PRÓLOGO
Minha luta mais duradoura foi por encontrar um lugar onde me assentar, me apaixonar por ele e acalmar minha existência. Um lugar onde morar. É assim desde que nasci. Para muitas pessoas, ter uma casa, crescer nela, vivenciar o bairro e os vizinhos são acontecimentos corriqueiros, nem ...Continuar leitura
PRÓLOGO
Minha luta mais duradoura foi por encontrar um lugar onde me assentar, me apaixonar por ele e acalmar minha existência. Um lugar onde morar. É assim desde que nasci. Para muitas pessoas, ter uma casa, crescer nela, vivenciar o bairro e os vizinhos são acontecimentos corriqueiros, nem refletem sobre eles. Nasci em uma família de migrantes, de gente sem terras e sem teto, como é a situação da maioria dos que nascem no Brasil. Nascemos deserdados da terra no quinto maior país do mundo. Nasci em uma família de três pessoas, papai, mamãe e meu irmão, seis anos mais velho do que eu.
Quando eu completei um ano de idade, meu irmão entrou em idade escolar, que naquela época era sete anos de idade. Como não havia escola próxima ao local de moradia de meus pais, meu irmão foi morar com nossos avós maternos no município Anhumas, na Vila Maria. Assim, na maior parte do tempo da minha infância vivi como filha única. Só via meu irmão nas férias escolares, o que dava uns três meses por ano, em dezembro, janeiro e julho.
Minha mãe era uma mulher alta comparativamente à maioria das mulheres da família, em torno de 1,65 metros de altura, tinha cabelos pretos, lisos, escassos e compridos, só depois dos 50 anos é que ela os cortou bem curtinho. Não era uma mulher gorda, tão pouco magra. Sabe aquelas mulheres de ossos grandes e fortes? Ela era assim. Tinha olhos castanhos e pele branca que ela fazia questão de proteger do sol como podia. Quando saía para colher algodão ela usava vestido, calça, camisa de manga comprida e um grande chapéu de palha na cabeça. Minha mãe se chamava Valda, vinda de uma família em que todos seus irmãos tinham nomes começando com a letra vê: Valdenora, Valdivina, Valda e Valter. Criativo, né?! A mãe dela se chamava Maria e o pai, João. João e Maria, meus avós maternos.
Minha mãe, dona Valda, nasceu em Anhumas, município do Estado de São Paulo, em uma família de migrantes nordestinos, o pai pernambucano de Novo Exu e mãe cearense de Barbalha. Minha mãe tinha uma mãe baixinha, cabelos lisos, compridos e ralinhos, pele clara, olhos castanhos, meio gordinha. Será que a mãe dela, a mãe da minha mãe, era fruto de uma relação de imigrantes portugueses com os naturais do Brasil, os indígenas? Não se sabe, como é comum nas famílias brasileiras de pouco prestígio social. A gente nasce sem pedigree, sem sobrenome famoso. Minha avó era uma mulher muito inteligente, ágil e com poucas coisas que denotassem alguma sensualidade, ou feminilidade, a não ser aquele pente de casco de tartaruga – será? – curvo que ela prendia o escasso cabelo preto no alto da cabeça. Não usava maquiagem e seus vestidos eram retos, não marcavam as curvas do corpo. João e Maria vieram para o estado de São Paulo de navio até ao Rio de Janeiro, de onde os migrantes nordestinos eram dispersados pelas fazendas de café do sudeste do Brasil, na década de 1930. Meus avós nasceram em 1909, meu avô morreu em 2008 e minha avó deve ter morrido uns dois anos antes. Fugidos do sertão, da seca nordestina, vieram para o sudeste do Brasil balançando nas ondas do mar, passando mal, vomitando, desacostumados com o balançar do navio. Depois de três meses, quando puderam colocar os pés em terra firme, tinham perdido a maior parte de seus pertences, que já eram escassos. A água do mar tinha salgado tudo, tinha levado para Iemanjá a maior parte dos seus utensílios. Minha avó teve que oferecer seus serviços nas ruas do Rio de Janeiro para conseguir dinheiro para comer e seguir adiante, até ao local onde iriam morar. O que minha avó fazia? Ela era uma exímia costureira. Ele colocou sua máquina de costura da marca Elgin nas ruas do Rio de Janeiro e se ofereceu para consertar roupas, fazer vestidos, calças, camisas. Foi um pouco do que ela me contou.
- Você tem roupa para consertar? Traga aqui que eu conserto.
- Viu um vestido lindo na folhinha do calendário? Traga para eu ver, farei um igual para você.
Além de inteligente, minha avó tinha uma ótima memória para datas, acontecimentos e nome de pessoas. Eu admirava muito a forma como ela se expressava verbalmente. Ela falava tudo explicadinho, falava perfeitamente o português, pelo menos era o que eu achava, apesar de ela ter estudado muito pouco, só fez até a terceira série do ensino fundamental em uma escola pública do interior do Ceará. O jeito educado de falar, o comportamento fino à mesa, alguns valores de gente rica foram aprendidos com os patrões de seus pais e com os professores que os patrões contratavam exclusivamente para ensinar os filhos deles. Ela se escondia embaixo da mesa de estudo e aprendia junto com os meninos sem que percebessem e assim aprendeu as primeiras letrinhas do mundo.
Meu avô João era lindo, porém de cabeça-dura. Era alto, um metro e noventa de altura, olhos azuis da cor do mar, azul marinho escuro. Nariz afiladinho, queijo quadrado, parecendo uma estátua de mármore romana, exceto pela cor da pele, que era morena, mais para cor de jambo, parecendo que estava constantemente bronzeado. Forte, músculos bem definidos, ele provavelmente era de origem francesa, como indica o nome do pai dele, Soliginacri. Seria
Solignac, em francês e que no Brasil não souberam como escrever na certidão de nascimento? Sabe-se lá, né? Eu não soube como eram os cabelos do meu vô João, quando eu o conheci ele já
não tinha cabelos. Estava carequinha e vivia de chapéu Panamá ou Fedorana na cabeça. Vô João acompanhava a política nacional, ouvia todos os dias A Voz do Brasil, programa de rádio estatal que dava – e ainda dá – as notícias governamentais na maioria das vezes de acordo com a concepção de quem está no governo, criado em 1935 pelo presidente Getúlio Vargas. Todos os dias, de segunda a sexta, vô João ficava de ouvidos atentos aos noticiários, sempre às 19 horas. Ele ouvia e comentava o noticiário e a vó Maria dizia:
- Não é nada disso João. O que ele está dizendo...
