Projeto Mostra SESC Museu da Pessoa
Depoimento de Carlos Laporta
Entrevistado por Danilo Lopes e Marina Amália
São Paulo, 11/03/2010
Realização: Museu da Pessoa
PC_MA_HV251
Revisado por Paulo Ricardo Gomides Abe
P/1 – Inicialmente, senhor Carlos, muito obrigado por estar aqui, por nos conceder essa entrevista. Antes eu gostaria que o senhor falasse o seu nome completo, o local e a sua data de nascimento.
R – Carlos Laporta. Local de nascimento na Barra Funda, Rua Lopes de Oliveira na chamada Vila do Formigoni, no dia 3 de maio de 1919.
P/1 – Perfeito. Senhor Carlos...
R – Faz pouco tempo.
P/1 – Faz pouco tempo. Só 91, é isso? Senhor Carlos, inicialmente, antes de entrar bem na sua vida, eu gostaria que o senhor contasse um pouco dos seus pais. Quem foram eles? De onde vieram?
R – Meus pais... Bom, começar dos meus pais ou dos meus avós?
P/1 - Por favor. Se o senhor conhece a história dos seus avós...
R – Não. A história deles não. Eu conheço, sei os nomes e de onde eles vieram. Vieram da Itália e se localizaram aqui no Brasil na região de Rio Claro. Isso família dos pais. Os meus avós, por exemplo, chamavam-se Eliangelo Laporta e ela Carolina Fina. Agora não sei se ela era muito fina. Então depois de Rio Claro, a família dos meus pais, ou do meu pai, mudou pra São Paulo. Eles vieram da Itália. Dos meus pais da região de Nápoles, chamada Sala Consilina. A minha mãe veio de Tuim e foi pra Itatiba com os pais. Depois mudaram tudo pra São Paulo e aqui o Miguel conheceu a Guilhermina, o meu pai e a minha mãe, Guilhermina é minha mãe, é bom que saiba. Eles se conheceram, namoraram, depois casaram na Igreja de Santa Ifigênia na data de... Posso ver aqui?
P/1 – Por favor.
R – Onde está? Aqui. Na Igreja de Santa Ifigênia em 3 de outubro de 1912. Ele com 24 anos e ela com 19 anos.
P/1 – O senhor poderia falar um pouquinho o que eles faziam? Como eles se conheceram? É uma boa pergunta, certo? Como eles se conheceram também?
R - Ela, antes de casar, trabalhava em, vamos dizer, em casa que fazia chapéus, casa de confecções de chapéus. Naquele tempo, a mulher usava muito chapéu. E meu pai era barbeiro, só que não dirigia. Ele era barbeiro pra cortar cabelo e fazer barba. Ele trabalhava na Travessa do Comércio, aqui é uma travessa da Rua 15 de Novembro. Ele servia os banqueiros, os doutores aqui das imediações. Mais o quê?
P/1 – Você sabe como eles se conheceram? Como foi que... Você sabe esses detalhes?
R – A gente não tinha muita conversa, não tinha muito diálogo com os pais. Mesmo porque, principalmente eu, estava sempre na rua e eu continuo na rua. Estou sempre na rua andando pra cá, pra lá, conhecendo isso, conhecendo aquilo. Como eles se conheceram eu não sei, mas devem ter se conhecido, porque se casaram.
P/1 – De algum jeito, sim.
R – Depois do casamento, foram morar na Avenida Rio Branco. Depois da Avenida Rio Branco, passaram pra Lopes de Oliveira. Foi onde eu nasci e nascia um monte.
P/1 – Muitos irmãos?
R – Nós éramos em dez. Cinco já morreram, agora faltam cinco. Eu estou me escondendo. E, vamos dizer, de 19, de 1919 eu não me lembro de muita coisa, porque foi quando eu nasci. Eu só começo a me lembrar em 1923, 24 quando a gente já estava morando na Vila Pompéia. Na Vila Pompéia tinha o seguinte... Aí em 1924, eu ouvia a Revolução de 24, ouvia falar porque a revolução se deu muito mais no centro do que na periferia. Naquela altura, Vila Pompéia era periferia. A gente via passar pela rua de casa as pessoas que invadiram e saquearam o Matarazzo. Elas passavam carregando saco de batata, saco de feijão, lata de banha e tal. Isso na Revolução de 24. Ali na esquina da Rua Venâncio Aires, onde a gente morava com a Avenida Pompéia tinha um prediozinho, aliás, que ainda está lá, era uma delegacia de polícia. Os policiais tinham fardamento igual às fardas dos franceses. Era toda azul marinho com um filete vermelho aqui assim e aquele quepe igualzinho aos franceses, que usavam. Na Vila Pompéia tinha mais o clube Palestra Itália e tinha um córrego na margem do clube que hoje está tapado. Tem uma triste notícia ali desse córrego. Pode falar?
P/1 – Claro.
R – Eu tinha um amiguinho... A gente andava muito por ali, eu morava lá na Venâncio Aires e estava ali na Rua Turiassu, é onde está o Palmeiras. Eu tinha um amiguinho chamado Quinzinho, era filho de um português que tinha um bar na Rua Turiassu. O coitado do Quinzinho estava andando na calçada, uma calçada estreita, porque tinha o córrego do lado. Nisso aparece um carro, olha que naquele tempo era difícil aparecer um carro. Aparece um carro da Rua Turiassu, vai em direção ao Quinzinho, bate nele e joga ele no córrego. Cai em cima dele, matando o coitado do Quinzinho. Essa maluquice é triste. Depois...
P/1 – Seu Carlos, posso fazer uma sugestão? Porque o senhor fica um pouco se apoiando no seu texto. Não se preocupe com data, isso aqui é mais uma conversa mesmo. Eu estou vendo que o senhor está falando e fazendo assim e acaba ocultando você um pouco. Posso ficar com o papel ou o senhor vai ficar um pouco aflito?
R – Deixa-o aqui.
P/1 – Posso deixar aqui então?
R – Pronto.
P/1 – Ótimo. Porque ele fica na sua frente, mas... Isso foi uma tragédia. Vocês sempre brincavam na rua e numa dessas... E o que aconteceu depois disso? Teve o acidente e o que aconteceu?
R – A vida continuou tal. E lá pela Vila Pompéia...
P/1 - Mas chegou a polícia? Nesse momento chegou a polícia? Chegaram os moradores? O que aconteceu?
R – Aí já não lembro. Eu acho que, ao invés disso, eu, devido a coisa ser muito triste, acho que saí correndo e fui pra casa. Esse é um depoimento. Outro seria a Vila Pompéia, por exemplo, as ruas, a não ser a avenida que era calçada de paralelepípedo, as ruas eram tudo de terra. Um pouco mais acima da Vila Pompéia a iluminação não existia. Não tinha iluminação, tanto que a gente foi morar na Rua Caiowaá, você conhece a Rua Caiowaá. A Rua Caiowaá naquele tempo era tudo terra, tudo mato, tudo. A gente precisava sair à noite de casa, ir até o ponto do bonde na Avenida Pompéia pra esperar o meu pai pra acompanhar ele até casa porque não tinha iluminação, então era perigoso cair. Isso é Vila Pompéia. Depois da Vila Pompéia, a Revolução de 24. Aí de 27 a 28 passamos lá pra Barra Funda. E na Barra Funda tinha... Fomos pra Rua Lopes de Oliveira. Na Lopes de Oliveira, tinha na esquina a Chácara do Carvalho que era um colosso de um quadrilátero que fazia assim. Rua Vitorino Camilo, Eduardo Prado, Conselheiro Nébias e Lopes de Oliveira. Ali filmavam, faziam filmes de... Eu vou dizer boiadeiro, não digo cowboy porque cowboy é boiadeiro. Faziam filmes de boiadeiro lá dentro dessa chácara. Ali tinha uma porção de amigos. Já naturalmente eu tinha nove anos. Tinha uma porção de amigos, a gente fazia uma disputa de quem dava mais volta na chácara. Por fim ficava eu e um amiguinho, o Negrinho, que eram os dois que davam mais voltas na chácara. Naquele tempo também a iluminação na Barra Funda era feita por lampião de gás e à tarde passava um empregado da companhia de gás pra acender os lampiões. Durante a Revolução de 30... Porque a Lopes de Oliveira termina justamente onde estão os trilhos das estradas de ferro. Ali, durante 1930, a gente via passar os trens cheios de soldados que vinham lá do Sul e iam pro Rio de Janeiro pra depor o Washington Luis Pereira de Sousa, que era presidente naquela época e os gaúchos não estavam de acordo. Então eles passavam ali e a gente via os soldados passarem em 30. Logo em seguida, a Revolução de 32. Eu já tinha uns 12, 13 anos por aí. Eu e uma porção de garotos formamos uma banda, tudo de lata, e percorríamos as ruas da Barra Funda tocando as latas e fazendo a propaganda da Revolução de 32. A gente também gritava: “Nós queremos João Alberto”. Nem sabia quem era João Alberto, mas a gente: “Nós queremos João Alberto”. Devia ser um político que existiu naquela época em São Paulo. Durante essa Revolução de 32, ao lado da minha casa tinha uma metalúrgica. Essa metalúrgica fabricava os obuses pra revolução e o... Como é que chama?
