinha lá duas tribos, Carijós e Tupiniquins, se não me falha a memória. E ia passando por lá um ouvidor do estado a serviço, ele vinha de uma cidade pra outra, ia passando no território dos índios, não tinha ainda homem branco. E ele tinha passado por uma região que ele só tinha bebido até aquele momento águas salobras − acho que é salobra o nome −, ele bebeu daquela água da cidade e falou assim: “Mas que água doce, água boa. O nome desse lugar aqui não pode ser chamado de povoado de Ipanema”. Era o nome antigo, por causa do rio Ipanema que corta a cidade, “Essa cidade tem que ser chamada de Águas Belas, que eu não vi nessa região toda um lugar com uma água tão gostosa como aqui”. Aí adotaram o nome de Águas Belas.
P/1 – Entendi. E qual que é o nome dos pais do senhor?
R – Meu pai chama-se João Nunes Cordeiro, e a minha mãe Maria Sinésia Nunes.
P/1 – E eles nasceram lá em Águas Belas mesmo?
R – Os dois nasceram lá na cidade. É uma família tradicional na cidade, até hoje os Nunes são família tradicional lá. Então os Nunes... Fazem parte da família Nunes lá os Cordeiro, família Rodrigues Nunes, os Gueiros, que se tornaram governador do estado, vereadores, prefeitos e tal na política; os Gueiros entraram na família Nunes. Tem lá também os Cardosos, pertencem à família Nunes, vai entrando e vai... A família vai crescendo bastante. E inclusive da cidade saiu uma pessoa ilustre na história do Brasil, o Coronel João de Araújo Nunes, primo do meu pai em segundo grau, se tornou comandante geral da polícia militar de Pernambuco, onde lá no Recife, no bairro de Santo Amaro, tem o décimo terceiro batalhão da polícia militar, Coronel João Nunes, mesmo nome do meu pai. Ele foi o que comandou as perseguições ao Lampião.
P/2 – Ah é?
R – Isso. A rede Globo, em uma certa ocasião aí, falou do Coronel João Nunes. Tem quatro escritores brasileiros que mencionaram ele e um americano. O irmão dele também, o Tenente Coronel José de Araújo Nunes. Então uma parte da família fez um pouco de história lá, não é? E não sei se tem feito ainda.
P/1 – E o senhor sabe como os seus pais se conheceram?
R – Então, o meu pai... O meu pai é de raiz judaica, judeus-portugueses, que eles chegaram no Recife, acredito eu, na época da dominação holandesa. Quando os holandeses invadiram o nordeste, a Igreja Católica perdeu campo e os holandeses é que governavam a área ali do... Pegando um pedaço da Bahia e indo até a Paraíba. Essa é uma área da dominação... Período holandês, que foi de 1630 a 1654, um período curto. Então eles tiveram uma liberdade, os judeus, de ter sua sinagoga lá, existe até hoje, ela foi tombada pelo patrimônio histórico. Esse pessoal, que quando... Esses judeus que... Acabou a dominação holandesa, foram expulsos, saíram do Brasil… Uma parte desses judeus tinham aderido ao catolicismo, na época da inquisição e tudo. Aderiram ao catolicismo e se embrenharam pro interior do estado. Fugindo de perseguição, de antissemitismo, começaram a negar a fé, viver como um católico. Muitos viviam como um cripto judeu, por exemplo, ele vai na igreja católica, ele é um católico, entre aspas, mas em casa ele faz as festas do chabad escondido, os vizinhos não podiam saber pra não ter perseguição. Ele faz todas as... Comemoração do ano novo judaico − Rosh Hashaná −, e por aí vai indo. Então era um cripto judeu, seria isso, viver duas religiões, uma dupla, sabe? Personalidade, até. E então meu pai, nessa cidade de Águas Belas, conheceu uma pessoa, minha mãe, ela, filha de gente... Meu avô, Emílio José da Silva, o pai da minha mãe, ele era um descendente de judeu holandês, casado com uma índia. Ele se enamorou com uma índia e casou. Você imagina o nível de preconceito que esse meu avô enfrentou. Homem loiro de olhos azuis o meu avô, mais alto do que eu, e casar com uma índia. Então ele teve que apostatar, negar toda a sua família e tudo, não passou nada de família. Quer dizer, ele cortou todo o vínculo familiar devido a ter casado com uma índia, teve que fazer isso. Aí meu pai também vai e conhece essa filha de um descendente de judeu holandês, mas de uma mãe índia, tribo Funiô, onde existe lá na cidade de águas belas a tribo Funiô. Então meu pai também teve um problema sério com de família. Sério mesmo, por parte de pai, de mãe, você... “Não quero que você se case com gente que não é do mesmo sangue”. É, índio é... Pessoal meio sem cultura nenhuma na visão deles e tudo. Foi difícil o enfrentamento do meu pai para conseguir casar com minha mãe. Então meu pai falou assim: “Olha, você resolve, das duas a uma: ou você vai pra Recife pra entrar na polícia militar...”, porque uma parte da família do meu pai é tudo militar; tenentes, delegados, como eu lhe falei agora há pouco. Então uma família muito grande da polícia. “Você vai ter que ser policial lá onde estão teus parentes, lá em Recife, vai ser policial também”. “Eu não quero ser polícia”. “Então você suma daqui pra São Paulo.” − pra não casar com a minha mãe. − Ele pegou e nem entrou na polícia e nem veio pra São Paulo. Casou primeiro contra o gosto da família, e a mãe do meu pai mesmo, no dia que nós saímos de Pernambuco pra São Paulo, ele não foi nem despedir da minha mãe. A briga ficou, isso continuou. Então meu pai casado novo veio pra São Paulo, um casal novo em termos, trinta e poucos anos de idade já. Ele saiu de lá e veio pra cá. Já havia vindo pra São Paulo parte de família, uns tios nossos e tudo já haviam vindo pra cá. Interessante isso, essa... O preconceito da mistura de povo, de raça, tal. Interessante isso.
P/1 – Daí quando eles vieram pra cá o senhor já tinha nascido?
R – Eu tinha, nasci lá.
P/1 – Quando os seus pais vieram pra São Paulo você já tinha nascido?
R – É, eu nasci lá no dia 18 de outubro, como eu falei. Então minha mãe ficou grávida de mim, e nisso o meu pai foi convocado para trabalhar na abertura de uma estrada que vai de Águas Belas até outra cidade, chamada Santana do Ipanema. Então ela vai até Alagoas, liga a cidade de Águas Belas com Alagoas. O meu pai foi trabalhar nessa estrada, ele era especialista em explosivos, ele ia detonar pedra pra eliminar pedras do meio do caminho, tirar curvas e tudo. A minha mãe estava grávida, e ela estava passando por um local... Ele foi morar lá nessa cidade, depois acabou levando a família pra lá, também pra ficar um certo período de meses lá, um ano e meio, acredito, mas ele... Minha mãe ficou grávida e ela ia passando por um local ermo e... Casas no interior, geralmente uma é muito longe da outra, e ela estava no nono mês, no nono mês. O que aconteceu é que ela viu um animal muito grande, um... Acredito que um bode ou um carneiro, porque um chifre muito grande ela falou, o animal era muito grande, ela disse, e dos que estavam ali era o maior. Ela olhou pro animal e viu que o animal fez um gesto assim... Um jeito de que fosse correr atrás dela, e ela ficou com medo, porque ela estava bem pesada. Ela viu que se mexeu mesmo do lugar, então ela começou a correr, correu muito, e ela tropeçou e caiu. Era de se esperar isso mesmo, caiu com a barriga no chão. Foi um tombo violento, ela diz. O animal chegou e alcançou ela, e ela... E começou a tentar furar as costas dela e a cabeça com os chifres, então a finalidade dele era matar mesmo. Olha, e não conseguiu porque tudo tem uma providência de Deus, nada é por acaso, não acredito nessas coisas, “coincidência”. Acredito na providência de Deus, porque o chifre não entrou nas costas dela, ou na cabeça, porque estava encurvado. O animal já tinha certa idade, então não conseguia furá-la. E ela gritando pra pessoas mais próximas: “socorro, socorro”. Depois foram lá, socorreram, e ela foi pro médico... Depois disso, porque começa a sentir umas dores, você imagina uma queda dessa. O médico falou pra ela: “Olha...”, examinou, examinou e falou: “Você não tem nada, a criança está bem”. “Olha, teve uma sorte, porque a criança está bem”. Depois de alguns dias aí eu nasci. Nasci no dia 18 de outubro de 53. Dia 18 de outubro é o dia do médico, só que ela não sabia que 18 de outubro era dia do médico e... E ela colocou o nome do médico em mim, doutor Averaldo, então colocou em mim. E Averaldo significa “aquele que tem a força de um javali”, esse é o significado da palavra. Eu não creio que eu tenha a força de um javali, mas está aí o significado do nome, né?
P/1 – Legal.
R – Eu tinha quatro anos de idade, e meu pai é... Quando eu tinha quatro anos de idade vim pra São Paulo, minha mãe com mais cinco filhos. Nasceu mais um aqui, mais dois, e meu pai já tinha vindo antes pra trabalhar, e já tinha vindo irmã, irmão. Então ele veio pra trabalhar, arrumar uma casa, preparar toda uma estrutura, mínima pra... E trazer a família. Então na primeira semana de janeiro de 1958 eu cheguei lá no bairro do Tremembé, um lugar conhecido na época como “Esmaga Sapo”, ou Vila Albertina. Cheguei lá, estou lá até hoje.
P/1 – Só pra falar um pouquinho dos seus irmãos, o senhor podia falar o nome deles e na ordem que eles...
R – Então, minha mãe teve nove filhos, o primeiro faleceu, Sebastião; veio o Antônio... Meu irmão Antônio é uma pessoa... Bacharel em teologia, psicologia, uma pessoa muito inteligente, a gente se dá muito bem, eu até estive com ele hoje, ele é... Inclusive ele é pastor de uma igreja batista do nosso bairro, que é a segunda igreja evangélica lá, mais antiga. Tem outra irmã que o nome dela é Maria Helena, se aposentou há pouco tempo, ela trabalhava no palácio do governo, completou a semana passada 58 anos na quarta-feira passada. Tem o meu irmão José Nunes Cordeiro, meu pai colocou em homenagem ao meu avô paterno, José Nunes Barreto, então meu irmão é José Nunes Cordeiro, ele é despachante comercial, trabalhou no SBT como caboman, trabalhou na rede Globo como garçom. Tenho outra irmã, Maria Wilma, ela é dona de casa, mas já exerceu magistério, casada com um professor aposentado do SENAI, casada. Tenho mais dois irmãos que faleceram pequenos, mais dois, inclusive o último chamava-se João Nunes Cordeiro, nasceu em 61, faleceu bem pequeno, poucos dias de vida. Então meu pai colocou o nome dele... Meu pai é João, né? Colocou o nome do filho de João Nunes Cordeiro Filho, mas não... Não vingou, pra decepção dele. Não vingou e depois não veio mais nenhum. Tenho uma irmã que nasceu em 1960, mora nos Estados Unidos, no estado da Geórgia, então ela tem um filho lá, cidadão americano. Depois tem... Deu aí um total de nove, não é? Uma turma boa, viu? Só seis estão... São seis vivos e três faleceram, faleceram ainda bem pequenos, não é?