E explicava tudo ao vô. Tudo de forma muito respeitosa, sem qualquer resquício de arrogância. Eu ouvi muitas vezes a vó Maria dizer:
- Não é assim não, João. Não é bem assim, João. Não faça assim não, João.
Vó Maria fumava em um tempo em que as mulheres não podiam fumar sem correrem o risco de serem chamadas de vagabundas, putas. E vó Maria fumava e não era qualquer cigarro, não! Era cachimbo! Pegava o fumo de corda, picava bem devagarinho com canivete, juntava o fumo e colocava no cachimbo. Acendia e pitava. Depois mudou para cigarro de palha. E era um ritual: ia ao paiol, pegava uma espiga de milho, tirava algumas palhas até encontrar uma que fosse perfeita, fininha, macia. Enrolava a palha, cortava suas pontas, colocava o fumo e ia enrolando. Fumava muito e fedia a cigarro. Não bastasse isto, vó Maria fazia xixi de pé. Como?! Não sei. Não sei se ela puxava as pernas da calcinha para fazer xixi ou se ela simplesmente não usava calcinhas. Abria bem as pernas e em pé mesmo fazia xixi. Quando ela percebia que eu estava olhando, dava um sorrisinho malicioso e saía andando, diante da expressão de estranheza da neta ou da interrupção de seu momento íntimo.
Do Rio de Janeiro vô João e vó Maria foram enviados pelo governo para trabalhar nas lavouras de café no interior do estado de São Paulo. Foram trabalhar como arrendatários, alugavam terras dos que tinham muito além do que podiam cultivar. O vô, com a ajuda de outros em condições piores do que ele, os peões, os camaradas, pegava cinco hectares de terras, preparava a terra para o plantio de café e após a primeira colheita, devolvia a terra para o dono. Enquanto o café ainda não estava produzindo o vô podia plantar outras culturas entre as fileiras de café: feijão, mandioca, milho, quiabo, abóbora, amendoim, sem ter que pagar renda ao proprietário. O excedente era vendido na cidade mais próxima ou para os vizinhos. E assim vô João foi juntando um dinheirinho até poder comprar a própria terra. Comprou um sítio em Anhumas, na Vila Maria, local que tem um colégio enorme, desproporcional à quantidade de alunos, porque foi construído na Vila Maria errada. Era para ter sido construído na Vila Maria em Osasco, próximo de São Paulo. E já que estava construído, passou a fazer parte da vida de muita gente, inclusive da minha mãe e do meu irmão, que estudaram nele.
Quando conheci meu avô ele já era proprietário de terras. Ele tinha uma casa de madeira bem grande, era de assoalho de madeira, tinha uma sala de estar, um quarto grande, que era do casal João e Maria, um quarto das meninas Valda, Valdir e Valdenora, um quarto do menino Valter, um quarto de costura da vó e uma cozinha bem grande. A cozinha é o cômodo que eu mais lembro, a sala ficava a maior parte do tempo fechada. Só era aberta quando chegava visita e aí as crianças não podiam entrar, ficar circulando por lá e ouvindo as conversas dos adultos. Já a cozinha era um lugar mais movimentado, as crianças podiam entrar e sair à vontade. O chão da cozinha era de cimento vermelho, tinha um fogão de lenha feito de cimento da mesma cor do chão, com quatro bocas e um local embaixo para guardar a lenha, que ora era cortada em pequenos pedaços de toras ou eram gravetos coletados na roça pela vó. A janela era daquelas de abrir em duas bandas, toda de madeira, com dobradiças, fechada por uma tramela e um pau atravessado de um lado para o outro, preso dos lados por um ferrolho, para impedir a entrada de ladrões. Era enorme e deixava a luz do sol entrar e tomar quase toda a cozinha. A mesa era integralmente de madeira, uma madeira escura, pesada, rústica. As cadeiras também eram rústicas e de cordas trançadas, conhecidas como cadeiras sertanejas. Havia também um guarda-louças de madeira, pintado de verde, com puxadores de ferro e portas com redinhas verdes escuras. Era lá que a avó escondia as guloseimas para que as crianças, meus primos, não comessem todas de uma vez. A porta da cozinha dava para o quintal onde havia um poço de onde tiravam água. O vô foi cavando, cavando até minar água a uns dez metros de profundidade. Em volta do poço de uns três metros de largura foi construída uma parede de tijolos e cimento até a altura da vó, que não era muito alta, fechado com algo parecido com janela, só que na horizontal. De um lado e do outro do poço o vô fincou duas vigas de madeira, fez um furo em cada uma delas, na mesma altura, enfiou um pedaço de madeira roliça de modo que ficasse na transversal do poço, pregou uma manivela em um dos lados, amarrou uma corda bem grande na parte roliça e enrolou toda a corda. A ponta que ficou solta ele amarrou em um balde. A vó descia aquele balde até encontrar a parte do poço com água, enchia o balde e subia com ele até a beira do poço e dali depositava a água em uma espécie de caixa d’água improvisada. Como a água do poço era usada para cozinhar, lavar roupa, limpar a casa, dar aos animais, era necessário tirar vários baldes de água por dia, o que deixava a vó e o vô bem fortinhos e cansados. As crianças tentavam tirar água, não aguentavam com o peso do balde cheio, a corda escapava, a manivela girava violentamente e acertava a cabeça, o nariz, as mãos dos malinos. Ao lado do poço havia uma tábua de lavar roupas e um jiral, local de lavar e secar a louça. Tudo muito prático, nada de plantinhas, florzinhas, só um pé de alecrim e capim santo na porta da cozinha, que era para fazer chá. Como eles eram produtores de café, tinha o terreirão, um quadrado de uns doze por doze metros feito de cimento, com uma beirada para não deixar cair o café e furos laterais para escoar a água. Neste terreirão o café era secado e no dia de São João se transformava em um salão de festa junina, com direito a fogueira, pé de moleque, curau, canjica, arroz doce com canela, milho e batata doce assados.
Por falar em comida, a vó não era boa cozinheira, cozinhava porque cabia às mulheres de seu tempo cozinhar, não era uma atividade que ela fazia com amor e dedicação. Vez ou outra e talvez em decorrência da visita dos meus pais, a vó fazia um requeijão de dar água na boca. Depois do requeijão pronto a vó colocava açúcar na panela, raspava o restinho do queijo e deixava a criançada comer aquela farofa agridoce ali mesmo. Ah, que delícia! E fazia pé de moleque muito bem, o que foi aprendido por minha mãe.
Como bom católico, o vô todos os anos fazia a festa em homenagem a São João, o santo que lhe dera o nome de João, mas não convidava os vizinhos italianos que moravam ao lado do seu sítio. Ele vivia criando encrenca com os vizinhos e a vó Maria dizia:
- Deixa isso para lá João. Deixa-os viverem em paz!