P/1 – Capacete?
R – O chapéu de aço. Como é que é?
P/1 – Capacete.
R – Capacete. Fabricavam os capacetes e os obuses pra revolução. Depois de 32, também tinha o seguinte, aqui na Praça Marechal Deodoro havia um campo de futebol e tinham dois times arquirrivais. Parece que eram o Democráticos e o Estudantes, e de domingo eles disputavam a partida. No fim, já viu. Sempre saía aquela briga de... A última briga que eu assisti era de mulheres. As mulheres saíram do campo arrastando uma pelo cabelo e surrando... Isso no fim do jogo. Outra coisa aqui da Barra Funda, eu me lembro também da Barra Funda, porque a gente ia até a Cachoeirinha. Sabe onde é a Cachoeirinha? Não. Cachoeirinha fica lá na zona norte perto da Cantareira, por aqueles lados. Cachoeirinha chamava. Chamava-se Cachoeirinha porque de fato tinha uma cachoeirinha. O Rio Tietê passava ali quando o Rio Tietê era limpo. O Rio Tietê passava ali e até tinha uns alemães que faziam muito convescote ali na cachoeirinha. A gente ia lá pra pescar, mas eu não pescava. Eu nadava no rio lá. O que mais que eu posso lembrar? Da Barra Funda... Da Barra Funda a gente tinha algumas brincadeiras, jogava-se muito futebol na rua. Naquele tempo, não passava muito carro, a gente podia jogar futebol. Na esquina da Chácara do Carvalho, tinha uma indústria chamada Trussardi que fabricava implementos de renda, essa coisas pras mulheres fazerem enfeite. Tinha uma rua chamada Rua dos Camerinos, era uma travessa da Rua Lopes de Oliveira. Aqui a molecada fazia o seguinte, pegava um garoto, punha... Porque a rua era descida e ela terminava, uma quadra só, terminava numa parede. Então a gente punha um garoto dentro do pneu e soltava-o Iá de, bah, na rua, saía de lá todo... Outra coisa engraçada era o seguinte, no fim da Rua Barra Funda, havia um matadouro. Ali chegava o gado do interior, acho que pra engordar. Uma vez um boi fugiu e nós, eu estava sentado ali na Rua Barra Funda, esquina com Lopes de Oliveira, com dois irmãos esperando meu pai. Esse boi veio subindo a Rua Barra Funda e tinha um guarda na esquina, não sei o porquê, quando o boi veio se aproximando ele puxou o cassetete e fez assim pro boi parar. O boi parou, mas parou em cima dele. Deu uma trombada nele, jogou ele no chão e continuou correndo. Que mais eu posso me lembrar de Barra Funda? Acho que é só da Barra Funda.
P/1 – Seu Carlos, então me deixa aproveitar um pouquinho e vou retomar algumas coisas. O senhor foi contando várias coisas bem interessantes, então vamos aprofundar algumas coisas. Primeiro eu queria voltar até pra Pompéia. O senhor disse que tinha uma família de dez, certo?
R – É.
P/1 – Dez filhos, dez irmãos. Conta-me um pouco como é que era a casa de vocês, como que era esse almoço de domingo, conta um pouquinho.
R – Ah, no almoço de domingo impreterivelmente tinha que estar todos juntos na mesa pra almoçar. Mas acontece o seguinte, eu não era muito de estar em casa, fui a vida toda assim. Até agora eu fico pouco dentro de casa. Estou sempre na rua. Então naquele tempo a gente tinha aquela amizade de irmãos, mas como eu estava sempre fora, não tinha lá muito bom contato. Agora eu vou contar uma coisa interessante. Eu estava varrendo uma sala, de repente não sei o porquê, eu bati num espelho que estava na parede e o espelho caiu na minha cabeça. Não fez um arranhão. Eu não sei como é que tiraram o espelho dali. Podia ter matado. Podia ter cortado a carótida. Então o contato assim, o diálogo com os pais era muito pouco, porque, eu estou dizendo, quase nunca estava em casa. É isso.
P/1 – O senhor frequentava a escola? O senhor ia à escola?
R – Ah, sim. Eu frequentava o Grupo Escolar do Arouche. A gente saía ali da Pompéia, tomava o bonde na Avenida Pompéia e ia até o Arouche pra assistir a aula. Eu completei o curso, já estava morando na Barra Funda. Completei o curso aos 11 anos, em 1930. Quando eu completei o curso já quis ir trabalhar. Então o negócio é esse, aquela relação entre os irmãos era uma relação... Quando se encontravam brincavam, um dava tapa no outro, aquela coisa. Mas era só isso, porque eu estava sempre fora. Um pra cá, outro pra lá. Ali na Vila Pompéia eu subia muito lá no alto da Vila Pompéia, na Rua Cotoxó. Ali é uma ladeira muito íngreme, bem anguladada assim e a gente brincava, subia numa lata, numa coisa e ia até lá embaixo. Um dia eu estava sentado lá no morro e eu fiquei olhando lá pra baixo. Chamava-se, não sei se ainda se chama, Vila Ângulo Brasileiro. Então ali era tudo... Tinha um riacho. Tinha um sujeito que estava passando numa estradinha, eu não sei o porquê ele mexeu com um boi e o boi saiu correndo atrás dele. Ele saiu em disparada. Quando chegou ao regato ele deu um salto e pulou o regato. Então o boi parou. Que mais que tem?
P/1 – Tinha muita fazenda ali? É isso?
R – É. Muita chácara.
P/1 – Muita chácara.
R – Também tem essa. As chácaras eram... As pessoas, os chacareiros eram muito ignorantes, então eles faziam a irrigação das verduras com águas poluídas. Minha mãe gostava muito de andar por ali e comer aquela verdura. Eu também comecei a comer. Rapaz, veio uma verminose que fiquei a vida quase toda com ela. Só me livrei quando fui pra Pocinhos do Rio Verde pra curar a verminose. Eu tinha 25 anos.
P/1 - Pocinhos do Rio verde?
R – Passei 20 anos com essa verminose. Mas então na Vila Pompéia, depois na Barra Funda. Em 30, 32...
P/1 - Senhor Carlos, na Pompéia ainda... Eu fico perguntando porque é interessante, eu conheço bem o bairro e, enfim, o senhor falando que tem a Pompéia com paralelepípedo, as outras com estrada de terra, queria saber um pouco como era a vizinhança. Eram todos imigrantes italianos? Como que era esse bairro?