P/1 – Bom, então só voltando à Vila Albertina agora. Quando o senhor chegou aqui, como é que era o bairro?
R – Como era o bairro, não é? Interessante. A nossa vinda pra cá naquela época só podia andar de ônibus, uma viagem de Pernambuco à São Paulo, só quem tinha um poder aquisitivo muito alto. Então era o pau-de-arara, o famoso pau-de-arara. Eu cheguei num pau de arara na Vila Maria, o dono do pau de arara morava lá, todo mundo desembarcava lá.
P/2 – O que é que é o pau de arara?
R – Pau de arara é um caminhão cheio de, na carroceria, madeira, cheio de bancos de madeira, sem estofamento nenhum, bancos de madeira, e tem uma estrutura de madeira também, coberto com uma lona, onde vinha uma pessoa... Com dois mil quilômetros ou mais, vinham até São Paulo ou Rio de Janeiro. Nós temos uns ônibus confortáveis hoje, nós reclamamos de alguma coisa, mas você imagina uma viagem dessa. Eu não lembro como é que foi, eu era muito pequeno, mas meu irmão se lembra muito bem. Uma viagem demorada, que meu irmão disse que demorou coisa de dez dias. É uma viagem longa, que o ônibus gasta hoje trinta e oito horas, quarenta horas. Nós desembarcamos na Vila Maria, e lá meu pai, que já estava em São Paulo, foi lá buscar a gente num táxi, que ele já havia contratado anteriormente. Chegamos lá nesse lugar, fui morar na rua Vieira de Melo, número 47, essa casa não existe mais, hoje é o número 847. Então é um lugar que não havia energia elétrica, na nossa casa, onde nós fomos morar, não existia energia elétrica nem água encanada. Nós tínhamos que buscar uma água, pegar no poço, ou buscar na mina. Lá o bairro era... Todos os morros eram repletos de mina, e corriam pra parte de baixo onde formavam brejos e tudo, e muito sapo, muita taboa, por isso o nome “Esmaga Sapo”, porque sapo era uma fartura muito grande. Então energia elétrica não tinha, nós tínhamos que usar a luz de lampião pra fazer uma lição. Quando a gente começou a vir da escola, chegou na época de ir pra escola, tinha que fazer lição às vezes sob luz de lampião; muito difícil, não é? Aquela fumaça pegava na roupa da gente, ficava preta, a pele também, ficava aquele pó. E a minha mãe ia passar roupa, o ferro de passar roupa era à brasa, carvão. Eu era muito pequeno, ela punha na mesa e pedia que eu assoprasse lá na traseira do ferro, no orifício lá pra pegar. Eu ficava até tonto de tanto assoprar pra ela passar roupa não só pros de casa, mas pras madames do bairro, olha que coisa difícil! Pra passar roupa pra casa com ferro à brasa eu sei que é muito pesado, você imagina pra passar pras madames do bairro, que trabalho que ela teve. E não tinha máquina de lavar, tinha que lavar no tanque, na mina, na bica, no tanque comunitário muitas vezes, e ela fez tudo isso. Então não tinha... Uma pobreza muito grande, o bairro estava se formando. Não tinha... O telefone público chegou primeiro, eu me lembro muito bem onde é que estava localizado. Depois veio o segundo telefone, eu lembro muito bem onde é que estava localizado, houve até briga no bairro, porque queriam o telefone, e tinha que instalar no lugar certo, porque as pessoas...
P/2 – O primeiro foi instalado onde?
R – Bom, tinha que ser instalado num determinado comércio no bairro, mas teve um briga num mercadinho... Teve uma briga com aquele dono do mercado, porque o dono do outro mercado também queria. E só tinha um, não podia... Então pra acabar com a briga vamos instalar numa casa, na casa da família Pederzoli, dos imigrantes italianos. Então quem queria... Quem quisesse ligar ia na casa do Pederzoli, no telefone público ligado numa casa. Depois que foi instalado o telefone público na loja do seu José Tarra, imigrante libanês. Depois veio outro lá no mercado, na padaria, que quando inaugurou, em 61... Na padaria Nova Morávia, hoje Lar do Parque Petrópolis. E depois vem o terceiro telefone, aí vai caminhando, vai crescendo.
P/2 – Aí deixou de ter briga.
R – Demorou muito, mas ficou muito tempo... Telefone público mesmo no bairro só tinham três telefones. No meu tempo de criança, três.
P/2 – E seu Nunes, como é que era quando não tinha luz? Vocês brincavam até que horas, como é que era a noite? Como é que vocês caminhavam pela rua, sem luz?
R – Então, quando a gente tinha que sair para um determinado local, casa de um parente, nós íamos... Era muito escuro, era um breu, você não reconhecia uma pessoa que vinha na sua direção, não havia a mínima condição. Então havia um costume na época de dizer assim: “Quem vem aí?”. E quem estava vindo em tua direção − porque você escutava o barulho e tal, o vulto − tinha que dizer: “É fulano de tal”. Porque se ele não respondesse era gente ruim.
P/2 – E aí?
R – Era um negócio meio estranho, não é? É um fato que me lembro, sempre estou me lembrando disso: “Quem vem aí?”. Interessante, tinha que se identificar, não é... E nós pisávamos em muito sapo, eu pisei em muito sapo, e eu tinha horror a sapo. Lá que eu fui conhecer sapo, então eu pisava, saía dando pulos, acabava pisando em outro. Era um horror, muito sapo lá! Por isso é que o nome ficou aquele nome pejorativo, “Esmaga Sapo”.
P/2 – Por causa das minas d'água?
R – Muitas. Porque em todos os morros, pé de morros, havia as minas d'águas. O que acontece? Elas corriam pra parte baixa, pra várzea, e formavam o córrego “Esmaga Sapo” e mais uns outros cinco córregos menores, e formava alguns brejos. Então a quantidade de sapos, rãs, pererecas e saracura − saracura é uma ave do brejo −, era muito grande isso. Eu achava que meu mundo era aquele, eu até então não tinha ido pra nenhum outro lugar longe, não sabia o que era cidade, nada, então eu achava que o meu mundo era aquele que eu vivia. Como eu não gostava daquele bicho, do sapo, eu decidi matá-los. Eu matava... Muito pequeno eu pegava tijolos de uma olaria que havia acabado, Olaria Garcia, do seu Francisco Garcia, ia lá, pegava os tijolos e matava o maior número de sapos que eu podia com tijolada. Enquanto eu não visse ele com as vísceras pra fora, não estava satisfeito. Ou então eu pegava um pedaço de pau, de madeira, e matava todos os sapos que eu podia ver, não sobrava um. Eu achava que eu ia conseguir acabar com os sapos do mundo, daquele meu mundo (risos), entendeu? Então eu fui um “esmaga sapo” mesmo, um “esmaga sapense” (risos).
P/2 – Que ótimo!
P/1 – E você e seus irmãos, vocês fizeram amizade no bairro quando eram pequenos?
R – Muito, muito rápido. O bairro... Primordialmente os nossos primeiros amigos foram a família... Olha, os imigrantes amigos das famílias italianas e a família espanhola. Família italiana, então você tinha lá Família Papa, não é? Logo casou com a família... Entrou na família (Loiacone?), amigos nossos, vizinhos nossos, (Loiacone?). E a família Cosignani, italianos também; a família Miara. Muita gente italiana, Bonfiete. Então uma família de espanhóis, do nosso lado, família Garcia, que se mudaram da Vila Romana pra lá e montaram uma olaria. Então nós tínhamos lá, fora a olaria do seu Francisco Garcia, tinha a olaria do seu Matias Ferreira, tinha mais uma outra olaria do filho do Matias Ferreira, onde produziam tijolos pra... Começar a construir aquela região toda. O seu Francisco Garcia é... Eu não me lembro, não tenho lembrança dele, só por foto, mas a esposa dele, a dona Aurélia Garcia, convivi muito com ela, é uma pessoa fantástica. Até hoje nós somos amigos da família Garcia e das famílias italianas, alemãs, que foram pra lá. Muita gente.
P/2 – Era um bairro mais rural?
R – Era. Inclusive, nos anos 50, na conta de luz, quando foi colocado energia elétrica na rua Vieira de Melo, onde eu me criei, vinha lá assim: “Zona Rural”. Nos anos 50 vinha conta de luz assim ainda, interessante.
P/1 – E como é que eram as brincadeiras?
R – Então, brincadeira, esconde-esconde... Brincadeira que não existe mais. Vivo ou morto, eram poucas brincadeiras, até. Bolinha, bolinha de gude, jogo de bolinha. E eram mais essas aí.
P/1 – Ninguém saía pra pegar rã à noite?
R – Eu não saía porque era um dos mais novos da casa, mas meus primos, o pessoal saía pra pegar rã, porque servia pra alimentação, a rã. Tinha a saracura do brejo que servia pra alimentação, só que muito difícil de pegar a saracura. No fundo da nossa chacrinha tinha um brejo onde eu costumava ver a saracura correndo lá, mas era muito difícil de pegar. Tinha uma rã lá que era muito difícil de... Que o pessoal procurava muito, quer dizer. A rã pimenta, dizem que era muito boa, eu nunca cheguei a comer, eu tinha nojo da carne de rã.
P/2 – E quem é que preparava a rã?
R – Não, na minha casa não... A minha mãe não fazia, mas tinha vizinhos lá que preparavam rã bem temperada, mas eu nunca comi. Nem carne de rã, nem a da saracura, nunca comi.
P/1 – E agora, quanto à escola?