- Esses italianos só querem confusão!
- Que confusão, João? Eles estão na casa deles.
- Olham como falam alto, como xingam!
- Cuide da sua vida, João!
- Se eles colocarem o pé em minhas terras eu mato!
- Deixa disso João! Venha aqui me ajudar com esse porco.
E assim a vó desviava a atenção do vô em relação aos imigrantes italianos e a xenofobia do vô. Foi nessa família que minha mãe nasceu. Ela não queria trabalhar na roça, queria estudar, gostava de estudar. Meu avô queria ter filhos, “filhos homens” como dizia a vó e só foi nascendo mulheres, uma atrás da outra. O vô foi ficando decepcionado, ele queria alguém para ajudá-lo na roça, alguém para ser o herdeiro, para seguir seus passos e com quem ele pudesse se identificar. Enquanto o “filho homem” não vinha ele descontava seu descontentamento nas “filhas mulheres”. Até matriculava as meninas na escola, na Vila Maria, e não deixava que elas frequentassem às aulas o ano inteiro. Quando chegava o período da colheita do café, algodão, milho, feijão, as meninas eram tiradas da escola e obrigadas a trabalhar na roça. A vó tentava interferir, proteger as meninas e era chamada de alcoviteira. Se as meninas estudaram alguma coisa foi por esforço, muito contorcionismo linguístico e amoroso da vó Maria para convencer o vô João a deixar as meninas irem à escola. Sim, porque não se podia dizer a um homem o que ele podia e ou não fazer. Então minha vó tinha que falar com jeito, ser sutil, dar voltas para dizer ao meu avô:
- João, deixe as meninas estudarem!
- Para que elas querem estudar? Para escrever cartas para os namorados? Mulher não precisa estudar, tem é que arrumar um bom marido!
Minha mãe, que era amante das letras, sofria muito. Foi criada por um pai autoritário, meio rústico e por uma mãe inteligente, forte e às vezes subserviente ao seu marido, porque assim entendia ser sua obrigação de esposa.
E por falar em marido, eis que um dia se mudou para o fundo do sítio do meu vô uma família enorme! As “filhas mulheres” do meu avô ficaram todas assanhadas quando viram que lá tinham vários rapazes e moças. Motivo de festa para quem morava no sítio e só via as pessoas da família ou os peões da roça, que o avô João achava que não eram homens dignos o suficiente para se relacionar com elas. Foram lá conhecer e dar boas-vindas aos migrantes recém-chegados do Nordeste, coincidentemente de Novo Exu, Pernambuco, mesmo local de nascimento de meu avô. Lá estava o que viria a ser meu pai. Era uma família de uma mãe e nove filhos, Miguel, José, Severino, Lilia, Raimunda, Sebastião, Cleuza e Francisca Rangel. Um dos filhos, o Raimundo, tinha sido assassinado em uma briga, em uma festa no Crato, no estado do Ceará.
Minha avó materna também se chamava Maria, nome comum em famílias católicas, uma homenagem à mãe de Jesus. Minha avó paterna era uma mulher baixinha, magrinha, cabelos pretos e lisos, rosto arredondado, olhos meio puxadinhos,
com traços indígenas. Tinha sebo nas canelas, como se dizia na época para pessoas de passos ligeiros, vivia de lá para cá, de cá para lá. Ousava ser viajante quando muitos a queriam detida em casa, lugar destinado às mulheres. Ela viajava pelo Brasil sozinha, com uma malinha de papelão na mão, dessas que hoje chamam de vintage retrô, ia para São Paulo, ia para Juazeiro do Norte, Crato, Petrolina. Meu avô por parte de pai se chamava Francisco, mas eu não o conheci, e não há fotos e nem descrição dele. Pela fisionomia dos filhos, pele morena, nariz meio achatado, é possível que o vô Francisco fosse negro, só que ninguém falava (e nem fala) disso, ter um negro na família naquele tempo não era algo enobrecedor e para alguns dos meus familiares ainda não é. O preconceito racial era intenso, muito mais do que atualmente e minha família absorveu preconceitos do seu tempo. Havia uma tentativa de negar qualquer resquício que lembrasse o continente africano, local de onde veio o maior contingente das pessoas tornadas escravas no Brasil. Meu avô Francisco foi adotado por um padre de sobrenome Rangel, de onde vem o meu sobrenome. Qual o nome dos pais dele? Não sei dizer. A linhagem se perdeu nos caminhos da vida.
As famílias do vô João, da vó Maria e da vó Maria Aleixo, minha avó por parte de pai, se encontraram em uma festa em homenagem a São João, na casa do vô João. Lá Miguel, que veio a ser meu pai, marido da dona Valda, minha mãe, apareceu. Veio com sua mãe, os irmãos e irmãs. Meu pai era praticamente da altura da minha mãe, só um pouquinho mais alto, era moreno e queimado pelo sol, característica da pele própria de quem trabalha na roça de sol a sol. Em 1956 ele era um jovem de vinte e sete anos – dona Valda tinha dezenove anos quando se conheceram – e se sentia deixada para titia, como se dizia na época referindo-se às mulheres que não se casavam até os dezoito anos – e de muito bom gosto para se vestir. Vó Maria, mãe do meu pai era, adivinha o quê? Costureira! Tal qual a vó Maria, mãe da minha mãe. Não sobravam muitas profissões que poderiam ser exercidas pelas mulheres, eram professoras, costureiras, donas de casa. Minha avó paterna era mulher de fibra, criava os nove filhos com muito rigor e disciplina. No Nordeste brasileiro diriam que era uma baixinha retada! Os filhos mais velhos ajudavam a criar os mais novos e as filhas, as mulheres, criavam a todos. Todos seus filhos se vestiam muito bem e meu pai não era a exceção, a mãe caprichava nas roupas dos filhos para que ninguém falasse mal dos filhos da viúva, condição sempre lembrada pelas pessoas do convívio da vó Maria, como se ser viúva a diminuísse, como se ela fosse culpada pela morte do marido. Ele usava calças escuras de linho com pregas na frente e com barra dobrada, camisa de manga comprida de caxemira branca, perfume Madeira do Oriente que exalava um odor que se sentia de longe. No cabelo preto, ondulado, cortado bem baixinho, quase rente ao couro cabeludo, usava muita brilhantina. Olhos pequenos e claros, meio esverdeados, confundindo-se com a cor castanha, lábios finos, um jeito assim meio sedutor, sorriso malicioso, que ele fazia questão de esconder de mim e do meu irmão. Na nossa casa qualquer manifestação de sexualidade era interditada, não se falava, não se praticava, era como se não existisse. Retomando à sua descrição... O nariz não ajudava muito, era meio arredondado na ponta, nariz de batata, diziam, traço fisionômico que ele compensava com charme. Ele era namorador, muito namorador.