R – Não. Tinha também muito português. Tanto que tinha uma família de português que era o dono de diversas casas e naquele tempo os proprietários vinham oferecer as casas... Sobrava casa pra alugar. E como eles sabiam que os meus pais eram bons pagadores, eles vinham oferecer as casas pra alugar pra eles. Eram portugueses. Não era tudo italiano. Tinha muito português, tinha italianos, tinha diversas... Tinha muitos negros também. A amizade assim com os vizinhos era muito boa. Apesar de que havia uma vizinhança ali na Venâncio Aires, era um casal e uma moça e, eu não sei o porquê, um dia eu presenciei o casal levar uma moça pro fundo do quintal e lá surrar a moça e jogar coisa em cima dela. Móveis, tudo em cima da moça. Tanto que minha mãe subiu no muro e gritou contra eles que ia chamar a polícia por causa disso. Então cessou. Eles nunca mais bateram na moça. Outras coisas... Que mais que você quer saber da Vila Pompéia?
P/1 – Essa infraestrutura, por exemplo, do bairro. Porque hoje é um monte de prédio, hoje está tudo mudado.
R – Ah, hoje está.
P/1 – Nessa época o que tinha ali? Tinha...
R – Não era muito construído. A Vila Pompéia era, quando chega lá em cima, por exemplo, na igreja, tudo mato. Não era muito construído. Do lado aqui, do nosso lado na Venâncio Aires até a esquina da... Não sei se é Caiowaá. Até ali era construído, depois o resto também era... Não tinha essa avenida que tem hoje, não tinha a ponte da Vila Pompéia ali. Quando chovia e chovia muito, alagava todo lado da Vila Pompéia. Ali, onde hoje é a ponte da Vila Pompéia, era fechado, era o muro do Matarazzo e atrás desse muro aquilo quando chovia ficava um verdadeiro mar, alagado. Ficava tudo alagado e a gente ia ver ali da Venâncio Aires com a Pompéia. A gente ia ver. Parecia um mar mesmo o que aquela enchente fazia, que a chuva fazia. Então é isso. Depois é que começou. Também moramos na Rua Barão do Bananal. Conhece Barão do Bananal?
P/1 – Conheço.
R – E a Barão do Bananal, na altura que a gente foi morar era tudo mato, tudo mato. Eu me lembro que uma vez eu vinha correndo quando eu notei uma cobra passando. Eu saltei a cobra. Ali quando chovia, onde a gente morava, tinha um quintal muito grande, enchia de água e a gente brincava com umas tábuas, brincava de remar. Ali era tudo mato, não tinha muita construção.
P/1 – Como é que era a casa de vocês, senhor Carlos?
R – Como?
P/1 – A casa de vocês como era? Você disse que tem um quintal grande, vocês plantavam lá. Como que era?
R – Não. Não plantava. A gente não plantava, porque meu pai não gostou da casa e queria mudar logo. Onde a gente plantava um pouco era na Rua Venâncio Aires. Minha mãe fazia um canteiro, plantava verdura, plantava tomate ali. A Barão do Bananal também era completamente mato em volta. Tudo mato, não tinha construção. Era uma casa aqui, outra casa cem metros distante. Que mais sobrou de Vila Pompéia?
P/1 – Vou pular pra Barra Funda, porque o senhor falou várias coisas da Barra Funda também. Uma das coisas que chamou atenção foi que o senhor disse que eles filmavam na chácara...
R – Na Chácara do Carvalho...
P/1 - Aqueles filmes de boiadeiro. O que era isso? Tinha uma equipe? Como que... Vocês ficavam lá assistindo?
R – Não. A gente da calçada... Porque a Chácara do Carvalho ficava em um patamar mais alto. E a gente da calçada às vezes os assistia filmando. O negócio é cavalo, tudo é... Porque era muito grande a chácara. Esse quarteirão era acho que 500 metros cada face. Era bem grande. Nunca chamaram a gente pra participar.
P/1 – Vocês queriam.
R – Mas Barra Funda? Que mais tem da Barra Funda?
P/1 – Outra coisa que o senhor comentou foi a questão da banda.
R – Como?
P/1 – Os senhores montaram uma banda, mas da onde que vieram esses instrumentos?
R – Ah, os instrumentos?
P/1 – Quem que organizou?
R – Ah, os instrumentos eram lata. Era tudo feito de lata. Lata de banha, lata de qualquer coisa. A gente batia umas latas e éramos uns quinze, dez ou 15 meninos que faziam essa banda e dava volta pelo bairro fazendo a, como eu já falei, fazendo a propaganda da revolução e também gritando o nome do João Alberto.
P/1 – E de onde que veio essa influência, senhor Carlos, pra fazer uma propaganda? Vocês eram crianças? Eram seus pais que falavam? Era o que você ouvia na rua?
R – Não. Era mais feito por políticos. Agora quem organizava, isso eu não sei.
P/1 – O senhor falou de time de futebol.
R – Como?
P/1 – O senhor falou daqueles times de futebol: Os Democratas e Estudantes.
R – Os times de futebol quando se reuniam...
P/1 – O senhor jogava?
R – Não.
P/1 – Nunca jogou?
R – Eu jogava futebol pelos dez, 11 anos, ali na Rua Lopes de Oliveira, na calçada da Chácara do Carvalho. Mas depois eu, com um pouco mais de idade, entrei para o escotismo. Chamava-se Boys Scouts da Light. Então o chefe do escoteiro proibia de jogar futebol, porque ele dizia que futebol era pra vagabundo. Então a gente não jogava futebol. Em torno de 32 que a gente passa a morar no Cambuci. No Cambuci fomos para a Rua Silveira da Mota. Bem chegamos lá morar, chove e alaga. Ali também alagava tudo porque é perto do Rio Tamanduateí. Alagava tudo ali. Aquilo atrás da casa parecia um mar, todo cheio de água. Meu pai deu um ultimato pra minha mãe, porque era minha mãe que procurava as casas e mudava. Ele disse: “Pra eu vir pra casa à noite, você tem que mudar daqui, senão eu não venho mais”. Então no dia seguinte ela... Casa era fácil de arrumar. Mudamos pra Rua dos Alpes, aí se livrou dessa. Da Barra Funda acho que não tem mais nada.
P/1 – Não sei. O que o senhor acha?
R – Deixa-me ver se tem mais alguma coisa.
P/1 – E na sua infância. O senhor ia a escola ali perto, ficavam brincando no rio, poucas preocupações na época.
R – Ah, Barra Funda, quando eu completei o curso primário eu disse pra minha mãe: “Bom, agora eu vou trabalhar”. 11 anos. Hoje eles dizem que não pode trabalhar nem com 14. Eu com 11 anos fui trabalhar. Fui trabalhar numa alfaiataria que se chamava Alfaiataria Sistema Americano. Era de um português que tinha vindo dos Estados Unidos e montou essa alfaiataria aí. Eu fiquei acho que um mês, depois então passei a trabalhar numa leiteria. A leiteria... Eu chegava de madrugada na leiteria, o dono enchia um saco com litro de leite e eu punha aqui e ia entregar os litros de leite na Rua Martim Francisco, Albuquerque Lins, aquelas imediações que morava gente muito chique. Entregava os leites. Um dia o dono da leiteria, outro senhor que tinha vindo dos Estados Unidos e montou essa leiteria, disse: “Carlos, hoje nós vamos fazer doce de leite”. Então, era um caldeirão dessa altura cheio de leite posto no fogão. “Agora sabe o que você faz? Tem essa pá aí, você vai ficar mexendo isso aqui até ele se tornar doce de leite.” E aquele vapor do leite me deixou enjoado que hoje não posso nem ver doce de leite. Também naquela altura não existia geladeira. Essa industrializada. Então havia um tanque, acho que de uns cinco metros, com água gelada e com um tampão que se a gente deixasse cair e ficasse ali, cortava no meio. Era um tampão pesadíssimo. Era guardado ali o leite, a manteiga, tudo, porque não tinha geladeira, então aquilo servia de geladeira. É isso aí. Também deixei a leiteria e o doce de leite e fui trabalhar numa outra alfaiataria. Ali não era alfaiataria, eram os chamados costureiros. Eles faziam... Ele, o dono, pegava serviço de uma casa de modas existente na Rua do Arouche esquina da Aurora e fazer os chamados mantos. Casacos. Fazer casacos pra Madame Marieta ali na esquina. Eu fiquei acho que uns quatro anos aí, era na Rua Martins Francisco. Tem uma observação interessante. Eu sempre gostei de andar a pé. Da Rua Martins Francisco a Cambuci, quando eu saía do trabalho eu ia a pé, uma tarde quando eu saí do serviço que estava na Avenida Higienópolis, eu ouvi uma multidão vinda de Perdizes em direção à Avenida Angélica e eles gritavam: “Tudo nos une. Nada nos separa. Tudo nos une. Nada nos separa”. Era o General Justo, argentino, que vinha com essa pequena multidão, que acho que ia pro Palácio do Governo que era lá na Avenida Rio Branco, aquela que foi casa do Edu Chaves. Eu achei muito interessante que aquela era a passagem do presidente da Argentina, passando pela Avenida Higienópolis com aquela pequena multidão gritando assim: “Tudo nos une. Nada nos separa”. Outras...
