Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Ana Clara Demarchi Bellan
Entrevistada por Mariana Casellato e Gabriela Viana
São Paulo, 03/07/2008
Realização Museu da Pessoa.Net
Entrevista PC_MA_HV126
Revisado por Gustavo Kazuo
P - Queria que você começasse falando o seu nome completo, local ...Continuar leitura
Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Ana Clara Demarchi Bellan
Entrevistada por Mariana Casellato e Gabriela Viana
São Paulo, 03/07/2008
Realização Museu da Pessoa.Net
Entrevista PC_MA_HV126
Revisado por Gustavo Kazuo
P - Queria que você começasse falando o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Ana Clara Demarchi Bellan. Eu nasci em Rio Claro, em 12 de março de 1971.
P - Qual é o nome dos seus pais?
R - Orlando Bellan e Maria Alice Demarchi Bellan.
P - Eles são de Rio Claro, também?
R - Os dois são de Rio Claro.
P - O que seus pais faziam?
R - Olha, o meu pai, em Rio Claro, trabalhava na Fepasa [Ferrovia Paulista S.A.]. Ele vem de uma família de carpinteiros e marceneiros, e eles trabalhavam a vida inteira construindo casas e passando o ofício de pai para filho. Ele é marceneiro, mas lá ele trabalhava com manutenção de ferrovias na Fepasa. Tinha uma estação de trem que era muito usada em Rio Claro. Quando ele tinha uns 27 anos ele veio para Santo André trazido por um irmão da minha mãe para trabalhar numa metalúrgica, que é a Cofap, de onde ele saiu aposentado, quase aposentado.
P - Ele trabalhou em Santo André?
R - Trabalhou em Santo André, dessa idade até se aposentar. Ele trabalhou como metalúrgico, como técnico, chefe de seção na metalurgia. Ele tinha uma função de técnico, mas na verdade sem ter formação. Ele não era formado em nenhuma especialidade.
P - E a sua mãe?
R - A minha mãe trabalhou em Rio Claro, pelo que ela me conta, de balconista nas Lojas Matarazzo. Era uma loja de tecido muito antiga. Ela trabalhou quando jovem até ter o meu irmão mais velho, que nasceu quando ela tinha uns 29 anos. E desde então, quando nasceu o meu irmão, ela continuou um tempo trabalhando, e depois nasci eu, um ano e meio depois, e ela veio se encontrar com o meu pai em Santo André. Daí ela parou de trabalhar e ficou o tempo todo cuidando da casa, cuidando de nós. E tem outro irmão ainda, um terceiro, e recentemente ela voltou a trabalhar na farmácia da família que fica em Santa Gertrudes, que é uma cidadezinha bem pequena do lado de Rio Claro e aí eles foram gerenciar as farmácias do... O meu avô é farmacêutico, era, morreu, mas ele sempre foi um farmacêutico em Santa Gertrudes, e a família inteira vive um pouco desse comércio. Então eles foram fazer isso, mas de atividade mesmo, que eu saiba dela contar, é isso. Ela é uma boa vendedora da Matarazzo.
P - Então ela morou um tempo sozinha em Rio Claro, é isso?
R - Ela ficou por um tempo com o filho pequeno, que era meu irmão mais velho, e eu, na barriga. O meu pai morava em Santo André e ia no final de semana. Ela ficou morando lá.
P - Sabe como eles se conheceram?
R - Fazendo footing. Rio Claro tem uma praça central e as moças ficavam dando voltas e os homens ficavam parados e aí eles se conheciam através de amigos. O meu pai tem um irmão casado com a prima da minha mãe, eles tinham esse conhecimento mais ou menos, e um dia ela fez o footing dela e eles começaram a namorar. Ele chamou ela para conversar, porque era uma coisa muito antiga, eles namoraram uns sete anos antes de se casarem. Eles namoravam no sofá com o avô e a avó de cada lado. Eles saíam com os cunhados. A minha mãe tinha oito irmãos, uma morreu, mas era aquela família com o sofá imenso e eles namoraram durante esse tempo todo. Eu não consegui fotos deles, tem umas fotos lindas dessa época, porque eles são de 40 e... Ele era de 40 e ela é de 42. Então isso era da década de 60. Com 18, 19 anos. E ela é muito bonita a minha mãe. Ela se vestia assim feito Jackie Onassis, sabe? Com aquele vestidinho de tubo e com aquela bolsinha no braço. Não tinham dinheiro nem nada, mas esse era o programa, não precisavam gastar dinheiro nenhum, ficavam dando voltas na praça, a paquerar, e foi assim que eles se conheceram.
P - E os seus avós, eles estão presentes na sua história por você crescer nessa cidade que é pequena e tem toda a tradição da família?
R - Sim, muita.
P - Conta um pouco do seu avô que era farmacêutico.