Eu não era nascida e imagino que meus pais se conheceram assim: as meninas do vô João sabiam que os meninos da vó Maria viriam para a festa do São João e se prepararam para o evento. A vó Maria vestiu as meninas com esmero, o que provocou alguns resmungos do vô João.
- Para onde vai essas meninas com estes vestidos justos, Maria?
- Sossega João, são vestidos para a festa junina. São justos só da cintura para cima. Quer que as meninas vão à festa como? De calça comprida?
- Tá, tá...
Minha mãe estava com um vestido de musseline amarelo com uma estampa discreta alaranjada, a parte da saia bem esvoaçante, saia godê,
e a parte de cima com um pequeno decote na forma da letra vê, sem manga e coberto com um bolero de lã alaranjado, já que junho era mês de muito frio. Nos pés um sapato novo, preto, de salto de cinco centímetros, de verniz e apertando muito os dedos. Tudo comprado com o dinheiro oriundo venda das costuras da vó Maria, o vô João não comprava nada para as meninas.
Naquele dia as meninas trabalharam o dia todo preparando a festa. Não me lembro se nesse tempo o único “filho homem” do vô João já tinha nascido, nem que idade teria, o que não faria muita diferença quando o assunto é trabalho. Elas varreram, limparam, enfeitaram, riram, brincaram, tudo bem discretamente para que o vô João não notasse a alegria e reclamasse:
- Por que estão aí rindo feito hienas?
- Por que não se fecham?
- Isso não é jeito de mulher, segura esse riso aí, vão achar que vocês não são mulheres de família!
Os gestos e o sorriso das mulheres tinham que ser contidos, discretos, dissimulados. As mulheres não podiam rir livremente, soltar uma gargalhada de felicidade. Rir era sinônimo de permissividade, sinal de abertura para um assédio sexual.
Supunham que as mulheres poderiam ser ludibriadas por esses homens, serem seduzidas e se perderem. Mulher perdida era como denominavam as mulheres que faziam sexo enquanto eram solteiras. Eram mulheres que tinham perdido o seu valor moral e social, todos eles concentrados na virgindade delas.
Por volta das dezoito horas os convidados começaram a chegar, vindo dos mais diferentes sítios das redondezas. Iam chegando, indo para o terreirão de café que estava coberto por uma lona, adornado por barbantes cheios de bandeirolas que saíam do mastro central e eram presos em cada ponta da lona. As mesas estavam cheias de pamonhas, bolos, pipoca, pé de moleque, curau, canjica, quentão e cachaça, entre outras guloseimas e bebidas. Quando o terreirão já estava quase cheio de gente é que o vô chamou as meninas para receber os convidados. A família da vó Maria não tinha chegado ainda, demoraram a chegar, para desespero das meninas.
Vô João estava muito bem-vestido e nunca se fantasiou de caipira nas festas juninas. Usava uma roupa simples, comum, porém bem-feita e elegante, feita pela vó. Às vinte horas chegaram os tocadores, os forrozeiros, o tocador de sanfona, triângulo e pandeiro. Começaram a tocar as músicas de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, Mário Zan e todos começaram a dançar forró.
A fogueira lá fora pegava fogo, as crianças brincavam ao lado, colocavam batata doce, milho e amendoim para assar diretamente na brasa. Quando a festa já estava em seu auge, os pares já formados, outros no banco de reserva, os sem pares, esperando a vez para dançar, a vó Maria chegou com sua família. O ambiente se encheu de gente elegante, bem-vestida, cheirosa. Cumprimentaram os donos da casa, agradeceram ao convite e se puseram a dançar. O José, Zé, convidou a Valdivina para dançar, o Miguel chamou a Valda.
Dançaram até amanhecer o dia, uma dança atrás da outra. Acertaram o passo, corpos se movimentando em sintonia, tudo com muito respeito, corpos afastados. Os pés da Valda estavam na carne viva, os sapatos machucavam, mas ela não queria parar, sair daquele pequeno momento de estase, de transe.
A luz do sol trouxe a realidade aos olhos e as pessoas foram se dispersando, indo embora aos poucos. Chegou a vez da família da vó Maria ir embora. A Valda se despediu do Miguel com um aperto de mão e um olhar cabisbaixo para não demonstrar o que estava sentindo, coisa que nem ela sabia como expressar. Um misto de alegria e tristeza, de esperança e desespero, de querer e não querer, de sair correndo dali ou ficar para sempre. O mesmo aconteceu com sua irmã, a Valdivina, entretanto o Zé não demonstrou estar na mesma sintonia emocional que ela.
O dia amanheceu, todos foram embora e as meninas passaram uma água no rosto, escovaram os dentes e foram dormir, quer dizer, foram para suas camas, mas estavam tão eufóricas que não conseguiram dormir imediatamente. Ficaram falando do que viveram, as pessoas que conheceram, os temores que estavam sentindo porque sabiam que o vô iria tirar o couro delas de tanto trabalhar por elas terem dançado a noite toda com um só homem. Não deu outra: mal tinham começado a dormir, vô João já estava chamando-as para varrer o terreirão de café e o quintal, lavar a casa, as louças, tirar água do poço, fazer comida, lavar roupa, ir para a roça.
- Por que vocês dançaram a noite inteira com a mesma pessoa? Por que não trocaram de parceiros? O que vocês estão querendo com aqueles homens? Não vou permitir que vocês namorem esses moços que não têm nada, não têm onde cair mortos! E não têm discussão! Meu avô, além de xenófobo contra os italianos, vizinhos do vô, também tinha preconceito com quem era mais pobre do que ele.
No outro dia as meninas foram para a roça, cansadas, esmorecidas, arrastando os pés para adiar a dureza que é capinar ao sol forte. Se minha mãe soubesse o que iria acontecer naquele dia, ficaria mais contente. As meninas estavam capinando por entre as leiras da plantação de café, quietas, só capinando com gestos mecânicos, quando uma voz soou bem baixinho:
- Valda, vem cá.
Ela ficou procurando, querendo saber de onde vinha aquela voz que a chamou novamente:
- Aqui.
Ela foi ao encontro de Miguel que a cumprimentou:
- Tudo bem Valda?
- Tudo, mas se meu pai te vir aqui, ele te mata.
- Eu sei. Vou ser breve. Quer namorar comigo?
A Valda gelou. Não sabia o que dizer. Sabia que seu pai jamais permitiria aquele namoro.