P/1 – Senhor Carlos, então deixa eu lhe fazer uma pergunta bem complexa. Preparado? Eu queria que o senhor me descrevesse esse caminho que o senhor fez, fazia sempre, da Martins Fontes, dos costureiros, até o Cambuci da sua casa. O senhor consegue?
R – Era da Martins Francisco.
P/1 – Martins Francisco.
R – Era assim.
P/1 – Como que era esse caminho? Quais as ruas que o senhor pegava?
R – Subia a Martins Francisco, entrava na Avenida Higienópolis, seguia até a Maria Antônia. Maria Antônia descia toda, atravessava a Consolação, pegava a Caio Graco. Na Caio Graco passava... Ali era... Antigamente não era... Era, vamos dizer, uma baixada que se chamava Tororó. Ali eu atravessa essa rua pela Seriema, bairro de Seriema, caía na... Caía, não. Atravessava a rua, pegava Bela Vista. Da Bela Vista era essa rua da Bela Vista... Não era Santo Antônio. Eu não me lembro qual era a rua, se era Jaceguai. A Jaceguai atravessava a Brigadeiro Luís Antônio. A Brigadeiro Luís Antônio não existia como essa avenida que tem hoje. Ali era fechado e eu passava pela rua, acho que era João Passalacqua. João Passalacqua lá embaixo, saía na Rua da Liberdade. Rua da Liberdade atravessava a Rua Siqueira Campo... Siqueira, não Silveira. Silveira é onde eu moro. Era Siqueira Campos. Da Rua Siqueira Campos saía na... Entrava na rua com nome de um poeta. Como é que chama? Castro Alves. Rua Castro Alves. Da Castro Alves descia até entrar na... Como é que chama? Rua... Essa está me escapando. Eu sei que saía na Praça da Conceição, hoje tem a escola Caetano de Campos. Atravessava ali, descia a Rua Scuvero, saía na Rua Lavapés. Lavapés, Largo do Cambuci e Rua dos Alpes.
P/1 – Foi difícil lembrar?
R – Não.
P/1 – Esse caminho, foi difícil lembrar ou foi tranquilo? Então vou querer mais uma pergunta sobre esse caminho. Conta-me como eram essas casas, tinha muita árvore? Como eram as casas? Eram bairros chiques que você passava?
R – Não. Não era nem bairro chique. Ali na Praça, onde saí da Seriema, era praticamente mato, era tudo casa de pau a pique. Ali eu atravessava a Bela Vista sim. A Bela Vista era bem construída, mas a maioria do caminho era todo construído. Só atravessava essas avenidas. É que era ainda quase tudo desabitado, quase tudo mato, que hoje é a 23 de Maio. Hoje é a 23 de Maio. Naquele tempo era Itororó. Atravessando também a Liberdade, era uma rua, não era avenida a Liberdade, era uma rua. Era isto. Também não tinha perigo nenhum, não tinha violência, nada disso. A violência iniciou quando São Paulo cresceu demais.
P/1 – Última pergunta em relação a essa rua. Dessas idas e vindas, o senhor teve algum dia dessa trajetória foi marcante, que teve algo diferente, que o senhor viu alguma coisa ou que aconteceu?
R – A não ser esse do General Justa não teve. Até chegar em casa não teve nada que pudesse mencionar. Mas a... Deixa-me ver. Chegando por volta, nós estamos por volta de 1934, Getúlio prometeu, devido à Revolução Constitucionalista, voltar a democracia, fazer uma nova constituição. Mas logo em seguida houve a Intentona Comunista, 35, aí parou tudo e em 37 o senhor Getúlio Vargas promove o Estado Novo. Aí é outro golpe. Estado Novo que vai até 45, quando ele é deposto. Agora, sobre essas datas que eu tenho aqui, se podia fazer um parêntese aí e só falar nas datas. Por exemplo, em 47, depois de 37 quando ele deu o golpe, 45 ele sai, 47 a câmara vota uma ________, fazendo com que o partido comunista caia na...
P/2 – Ilegalidade.
R – Na?
P/1 – Ilegalidade.
R – Ilegalidade. Isto em 47. Vai até 50 quando Getúlio volta e é eleito presidente. Ele fica até 54. Em 54 ele se mata e houve uns movimentos ali de políticos, o Hercílio Luz, o... Diversos nomes aí que queriam, vamos dizer. Ali houve a eleição do Juscelino e os políticos parece-me que não o queriam, principalmente o tal de Carlos Lacerda. Não queriam que ele tomasse posse, mas o General Lot que era um ótimo democrata disse: “Não. Ele foi votado, ele empossa”. E empossou o Juscelino que foi até 60. Em 61, toma posse o... Aliás, 60 inaugura Brasília. Em 60, é eleito o Jânio Quadros. O Jânio Quadros fica alguns meses, renuncia. Todo aquele embrulho do João Goulart. João Goulart eles não queriam que tomasse posse, porque fizeram um homem só pra que o sistema político fosse o de não eleger diretamente. Era outro tipo de regime que tem o primeiro ministro. Mas o povo votou contra então... Mas aí aquele bando foi indo, foi indo até que os militares deram o golpe em 64. 68 o AI-5 e essas... 74 foi o Geisel, 85 a redemocratização. Mas nessas revoluções eu tive um primo chamado Artur Piccinini que também tomava parte. Ele foi muitas vezes preso. Nessa Revolução de 24, por exemplo, ele estava preso na Bastilha da Rua Paraíso, onde hoje é viaduto, ali era Paraíso. Ali tinha uma cadeia. Ele estava preso ali. Isso na Revolução de 24. Na Revolução de... Não. Revolução, não. De 30 ele parece que não tomou... 32, sim. Esses movimentos políticos, eu me lembro, por exemplo... Aí já estou fazendo embrulho.
P/1 – Qual foi a sua participação, senhor Carlos, por exemplo, quando tem o Estado Novo, 37? O que muda na sua vida?