R – Então, a escola... Não havia escola lá até 1953. Antes tinha uma escola lá próximo que era a escola da dona Alba, teve a escola da dona Nara Marcondes, família tradicional do bairro, e teve uma outra escola lá perto, chamada Rua Pedro, escola Rui Barbosa, onde começou, depois ela se mudou pra outro local. Mas no ano de 53 surgiu a primeira escola próxima à minha casa, escola do Sesi. Então eu estudei nessa escola. Entrei nela... Meus irmãos mais velhos entraram antes de mim, eu entrei em 62 nessa escola, era na beira do córrego “Esmaga Sapo”. Hoje está lá o prédio, é uma pizzaria nesse lugar. Então a escola do Sesi tinha a Pedreira Cantareira, que era o patrocinador da escola, injetava lá recursos. Naquele tempo a gente... Nós íamos de camisa branca com gravata, na época era diferente. A calça podia ser curta até o joelho, algumas crianças usavam suspensório, cheguei a usar uma vez, suspensório. Uma época pobre, porque num tempo que não existia uma merenda escolar como tem hoje, não existia um almoço... A escola tem almoço hoje, não existia. Não existia uma porção de coisas. Olha, as escolas hoje dão uniforme, dão mochila, dão tudo. Naquele tempo nós não tínhamos nada disso. As crianças hoje não valorizam o que têm, têm tudo hoje e não valorizam. Depois, em 1964 mais ou menos, eu lembro que apareceu lá o tempo da caixa escolar, então os alunos que eram pobres ficavam dependentes daquela caixa escolar. Recebiam lá um caderno, um lápis, alguma coisa, mas era humilhante pra gente, porque quem recebia material da caixa escolar, daquele projeto, eram as crianças bem pobres. Era humilhante. As outras crianças tratavam com diferença. “Ah, você é pobre, você é da caixa escolar. Você não pode comprar caderno, lápis”. “Você é pobre, na sua casa não tem uma televisão”. Porque quem tinha televisão era considerado rico, não é? Então: “Você não tem televisão”. Quem era mais ou menos, quem era considerado uma classe média é quem tinha um rádio, olha só! Quem tinha um rádio já estava bem. Quem tinha uma televisão era chamado de rico pela garotada, tal, interessante. A minha segunda escola foi montada na mesma rua, rua Vieira de Melo, esquina com a rua Antônio Luiz Saião, hoje. É uma subida que vai sair na Fundação Gol de Letra. Era uma escola de madeira pré-fabricada, foi minha segunda escola, o nome era: Escolas Agrupadas de Vila Albertina, outros chamavam de “Escolas Reunidas de Vila Albertina”. Então daquelas escolas pré-fabricadas se montaram muitas na cidade de São Paulo, muitas. Eu estudei lá também, nas duas unidades que foram construídas eu estudei.
P/1 – E o senhor falou do rádio e da TV. Na sua casa tinha o que?
R – Logo quando... Nos anos 58, 59, 60, nada disso. Só depois que melhorou um pouco, então meu pai comprou lá um... Um que se chamava radiola, porque tinha rádio e em cima uma vitrola. Alguns só podiam ter o rádio, meu pai já estava melhor, já pode ter uma radiola.
P/1 – E tinha costume de juntar a família pra ouvir?
R – Ah sim, porque... Uma palavra interessante que você falou, “ouvir”, né? Nós falávamos assim: “Vamos assistir o rádio”. Como se fosse a televisão, interessante. Então a gente ia assistir um programa chamado “Juvêncio Justiceiro do Sertão”, é rádio novela, não é? E aqueles programas lá. Até a Voz do Brasil pra nós era interessante, olha só, haja, né?
P/2 – O “Juvêncio, o justiceiro” o que é que era? Uma telenovela, uma rádio novela?
R – É, isso, novela, passava à tarde. Então interessante, muito legal. Aí o meu pai trouxe os primeiros discos, de música sertaneja, e a gente ficava... O disco até furava, de tanto a gente ouvir aqueles discos, pra nós era novidade, nunca tinha visto essas coisas. As coisas mudaram de uma forma muito rápida. Olha, eu, com 55 anos de idade, parece que eu estou falando de coisas de 80 anos atrás ou 100, mas não é, eu tenho 55. Houve uma mudança muito grande, o progresso foi muito rápido, eu fico impressionado com isso. Quando chegou o computador eu me neguei a usar o computador. Eu: “Não, da minha máquina de escrever eu não largo”. Eu digitava textos e textos na máquina de escrever. “Não, esse negócio eu não quero”. Eu tive... Chegou um ponto que eu não tive como não aderir ao computador, não teve como, e hoje eu vivo dia e noite com computador na mão.
P/1 – E uma coisa que eu queria saber é o que é que o pai do senhor fazia, com que ele trabalhava.
R – Quando ele chegou de Pernambuco... Ele veio primeiro, como eu já disse, trabalhou numa... Não vou falar em ordem cronológica, mas eu sei que ele trabalhou numa loja de calçados na rua Timbiras, esquina com São João, ele era balconista, ele era vendedor. Trabalhou num... Lanterninha num... Como é que diz? No cinema, lanterninha. Trabalhou no bar do irmão dele, “Bar do Zé Cordeiro”, “Bar e Bilhar do José Cordeiro”, o irmão dele tinha vindo primeiro e já estava bem. E depois ele entrou na fábrica de calçados (_______?), onde deu uma certa tranquilidade pra ele, porque ele trabalhou muitos anos lá. Foi filiado aos sindicatos dos calçadistas e se tornou líder, líder grevista, uma pessoa importante dentro da fábrica. Na época do Regime Militar o DOPS bateu muitas vezes na fábrica para prendê-lo e não conseguiu... Pra providência de Deus, mais uma vez. Algo inexplicável, toda vez que o DOPS ia lá procurando o − ele tinha o apelido de boliviano − procurando o boliviano, nunca encontraram, nunca conseguiram pôr a mão no seu João. Ele era militante político também, trabalhou nas campanhas do ex-presidente Jânio Quadros, convivia com o Jânio Quadros nesses comícios, ele organizava os comícios e o trabalho de comunicação visual, ele fazia isso. Ele saía da fábrica de calçados, virava a noite pra fazer comunicação visual e promover o candidato Jânio Quadros. Depois o Faria Lima, o prefeito, conviveu com o Faria Lima, com o vereador Nelson Proença. Então ele sempre foi, até hoje, metido na política, envolvido com a política. Depois que ele deixou a fábrica de calçados, montou uma quitandinha, me parece que a primeira lá do bairro, da rua Vieira de Melo, no barraquinho de madeira. Ele montou um depósito de reciclagem, naquela época um depósito de ferro velho, o nome que se usava. Ele teve uma sapataria, montou uma sapataria nos anos 60, dia 28 de janeiro de 64 ele comprou uma sapataria que estava em atividade na avenida, um barraco de madeira e da... Depois ele entrou no ramo de calçados, um exímio profissional, muito bom. Foi isso aí.
P/1 - E assim, quando o senhor estudava, então, como é que era o cotidiano na sua casa?
R – Era uma vida difícil, cinco filhos, depois veio mais um, seis. Então eu imagino... De manhã nós acordávamos não tinha um café com pão e manteiga, nem café com pão, somente. Hoje, na nossa casa, você abre a geladeira, você tem as coisas , danone, ou então margarina, não sei o que. Nós temos, graças a Deus, por isso, que ele nos deu esse tempo, mas nós não tínhamos isso. Tomávamos um copo de café ou xícara, ou então eram umas latas, umas canecas feita de lata, com a alça de lata também. Enchia de café preto, sem leite... As famílias pobres eram assim, não era só a minha casa não. E pegava uma colher cheia de farinha de mandioca, mergulhava no café e tomava. Esse era o café da manhã da maioria das famílias pobres, café preto com farinha de mandioca, alguns... Algumas vezes farinha de milho, eu começo a pensar nisso, eu não consigo acreditar que eu passei por isso.
P/2 – Mas o senhor gostava, na época? Ou o senhor nem pensava, assim?
R – Não, não. Aí ia pra escola, não levava lanche, porque não tinha. Chegava lá via alguns amigos de família mais abastada com pão com mortadela ou pão com manteiga, eu ficava... Doía até o estômago, ficava com água na boca vendo ele comendo pão com mortadela, pão com manteiga. Tinha criança que levava pão com óleo, que era o pão e jogava óleo de cozinha no pão, e as crianças ficavam... Aquelas que não podiam levar lanche ficavam numa situação difícil, humilhante. Então eu lembro que quando minha filha era pequena, ela disse assim: “Pai, não tenho lanche pra levar pra escola hoje”. É a filha mais velha, hoje ela está com trinta e dois anos. Então ela era pequena ela me disse assim: “Hoje não tem nada pra levar de lanche na escola, pai”. Aí eu falei assim: “Mas como não tem? Abre a geladeira. Você tem danone lá...”. Fui mencionando, na época, o que tinha na geladeira. “Olha, na mesa você tem lá banana, você tem pera e maçã. Ainda tem bolacha!”. Então eu pude contar com ela, fiz a conta com ela que tinha lá cinco coisas que ela podia levar de lanche. Eu disse pra ela assim: “Sabe o que é que eu levava na escola todos os dias?”. “O que, pai?”. Eu falei: “nada”. “Mas por quê?”. “Porque não tinha.”. Sabe? Então uma época muito difícil na vida da gente. Eu valorizo muito as coisas hoje, o ter as coisas, porque eu sei o que é não ter. Você ia almoçar, por exemplo, então tinha o arroz e feijão, estava ali, sagrado, mas... No nosso quintal era mini chácara, então eu era muito pequeno, fiz uns canteirinhos, muito pequeno eu fiz uns canteiros, até hoje sou meio vegetariano. Plantei lá alface − meu pai também plantou −, plantei couve, plantei uma porção de coisas. Então a gente tirava dali. Se não tivesse pelo menos um ovo, como pra complemento do arroz e do feijão, tinha salada, tinha verdura. Olha só, foi uma época difícil. Então quando... Frango era pro domingo, né? Era uma época muito difícil sim, muito difícil, no bairro. Hoje você olha aquilo e não acredita que foi uma zona rural. Eu ando nas ruas lá e eu sei o que era ali, que era uma trilha, que casa que tinha e hoje não tem mais, eu sei tudo: onde é que estavam as escolas, os comércios antigos. Cada vez que eu saio, que eu volto, parece que a gente fica viajando no tempo, né? Interessante, viajo mesmo. Mas era uma época difícil. Mas o importante é o seguinte, teve uma alimentação muito... É considerada muito fraca uma alimentação dessa, não tem todos os componentes. Teve uma alimentação, numa época... No nosso começo lá, depois foi melhorando, como é de se esperar, mas houve essa alimentação muito deficiente. Nunca faltou, nunca passamos fome, mas eu sei de casos que não tinha nem o que nós tínhamos lá. Aquele pouco que nós tínhamos, algumas casas não tinham nem aquilo, olha que coisa séria. Então muito difícil, uma época muito difícil em nossas vidas.
P/1 – Então, seu Nunes, eu queria saber um pouquinho mais da sua época de escola, como é que era. O senhor era um bom aluno, como que era?
