Quando cheguei ao Bom Retiro, em meados de 1970, tinha 10 anos de idade e uma parte da alma envelhecida e cansada. Minha expectativa era imensa com a nova vida que se iniciava, embora houvesse muito ao que me adaptar. Como seria morar em um apartamento no centro de São Paulo, deixando para trás ta...Continuar leitura
Quando cheguei ao Bom Retiro, em meados de 1970, tinha 10 anos de idade e uma parte da alma envelhecida e cansada. Minha expectativa era imensa com a nova vida que se iniciava, embora houvesse muito ao que me adaptar. Como seria morar em um apartamento no centro de São Paulo, deixando para trás tantas coisas importantes que construíram a minha primeira infância? O que eu faria longe do meu quintal encantado e das brincadeiras na rua? Não sentiria mais o cheiro das flores do jardim da vó Maria. Nem brincaria mais com meu cachorro. Dizer adeus ao Banzé foi a morte.
Na hora da partida, recusei e impedi qualquer tentativa de meus tios em me consolarem. Não chorar e não me mostrar frágil, fazia parte do pacto que havia feito com o universo — após uma das inúmeras surras que levei de minha mãe, jurei que nunca mais ninguém me veria chorar. Limpei o sangue que escorria pelo nariz, enxuguei as lágrimas que caíam, e passei a esconder minhas emoções atrás de uma máscara intransponível. Bem guardados, passei a carregar toda dor, todo medo, toda tristeza e toda carência adquiridos por anos de duros castigos maternos.
Sentia-me um pouco confusa na nova casa. Não nego, ao mesmo tempo eufórica com a possibilidade de a mudança ser não só de endereço, mas de vida — éramos três filhas e estávamos indo morar com o novo marido de minha mãe. Talvez, com a presença dele, as suas surras e castigos diminuíssem, talvez ela me desse mais carinho, talvez ela passasse a me amar. Sobre minha mãe, as expectativas não se cumpririam. Porém, mal sabia eu, que, no Bom Retiro, e na convivência com o meu novo pai, eu encontraria minha salvação.
No começo, tinha dúvidas se gostava ou não dele. Achava-o velho, baixinho e feio. E eu odiava quando repreendia, a mim e minhas irmãs, sempre que mexíamos em seus livros e discos. Era um homem muito organizado, por isso, ficava bravo quando encontrava algo fora do lugar. Perdi a conta do número de broncas que levamos por anos, até iniciarmos a vida adulta.
Das três filhas postiças que ele adotou, indo morar com a minha mãe, eu era a pedra em seu sapato. Respondia. Provocava. Me indignava. Reclamava. Enfrentava. Por outro lado, ele tinha tantos livros. Me deliciava, olhando todos eles, lendo muitos deles. E havia o mundo maravilhoso da literatura e da arte que aos poucos nos apresentou. Sua história de vida, era outra fonte que alimentava minha imaginação. Jornalista, cassado pela Ditadura Militar, havia pouco tempo chegado a São Paulo para trabalhar como redator em uma empresa cinematográfica. Nasceu em Manaus, viveu no Acre, de onde, com a ajuda de seringueiros, fugiu dos militares para o Rio de Janeiro.
Nos finais de semana, meu novo pai dedicava horas, com minha mãe, lendo livros e conversando. Também costumava receber muitas visitas. Quando não eram seus filhos e netos, vindos do Rio, eram velhos amigos — na maioria, jornalistas e intelectuais. Cresci acompanhando as tantas e tantas conversas que mantinham na sala de casa. Eu não desgrudava do lugar, sentada em uma enorme almofada no chão, encantada, absorvendo tudo. Tinha dois amigos, em especial, que sempre nos visitava. Com eles, meu novo pai se entregava à sua grande paixão: o idioma e cultura russos. Ao som de músicas típicas, e saboreando vinho tinto, os três perdiam a noção do tempo, comentando Tolstoi, Dostoievski, Gogol, Tchekhov… Ele percebia o meu prazer em participar, silenciosamente, daqueles momentos e demonstrava que eu era bem-vinda. Sempre desconfiei de que meu novo pai conseguia ver a verdadeira menina através da máscara que eu usava.
Lembro-me da primeira vez que lhe mostrei uma redação feita na escola e pedi que lesse. Estava ofegante. Havia ensaiado aquele pedido por meses, mas tinha medo de ouvir um não ou uma crítica muito dura. Após o jantar, ainda sentado à mesa da cozinha, pegou meu caderno e leu atentamente. Ao terminar, me deu um sorriso e disse que estava muito boa. Pediu uma caneta, pois faria algumas correções. Meu rosto se iluminou de alegria.Depois disso, tudo que escrevia, mostrava a ele. E ele sempre lia, comentava, corrigia, me ensinava. Tornou-se um hábito meu novo pai me apresentar às pessoas como sendo a filha que herdara seu “amor pelas letras”.
Já, adulta, quando teve o seu primeiro derrame, descobri que o amava profundamente. Foi aí que me dei conta de que já não usava a minha máscara há muito tempo — foi por meio do “amor pelas letras” que meu novo pai me reaproximou de mim mesma. E foi, por ele, por medo de perdê-lo, que eu voltei a chorar em público.
Ele partiu de nossas vidas, muito tempo depois, aos 90 anos. Fiz questão de, em seus últimos meses, dedicar-lhe leituras diárias de poesias. Sua expressão, naqueles momentos tão preciosos, era de agradecimento e nostalgia. Às vezes, abria um sorriso trêmulo. Às vezes, caía em prantos, chorando de emoção. Não há um dia, desde que ele se foi, que eu não encontre vestígios de nossa valiosa convivência. Vestígios nos livros, nas lembranças, na família, no coração, na palavra, na poesia.Recolher