R – A minha participação, eu não era de vida minha, eu era muito inibido, eu não gostava de aparecer, mas eu participava de comícios. Todo comício que havia, principalmente do partido, estava lá no Anhangabaú tomando parte. Eu tomei muita parte na formação da Petrobrás, nos que lutavam para que o petróleo não fosse entregue para potências estrangeiras. Então havia aquele movimento dos patriotas contra isso e eu tomava parte. Não falando, mas tomava parte comparecendo àqueles eventos. Eu me lembro de uma vez que nós estávamos na Praça da Sé fazendo aqueles movimentos e apareceu a cavalaria. Apareceu a cavalaria em cima da gente. Poxa, nós estávamos lutando por uma coisa que era boa para o Brasil e, não sei o porquê, Getúlio era contra. Eu me lembro só de eu fugindo da cavalaria. Na esquina da Praça da Sé com a Senador Feijó, tinha uma sapataria com as vitrines abertas e o cavalariano vinha em cima de mim com a espada e eu correndo inteiro naquela sapataria me livrei da... Aí o cavalariano parou, voltou e eu me livrei da... Esses movimentos de lutas políticas eu aparecia às vezes. Outras coisas também que eu quero mencionar é quando a Revolução de 64... Espera aí. Sei que meu primo foi também preso lá onde era o... Ali na Luz. Como é que chama aquela praça? Não a Praça Júlio Prestes, a outra. Praça...
P/1 – Mas ele foi preso no DOPS?
R – Osório. Marechal Osório.
P/2 – General.
P/1 – General Osório.
R – Ali tinha uma prisão.
P/2 – O DOPS.
R – O DOPS. Ele foi preso ali no DOPS e um irmão meu também foi preso, o Nelson Laporta. Foi preso, mas ficou uma noite só lá preso. O Artur Piccinini casou-se com a Genny Gleiser para que ela não fosse deportada, mas o senhor Getúlio Vargas que tinha como Ministro de Segurança, da polícia, um nazista chamado Felinto Muller, passaram por cima das leis brasileiras, porque a lei brasileira é: a pessoa estrangeira que casa com um brasileiro não pode ser deportada. Essa é a lei. Mas Getúlio passou por cima dessa lei, o ministro passou por cima e mandou a Genny Gleiser para os campos de concentração, assim como aconteceu com a esposa também do Prestes, a Olga Benário. Ele mandou também pros campos de concentração. Então era isto.
P/1 – A sua família tinha uma participação com o partido comunista, é isso?
R – É. Por parte do meu mano, Nelson Laporta, ele trabalhava em jornal, então ele trabalhou muito nesses jornais que eram da esquerda. Não sei, parece que se chamava A Hora e por causa disso ele foi preso. A participação desses movimentos era mais do meu primo. Meu primo Artur Piccinini é que participava muito. Ele sempre participava, tanto que ele foi preso nessa bastilha da Rua Paraíso. Foi preso ali no DOPS. No DOPS eu fui. Quando eles reformaram o DOPS, eu fui pra visitar e eles punham então uma música fazendo o que havia nos presídios naquele tempo. Então, era uma gritaria de dor, aqueles presos todos jogados no chão sendo batidos, sendo surrados, naquela gritaria e tal. Isso eu assisti no DOPS. E o DOI-Codi. Vocês conheceram o DOI-Codi? Conheceram, não. Ouviram falar em DOI-Codi lá no Ibirapuera? Que mataram lá o Marzoli? Foi melhor não falar.
P/1 – O senhor nessa época tava trabalhando com o quê? O senhor tinha algum contato com essas ideias políticas?
R – Eu trabalhei, até completar 20 anos eu trabalhei na Light, chamava-se Valeta da Light em que o bonde entrava nessa valeta e a gente tinha que desparafusar uns parafusos muito grandes debaixo do bonde pra tirar a carroceria e tirar o truck pra consertar e reformar. Tinha uma mola que trabalhava como amortecedor no bonde que era um perigo extraordinário, porque os operários iam com alavanca pra tirar essa mola e, se em caso escapasse a mola e tivesse alguém na frente, matava. Ela saía numa velocidade tremenda. Depois essa era a valeta. Eu pedi transferência na valeta, fui trabalhar na seção de pintura. Eu fui parar na oficina da Light porque um amigo meu trabalhava nos escritórios lá no Jardim, onde é o Mackenzie, o Palácio Mackenzie lá no Viaduto do Chá. Ele disse: “Olha...”, como eu queria estudar e não tinha possibilidade, ele disse: “Vai trabalhar lá embaixo na oficina da Light que lá tem escola, você pode estudar lá”. Mas que escola coisa nenhuma. Tinha era um trabalho... Poxa, que trabalho. Eu passei a trabalhar na pintura dos bondes, mas também não gostava. Um dia chegou o diretor ali das oficinas, o (Mist Terra?), falou pra mim, porque eu sempre chegava atrasado, assim: “Senhor Carlos, o senhor precisa chegar cedo na oficina. O senhor tem chegado muito tarde, não pode mais chegar tarde”. Eu falei pra ele: “Não posso mais chegar tarde?” “Não.” “Então nós vamos fazer o seguinte, vamos já pro escritório porque eu vou embora”. Saí das oficinas da... Fui trabalhar num escritório numa firma de móveis na Rua do Lavapés pra tomar conta do escritório. Só que o escritório era só eu. Fazia o serviço de manutenção do escritório porque o senhor (Calítio?), era Casa de Móveis (Calítio?), ele vendia muito a prazo e tinha um cobrador. Eu fazia o serviço de controle, dava os boletins pro cobrador, o cobrador ia cobrar, na volta ele acertava pra saber o que recebeu. Um dia tinha um trabalhador, um italiano, que ele não sabia... Voltou. Escreveram, falaram português, então como ele sabia que eu sabia escrever alguma coisa, ele um dia me pediu assim: “Carlos, você quer fazer um favor pra mim? Quer me escrever uma carta de amor pra uma moça?”. Eu disse: “Tá bom. Escrevo”. Escrevi a carta, uma semana depois aparece a moça com um homem. Veio tirar satisfação: “Quem é que escreveu essa carta pra minha noiva?”. Eu disse: “Olha, eu escrevi a carta a pedido do rapaz ali, mas a gente não sabia que a moça era noiva”. Depois daí saí, fiquei uns tempos doente, quando eu completei 20 anos eu fui trabalhar na firma... Não sei se chamava Fábrica de Roupas Brancas Ricardi, era um primo. Eles fabricavam camisas. Essa história vai de 1939 até 45 que eu trabalhei. Mas o que tem de interessante pra São Paulo? Deixa-me ver. Vamos falar do Prefeito Prestes Maia que foi prefeito em 42 até 45, por aí. Eu acho que foi o melhor prefeito de São Paulo. Ele abriu todas essas avenidas que tem hoje. Se era rua ele punha abaixo tudo, parecia uma... São Paulo parecia uma cidade bombardeada. Onde ia passar uma avenida podia ter prédio de dez, quinze andares, ele punha no chão. Então ele, por exemplo, abriu a Avenida Ipiranga na Rua Ipiranga. Abriu a Avenida Ipiranga. A Avenida Ipiranga chegou até a... Como é que chama? Como é que chama aquela que sai do Largo São Francisco?
P/1 – Largo São Francisco até ali? Não. Tem uma que saí do Largo São Francisco até ali? Acho que não.
P/2 – Até a Ipiranga? Acho que não.
P/1 – Na Ipiranga, Rio Branco, São João...
R – A avenida ia assim e a avenida... Brigadeiro Luis Antônio. Ela sobe assim. A Avenida Ipiranga chegava até ali, parava. Porque ali era fechado, não tinha esse Viaduto Maria Paula. Ali era fechado. Tanto que tinha um restaurante muito bom, o restaurante Fasano ali. Então foi posto abaixo todas aquelas casas e foi aberto. O Prestes Maia fez esse Viaduto Maria Paula pra chegar até a Praça João Mendes. A Praça João Mendes também era fechada porque ali era Itororó, ali embaixo. Ali era fechado e tinha até a Câmara Municipal por ali, aquelas casas coloniais. Ali também foi posto abaixo e a Avenida Ipiranga subia a Maria Paula, caía na João Mendes. Na João Mendes também, no fundo tinha uma igreja: “Como é que vamos fazer agora? Tem uma igreja. Tira a igreja”. Levaram a igreja lá pra Aclimação e ali passou a avenida pra se ligar com a Praça Clóvis e Rangel Pestana. Esse é o trabalho do Prestes Maia, entre as quais outras avenidas. Eu tenho o jornal que publicou as avenidas que o Prestes Maia ia abrindo. Eram 280 quilômetros de avenidas. Mas ele não chegou a abrir as 280. Depois o Brigadeiro Faria Lima é que em continuação abria a Brigadeiro Faria Lima e a 23 de Maio. E sobre a 23 de Maio tem outro acontecimento. Na Praça da República, em 32, 23 de maio de 1932, os estudantes fizeram um movimento para a vinda da democracia então. A polícia apareceu ali e morreram quatro estudantes. Miragaia, Martins, Dráusio, não sei se é Cardoso ou Camargo.