R – A primeira escola que eu estudei, a escola do Sesi, bem do lado do rio, córrego “Esmaga Sapo”, era uma escola bem pequena, classe única, com duas turmas, primeira e segunda ali, depois, mais tarde, terceira e quarta, tudo lá dentro do mesmo ambiente. Olha que dificuldade pra um professor hoje. Hoje você tem escola com tudo quando é sala e recursos. Eu tinha dificuldade numas matérias lá, numa matéria, matemática. Até hoje, problema com números, mas na... E eu, olha, tenho até hoje minha... Como é que fala? Minha cartilha, que era o nome. Minha cartilha da primeira série, eu tenho ela ainda, com a mesma capa da época, porque naquele tempo a gente encapava com papel de pão. Agora, quem tinha dinheiro comprava um papel bom e encapava. Os pobres encapavam com o papel que traziam da padaria, o papel do pão, então está com a mesma capa daquela época. Eu estive olhando lá outro dia minha cartilha, que minha leitura só tinha dez. Eu falei: “Poxa vida, então eu gostava do ler desde aquela época, da leitura, porque as minhas notas eram boas.” Vinha época de prova, a gente via lá, português e geografia, especialmente essas matérias, e eu não estudava. E ninguém acreditava que eu não estudava. Eu tirava nota boa de português, de geografia e de história, tirava notas boas sem ter estudado, um negócio... Um dom. O professor falou lá, deu a matéria, gravei, pronto, não precisava estar em casa martelando, estudando. Agora, matemática, meu castigo, não é? Meu castigo. Eu tive dois professores lá que marcaram muito a minha vida, logo na primeira série, na segunda série, professora Valdete, [de] família tradicional do bairro, família Veloso, família tradicional. E a segunda professora tinha acabado de chegar de Belo Horizonte, professora... A primeira era Odete, Odete Veloso, e a segunda Valdete Cortez. Essa já não era de família do bairro, veio de Belo Horizonte pra tentar a vida em São Paulo. Aí eu passei pra escolinha mais pra cima, escola...
P/1 – Só um minuto. Por que é que essas professoras te marcaram?
R – Olha, o carinho que dava pra gente, a atenção, o carinho que elas transmitiam, não sei se hoje é assim. Tratavam a gente como se fossem filhos. Tratavam a gente tão bem, que levavam pra própria escola os filhos deles. E os filhos deles se misturavam conosco, como se fossem nosso... Da nossa classe, da família, a ponto que nós íamos... Olha, eu era muito pequeno, e eu ia com um grupinho de amigos buscar a professora Odete na casa dela, coisa de quase um quilômetro, passando por lugar ermo. Então, naquele tempo não tinha movimento de avenida, não tinha... Sabe? Passava um carro ou outro, o transporte mais... Tinha muita carroça, cavalo, meu pai mesmo tinha carroça, cavalo, bicicleta. Nós íamos quase um quilômetro buscar a professora, ou um quilômetro, a pé, e nós íamos pelo caminho, [que], como eu falei, era um lugar meio ermo, muito mato e tal. E pegando flores, cada um formava um buquê de flores para dar pra professora quando chegasse lá na casa dela. Íamos buscar ela em casa, olha que carinho! E os alunos hoje, fazem o que? Põem bomba no meio da escola, chutam as pernas... Tenho cunhada professora, chutam perna da professora, assassinam professora, faz atentado. Olha, uma porção de coisas. Ligação anônima, bilhetinho pra professora, riscam carteira, banheiro, tudo! Que época diferente!
P/2 – Mudou, né?
R – Que época diferente! Então a segunda professora, a Valdete, nós fazíamos a mesma coisa. Quando chegou a professora Valdete, íamos buscá-la − um pouquinho mais perto − também em casa, olha só que coisa interessante. Então todos os dias, praticamente... Nós não fazíamos isso todos os dias não, mas na mesa da professora todos os dias, não era bolinha de papel que era jogada, não era lixo, tinha quase todos os dias na mesa da professora um vidrinho lá com as flores que nós trazíamos do caminho quando vínhamos das nossas casas também, e às vezes pegávamos no jardim de alguma pessoa, estava pertinho assim, a gente esticava a mão e pegava. Interessante relembrar essa época, porque eu vou na reunião da escola e faço parte de uma entidade que eu estou até de licença: Gideões Internacionais no Brasil. É um trabalho que eu faço nas escolas, de levar uma palavra de cinco, dez minutos nas escolas. E eu vejo as escolas em um estado precário, um patrimônio tão grande daquele e os alunos não conservam, eles destroem. Era pra conservar, eles destroem. Eu não consigo entender como o ser humano... Eu tenho dificuldade de entender isso, como o ser humano ele evoluiu tanto em certos aspectos, coisas que eu não vi, até que eu não conheço ainda, mas ele se coloca, não vou dizer nem como um animal, porque o animal não podemos dizer, “pô, o camarada parece um animal”. O animal não raciocinou, ele não tem esse privilégio que a gente... Saber conhecimento do bem e do mal, conhecer as coisas, Ele não tem corpo, alma e espírito, não é? só tem dois itens lá. Então não é um ser humano, e o animal não faria isso, o animal protege o seu meio ambiente. O ser humano, Deus dotou ele de corpo, alma e espírito, tricotomia, e o ser humano faz coisas que eu tenho dificuldade de entender. Os alunos acabarem com as escolas, cada vez que eu vejo uma escola num estado desse, eu tenho dificuldade de entender isso, eu fico com o coração partido, porque eu − mais uma vez −, eu sei o que é não ter. Eu passei por escolinha de uma classe, então... A minha segunda escola depois do Sesi, a Escolas Agrupadas de Vila Albertina, era uma escola já. Apesar de ser de madeira pré-fabricada, ela tinha duas salas. Tive lá professoras que marcaram a minha vida também. Depois, pertinho da minha casa também − ficava entre as duas, eu morava entre as duas escolas −, muito boa também, professoras que marcaram a minha vida, como a professora Rosa, ainda é viva, muito carinhosa. Professora Maria Eugênia, mora no bairro ainda, está bem velhinha, querida por todo mundo. Essas pessoas elas passavam na rua − naquele tempo as ruas eram de pó, de terra −, elas passavam nas ruas assim, eram tratadas como autoridade. “Está passando ali uma professora”, era um autoridade na comunidade, nós parávamos pra ver uma professora passar. Eu não estava nem na escola ainda, tinha lá meus quatro, cinco, seis anos de idade, não estava nem na escola ainda. Quer dizer, naquele tempo entrava-se... A gente entrava na primeira série com oito anos, não era nem sete. Hoje é com seis. Então nós parávamos o que estávamos fazendo, brincando e tal, pra ver uma professora passar. E hoje é tão diferente, não é? Aquela escola também marcou muito, tive a professora Mércia Terezinha Caput, família italiana, muito legal. Fomos buscá-la algumas vezes na casa dela também. Dona Maria José, professora Maria José. Nessa escola já tinha, já começou a ter lanche, 65, eu acredito, 64, 64 em diante começou a ter lanche, olha. Então de vez em quando tinha um lanche lá, um sagu, tinha algum lanche lá bem fraquinho, mas tinha alguma coisa de vez em quando. E pra quem não levava, podia comer alguma coisa lá. A cantina... Essa cantina era menor do que isso aqui, onde se preparava o alimento, tão pequenininho, menor que isso aqui. Então a mulher que cuidava da limpeza e da cantina era a mesma pessoa, Dona Idalina, pessoa fantástica. Ela beijava a gente quando chegava, sujava aqui de batom e sujava a nossa roupa de batom, amava todos os alunos como se fossem filhos. Isso a mulher que cuidava do nosso lanche, a mulher que fazia a limpeza, amava os alunos a ponto de, aquele monte de criança passando, ir beijando essa turminha como se fossem filhos. Que coisa né, muito bom!
P/2 – E seu Nunes, nessa época o que é que o senhor queria ser quando crescesse?
R – Eu pensava em ser humorista, porque depois a minha vizinha, família Garcia, a família dos espanhóis, tinha TV, então nós íamos ver a “televizinha”, assistir televisão na vizinha. Hoje eu fico pensando como é que nós íamos lá todos os dias e aquela mulher nunca nos enxotou, ela nunca nos tratou mal. Família Garcia é um exemplo na nossa vida. Sabe, como é que pode? Todo dia você ter lá três, quatro, cinco crianças lá dentro, seis, pra assistir televisão. Aí eu ficava vendo lá um programa de TV de humorismo, era o… Tinha o Chico Anysio, começo de carreira, Jô Soares, tal, mais alguns que não me lembro. E eu queria ser um Chico Anysio, inclusive eu fazia muita peripécia, imitando eles e tudo, na escola. Eu até hoje de vez em quando invento alguma. Mas depois não foi adiante, faltou alguém entrar no caminho da gente pra um incentivo, tal. Então não entrei na área do humorismo.
P/2 – Mas da família do senhor, alguém falava pro senhor seguir alguma carreira, ou não?
R – Não. Para falar a verdade, não. Nos últimos anos sim, eu, depois de maduro, sim, recebo... As pessoas que chegam pra mim, eu considero como amigos mesmo, que chegam pra mim e diz assim: “Olha, você precisava fazer faculdade de história. Você precisava fazer psicologia, você precisava fazer o magistério”. Até pensei em fazer, mas um diretor de uma escola me tirou de cabeça: “Não, sai fora”. Então na época ele... Há mais de vinte anos atrás ele me tirou da cabeça. Eu já estava pronto pra fazer magistério, mais de vinte anos atrás, ele não... Um diretor de uma escola não me deixou: “Não, você não vai fazer magistério”. Então me senti até meio frustrado, porque eu gosto muito dessa área do ensino. De certa forma eu me sinto realizado, porque eu dou aula de religião. Eu estou exercendo, estou passando conhecimento, então eu me sinto realizado. Sou voluntário numa igreja, às vezes me chamam em algum lugar pra fazer alguma palestra, eu vou. Me sinto realizado, porque estou passando conhecimento. Não precisei ser professor formado, ter o canudo.
P/1 – E quando o senhor optou em fazer magistério, teve algum preconceito? Porque nessa época...
R – Então, esse professor da escola falou pra mim assim: “Olha, eu estou me aposentando esse ano. Estou aposentando e você querendo entrar no magistério! As escolas estão entrando num estado de decadência, aluno não respeita professor, estão acabando com as escolas, como é que...”. Começou a contar tudo aquilo que a gente sabe que estava acontecendo a mais de vinte anos atrás. E violência nas escolas e tudo, estava se aprofundando muito isso. Então ele falou assim: “Sai dessa, sai dessa, como amigo. Eu estou falando como amigo”. Eu peguei e ouvi o conselho dele.
P/1 – Se arrependeu, ou não?
R – Eu me arrependi porque eu gosto da área. É difícil falar, eu gosto da área do magistério, eu gosto. Então eu me arrependi sim, pra falar a verdade eu me arrependi. Primeira pessoa que me pergunta isso, se eu me arrependi; eu me arrependi sim, com certeza.
P/2 – Mas aí, como é que caminham as atividades profissionais do senhor? Como que o senhor começa a trabalhar, no que...