- Sim, quero. Disse e pensou: seja lá o que Deus quiser!
- Tá, então somos namorados. Vou embora antes que seu pai me veja.
Naquele dia minha mãe trabalhou muito, precisava baixar a adrenalina que corria pelo seu corpo. Capinou até não aguentar mais, foi para casa já anoitecendo, lavou roupa, fez pão, limpou a casa e caiu na cama desmaiada de cansaço. A Valdivina ficou acabrunhada, triste, sentindo-se rejeitada pelo Zé. Mesmo sendo mais jovem do que a Valda, sentia que não iria se casar, que estava condenada a viver sob a batuta do pai, mesmo com a proteção da sua mãe. E de um dia para outro desenvolveu uma síndrome – na época não diagnosticada – que a transformou em louca. Ela não conseguia passar de um cômodo da casa para outro de uma só vez, parava na porta, ia e voltava, ia e volta, ia e voltava, ia. Repetia estes gestos quantas vezes ela precisasse atravessar a batente de uma porta. Tinha comportamentos ritualizados para entrar nos ambientes, uma das características de quem tem transtorno obsessivo-compulsivo. Perdeu o interesse pela vida, foi internada em hospitais de loucos, foi isolada da família, recebeu eletrochoques, ficou pior do que entrou em um hospital psiquiátrico de Franco da Rocha. Voltou para a casa dos pais, viveu com eles até a morte deles, quando então foi internada em um abrigo para pessoas idosas ou sem família, a seu pedido. E lá morreu.
Enquanto a irmã se perdia em um mundo interior próprio ou coisa assim, minha mãe ficava cada dia mais desesperada. Não recebia qualquer notícia de Miguel, nada de cartas, de recadinhos e nem dele aparecer na roça novamente. Um dia ela soube pelo vô João que o Miguel estava noivo de uma linda moça que morava vizinha ao sítio do vô. Moça de família rica, distinta, moça bonita e que se vestia muito bem. Minha mãe quis morrer.
A ira, o desespero, o desencanto foram sendo apaziguados com o tempo. Já não tinha esperança de nada. Trabalhava por trabalhar, vivia por viver.
Um dia ela ouviu: toc, toc na porta da sala do vô. Ela foi atender, era o Miguel.
- Tudo bem?
Com o coração quase saltando pela boca ela respondeu:
- Tudo. Mentiu ela.
- Pode chamar seu pai?
- Posso.
Ela foi até a cozinha e falou:
- Pai, o Miguel está lá na sala e quer falar com o senhor.
- O que ele quer?
- Não sei.
O vô João foi para a sala.
- Entre Miguel. Tudo bem?
Miguel entrou, sentou-se na cadeira e imediatamente ficou de pé.
- O que tenho para falar com o senhor é rápido. Eu vim pedir a mão da Valda em casamento.
- O quê?!
- Eu quero me casar com sua filha.
- Você desapareça daqui antes que eu te mate. Saia, vá embora. Saia da minha casa!
E foi empurrando Miguel para fora da sala, quase o derrubando nos degraus da entrada da sala. A vó e minha mãe estavam ouvindo do quarto ao lado. Naquele momento minha mãe foi tomada por uma força que nem ela imaginava que tinha, foi até a sala e disse:
- Eu vou me casar com ele!
- Você não tem vergonha? Ele está noivo e vem aqui te pedir em casamento? Está pensando o quê? Você não se casará com ele.
A vó Maria tentou apaziguar os ânimos:
- João, pense bem, ela não é mais uma jovenzinha, vai querer segurar ela aqui em casa?
- Não venha você pondo panos quentes! Não vou permitir este casamento.
- Se o senhor não permitir eu vou fugir com ele! Disse minha mãe sem saber de onde tinha saído aquela voz, pois certamente não era a dela, logo ela que achava que tinha que respeitar a vontade dos pais, nunca os contrariar, obedecer sempre.
Miguel e Valda, meus pais, continuaram a se comunicar às escondidas. Não se viam, trocavam cartas, bilhetes, recadinhos, que foram juntados e amarrados, formando um bolinho, guardadas com muito amor, até que os filhos pudessem lê-los um dia. Sabiam que tinham um ao outro, estavam unidos. O vô, sabendo de que não poderia impedi-la de se casar, autorizou o casamento e trancou a cara. Não falou mais com a filha, não olhou mais a face da filha. Ela, mesmo muito chateada, foi fazendo o enxoval com a ajuda da mãe. Fizeram coisas lindas, guardanapos, roupas de cama, toalhas de banho com barrados de macramê, toalhas de mesa. Eu cheguei a conhecer algumas dessas peças que amarelaram com o tempo e foram rasgadas por mim para fazer roupas das bonecas. Eu não tinha ideia da importância daquelas roupas, tanto para mim, quanto para minha mãe e picotei tudo.
Marcaram o casamento, a vó fez o vestido, compraram a grinalda em Pirapozinho. Mãe e filha juntas. Miguel nunca explicou direito a história do noivado e Valda não quis prologar a conversa a esse respeito. Marcaram o casamento, ele era dela e não importava se tinha sido noivo de outra. No dia do casamento o vô não apareceu. Quem entrou com a noiva na igreja foi o irmão do Miguel, o Zé. Valda chorou muito porque não queria que no dia mais feliz da vida dela o pai estivesse ausente. Fazer o quê? O vô era cabeça dura.
Meus pais se casaram e foram ser arrendatários de terras próximas ao do meu avô, no município de Anhumas. Foi um tempo muito difícil para os dois, meu avô os ignorava, as terras não eram muito férteis e as colheitas ruins. A matéria prima para a construção da casa deles eram os troncos dos coqueiros, que meu pai derrubava, partia ao meio, tirava o miolo e unia as partes concavas e convexas, umas encaixadas nas outras. Depois amarrava umas às outras com arame e por último barreava, passava argila tanto nas paredes – era o revestimento – quanto no chão batido. A cobertura era feita de tabuinha, lascas de madeira. São construções que conhecemos hoje como casa de pau a pique, mas naquele tempo nem nominávamos muitos as coisas, elas eram o que eram. Meu pai fez um jiral para minha mãe secar as louças, que eram lavadas nos rios ou nascentes d´água próximas da casa. A cama também era muito simples, de madeira, mas sem ornamentos.
Havia uma mesa e dois bancos, um fogão a lenha feito de tijolos e barro, umas estantes para guardar a louça. Como eram jovens e apaixonados, parecia que tudo poderia ser superado, desde que estivessem juntos. Ali, em 1959 eles tiveram o primeiro filho, meu irmão. Não sei o motivo, mas um dia eles se mudaram e foram arrendar terras longe das terras do meu avô.