P/1 - Camargo.
R – MMDC.
P/1 – Camargo.
R – Camargo. E no dia nove de julho é que começou a Revolução de 32. Eu estava lá na Barra Funda.
P/1 – Você chegou a ver o agito?
R – Olha, agitação da Praça da República eu não cheguei a ver. Eu era criança. Tinha naquele tempo... Hoje o moleque de 13 anos tem um metro e oitenta, um metro e noventa e a gente era tudo grãozinho, tudo baixinho. Então, não podia se meter muito nesse movimento, mas eu sei que houve esse movimento e a polícia matou quatro estudantes que eram esses que eu mencionei. Dali houve a Revolução de 9 de julho.
P/1 – Senhor Carlos, o senhor comentou do seu trabalho de 39 a 45 e que teve a prefeitura melhor. É interessante que é bem no período da guerra, a Segunda Guerra Mundial. Como foi essa questão aqui? O morador de São Paulo, Segunda Guerra mundial, pessoas indo pra guerra. Tiveram pessoas da família que foram? Como foi esse período?
R – Ah, começo da guerra a gente... Eu era contra toda essa coisa da guerra, essa coisa do nazismo e tal. Eu era contra. Faziam-se movimentos também contra a guerra, pela paz. Em 39, praticamente quando começou, aí começou a faltar muita coisa em São Paulo. Começou a faltar farinha, faltar muito alimento. Eu sei que aí já em 45... 45, não. 39, 40, 41, 42 durante o período de guerra começou a faltar muita coisa, entre as quais também gasolina. Então inventaram um tipo de combustível, o gasoduto, um negócio, um nome assim.
P/1 - Gasogênio, não é uma coisa assim?
R – Os automóveis andavam com aquele troço. Às vezes o carvão dentro parecia uma caldeira. Pra gente poder se alimentar tinha que de madrugada ir pros açougues, ir pra... Não tinha supermercado, não havia, eram mercadinhos pra comprar... Do macarrão fazer pão, aquelas coisas assim. Durante a guerra, aconteceu isso que eu mencionei das duas moças... E não me lembro mais.
P/1 – Tinha essa discussão nos lugares onde você frequentava? Comunismo, fascismo, os aliados. Tinha essa conversa de...
R – Havia muita rivalidade entre os comunistas e os integralistas. Eu me lembro que uma vez na Praça da Sé houve um confronto entre integralistas e comunistas. Os integralistas vindos de uma rua lá do Pátio do Colégio entrando na Praça da Sé, porque eu acho que eles iam fazer uma manifestação. Os comunistas de cima da Praça da Sé. Ali se enfrentaram e houve correria até que chegou a polícia e acabou com a briga. Havia esses movimentos, muitos movimentos.
P/1 – O senhor participava de algum? Conversava, tinha essa influência da família?
R – Geralmente eu, às vezes não por querer estar presente, mas por estar na rua participava. Outra coisa também, quando era prefeito, acho que era prefeito Ademar de Barros, ele aumentou o preço da passagem de ônibus de dez centavos pra 20 centavos. A população não aceitou. Aí houve aquela briga e cavalaria em cima da gente, a gente fazendo movimento, derrubando ônibus pra que a passagem baixasse pelo preço que estava. Naquele tempo quando havia essas coisas de... Hoje em dia ninguém se incomoda. Pode aumentar à vontade, pode fazer o que quiser, ninguém... Mas naquele tempo a gente fazia movimento. Não queria que aumentasse as coisas assim. Fazia muito.
P/1 – O senhor não tinha ligação com nenhum partido? Era uma coisa sua? Tinha essas problemáticas, o senhor ia?
R – Não fazia...
P/1 – “O petróleo é nosso” o senhor ia. É isso? Eram coisas que...
R – Não fazia parte, não era filiado a partido nenhum. Mesmo porque eu era e ainda acho que sou, meio introvertido. Não gostava de aparecer. Então que mais?
P/1 – Eu vou mudar um pouco o tema, porque a gente está bem focado no seu trabalho, essas questões. O senhor estava com 20 e poucos anos nessa época. E essa parte do lazer, as festas, namoradas? O senhor podia contar um pouco pra gente dessa sua juventude.
R – Ah, a juventude. Olha, eu gostava muito de passear, visitar. Saía de São Paulo, ia pra esses municípios vizinhos, viajava. Durante um tempo... Aí volta a criança, porque no tempo de escotismo a gente subiu diversas vezes ao Pico do Jaraguá. Duas vezes interessantes. Uma vez nós subimos o Pico do Jaraguá à meia noite pra fazer uma serenata lá em cima. Éramos escoteiros. Outra vez a gente... Quando eu entrei para o escotismo era o seguinte, eu entrei como escoteiro, logo em seguida passei a monitor, depois guia, então subchefe, e logo a chefe. Também passei a ser o chefe da banda. Uma noite numa reunião o chefe dos escoteiros disse: “Olha, nós vamos fazer uma viagem pra uma cidade aí, nós precisamos que a banda esteja”. E onde? “Então, Carlos, pegue os elementos da banda, vá treinar”. Aí eu chamei o Serapião, o Cuíca e diversos elementos da banda e fomos tocar. Em dado momento eu disse pra turma: “Bem, agora aquela batucada. Bum tchicabum tchicabum...”. O chefe sai na porta e diz: “Ô, molecada, é pra exercitar a banda, não é pra fazer batuque”. Também tinha outra coisa, a gente esquece, eu praticamente sou músico. Eu toco qualquer instrumento de percussão, bateria, pandeiro, chocalho. Até hoje eu toco. Eu fazia em 1900... Eu tava com 11 anos eu fazia parte de um conjunto, o Conjunto do Gordo, lá na Barra Funda. A gente tocava aos sábados e domingos no clube Roma. Eu tocava pandeiro e chocalho e quando precisava tocava bateria, também no conjunto do primo, irmão desse Artur que chamava Narciso Piccinini. Ele tinha também um conjunto que tocava em diversos clubes e eu também tocava pandeiro, agogô e diversos instrumentos de percussão. Tocava muito no clube Tuna Portugal ali na Barão de Itapetininga, no Centro. Eu tocava com eles. Uma noite...
P/1 – Seu Carlos, voltando a sua profissão de músico tava escondida.
R – No Tuna Portugal... O conjunto do meu primo foi contratado pra tocar numa festa na rua São Vicente de Paula. Conhece a rua São Vicente de Paula? É na Santa Cecília.
P/2 – Ali no Higienópolis.
R – E o conjunto chegando lá foi atendido por um senhor italiano: “Nós somos o conjunto que veio tocar para festa.” “Ah, muito bem. Ma ha una cosa. Questo _______, questo nero...”, porque no nosso conjunto tinha um negro. “Questo nero não entra.” “Ué, mas por quê?” “Não, aqui em casa nero não entra”. Então disse: “Olha, se ele não entra, ninguém vai entrar. O senhor vai ficar sem a festa.” E nós fomos embora. Então deixa ver o que mais que eu posso falar.
P/1 – As namoradas.
R – Como?
P/1 – As namoradas.