R - Falar dos avós, são mais presentes os da minha mãe. Esse meu avô que era farmacêutico morreu faz uns seis ou sete anos e ele é de uma família grande, italiana, e era um cara muito diferente nessa cidade porque ele era um homem meio delicado, eu diria assim, enfim, ele fazia apresentação de teatro com as filhas, ele ensinou todas as filhas a tricotar, elas aprenderam a tricotar com ele. Ele tinha uma série de... hoje eu vendo, né, porque na época eu era criança. E essa coisa da farmácia, por ele ser um tipo de conselheiro. Ele nasceu e morreu pobre. Ele teve cerâmica, a farmácia, e ele era meio generoso. Santa Gertrudes é uma cidade que tem muita cerâmica, a cidade funciona pelo movimento da cerâmica. Então ela é muito polarizada porque tem os donos da cerâmica e hoje ela é globalizada, vende, exporta, mas a mão-de-obra é muito pobre. Sempre teve essa grande polaridade: os donos da usina ou cerâmicas e a mão-de-obra, que eles chamam de pé vermelho, que é a pessoa que mora no barro. E ele sempre foi um cara generoso com essas pessoas, então ele fazia fichas e anotava o que devia, e na época de inflação alta em 80, 80 e poucos ele anotava os precinhos das coisas, então perdeu grana, faliu, mas ele era uma pessoa querida, muito afável, e agora tem um centro cultural que tem o nome dele. Depois foi vereador, mas não foi nada de político, aquele que eu pudesse dizer a você que ele teve algum feito grandioso, mas ele tinha um carinho, um carisma com aquela cidadezinha de 10 mil habitantes, tão pequenininha, né, e as pessoas respeitam muito o meu avô. E a minha avó é uma coisa muito engraçada, hoje ela tem 90 anos, tá viva, agora com Alzheimer, mas ela é uma mulher muito dura, assim, sempre foi, às vezes, uma compensação, assim, ela foi uma mulher muito marruda, e quando as pessoas falam assim: “Está dando uma de Catarina”, que é um jeito de falar na família, é pegar um touro a chifre, sabe? Ela mata galinha... a gente tinha nas férias um evento social, lá, porque eu tenho uns 20 primos, incontáveis o número de primos, e a gente se reunia em um rancho que ela tem na casa dela. É um rancho longo e no fundo tem o que a gente chamava de rancho e a gente matava porco. E então tinha o evento que todos os primos tinham as suas funções e tal. E aí vinha o porquinho, óinc, e ela gostava dessa coisa, sabe, de “mata o porco, destripa...” (risos) e é uma coisa meio, não sei, não diria masculino, mas era uma coisa meio visceral, ela era uma italiana muito visceral, emocionada e tal, e às vezes a gente tava numas de matar o frango quebrando o pescoço na perna, amassa o pão, assim, ela tem esse jeito meio... (risos) Ela era uma pessoa divertida. Esse casal era um pouco divertido, porque eles trocavam um pouco de papel. A minha mãe conta que com os filhos tinha isso, a mãe muito brava muito severa e o pai muito doce e tal, mas a gente tinha muita coisa tradicional. Uma delas era essa matança do porco, pois tinha um sítio que criava porco. E tinha essa coisa de aprender a fazer, um limpava a tripa do porco e lavava, eu era a do baldinho, ficava misturando para fazer chouriço, vocês sabem o que é chouriço, né, é uma misturinha de sangue coagulado. Eu era a menorzinha e ficava nessa função (risos) que era nojenta, mas um pouquinho menos violenta, não tinha que matar, e tinha outras várias tradições. Tinha uma do carnaval, que a gente se reunia para fazer crostoli. A mesa da minha avó era enorme, uma bancada imensa de madeira e todo mundo quando era criança ia, os primos sentavam e, o crostoli é uma massinha que se enrola, frita e passa no açúcar. E tem uma tradição que depois eu vim a saber, que ela só fazia no carnaval, a gente podia chorar e espernear que só tinha no carnaval, na terça-feira de carnaval. E depois eu vim a saber que era uma tradição de algum lugar da Itália de onde veio a mãe e o pai dela, que tem essa tradição de fazer no carnaval, não sei direito o porquê. Eu não conheço a história, mas ela fazia. Tinha essas coisas muito “Não, só no carnaval”, ela era muito regrada, uma mulher muito forte, essa é a imagem que eu tenho, teve uma historia muito difícil, a mãe morreu quando ela tinha 5 anos, a bisa, uma gripe muito forte, um surto de gripe que teve no começo do século, eu acho, ela é de 18, foi mais ou menos 13, assim, e morreram todos. Ela conta, hoje ela não conta mais, mas ela contava que ela se lembra da casa dela ter caixões o tempo todo, velava-se em casa. Então morreu a mãe, morreram os irmãos e ficava aquele entra e sai de caixões e ela pequeninha, assim, então, sempre foi atribuída essa dureza dela a uma história um pouco difícil, mas eu acho que é também um pouco de personalidade e dessa junção do casal, que um é duro...