R – Então, o meu pai montou a primeira quitandinha dele lá no bairro, era um barraquinho de madeira, que hoje em dia um barraco de madeira... Hoje em dia arrombam e levam o que tem lá dentro, não precisa nem ser de madeira, não precisa nem ser de madeira. Ninguém mexia. Tinha lá mexerica, que ele vendia na época da mexerica, banana, doces e... Comprou um engenho pra moer cana, eu era muito pequeno, eu nem conseguia dar aquela volta pra moer a cana, era um sacrifício muito grande. Depois eu... Ele montou também um depósito de sucata, eu ajudei ele também nisso. Muito pequeno, mas o pessoal ia lá vender as coisas. Ele saía pra rua numa carroça e cavalo pra comprar, eu ficava lá, muito pequeno, adolescente, mas eu tinha responsabilidade nisso. Ele deixava o dinheiro lá pra eu pagar quem fosse comprar, vender o material. Depois ele montou lá a sapataria dele e eu me criei lá dentro, com onze anos de idade eu já estava dentro da sapataria. Ficava olhando o funcionário dele fazer, ou ele fazer o serviço. Eu aprendi olhando, mexer... Formar um sapato. Depois eu aprendi a fabricar sapato de homem, fabricava calçados finos. Inclusive eu que cuidava dos calçados da Elis Regina, da cantora Elis Regina. Tratava muitas vezes com o motorista particular dela, e algumas vezes tratei com ela, pessoalmente. Era uma honra ter a Elis Regina parada no meu balcão, uma mulher tão famosa e eu cuidar dos calçados dela. Ela ia pra TV, pro programa da Hebe dar entrevista lá e tudo, e eu via os calçados lá. Poxa vida, ficava satisfeito de vê-la com os calçados que eu cuidei né, botas, ela gostava muito de umas botas. E o César Camargo Mariano, o maestro, tudo, foi companheiro dela na época, e eu também cuidava dos calçados dele, também chegou a ir no meu serviço. Cuidava dos calçados do primeiro marqueteiro do Brasil, primeiro homem no Brasil que montou uma agência de publicidade, Rodolfo Martensen, tem fotos dele inclusive aí. Rodolfo Martensen eu cuidava dos calçados dele e da esposa. Era uma honra ter um Rodolfo Martensen no meu balcão, sabe, a gente se sente valorizado, poxa vida, que pessoa tão importante como foi Rodolfo Martensen. Tem até... Deve ter até um museu com o nome dele, acho que no Rio Grande do Sul, ou São Paulo, museu Rodolfo Martensen. Cuidava dos calçados de gente importante que a gente até não lembra agora. Por exemplo, no meu balcão eu via semanalmente Rita Lee, os Mutantes passando na minha porta. Eu conheci, quando os Mutantes começaram, 66, gravaram o primeiro CD, em 68, acredito, ou 66 também, conheci os Mutantes quando começaram, Rita Lee...
P/2 – Onde ficava a sapataria?
R – Na Avenida Senador José Ermínio de Moraes. E ela, essa avenida, teve o nome de Estrada Velha do Juqueri também, foi o nome pioneiro... O primeiro nome, quer dizer. Essa avenida também teve o nome de Avenida Nossa Senhora Aparecida.
P/2 – É lá no bairro?
R – No bairro, ela corta lá, mas sobe a Serra da Cantareira.
P/2 – Como é que essas pessoas ficavam sabendo da sapataria?
R – Porque tinha placa assim: “Sapataria Nunes”. E acho que um indica o outro, e iam lá. Eu estava no balcão, vinha passar Antônio Marcos e Vanusa, todos os dias, nove horas da manhã. Vi crescer Maria Rita, Areta e Amanda, menos o último filho dela. Maria Rita é filha da Elis Regina e o João... O João tal, e o Marcelo tal... Então vi esses meninos crescerem, tanto da Elis Regina como da Vanusa e Antônio Marcos, vi crescerem. Ayrton Senna, eu conheci Ayrton Senna eu tinha 12 anos, ele devia ter uns cinco anos a mais, eu acredito. Eu moro... Morava perto da minha casa. Então Ayrton Senna ia na casa dos meus vizinhos para brincar, família Melara, família Loiaconi Melara, tal. Iam brincar lá o Ayrton Senna. Eu ia ver ele correr de Kart com 12 anos de idade nas Palmas do Tremembé. Aos sábados ia ver correr de Kart, treinar Kart. Então vi o Ayrton Senna crescer, o irmão dele, o Leonardo, a irmã morou bem pertinho da minha casa, a irmã do Ayrton Senna. A minha esposa já frequentou, frequentava a casa deles, meu irmão mais velho, minha cunhada frequentou. Eu só chegava até o portão, nunca entrei...
P/2 – São pessoas que moram por ali, nas redondezas.
R – Isso mesmo. Então a gente conhece uma porção de artistas da região, como, por exemplo, mora quase vizinho meu lá o Menino Maluquinho, que é o Samuel, ele fez aquele filme lá, trabalhou em novela, é quase meu vizinho. Temos lá gente... Assim, a gente conheceu muitos anos gente mais... Mais pessoas como... Como, por exemplo, Zé Betio, já vi muito o Zé Betio. Muita gente, aquela dupla, Tom e Ravel, moram perto da minha casa; faleceu um, tem um que está lá ainda. Então é uma lista muito grande de artistas, de gente importante que...
P/2 – Clientes.
R - Não só de... Alguns não clientes, mas que a gente teve algum contato. Conheceu tal e conhece, é uma lista muito grande, não é?
P/2 – E o senhor trabalhava na sapataria?
R – Na sapataria. Meu pai parou de trabalhar na sapataria em 74, aí eu comprei a sapataria dele, acabei abrindo mais uma, fiquei com duas, depois eu... Há 25 anos eu me dediquei à área gráfica, o sapato... Sapataria é uma das atividades, assim como relojoeiro, alfaiate, entraram em decadência, então a sapataria também. As sapatarias hoje são raras, são poucas. Antes em cada esquina tinha uma. Então eu peguei e aprendi uma nova profissão. Eu trabalho na área gráfica há 25 anos, e gosto do que eu faço, também.
P/2 – Mas o senhor mantém a sapataria por quê?
R – Por tradição, por meu pai. É a mais velha de atividades da região, imagina, 64, aquela região tinha poucas casas. O meu pai... Ela já estava funcionando na mão de outro dono, do seu José Marin, o meu pai comprou e eu fui crescendo ali, peguei gosto por aquilo. Eu tenho prazer de pegar um sapato todo destroçado e deixar novo, eu faço por capricho. Não é porque o cliente está me pagando, eu faço porque eu gosto de fazer aquilo, de ver o resultado final. Eu mantenho por capricho mesmo, e não tenho tempo mesmo pra me dedicar. Mas pra você ter ideia, essa sapataria ficou tão famosa que vinha sapatos de Belo Horizonte pra serem consertados, pessoas que moraram no bairro e se mudaram pra lá, pro bairro Santo Efigênia, Itaquaquecetuba, Santos, Praia Grande, Atibaia, Mairiporã, é... Olha...
P/2 – Clientela grande.
R – É, Santo André, São Caetano. Então eu cuidava... Cuidei até dos sapatos do apresentador do SBT, do telejornal do SBT, do... Eu esqueci o nome agora, mas...
P/2 – O atual?
R – Não, ele faleceu há pouco tempo, no litoral. Ele ia lá pessoalmente levar, então eu cuidava dos calçados dele. O Lívio Carneiro. Eu cuidava dos calçados de Lívio Carneiro, de atletas...
P/2 – Agora, o senhor estava falando lá fora assim... O que dá gosto de ver um sapato bem cuidado?
R – Aparecem muitos serviços pra mim lá e falam assim: “Olha, eu levei esse sapato em outro lugar, olha o que fizeram. Eu quero que você desfaça o que a pessoa fez e faça de novo, porque não ficou bom.”. “Mas você vai pagar de novo pra eu fazer? Eu vou te cobrar. Você vai pagar de novo pra eu refazer?”. “Eu prefiro que você desmanche, que eu soube que você trabalha bem na área, então eu pago pra você fazer e não importa, eu perco o dinheiro que eu paguei pro outro.”. “Não, mas você deve levar pro outro, eu recomendo o seguinte, leve pro outro, porque você pagou, você tem que reivindicar o seu direito de consumidor, porque se eu não fizer bem feito pra você, eu tenho que refazer ou te devolver o teu dinheiro, tenho que te ressarcir de alguma maneira, então você volta lá onde fizeram o serviço mal feito e reivindica o seu direito. O brasileiro tem que aprender isso.” “Não, não, pra mim só basta uma vez, errou uma vez já não confio mais, não quero mais saber.”. Aí paga pra mim, muitas vezes, pra eu refazer. Outro dia estava fazendo um serviço que eu gastei seis horas. Um serviço pra ganhar 30 reais, prejuízo pra mim. Um amigo meu que é publicitário inclusive falou pra mim assim... Ele estava lá me acompanhando, eu fazer o serviço, ele me disse: “Isso é prejuízo, você é louco, fazer isso!”. Não, eu faço porque eu gosto, eu faço porque eu gosto. Foi um trabalho artesanal, eu refiz o calçado da pessoa, eu refiz. Pra você ver, pra artistas como Elis Regina, e César Camargo Mariano, levar um calçado pra eu cuidar, tinha que ser... Tinha que ter qualidade. Mas isso eu aprendi tudo com o meu pai, meu pai era... Era não, é. Ele não trabalha mais na atividade há muitos anos, mas é uma pessoa muito perfeccionista. Eu o via gastando uma hora pra consertar um sapato e pensava assim: “Poxa vida, isso aqui eu faria em 20 minutos. Ele está tomando prejuízo de gastar uma hora lá.”. Eu criticava, e por fim eu entrei no mesmo barco.
P/2 – Seu Nunes, mas como é que antigamente os pais sabiam o tamanho do pé da criança pra comprar sapato?
R – Ah, o meu pai ia comprar um calçado pra nós, ele media com barbante. Porque ele não levava a gente na loja pra escolher o sapato. As crianças hoje são privilegiadas, escolhem a marca do calçado, se não for marca famosa não quer o calçado, o tênis. Naquele tempo nós não podíamos nem escolher marca e nem ir na loja pra escolher, tinha que receber o que desse. O pai da gente media com barbante o pé da gente, era comum naquela época. Ia lá na loja e trazia pra gente sabe o que? Um tamanco, meninos usavam tamanco.
P/2 – Ah é?
R – É. Embaixo era de madeira e sem sola, madeira mesmo, fazia um barulho na rua. Meninos usavam tamanco e os pés tanto fazia pé esquerdo ou pé direito, era uma forma só. Em cima do tamanco era couro, durava bastante. E também, quando o pai estava com dinheiro, comprava uma coisinha melhor, uma alpargata roda. Vocês sabem o que é isso?
P/1 – Não.
R – Era um calçado de pano em cima, e embaixo de corda, corda mesmo. E a corda, quando ia gastando, ia saindo pra fora. A gente pegava uma tesoura e ia cortando, depois ia gastando, saindo pra fora, uma coisa horrorosa.
P/2 – Eu usei.
R – Usou?