Foram morar na fazenda do doutor Paulo, no município de Pirapozinho. Naquela época era doutor todas as pessoas que tinham uma condição social maior do que a da maioria das pessoas, podendo ser um fazendeiro, um médico ou simplesmente alguém com mais influência política local. Se por um lado era uma forma de reverência a um “ser superior”, era também um sinal de subserviência ao outro, ao que se achava e agia como superior. Para minha família, chamar alguém de doutor era sinal de respeito, mas eu via com sinal de humilhação ao meu pai, o que me incomodava muito, mesmo que eu não soubesse o motivo. Eu amava e admirava muito meu pai e qualquer relação que o diminuísse me afetava, eu não gostava.
E não era ser arrendatário que o diminuía, mas a forma como os fazendeiros tratavam os arrendatários, com soberba, que me incomodava. Achava aquele comportamento desrespeitoso e ficava irada, mesmo que calada.
Eu nasci às margens de um riacho na fazenda do tal doutor Paulo, em 1965, em uma casinha semelhante àquela que meu pai tinha construído enquanto morava próximo ao meu avô. Os fazendeiros do interior do estado de São Paulo precisavam de pessoas para formar os pastos ou para renovar os pastos já formados. Para fazer isso sem ter que pagar e ainda receber uns trocados, arrendavam as terras para várias famílias, geralmente migrantes nordestinos, e estas migravam dentro da mesma fazenda, formando, renovando pastos, ou então procuravam outras fazendas para arrendar a cada três anos, duração dos contratos de arrendamento. Faziam rotações de formação de pastos para os fazendeiros.
Geralmente no primeiro ano de arrendamento o proprietário da terra não cobrava a renda, o aluguel da terra. Era o ano mais duro para os arrendatários, eles precisavam desmatar, formar os aceiros com os restos do desmatamento para barrar a água e não erodir o solo. A água ficava represada nas curvas de nível, nos aceiros formados por galhos, folhas, troncos velhos, e infiltrava, em vez de escoar e levar os nutrientes do solo para os rios. Só depois disso é que podiam plantar algodão, produto exigido contratualmente pelos proprietários das terras a ser cultivado. É lógico que não plantavam só isso, plantavam feijão, amendoim, mandioca e outras plantações temporais, de círculo de vida mais curto. No segundo ano todos os arrendatários tinham que pagar a renda ao proprietário, cinquenta por cento da produção ou do valor da produção vendida. No terceiro ano os arrendatários não precisavam pagar a renda em dinheiro ou produtos da lavoura, o pagamento pelo uso da terra era por meio da formação dos pastos, os arrendatários tinham que deixar os pastos formados, a terra tombada e plantada com braquiária. Terminado aquele contrato de arrendamento, os arrendatários precisavam negociar com o doutor Paulo para saber se ele continuaria arrendando outra parte da fazenda ou não. Dessa maneira as famílias, várias famílias, ficavam circulando dentro da mesma fazenda ou procuravam outra, no caso do doutor Paulo se recusar a arrendar para alguns dos sem-terra. Pelo que lembro, além da fazenda do doutor Paulo, morei na fazenda Mosquito e em uma fazenda do grupo norte-americano chamado Swift-King Ranch, fazenda Laranjeiras, no município de Narandiba.
O fato é que eu nasci migrante e sem-terra, mas não consciência disso. Quando a gente nasce não atina nada, não sabe dessas relações, das implicações do que é viver como tartaruga, com a casa nas costas, indo de um lugar para outro, sem fincar raiz, a procura de um lugar para chamar de seu. Tudo era só mudança, seja no sentido de que a vida muda, mas também sinônimo de momento de colocar as tralhas em um caminhão e mudar para outra fazenda. E os cachorros de cor caramelo correndo atrás do caminhão, às vezes se cansando, não aguentando mais correr, parando pelo caminho. Às vezes, dias depois que chegávamos ao lugar onde íamos morar por um tempo, os cachorros chegavam. Era uma festa para nós e para eles. Não sei por que meu pai não os trazia no caminhão, dava muita tristeza vê-los ficando para trás. Se fosse hoje, não permitiria uma coisa dessas.
Com o tempo e uma pequena melhora nas condições de vida, ainda na condição de arrendatário no município de Pirapozinho ou Narandiba, meu pai comprou o material da construção de uma casa que seria demolida, fazendo reaproveitamento da madeira e de tudo o mais. Ele comprou as tábuas, os caibros, as ripas, os tijolos, as telhas e construiu uma casa para nós em um desses arrendamentos. Para mim era como se fosse uma mansão, comparativamente à casa de chão batido onde nasci. Achei maravilhosa aquela casa feita de tábuas, coberta com telhas e chão com tijolos, mesmo que crus, sem revestimento. Naquela casa fui me descobrindo como gente, criando as minhas primeiras memórias, criando meu passado, vivendo o presente, sem qualquer noção de futuro. Ninguém perguntava: o que você vai ser quando crescer? Sozinha, sem ter com quem conversar, fui me enchendo por dentro de histórias, criando mundos particulares, ficava horas deitada na cama com as pernas para cima, apoiadas na parede, e sonhando acordada.
Foi ali que eu me descobri fazendo parte do mundo, que comecei a observar a natureza, olhar as nuvens se movendo no céu, fazendo suas sombras se moverem na terra, a formação das chuvas vindas do sul, as chuvas de frente, que eram diferentes das chuvas que se formavam mais localmente, as chuvas de convecção. As chuvas de frente eram mais duradouras, mais violentas, com raios, trovões, relâmpagos e que faziam minha mãe acender uma vela e rezar muito de joelhos diante de um altar ou da imagem de um santo, geralmente uma santa, Nossa Senhora Aparecida. Minha mãe era uma mulher muito corajosa, menos para tempestades e sapos. As primeiras nuvens escuras se formavam no céu e minha mãe já estava se preparando para a tempestade, cobrindo os espelhos, colocando vela no altar para todos os santos.
Meu pai parecia temer só os outros humanos, tinha medo de sermos roubados, de invadirem nossa casa e violentarem nossos corpos. Qualquer movimento estranho do nosso cachorro, meu pai ficava em alerta, de olho na cartucheira ou revólver, que escondia sabe-se lá onde, para eu não pegar. De chuva ele nem se importava, podia vir forte, ele só ficava na porta da nossa casa olhando, se espreguiçando e assoviando. Às vezes levantando uma das pernas para o lado, soltando pum e sorrindo maliciosamente, sem dizer nada, para não nos dar ousadia.
- É, parece que a chuva vem forte. Vamos ter que cobrir os sacos de algodão com a lona. E saía chamando os peões para cobrir a produção.