R – Ah, as namoradas. Continuando o negócio de toque, também nessa família dos Piccinini tinha o Ivo Piccinini que trabalhou na Rádio Record. Ele fazia um programa de caçoada com Hitler. Ele se chamava... Como que era o nome dele? Não lembro. Então uma noite nós fomos tocar numa festa, eu e ele e o conjunto dele. Fomos tocar numa festa ali no Bom Retiro. Quando chegou à meia noite, uma parte do conjunto disse: “Olha, nós não podemos ficar mais aqui. Nós vamos embora”. Então só ficamos eu e o meu primo que era o Ivo Piccinini. Ele tocando violão e eu pandeiro. Tinha dez meninas pra dançar. Como é que a gente fazia? Eu tocava pandeiro e cantava e ele dançava um pouco com as dez. Depois ele tocava violão e cantava e eu dançava com as dez. Namoradas eu não tive muitas, não. Mas gostava de namorar. Namorava um pouco e depois largava até que eu encontrei a que foi minha esposa. Isso foi no ano de 1942. Esse meu primo que tocava violão estava em casa e disse: “Olha, vamos até a casa de umas moças aqui no Ipiranga. A gente passa lá uma noite agradável e tal”. Então fomos lá. Chegando lá eles estavam jogando tômbola. A casa da família da minha sogra era sempre cheia de gente. Então eu entrei no jogo. Era jogo de tômbola, entrei no jogo. Nisso apareceu a moça que ia ser minha esposa no futuro. Chamava-se Iride. Apareceu a Iride. Nem bem a Iride aparece e quer fazer sociedade comigo no jogo. “Está bom. Então, vamos fazer sociedade”. Começa o namoro e fica o namoro até casar, três anos só.
P/1 – O senhor pulou uma boa parte aí do jogo até virar namoro. Como desenvolveu do jogo pro namoro a gente não entendeu muito bem aqui não.
R – Passamos a namorar, ela passou do Ipiranga e foi morar lá no Parque São Jorge. Eu ia lá namorar, a maioria das vezes ia de bicicleta e a namorada. Agora o que mais quer saber?
P/1 – O senhor casou então depois de três anos?
R – É, casei no dia...
P/1 – Igreja? Como foi?
R – Casei no dia... Ih, aí é complicado. Xi. Será bom falar? É muito complicado. O negócio é o seguinte, como eu aos 20 anos fui trabalhar nessa firma que eu já falei, Fábrica de Roupas Brancas Ricardi, que não era do Ricardi, era do Luís Laporta, meu mano. Eu quando estava pra casar acontece o seguinte, na época do Prestes Maia era difícil encontrar uma casa pra você morar porque ele derrubava tudo. Então uns meses antes, um ou dois meses antes de casar eu encontrei uma imobiliária que estava construindo uns sobrados na Avenida Nazaré. Conversando com o indivíduo que controlava a imobiliária, eu dei até 500 reais pra ele pra me guardar uma casa quando ela estivesse pronta e pedi. Eu trabalhava na Ricardi, a Ricardi era do meu mano Luís Laporta e a irmã do Ricardi. Eu pedi pra eles se eles aceitavam serem meus fiadores. Aceitaram. Porque se eles não aceitassem, assim de gente que podia ser meu fiador, eu tinha um crédito fábulo. Nesse meio tempo, eu fui mandado pra Santos pra tomar conta de uma filial, porque o gerente tinha a filha doente e precisava deixar o ramo. Um mês antes de casar, quando a casa ficou pronta, a pessoa da imobiliária mandou o contrato e a carta de fiança pra eles assinarem. Não quiseram assinar e me perderam a casa. E me escreveram: “Porque isto, porque aquilo, porque não sei o quê. Mas, quando você subir pra São Paulo, você procura uma casa aqui”. Mas já estava em cima do casamento. Eu casei em 8 de abril de 1944. Mas eu não pude estar presente no casamento. Tem cabimento isso? Ao invés de eu pedir pra transferir, não sei o que me deu na cabeça, eu disse pro meu mano: “Olha, _______, me representa aí no casamento”. O meu mano foi no meu lugar pra casar com a minha esposa, me representar. Ele me representou porque eu não pude subir naquele dia. Lá na igreja eu me casei, apesar de não querer casar na igreja, mas ela fez questão. Então casamos na Igreja da Penha em 9 de abril de 1944. É isso aí. Mas deu um embrulho... Nem queira saber. Eu gostaria de falar: “Sou de São Paulo”. O que tem mais sobre São Paulo?
P/1 – O senhor foi morar onde? Casou e no fim?
R – Ih. Casou. Perdi a casa e agora? Tive que morar na casa da sogra. Fiquei dois anos na casa da sogra. Durante esse tempo que foi... Espera aí.
P/1 – Até 46.
R – Na casa da sogra. Durante esse tempo, você sabe que São Paulo até 1949 não tinha a Radial Leste, não tinha as marginais do Tietê. Então todo movimento de bondes, de automóveis, de ônibus, de caminhões era tudo pela Celso Garcia e Rangel Pestana. Tudo passava por ali. E havia muito desastre, muito desastre mesmo. O último desastre que eu assisti... Porque os bondes vinham da cidade abarrotados. É gente que não acabava mais. A maioria das pessoas não tinha lugar. Na parte, vamos dizer, de um lado do bonde eles vinham pela chamada entrevia, que era do outro lado, era um lado perigoso. Então uma noite, subindo a Celso Garcia na altura que tinha uma indústria chamada Textilia, passa um caminhão a toda velocidade e varre toda entrevia do bonde. Foi uma carnificina. Era uma gritaria, gente perdendo perna, gente sem cabeça. Uma verdadeira carnificina. Eu desci do bonde, não quis saber, fui embora. Durante esse tempo que eu morei ali no Parque São Jorge, assisti esses desastres. Ali na altura do Parque São Jorge, eu morava na Celso Garcia esquina da Ângelo Vital. Em frente tinha a Chácara do Marengo, que era um produtor de luvas. Então a gente, à noite, muitas noites assim, naquelas noites que São Paulo tinha, que não tem mais hoje, aquelas noites quentes e gostosas, a gente atravessava a avenida e ia chupar uva na Chácara do Marengo. Foi até 1947. Vou ter que falar nisso? Eu quero falar de São Paulo, não de mim.
P/1 – O senhor se lembrou do que de 47?