P/2 – Foi moda uma época. Ele enrolava a corda embaixo, né?
R – Isso mesmo.
P/2 – Enrolava.
R – Enrolava...
P/2 – Mas o tamanco era bom pra esmagar sapo?
R – O tamanco usava até acabar.
P/2 – É, mas era bom pra esmagar sapo também?
R – Tamanco o bicho não... Nossa, o tamanco era uma beleza. Enquanto não visse uma tripa... As vísceras saindo pela boca do sapo, não estava satisfeito.
P/1 – E para trabalhar o senhor parou de estudar ou fez os dois?
R – Como é que é? Pode repetir, por favor?
P/1 – Quando você começou a trabalhar, o senhor parou, largou o estudo?
R – Foi, olha, eu me arrependi. Eu incentivo as pessoas a estudarem, minhas filhas mesmo eu incentivo muito, incentivo muito. Alguém pode dizer assim: “É, mas você não estudou o tanto que deveria.”. Alguém pode dizer isso, mas eu sou obrigado a dizer o meu histórico de vida, o porquê eu parei. A gente chega numa idade... Eu comecei a estudar à noite pra trabalhar de dia e pra ajudar na renda. Aí vem aluguel, naquela época não tinha luz, mas agora tem luz, tem que pagar a luz. Não tinha água, mas agora tenho água encanada, tenho que pagar, não vai buscar mais na bica, tem que pagar conta de água. E por aí vai indo. Então todo mundo começa a trabalhar pra ajudar na receita da casa. Eu comecei a estudar à noite, fui fazer... Naquela época era o supletivo ginasial, fui terminar à noite. Escola particular, eu pagava, hoje tem de graça, mas naquela época não tinha, supletivo ginasial. Fui fazer à noite, e eu lembro que eu trabalhava de dia, e eu cochilava. O professor estava lá falando e eu dormia na aula, não tinha como não dormir, não tinha como, acabava muito tarde a aula. E quantas vezes o professor pegava a gente dormindo, não era só eu. Então difícil, eu pensei: “Poxa vida, a gente tem dificuldade na matemática, aquele velho problema.”. Isso me desestimulou muito, ter que trabalhar de dia e estudar de noite. Eu não fui perseverante, não é? Eu tenho que reconhecer que eu não fui perseverante nesse ponto, a pessoa... Eu acho que a vida é um aprendizado constante, você não deve para nunca, nunca. Um médico terminou a faculdade de medicina, ele tem que participar de congressos, de cursos, de clínicas, e por aí vai indo todas as profissões. Eu me arrependo muito de ter parado onde parei, então faço uma coisa pra compensar. As pessoas me dizem: “É, mas você ainda está novo”. Um elogio. “Você pode voltar a estudar”. Mas eu sou um... Me considero um autodidata. Por exemplo, eu comecei a aprender outras línguas sem o banco de uma escola, e discuto certos temas que eu não tive no banco da faculdade pra estudar. Sou um autodidata, eu leio muito, minha estante não cabem mais livros. Eu leio muito, pesquiso na internet horas e horas. E como o meu círculo de amizades também não é só de pessoas simples – que a gente aprende muito com as pessoas simples também –, eu aprendi muito também com as pessoas de alto nível, que são meus amigos. É uma troca, essa vida é uma troca, não é? Eu compenso muito isso, busco conhecimento sempre, sempre.
P/2 – Quando foi que o senhor começou... O senhor levou a atividade de sapateiro, depois a gráfica, e quando o senhor começa a escrever? Como é que é essa passagem?
R – Eu me lembro que eu saía... Eu era muito pequeno e saía pro quintal da nossa pequena chacrinha, ia pra parte mais alta e eu ficava olhando para todos os lados, e só via verde, só área verde, só mato. Vi construir a torre da Embratel lá em cima, na Serra da Cantareira. Eu ficava no meu quintal vendo os homens lá puxando com a corda aqueles pedaços de torre, tudo, os ferros. Eu ficava fascinado com aquilo, gostava muito daquele ambiente, pra mim eu acho que não deveria ter mudado nunca. Eu ia lá nos riozinhos, lá nos riachos, eu via os peixes. Hoje você não tem mais isso, é esgoto. Então de noite você dormia com os animais, o som dos animais. O que perturbava mais era o sapo, quando começava a escurecer, o sapo: “ou, ou, ou”. Aí eu ficava imitando o sapo lá. Então você dormia com o som de toda a natureza, que coisa fantástica, não é? De repente, em 1960, começam a lotear o Jardim Daise, aí você começa a ver o meio ambiente sendo afetado, terra indo pra cobrir fontes de água, minas. Você começa a ver o meio ambiente sendo afetado. Daqui a pouco, em 67 ou 68, é loteado a Vila Esmeralda e Jardim Santo Alberto, aquela parte de baixo ali do Gol de Letra, que você olhando... Aí que foi dor no coração mesmo, porque toda aquela reserva que dá... Porque a Serra da Cantareira dava aquela volta toda, e eu ia até lá, pequenininho, com o meu pai, buscar madeira e tudo. Aquela reserva foi toda jogada no chão e aberto ruas e loteado. E aquele monte de minas d'água que eu via quando ia buscar água, muitas vezes, coberta com terra, os tratores cobrindo dia e noite. Então já não tinha mais peixe, não tinha mais córrego, não tinha mais mina. Sobraram alguns riachos lá, mas puro esgoto, praticamente, canalizados, só tem o grande que não está, o córrego do “Esmaga Sapo”. Eu vi o meio ambiente sendo afetado a partir de 1967 e 1968 com mais profundidade, mas eu pensava assim: “Por que não se preservou uma área aqui, aquela árvore ali que... As árvores que eu ajudei a plantar quando era pequenininho, lá na época da semana da árvore no pátio da escola, até aquelas árvores foram arrancadas, todas.”. Eram árvores históricas, os alunos que plantaram na semana da árvore. Então não havia uma consciência de preservação do meio ambiente, de preservação do patrimônio histórico, cultural, ambiental, tudo isso, não havia essa consciência. Mas eu, nessa época de... Que eu estou descendo a rua Vieira de Melo com o meu irmão mais velho, eu era bem jovem, deveria ter 20 anos, de 20 a 22 anos de idade. Ia descendo a rua Vieira de Melo com o meu irmão e comentando assim: “Olha só aquilo que era quando nós éramos pequenos, olha agora como é que está isso, tudo mudado.” E como eu sou muito ligado nesse negócio de conservar mesmo as coisas, eu estava chateado com as mudanças, com a metamorfose da região. Eu falei assim pra ele: “Eu bem que poderia começar a escrever a história desse bairro. Mas eu poderia fazer o seguinte, fazer uma exposição de fotos na escola João Ramos. Aí as pessoas vão dar as fotos pra gente fazer a exposição. Depois eu vou acabar tendo contato com as pessoas, vou entrevistar e vou fazer o livro, vou fazer a história do bairro, pra preservar isso aqui tudo.” Aí eu pensei... Ficou só no projeto, porque eu não olhava pra dentro de mim, apesar de ser sonho, eu olhava pra dentro de mim e não me valorizava: “Quem sou eu pra escrever um livro?”. Tudo bem que eu tinha notas boas de português, de história. Tudo bem que eu fiz um trabalho sobre Santos Dummont, eu era muito pequeno, devia ter dez anos de idade, fui para a Bienal do Ibirapuera, um trabalho que eu fiz, o título foi... Era semana da asa, e o título foi: “O Mineirinho que inventou o avião”. Esse trabalho foi pra Bienal, até, mas escrever a história de um bairro é algo muito pesado. Eu falei: “Não, não, eu não tenho capacidade pra isso.” Pus na cabeça que não tinha capacidade. Quando é agora, 1999, se não me falha a memória, uma pessoa da nossa região lançou um livro, Tramway Tremembé, tal, que é o Britto. E eu fui no lançamento do livro, foi lá no pátio, tal, fui no lançamento do livro, falei: “Ô Britto, poxa vida, eu tenho um projeto antigo lá engavetado e você só tem 13 anos no nosso bairro, você foi audacioso.” Então o Britto foi o causador disso, ele... Não sei se ele vai se lembrar disso, mas o Britto foi o causador disso, porque poxa, se o Britto só tem treze anos no bairro e ele fez... Ele morava, nessa época, perto da casa do Ayrton Senna, quase em frente. “Ah, então eu posso.” Aí comecei a… Um professor de história, meu vizinho, falou: “Escreve rapaz, escreve”. Ele deu o segundo empurrão, professor de história, meu vizinho, chamado Dinho. Aí comecei a escrever. Depois do Britto, logo em seguida comecei a organizar as minhas coisas, as minhas anotações e tudo. O Brito lançou seu segundo livro em 2004, se eu não estiver enganado. Também estive lá no lançamento, conversei com ele. Foi lançado um livro lá, “Cantareira”. Não sei se vocês conhecem, um livro ”Cantareira”, capa branca, muito bonito. Outra pessoa muito importante lá do bairro não deixou nem eu comprar, me autografou o livro, um arquiteto famoso, o Ari, um arquiteto chamado Ari Albano. Eu comecei a escrever, quando eu estou com o trabalho pronto – escrevi tudo à mão –, a minha mãe ficou doente. Nós filhos tivemos que ajudar a cuidar dela. Chegou a ficar hospitalizada, dia e noite cuidando dela, uma de dia, um à noite, tudo, ninguém deixou faltar nada. E eu não tive como escrever mais, porque eu não tinha cabeça pra isso, só pensava na minha mãe no hospital. Aí eu parei. Então ela operou o ano passado, foi sério, um tumor e tudo, está entre nós, vai fazer 84 em agosto. Eu retornei a digitação do texto, não vou marcar mais data pro lançamento do livro. Ele está todo escrito à mão, e eu estou digitando o texto, depois vai pra revisão, tudo.
P/2 – Está para ser lançado?
R – É. Mas eu tenho um livro pronto que eu vou lançar logo, antes desse, que eu escrevi há vinte anos. Morreram alguns personagens do livro e eu falei: “Não vou lançar mais, não tem graça”. Aí uma pessoa me disse assim: “Olha, você deve lançar, porque você fez uma parte mais difícil, você escreveu a biografia do morador do bairro. Você, depois de tanto trabalho, não vai lançar? Deve lançar.”. Esse livro está prontinho, todo digitado, inclusive, é só lançar. É a biografia de um morador que ele foi um oficial da polícia militar do estado de São Paulo, foi um pastor batista, uma pessoa muito querida na nossa comunidade. Não lancei e já estou escrevendo o terceiro, que é a história dos Nunes. Volta e meia eu vou lá e ponho logo um texto novo, que aquele que a gente pretende escrever sobre a história dos Nunes. Os Nunes desde Israel, Portugal, Espanha, Brasil, uma história muito longa, muito complexa, inclusive que vai mexer com história antiga.