Já minha mãe, ela tinha muito medo de tempestades. Cada relâmpago era um martírio para ela, pois sabia que em seguida viria um trovão. Tapávamos os ouvidos e ficávamos esperando – trá! Ela me chamava para o quarto, sentávamo-nos na cama, ela pegava um terço e diante de um altar improvisado em cima da máquina de costura, começava a rezar. Tantas Aves Marias, tantos Pais Nossos, tantas Glórias e Mistérios que não acabavam mais. E os améns! Eram tantos que eu quase entrava em transe junto com ela. Eu gostava dos améns em uníssonos, produzia um som ritmado, melodioso, gerando quase uma catarse. Algumas palavras minha mãe não sabia pronunciar, mas somente hoje eu sei disso, na época eu só repetia com ela do jeito que ela falava. Se ela não sabia pronunciar, imagine se sabia o que significava! A intenção da reza era o que importava, independentemente do que se estava dizendo. Não havia contestação, só aceitação, concordância, só amém.
Se a tempestade piorava, ela ia mudando de comportamento de acordo com o aumento do seu pavor. E como ela tinha medo, eu também tinha. Ficava apavorada com os trovões e relâmpagos, mas principalmente com a ventania. O vento poderia arrancar o telhado da nossa casa, como aconteceram algumas vezes. Não chegava a destelhar tudo, movia-as de lugar, tirava uma aqui outra ali, que meu pai precisava consertar depois. O barulho das telhas se movendo, as goteiras se formando dentro de casa, precisando que meu pai colocasse vasilhas para apará-las, para que a casa não se inundasse, isso fazia eu ter a sensação de que o sangue que corria em minhas veias se esquentasse, era a adrenalina.
Quando as telhas começavam a cair dentro de casa, o jeito era ir para embaixo da mesa, para nos proteger.
As chuvas de frente traziam temperaturas mais amenas, às vezes frio mesmo. Antes delas chegarem geralmente estava muito calor. Durante a tempestade, a medida em que ela se intensificava, minha mãe cobria a cabeça com cobertores para não ver os relâmpagos e tapava os ouvidos para não ouvir os trovões. Eu ficava com ela embaixo dos cobertores fazendo a mesma coisa. Suava, o ar ficava rarefeito, era uma sensação de abafamento muito ruim, mas só saíamos dali quando a tempestade passava. Então era uma sensação muito boa, uma lufada de ar fresco no rosto, todos saindo de casa, os cachorros, patos, galinhas, sacudindo as gotículas de água, os cavalos correndo nos pastos, o cheiro de terra molhada, os vegetais como que se despertassem, o sol dando as caras timidamente, o arco-íris colorindo o céu. E eu saindo para brincar nas poças de lama.
Já as chuvas que se formavam mais localmente eram mais calmas, sem muitos raios, trovões, ventanias, mas geralmente muito intensas. Elas se formavam rapidamente e antes que o meu pai e os peões chegassem da roça, ela já estava despencando. Eles chegavam todos molhados e iam diretamente para o galpão, tomar pinga, cachaça, e jogar baralho. De casa eu só ouvia:
- Truco!
- Seis!
- Ladrão!
Passada a chuva, eles voltavam para a roça, dependo do que estivessem fazendo antes, como capinando, por exemplo. Senão era o resto do dia de folga. Fazer o quê? Era o ritmo da natureza se impondo àqueles humanos dotados de poucas tecnologias, sujeitos ao sol, chuvas, frio, calor, à luz do dia ou escuridão da noite.
O lado ruim desse tipo de chuva é que a água não cai suavemente, lentamente, por horas e horas, dando tempo para a água infiltrar no solo. A água despenca mesmo e não dá tempo para penetrar no solo, então ela forma enxurradas, que vão levando todos os tipos de sedimentos para os rios, que rapidamente transbordam. Alguns arrendatários construíam suas casas muito próximas aos rios, para facilitar a vida, lavar roupa, louças, dar água para os animais, pegar água para abastecer as moringas e os potes de barro, ou pescar. Como construíam dentro da margem de vazão do rio, na formação das enchentes, era um Deus nos acuda. Muitas vezes vi meu pai saindo com uma lona na cabeça indo socorrer os vizinhos, retirar as pessoas, os animais e o que mais desse tempo para salvar. Nós conseguíamos ver a enchente descendo o rio, chegando, se aproximando das casas lá embaixo, os homens salvando as mulheres, crianças, animais, colocando tudo o que podiam nas partes mais altas do terreno, para que todos e tudo se salvassem.
Ao final de cada tempestade, de cada chuva era um alívio e ao mesmo tempo, um reforço na amizade e solidariedade entre os arrendatários. Uns agradeciam aos outros pela ajuda no salvamento, uns ajudavam os outros recompondo os telhados das casas, outras – geralmente eram as mulheres – arrecadavam cobertores e roupas de frio para os desvalidos da chuva.
Meus pais eram muito calados, não conversavam muito. Eu aprendia pelos gestos deles, olhares, ações e algumas palavras captadas aqui e ali. Aprendi a criar um mundo introspectivo, a viver só sem sentir solidão, simplesmente me concentrava em meus pensamentos, totalmente absorta. Mesmo havendo um mundo de coisas a serem conhecidas ao meu redor, toda a natureza que me cercava, eu me perdia em pensamentos, construía a realidade que quisesse, com a capacidade imaginativa que me era possível naquele lugar de poucos estímulos. Criava as fazendas com cercas feitas de gravetos, colocava em seu interior as cabeças de gado feitas de maxixe e fósforos, usados para fazer os chifres e as patas do gado. Construía as casas, feitas de caixas de fósforos que minha mãe guardava para eu brincar, ou mesmo latas de óleo Lisa. Eu ficava muitas horas brincando sozinha, criando e destruindo mundos. Com mais idade passei a imaginar o que faria se ganhasse na loteria ou se tivesse algum poder sobrenatural. Antes de adormecer era muito bom ficar pensando na casa que eu teria e como eu ajudaria as pessoas a mudar de vida com o dinheiro da loteria. Pensava na planta da casa, descobria que o plano não funcionaria na prática, destruía tudo e começava tudo novamente, até adormecer. Quando conheci os super-heróis por meio dos gibis, ficava imaginando o que eu faria com aqueles poderes, se ficasse invisível entraria na vida de algum político poderoso e o obrigaria a fazer o que eu queria, sempre a favor dos mais fracos. Quanta ingenuidade!