R – 47 eu saio da casa da sogra e voltei pro Cambuci, na Rua... Como é que chama aquela rua? É a primeira travessa da Avenida Luís de Vasconcelos. Ali já vai entrar num assunto que eu pouco gosto de falar. O meu mano, quando se recusou assinar a fiança, eu acho que ele se sentiu com remorso de não ter deixado a casa pra mim. Nessa rua morava a sogra dele... Vou ter que falar. A sogra ia morar com ele, então a casa da sogra ia ficar vaga, se eu queria morar na casa da sogra. Olha, vou pular muita coisa, não vou falar só... Eu podia ficar lá a vida toda, mas seis meses depois me pediram a casa e toca eu outra vez a procurar casa. Não encontro casa, volto pra casa da sogra no Parque São Jorge, em 49. Mal chegando lá, o dono da casa que tinha um armazém embaixo, porque era sobrado, me chama e diz: “Carlos, eu sei que você é uma pessoa que cumpre com suas obrigações e suas promessas. Eu quero que a sua sogra saia da minha casa. Eu já fiz um movimento contra ela e não consegui, mas agora eu vou conseguir. Então me diga uma coisa, o que você pode fazer pra mim pra você sair? Eu lhe dou uma importância x e lhe dou um prazo pra você sair”. Muito bem. E toca a procurar casa. Essa não serve, aquela não serve, até que encontrei essa que moro até hoje. Mudei pra aí. Estou aí até hoje. Foi em 51. 51 que eu saí e fui pra essa casa. Eu comprei essa casa por intermédio da Caixa Federal. Eu tinha um amigo lá na Caixa Federal, ele me conseguiu que a Caixa me emprestasse pra comprar essa casa. O interessante é que, pra comprar essa casa, a Caixa pedia, hoje não pede mais, uma documentação que se chamava Trintenária. Eram trinta anos pra saber como é que passou a história da casa. Eu fiquei oito meses pra tirar essa Trintenária, a ponto de chegar aos cartórios, o pessoal do cartório dizia: “Escuta, Carlos, vai lá nos livros, veja lá você nos livros, eu não vou”. Tinha que procurar documentação pra entregar pra Caixa. Até que consegui fazer. Quando eu fui passar a escritura da casa no salão da Caixa, estava lá escrivão, estava lá o dono da casa, estavam testemunhas, estava uma porção de pessoas. Eu tinha que pagar para o dono da casa uma importância muito grande e eu não tinha um tostão e estava ali pra passar a escritura. Eu cheguei pro dono e falei assim pra ele: “Escuta, Nelson, eu não tenho um tostão pra lhe dar. Como é que eu vou fazer?” “Ah, não faz mal”. Poxa, que alívio. “Você me passa uma letra, fica pagando o juro, quando você tiver dinheiro você paga”. Muito bem. Passamos a escritura. Mas há tanta coisa, tanta coisa. Eu perdi tanto dinheiro, mas tanto dinheiro porque eu saí da firma do meu mano em 45 e comecei a trabalhar por minha conta. Mas eu tive uma pessoa que falhou, fizeram um trabalho contra mim e eu tive dez anos a confirmação desse trabalho porque eu perdi milhões e milhões de cruzeiros. Eu fui industrial, montei uma fábrica de camisas, vendia, não recebia. Uma noite ladrões entraram na fábrica, roubaram tudo. Foram 50 milhões de cruzeiros roubados. Eu precisava trabalhar muito. Como eu tinha um maquinário velho e tinha um sócio que era mano, eu pensei no seguinte, porque eu tinha um crédito fabuloso. Apesar de todas as perdas: “Eu vou comprar um maquinário de tudo novo. Esse maquinário, vou fazer o seguinte: eu vou pedir pro meu mano sair da firma, eu dou todo esse maquinário pra ele”. E foi o que eu fiz. Eu comprei na Singer, na Companhia Singer um maquinário completo. Eu pensava assim: “Se com um maquinário velho eu fabrico mil camisas, com um maquinário novo eu vou fabricar três mil, quatro mil”. E foi o que aconteceu. Até que com o correr das coisas acabou tudo. E aí? São Paulo, aqui no Centro de São Paulo quando Prestes Maia abriu a Avenida Ipiranga até se encontrar com a Rangel Pestana, havia uma pracinha aqui junto da Praça João Mendes que se chamava Largo Sete de Setembro. Ainda havia aqueles... Como é que chamava? Bebedouros pra animal. Você imagina. Isso na década de 40, havia esse... Que foi também retirado nessa época da renovação de São Paulo. Que mais de São Paulo? Tem muita coisa pra contar sobre mim, mas eu não quero contar sobre mim.
P/1 – Senhor Carlos, na verdade nós temos duas soluções, porque a gente tá terminando a nossa terceira fita aqui. Tô pensando se o senhor, não sei, se o senhor pode vir numa outra ocasião pra gente continuar desses anos cinquenta até hoje, marcar uma nova entrevista aqui, a continuidade disso, ou se a gente começa a finalizar. Minha sugestão é, vamos fechar hoje, vou fazer uma pergunta bem simples pro senhor, mas fica aberto nosso convite pro senhor voltar e a gente continuar a partir desse momento que a gente tá terminando hoje que é na década de 40 pra 50.
R – Volto.
P/1 – Então pra já ir encaminhando pra essa finalização, primeiro uma pergunta bem ampla. O que o senhor achou de dar essa entrevista, de conversar com a gente?
R – Eu achei ótimo. Pena eu não poder escalar melhor as coisas. Mas achei ótimo, achei muito bom.
P/1 – Deu pra resgatar algumas lembranças, alguns... Reconstruir essas memórias.
R - Deu. Ih, tem lembrança que vocês nem fazem cálculo. Nem fazem cálculo. Olha, eu queria fazer também o seguinte, até 1949, por aí, não havia esses viadutos que hoje atravessam as linhas de trem ali no Brás. Então fechava a porteira que ia passar o trem e o trânsito parava. Sabe como é que ficava o trânsito? Havia um cheio de bonde, de ônibus, de carro que chegava até lá em cima onde eu morava. Imagina, das porteiras do Brás até lá em cima porque fechavam as porteiras. E aqui do lado da cidade ficava até a Praça Clóvis com aquele congestionamento. Até que, acho que foi o Ademar de Barros que construiu o pontilhão da gasômetro que aliviou um pouco, mas não muito porque a Rangel Pestana ainda, quando fechava, tinha aquele trânsito parado. Então construíram depois esse pontilhão na Avenida Rangel Pestana pra poder atravessar ________ esse congestionamento que ficava por quilômetros e quilômetros. Então parou. E nesse pontilhão da Rangel Pestana tem uma música que fizeram pra ele. Eu não me lembro qual é, mas tinha uma música. Então isso é São Paulo, esse que eu gosto de falar.
P/1 – O senhor viu essa cidade bem diferente. Mudou muito nesses anos todos.
R – Muito. Mudou demais. Cresceu demais. Muito. Cresceu muito. Não devia crescer tanto. Cresceu muito. Do meu tempo, vamos dizer até a idade dos 15, 16 anos, São Paulo era uma cidade que você podia andar à noite, de madrugada sossegado. Uma cidade limpa. Ali o centro da cidade à noite era lavado, eles lavavam a cidade no centro ali, Praça da Sé, Pátio do Colégio, Praça São Bento, era tudo lavado. E também tem outra, o Viaduto do Chá, antes de ser construído como é agora, ele era mais estreito e feito de ferro. Na Praça do Patriarca ficava, pra dirigir o trânsito, ficava um guarda a cavalo. Ele com um pauzinho fazia o...
P/1 – O semáforo.
R – Dirigia o trânsito. O trânsito que vinha, vinha daqui, vinha daqui e ali na esquina tinha um sobradinho. Hoje é a prefeitura. Também São Paulo. E São Paulo tem os prédios, por exemplo, todos esses prédios altos, o edifício Itália, o Zarzur, o Banespa. Eu já subi em todos eles e lá de cima é uma beleza ver São Paulo todo. Todos têm... No prédio do Banespa lá em cima tem uma verdadeira chácara. Tem plantação de tudo quando é jeito, lá em cima no prédio que hoje é da prefeitura.
P/1 – O senhor acompanhou a construção desses todos, do Martinelli, do Banespa, de todos.
R – Ah, o Martinelli também. Um episódio também triste. Eu trabalhava na firma do Ricardi e entrou pra trabalhar junto um rapaz que se chamava Gerson Von (Nera?), era descendente de alemão. Von, Gerson Von (Nera?). Aí ele contou a história do pai dele, que o pai dele foi o que começou a construção do Martinelli. Quando ele estava construindo o Martinelli surgiu água do solo. O engenheiro, ele conta, o pai dele não soube como fazer, então se suicidou porque não sabia como fazer pra desaparecer aquela água. Hoje São Paulo tem muita água. Por todo lado tem água, até quando chove tem água demais. Então é isso.
P/1 – Seu Carlos, então em nome da nossa equipe do Museu da Pessoa queria agradecer o senhor por esse tempo, essas histórias que o senhor contou e fica aberto o nosso convite pra um próximo encontro pra gente conseguir andar um pouco. Afinal de contas, são 91 anos, então tem muita história pra contar.
R – Ih, tem história. Puxa, como tem história. Mas então como é que eu faço pra depois?
P/1 – Não. A gente sai aqui, já pode combinar.
R – Ok.
P/1 – Ok? Muito obrigado.
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