P/1 – Bom, na verdade, antes, um pouquinho antes da Gol de Letra, antes dela ser inaugurada lá na Vila Albertina, corria algum boato de que o Raí e o Leonardo queriam fazer alguma coisa lá?
R – Não, o boato eu não... Como é que se deu isso? Alguém me disse – eu não lembro quem foi –, me disse assim: “Olha, o Raí e o Leonardo vão fazer um projeto lá naquela escola que está fechada.” A escola foi fechada, então favelas em volta, roubavam... Arrebentavam vidraça, roubavam filtro, roubavam tudo que tinha na escola. A escola que foi lá pra beneficiar a comunidade não pôde permanecer ali por causa dos roubos que eram constantes, era um prejuízo. Então o patrimônio lá tão grande, tão bom, ficou abandonado. Ali, no passado, eu conheci, era uma chácara da dona... De uma portuguesa, me fugiu o nome agora. Era uma chacrinha, tal, e... Maria Vieira, se não me falha... Se não estiver enganado. Então fizeram ali aquela escola, mas ali era invadida, não era dela, a propriedade. Disseram que ia montar essa entidade lá, a Fundação, e eu pensei assim... Pensei da mesma maneira que os outros lá: “Ah, se uma escola não aguentou, que é do Estado, tudo, imagina uma entidade particular, uma ONG. Vão levar tudo, computador, vão levar tudo!”. Eu pensei que não fosse pra frente, não acreditei. Não acreditei porque vi o que aconteceu com a escola, então não acreditei no projeto, tanto é que no primeiro ano eu não fui lá, no segundo ano eu não fui lá pra conhecer o projeto. Olha, eu que sou ligado às questões culturais não fui. Mas depois, não sei assim se insistência de alguém, eu compareci em um dos aniversários, não lembro qual. Eu fiquei impressionado com o que eu vi, com a mudança que estava dando na Vila. Mudando, mudando a cara da Vila. As pessoas lá da redondeza faziam questão de dizer assim: “Gol de Letra vai ao meu bairro”. Minha filha está no Gol de Letra. Falava assim, com a boca cheia, com peso, e eu vi a diferença. Tive minha casa assaltada por mais de uma vez, mas eu vi filho de pessoa que assaltou a minha casa lá, na Fundação. Pensei: “Puxa vida, que bom!”. Esse não vai seguir, com certeza, a sina. A sina não, mas o histórico do pai, de ser uma pessoa de má índole. Eu fiquei contente de ver. Algumas crianças que eu vi lá que eu conhecia os pais, eu fiquei satisfeito, porque eu sabia que havia mudança na Vila. Mas a princípio eu não acreditava. Acabou que eu fiquei indo nos aniversários, quando eu posso, e acabei... Como eu sou amante de livros, me tornei um voluntário. Nem o Raí sabe disso: Eu vou à biblioteca, pego os livros emprestado, como se eu fosse ler, alguns não são nem pra ler, eu vejo que estão em mal estado de conservação, levo e faço uma reconstituição, eu faço a restauração do livro e devolvo ele sem nenhum custo para a Fundação.
P/2 – Eles nem sabem disso?
R – Ah, o Raí acho que nem sabe disso, mas eu faço isso já há um bom tempo.
P2 – Mas a bibliotecária sabe?
R – Sabe, sabe. O último livro que eu peguei lá, quem é que estava lá? Você, quem é que estava lá?
P1 – A Fernanda.
R – A Fernanda, isso mesmo. Aquele dia eu peguei um livro lá todo desmontado, um livro caríssimo, um livro daquele é uns 200 reais. Todo desmontado, descosturado, e a menina falou assim: “Ah, esse aqui... Você não vai arrumar isso”. Falei: “Vou arrumar, pode me dar que eu levo.” Devolvi restaurado que ela não acreditou, e fez questão de mostrar pra outras pessoas. Ficou sem nenhum custo. Uma restauração daquele livro é muito cara, uma restauração do livro, dependendo do valor histórico, do ano, tudo, chega... Passa de mil reais a restauração de um... Dependendo, né, de que livro é. Eu faço isso lá anonimamente, sem nenhum custo pra Fundação.
P/1 – E agora que o senhor tocou no assunto da biblioteca, tinha biblioteca lá, antes?
R – Não, não tem. A biblioteca mais próxima seria no Mandaqui, na esquina da Voluntários da Pátria com a Engenheiro Caetano Álvares, ou em Santana, Narbal Fonte. E tem outra lá para o lado do Jardim São Paulo, então não tinha biblioteca. E hoje em dia, então, as pessoas podem ir lá pegar o livro, fazer o trabalho em casa. Pode usar o computador da Fundação. É um privilégio muito grande, é uma honra pro nosso bairro. Eu, ligado nessas questões que gosto... De gostar dessas questões culturais, é uma honra pro bairro ter ali um computador pra quem não pode ir numa lan house e usa de graça lá. E ter o livro lá pra fazer um trabalho, uma pesquisa de escola. Fantástico. Por isso que eu faço questão de restaurar os livros sem nenhum custo. Alguém: “Mas como é que você consegue tempo pra isso, ainda?”. É por amor àquelas crianças que vão ali buscar os livros. Vou ver um livro acabar e vai jogar no lixo? Não, é porque... É pra fazer com que outras pessoas leiam aquele livro. Inclusive eu acredito que a biblioteca deveria ser mais divulgada. Eu já perguntei pra algumas pessoas se sabem que tem uma biblioteca, não sabem. Então ela precisa ser mais divulgada, de alguma forma. Pra quem acessa o site da Fundação, sabe que tem, mas pra quem não tem essa facilidade, não sabe, acaba não sabendo. Mas muitas pessoas, quando eu comecei a ir na Fundação, que eu vi o projeto e conheci o Raí, Leonardo, irmão do Raí, os outros irmãos, até. E eu fiz amizade com algumas pessoas, o senhor Oliveira é uma pessoa fantástica. Seu Oliveira nunca pode sair daquela portaria, porque seu Oliveira é um homem que está ali pra toda obra, tudo que se pede pra ele fazer... Eu já analisei isso lá, tudo que pedem pra ele, tudo. Ele está atento a tudo, uma pessoa fantástica. Então são pessoas assim lá que são o melhor cartão de visita com aquela Fundação. Mas aquele todo meu preconceito que aquela Fundação não ia pra frente, por estar inserida naquele... Por que aqui? Naquele contexto, de favela em volta. Foi por terra, porque eu vi o resultado. O resultado é fantástico, muito bom. E é uma honra pra nossa região ter aquela entidade, é uma honra. Eu faço questão de dizer, por onde eu ando, da Fundação. Vocês não querem conhecer? Na última sexta-feira do mês tem visita lá, vamos lá pra conhecer. Eu sou um promotor da Fundação, sabe? Faço um trabalho de promotor, porque é muito bom. Poxa vida, porque... Eu, ultimamente, ando pensando muito, precisávamos ter lá também um centro de cultura, um centro pra terceira idade, sabe? Vejo que os nossos idosos lá, eles ficam nos bares horas e horas gastando o seu tempo, com a barriga encostada no balcão de um bar, tomando cachaça. Em vez de ter uma velhice sadia... Tomando cachaça, conversando besteira. E não tem um trabalho lá voltado pra terceira idade. Um centro cultural pra ter objetos antigos dos moradores, sabe? Estar lá exposto pra quem quiser doar, fotografias e tudo, precisava ter isso lá. Não temos um Centro Cultural lá ainda e muitas coisas ainda precisa, muitos aparelhos precisamos, ainda. Mas para o que era, então é fantástico.
P/1 – E que outras mudanças você viu na comunidade depois da Fundação, além da biblioteca?
R – Aquele que eu pensava que iam acabar com o prédio não aconteceu. A comunidade respeitou, então uma coisa que eu admirei no Raí, no (_______?), no Sóstenes, que eles começaram a falar a língua do povo. Eles desceram lá embaixo, último degrau, “vamos nos igualar ao povo”. Eles não chegaram lá com nenhuma etiqueta, com... Sabe? Eles entravam na favela, porque eu vi o Raí entrando na favela. Eu falei: “Não acredito”. Eles ganharam um conceito muito alto, porque eles entraram, foram lá embaixo, fizeram amizade com o povo. Poucas vezes que eles tiveram problema de roubo, assim, alguma coisa. Não é praticamente nada diante do que era antes, quando era uma escola. Então o que eu pude ver, era o seguinte, as crianças que frequentam ali têm um apoio tremendo. Quem é que não quer ter uma criança ali? Eu queria que a minha filha entrasse lá, na época. Eu cheguei até a cogitar, “não vou conseguir”, todos os moradores ali queriam colocar seus filhos no Gol de Letra, porque eu também queria, cheguei a dizer isso, comentei, até, lá dentro. E a menina até, na época, me falou assim: “Ih, tem 500 pessoas aqui na fila de espera, se você quiser saber.” Porque a criança recebe todo um amparo, não é... Lá dentro, um reforço escolar, não é uma atividade que ela vai ter lá se ela gosta de teatro, ou de inglês, ou de grafite, não é só isso, mas ela tem... É um trabalho continuado, porque ela recebe um suporte ali, mas quando chega na casa dela, tem comida pra comer. Porque pelo que eu sei, a Fundação dá esse suporte de alimento também, dá uma cesta básica, pelo que eu sei. Ela tem um plano de saúde, dois planos de saúde. Ora! Aí acontece uma coisa com essa criança, todos... Eles estão todos antenados, eles sabem. Tem os líderes comunitários, que estão ligados na comunidade pra saber o que se passa, uma estrutura, uma rede fantástica! Nunca imaginei que fosse chegar aonde chegou, nunca. Achei que ia ser uma Fundação lá, ia... Pensei até que ia ser uma escolinha de futebol, como muitos pensaram. Não, nunca imaginei que fosse ter uma estrutura daquela na nossa comunidade, nunca. Olha, eu falo com muita gratidão, com respeito a isso. A comunidade precisava valorizar mais isso, e o Raí, não sei se ele... Acredito que ele tenha a dimensão, a dimensão do que ele está fazendo. A dimensão do que ele está fazendo para a comunidade, porque deu uma cara nova. Quem morava ali na favela virou ponto de... “Onde você mora?” “Perto do Gol de Letra.” Passa um ônibus ou uma lotação: “Onde vocês vão?”. “Vou perto do Gol de Letra, eu quero descer perto do Gol de Letra.”. Virou ponto de referência. Então algo tremendo isso, algo tremendo, e a dimensão disso tudo, dessa estrutura toda do Gol de Letra, é fantástica. Por exemplo, eu estive na inauguração de uma quadra lá na escola Isaac Silvério. Eu estive lá na inauguração , fotografei, tudo. Estavam lá até mais familiares do Raí, foi onde a gente pôde ter um contato mais próximo, naquela época. Eu falei: “Poxa, uma escola de basquete, que coisa fantástica!”. Não parou só aí. Daqui a pouco faz um convênio com a ONG Promove, não sei se continua. Até a minha filha estava pleiteando uma vaga lá pra fazer um curso, porque todo mundo quer estudar lá também, quer fazer um curso, fazer um treinamento. E o Raí queria expandir mais a rede pra uma outra escola próxima, não sei se eu devo mencionar o nome, que pra infelicidade não quiseram fechar com ele, pra pôr lá também um... Fazer parte da rede a escola João Ramos, pronto! Não quiseram ir. Olha, não sei de quem partiu o “não”, mas foi infeliz em dizer não, infelizes. Gente de visão curta, memória curta, não querer fazer parte de um projeto daquele. E tremendo, tremendo. O Raí está plantando não é no presente, semente que ele está plantando há dez anos é uma semente pra eternidade. Não é para o futuro, é para a eternidade. Por quê? Como eu sou religioso, eu acredito que exista céu e inferno. Essas crianças que frequentam lá, elas dificilmente... Com o nível que estão ali, elas não vão querer partir para a bandidagem, não vão querer que a sua alma parta pro inferno, tormento eterno, não. Vão querer ser cidadãos de bem. Mas quem é que está plantando essa sementinha? Pra um criança chegar em casa revoltada porque não tem comida, porque não tem médico. É o Raí lá com a equipe dele que está plantando essa sementinha aí, plantando para a eternidade. Não é um centro religioso, mas está plantando, sim, para a eternidade, porque está formando caráter de pessoas, está forjando caráter. Volto naquilo que eu disse pra vocês no começo: quando eu via o filho daquelas pessoas, que eu sei quem são ali, olha, não tem dinheiro que pague. Cada cabecinha daquela é outro histórico de vida, não tem como não ser. Eu não quero pensar diferente, não quero mesmo.