De onde vinham essas ideias? Por que essa fixação em querer ajudar as pessoas? Poderia dizer que a religião influenciou nisso, mas não me lembro de pessoas fazendo o bem em nome da religião na minha infância. Talvez tenha aprendido não pela palavra dos meus pais, já que eram bem silenciosos e sim por suas ações, principalmente vindas do meu pai.
Meu pai era muito respeitoso com todas as pessoas, não fazia distinções sociais, de cor, de nada. Não era um homem preconceituoso ou não demonstrava isso para mim. Não posso dizer a mesma coisa da minha mãe, que tinha medo de negros e disse que não gostaria que eu me casasse com um negro, ter netos negros. O pai dela era muito preconceituoso e o meio influencia a forma das pessoas enxergarem o mundo. Com o tempo ela mudou de ideia.
Enfim, para meu pai, estar com os peões na roça ou mesmo nos barracões era motivo de diversão, de riso e de paz. Lá a resenha, palavra que conheci morando no nordeste brasileiro usada no sentido de dizer algo engraçado, corria solta. Meu pai dizia que os peões falavam água, coisas sem seriedade ou firmeza. Era falar por falar, falar qualquer coisa, rir de tudo. Um riso solto, descompromissado, sem segundas intenções. Era ali que meu pai se sentia bem, feliz. E foi assim a última imagem que tive dele, em um sonho. Ele vestido de calça e terno brancos de linho, na carroçaria de um caminhão pau de arara, junto com os boias-frias, rindo, dando adeus para mim e dizendo:
- Tchau, eu estou bem. Eu tenho que ir.
Vi meu pai ajudando muita gente com pequenos gestos, conseguindo terras para os mais fracos, aqueles que não tinham nem condições de arrendar um hectare de terras para habitar e cultivar os alimentos para o consumo. Então meu pai arrendava um hectare a mais e cedia para um queima-lata, como eram chamados os homens que viviam sozinhos, sem esposa e fazia a própria comida. Ao final dos contratos de arrendamentos sempre aparecia alguns queima-latas pedindo um hectare para meu pai. Às vezes isso era ruim, pois o queima-lata abandonava o arrendamento e meu pai tinha que se virar para cuidar da terra arrendada a mais. Outra coisa que ele fazia era emprestar sacas de feijão para que o vizinho arrendatário pudesse plantar. O vizinho tinha comido as sementes de feijão que eram para serem plantadas, ficara sem sementes e pedia emprestado para meu pai. Ele emprestava e ao final da colheita o vizinho devolvia. Vi ele fazer muitas vezes isto e não só para uma pessoa.
Meus pais eram calados no sentido de que não ficavam explicando tudo, ensinando isso ou aquilo sobre o mundo e a vida, talvez por não conhecer. Eu ia aprendendo por meio da vivência deles. Havia ocasiões em que meus pais passavam horas conversando, seja sentado em um banco na frente da nossa casa ou de pé, apoiados no portão, ficando apoiados em só pé ao modo das garças, pose que entrega a classe social do sujeito, pobre. Algumas vezes eu ouvia parte daquelas conversas, pegava uma frase aqui outra ali. Lembro que falavam que a colheita daquele ano só tinha dado para pagar o empréstimo bancário, comprar sementes para o plantio da próxima safra e algumas coisas para casa, como tecidos para nossas roupas e para a casa. Era como se meu pai prestasse contas à minha mãe. Era por meio dessas conversas que eu ficava sabendo que alguns queima-latas tinham abandonado a pequena fração de terras de responsabilidade dele, deixando para meu pai cuidar, que o vizinho não tinha pagado a saca de feijão emprestada ou que tínhamos que nos mudar novamente porque o proprietário da fazenda não iria renovar o contrato de arrendamento.
Não havia gestos de carinho físico entre meus pais, beijos, abraços, mas havia companheirismo, cumplicidade e respeito. Nunca presenciei meu pai tratando minha mãe mal, não alterava a voz e nem a subestimava. Minha mãe, por sua vez, fazia questão de dizer que ele não podia fazer nada sem o consentimento dela, que eles faziam tudo juntos. Minha mãe era rezadeira de terços, então sempre que tinha um terço nas vizinhanças, vinham até nossa casa chamar minha mãe para ir rezar. Nos finais de semana, geralmente rezavam o terço e depois dançavam forró até amanhecer o dia. Eles dançavam juntos e mesmo com parceiros de outros casais. Quando meu pai dizia:
- Valda, vamos embora.
- Vamos. Espere, vou pegar Maria. Geralmente eu estava dormindo na cama do dono da casa enquanto eles dançavam.
Ela procurava não o contrariar, mas se fosse preciso, ela negociava. Dizia que os casais deveriam se entender. Foi nesse lar que eu fui criada e de onde conto os meus contos, sempre com muito bom humor, enquanto procuro o meu lugar no mundo.
A migração dificulta a construção linear da história da vida. Alguns acontecimentos perdem os referenciais geográficos de distância, de sentido, de direção, de espaço. E a contagem do tempo também fica meio confusa na memória. Onde eu estava mesmo quando aconteceu isto? Isto se deu antes ou depois daquilo? As memórias ficam cheias de mata-borrões, sem nitidez. Então, não vou contar a minha história (ou seira estória?) como se ela fosse o desencadeamento de eventos, um atrás do outro, e muito menos tendo uma base geográfica que corresponda aos dos acontecimentos. Vou tentar alinhavar a vida, mas com a certeza de que haverá fios soltos, fios interrompidos, outros propositalmente amarrados, um emaranhado de fios, sem formar um novelo.
Nessa vida de migrante, de estar constantemente no trecho, vivi um tempo da minha infância em fazendas no interior do estado de São Paulo, depois fui morar em Assis Chateaubriand – demorei para aprender a escrever este nome – passamos um tempo por lá, nos mudamos para Presidente Prudente, de lá fui morar em São Paulo, de São Paulo fui para Ilhéus, morei quatro anos e meio em Maringá, voltei para Ilhéus e estou sem saber para onde ir. Se tivesse minha casa, do jeito que sonho, ficaria por aqui mesmo, em Ilhéus. Como não tenho, continuo a procurar meu lugar no mundo. Enquanto isto, escrevo contos, desterro memórias de uma mulher que nasceu em 1965, no Brasil da ditadura, que viveu ouvindo de que não se podia “falar mal do governo”. Só quando estava no colégio é que os professores de Geografia e de Física me explicaram o que era “falar mal do governo” e pude entender certo tom de temeridade na voz dos meus pais quando falavam disto sem explicarem do que se tratava, provavelmente porque não entendiam direito o que se passava. Havia algo no ar, um tom mais baixo na voz ao se dizer isto, um olhar para os lados, algo que suscitava medo. Então, boa leitura para vocês!
Recolher