P/1 – Bom, pro senhor, então, qual que é a importância da Gol de Letra fazer esse projeto de memória?
R – Outras pessoas da comunidade vão ser perguntadas, né, vão passar por isso também. Eu sempre digo o seguinte, que “pobre é um povo...” É uma frase já conhecida, e pra mim não é gasta não: “Pobre é um povo que não tem memória”. Não tem memória, que não... Eu pergunto pra gente lá no meu bairro: “Quem são seus avós?” “Não sei.” “Como você não sabe dos seus avós?” “Porque eu não morava com eles.”, “Porque eles morreram antes de eu nascer”. Pobre de memória, por quê? Porque os pais não estão se preocupando em passar pra eles. O que meu pai e minha mãe fazem comigo, ou com meus irmãos, passar todo o histórico de vida pra gente valorizar o ontem, o hoje e o que vem pela frente. A gente está no presente lembrando do passado que os pais passaram, mas com os olhos no futuro. Então o que eu vejo com muitos pais é isso, não passam. Esse projeto que vocês estão fazendo pra preservar, é preservação da história da região, do bairro, fantástico. Daí eu faço isso com as minhas filhas. O que meu pai fez comigo, e minha mãe, ou faz, eu faço com elas e faço com outros. Volta e meia alguém me pergunta o por que daquilo no bairro, quando foi fundada a linha de um ônibus, quando chegou o primeiro ônibus lá no bairro, qual foi o primeiro crime do bairro, qual foi o primeiro suicídio do bairro. Eles me procuram pra ver se eu tenho a resposta, muitas vezes. Virei um ponto de referência, nesse sentido. Eu sou grato a Deus por isso, porque eu sou uma pessoa normal da comunidade sem nenhum atributo, mas fico grato que eu posso ajudar alguém. Sou multiplicador de informação, faço questão de informar. Mas a gente tem que bater sempre nessa tecla, mostrar para que valorize. Porque o que eu valorizo é... Lá a gente não desperdiça comida, na minha casa eu ensino pra não desperdiçar nada, porque eu sei que eu não tinha com fartura. Eu tinha em deficiência, eu não tinha água, não tinha água assim, na torneira, pra abrir. Eu não tinha um fogão que você aperta um botão, aperta outro botãozinho já acende o fogo, não precisa pôr o fósforo. Na minha casa não tinha isso, tinha que colocar um carvão, um jornal por baixo e fazer pegar aquele fogo à lenha na marra. Eu sei o que é não ter nada do que nós temos hoje. Eu valorizo muito o que... Não tenho quase nada, mas eu valorizo muito, quando eu vejo algum amigo meu que tem alguma coisa, eu não tenho, como eu fico grato. Eu não sou daquele que tem inveja não. Eu fico muito agradecido a Deus porque ele conseguiu. Ele se esforçou, ele conseguiu, outro pode conseguir. Então essa preservação é muito importante. Como eu posso me entender como ser humano, me entender, no momento que eu estou meio triste por alguns problemas, todos nós ficamos. Às vezes eu estou triste porque eu não tenho o dinheiro que eu queria ter, estou triste porque minha filha não agiu como eu gostaria. A minha casa não é uma que eu gostaria. O meu carro não é um que eu... Não é que eu estou com inveja de nada do vizinho, é que eu sei o que não tive, tenho agora, mas Deus deu uma ordem pra Adão, que foi a seguinte: “Crescei e multiplicai, e enchei a terra”. Esse “crescei e multiplicai e enchei a terra” não é fazer filho, é buscar conhecimento, é você se desenvolver e crescer, nunca estar satisfeito com o que você tem, mas cada vez você querer mais. Muitas vezes eu estou assim, meio chateado, mas de repente, não, eu penso: “Não, hoje eu não tenho contrafilé, mas quando eu era criança não tinha nem ovo, era arroz, feijão e couve. Então está bom, hoje tem feijão, arroz e ovo? Então está bom!”. Se nós não somos gratos a Deus pelas pequenas coisas que nós temos ou conquistamos, nós nunca vamos ser gratos no dia das grandes coisas, não vamos valorizar as grandes coisas. Temos que aprender a valorizar as pequenas coisas, e há pessoas que não valorizam as pequenas coisas. A minha filha falou assim: “É, eu queria um celular”, eu digo: “Tem um celular sem câmera”. “Sem câmera eu não quero, quero com câmera e não com não sei o que, com não sei o que. Aquele que manda fax, e-mail, que joga bola e que não sei o que.” Não, tem que valorizar agora um primeiro, depois passa pra um outro. Tem que ensinar a valorizar as coisas. Eu fico muito preocupado com a nossa região, com essa questão do meio ambiente, quando eu vejo... Cada vez que eu vou trabalhar, vejo lá na Serra da Cantareira arrancando árvores e pondo casa. Existe um número “x” de árvore que você pode tirar, mas tem gente que tira mais do que a lei permite, burlam a lei. E eu fico revoltado, dá vontade de denunciar todo mundo.
P/1 – E o que o senhor achou de ser convidado para dar esse depoimento? O que o senhor achou de dar o depoimento?
R – Eu me senti honrado, porque eu sou uma pessoa do povo, normal. Independente de eu estar escrevendo alguma coisa e tudo, eu sou uma pessoa que não tenho orgulho na minha vida, de nada. Eu sou desprovido de qualquer tipo de coisa, tanto é que eu entro nas favelas do meu bairro pra visitar conhecidos, entro em qualquer beco, porque eu sou uma pessoa bem relacionada, não tenho problemas com ninguém. Sou uma pessoa do povo mesmo, acabou. Passaram no meu serviço duas vezes, me procurando, eu não sabia quem era. Aí quando eu estou passando na Rua Cabitutu, número 107, uma pessoa me chamou: “Olha, o pessoal do Gol de Letra estava te procurando já duas vezes e não te acham. Eles querem falar com você.” “É, o que é?”. “É um projeto lá”. “Ah, então eu vou lá, duas vezes deve ser algo interessante.” Fui, conheci o projeto do Museu da Pessoa, e achei fantástico que... Até peguei um folder daquele, a mais, e está na minha casa, guardado, porque eu achei muito bom esse projeto do Museu da Pessoa e Gol de Letra, achei fantástico. E vou dar ideias pra algumas entidades que eu conheço pra fazer algo parecido.
P/2 – O folheto da campanha de história?
R – Isso, da campanha de história, achei aquilo fantástico, guardei um comigo lá em casa. Eu voltei lá correndo e disse: “Tomara que não acabe”. Achei lá, trouxe comigo. Tinha meia dúzia lá, trouxe um comigo e guardei. Fui lá no Gol e falei com o Oliveira: “Olha, alguém aqui quer falar comigo, eu não sei quem é, recebi o recado.”. O Oliveira me falou: “Ah, deve ser o pessoal do Museu da Pessoa, que estão aqui e estão fazendo um projeto pro pessoal contar história do bairro, tudo. E o pessoal aqui se lembrou de você.”. Eu falei: “Poxa, que legal, eu fui notado no meio da multidão, né?”. Eu me senti honrado do pessoal do Gol de Letra me procurar, via Museu da Pessoa, por causa do projeto do Museu da Pessoa. Fiquei honrado mesmo, essa vinda pra cá, pra mim, foi... Me sinto honrado com isso, sou tão pequenininho, né? E Deus faz cada surpresa na vida da gente, que a gente não acredita. Poxa, quem sabe alguma palavra que eu falei aqui pode mexer com a cabeça de alguém, dar um ânimo pra quem está desanimado da vida, tem tudo na vida e está desanimado. E eu não tive nada. Eu era um projeto pra ser um bandido no bandido bairro, era um projeto. Você chega de manhã, não tem o pão com manteiga; vem almoçar, não tem o arroz, feijão, bife contrafilé, uma salada, uma sobremesa, um refrigerante, não tem nada. Você vai jantar, sabe? Não tem uma torneira pra você abrir pra tirar água. Não tem um fogão pra você virar um botão e acender o fogo. Então você não tem dinheiro pra comprar o material escolar, tem que receber da caixa. A tua mãe não pode comprar uma camisa, você tinha que ir na padaria pegar um saco de farinha e daquele saco de farinha fazer uma camisa pra você usar. Ora! Projeto pra um bandido, pessoa ser revoltada. E Deus fez algo maravilhoso comigo, porque a formação que tive foi boa. Meu pai passou aquele negócio de caráter, de família boa e tudo. E a gente vai vendo que é isso mesmo e vai valorizando as coisas. Eu fico contente, não tem como falar sobre essa oportunidade que eu tive de vir aqui falar com vocês. Eu nem sabia que ia ser documentado assim dessa maneira, é fantástico isso. Eu sou daquele que chora fácil (risos), e quando eu começo a me emocionar eu paro, porque sei... A gente sabe, o histórico de vida da gente, o que passou , os mal bocados, o ter, o não ter, a gente sabe como é que é. E a gente hoje tem as coisas e muitas vezes não agradece, é assim.
P/2 – Muito bom.
P/1 – Mais alguma coisa?
P/2 – Não, maravilha.
P/1 – Então é isso aí, muito obrigado, seu Nunes.
P/2 – Obrigada, seu Nunes.
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