P - Combinado?
R - É.
P - Conta um pouco sobre você em Rio Claro, quando era pequena. Como foi a sua infância?
R - Eu vim muito pequena de Rio Claro. A minha mãe veio quando eu tinha 30 dias, era um bebê, mas tem muita ligação com Rio Claro, porque quando eles vieram para Santo André, eles ficaram muito apegados à família, então nós também fazíamos muito esse esquema de morar cinco dias da semana em Santo André, mas no final de semana ia para lá, e a minha infância eu fiquei muito em torno dessa família, nos encontros de sábado e domingo na casa dessa matriarca que até hoje faz esse encontro, e com os primos, então, muita brincadeira de rua, de bola, eu tinha só uma questão difícil, porque da minha idade eu só tinha dois primos e um irmão, bem pertinho, então foi sempre bem difícil. Eu era miudinha, fraquinha, assim, depois eu fiquei mais forte, mas eu era miudinha então eles detonavam comigo. Uma época eles começaram a lutar judô, todo mundo. Tinha aquela coisa, colocar a menina para fazer balé e o menino judô, né? Os meus pais sempre foram bem tradicionais e os três [meninos] lutavam judô, mas como tinha que lutar em dupla (risos) eu era escolhida, um tipo de bobinha da vez. Teve uma vez que foi horrível, eles me chamaram para vir correndo e fazer um golpe sensacional, eles deram a mão para mim e botaram o pé na barriga e eu caí de cabeça (risos) inteira no chão e não tinha mão para segurar. Então tinha umas brincadeiras assim, muito de menino, mas eu não era menino. Tem gente que fala que foi muito moleque na infância, mas eu tinha que ter um escudo porque eram três moleques e eu que tinha que me defender deles, nessas brincadeiras mais de braço, de mão, mas assim, foi bem divertido. Eu sempre quis ter uma irmã (risos), queria tanto ter uma irmã, era um objeto de desejo, ter uma irmã para dar uma aliviada (risos) naquela situação de menino. Em Santo André, quando eu entrei na escola teve uma socialização maior com o grupo de Santo André, que era uma cidade em 76, 77, muito industrial, então tinha muito metalúrgico, muito filho, nós morávamos em um bairro operário, então, havia aquela galera, brincadeira de rua, amarrava corda no portão e pulava Fogo-foguinho, Mãe da Rua e Passa Anel. Meus pais, não sei se por opção ou sem querer, nunca falamos disso, mas sempre moravam em rua fechada, então eu sempre tive essa coisa de brincar na rua. Isso para mim foi sempre super importante, nunca me dei conta, mas obviamente isso era a minha brincadeira importante, jogar taco com duas latinhas de óleo, aquele pau com as bolinhas que passavam no meio. Eu tive muito isso em uma cidade grande, quase 80. Aí no final dos anos 70, teve um momento ótimo na minha vida (risos) construíram uma escolinha infantil no final dessa rua que nós morávamos. A construção foi maravilhosa, porque tinha aqueles tubos e também tinha barro, a gente se metia na construção direto.
P - Você e os meninos?
R - Já tinha algumas meninas nessa época. Tinha as meninas da rua e da escola, e aí comecei a ter contato com as brincadeiras de meninas. E, a gente ia brincar nesse terreno, era uma coisa bacana de descoberta, de inventar muita brincadeira, né? E tinha uma coisa estranha, que a gente era de uma família de classe média mais remediada dessa rua que nós morávamos, melhor de vida, o que não significava muita coisa. A gente fazia uma viagem por ano, de férias, e as outras pessoas eram mais pobres, então tinha essa coisa do brinquedo que só a gente tinha. Não era aquela coisa de eu ter uma boneca e a outra ter uma boneca, ou só a gente tinha ou tinha que emprestar, e às vezes era difícil, ou não rolava a brincadeira porque não tinha com quem brincar. Eu tinha uma Barbie e a outra não tinha, então era uma Barbie só, e ficava uma situação sem graça, então a gente ia para a rua porque a rua era mais aberta. Eu brinquei bastante, mas depois de construir esse negócio, fez uma escolinha de cinco a seis anos, não sei como que se chama, uma escola infantil, de educação infantil, e fizeram uma biblioteca que funcionava nas férias e foi super importante porque embora o meu avô fosse uma pessoa mais culta, tal, não tinha muito livro em casa, só tinha aquelas Barsas, vendia Círculos do Livro, os meus pais eram compradores dos Círculo do Livro, mas não tinha muito hábito, não eram muito letrados, e a biblioteca foi bem legal na minha vida, assim, abriu uma oportunidade, sabe, porque ela era bonita, nova, recém feita, então foi um lugar onde eu me enfiei bastante. E eu fiquei até com um estigma de ficar dentro de casa, de ser muito leitora, eu fui muito leitora desde pequena, um mundinho a parte. Também era um lugar onde eu me protegia dessas brincadeiras mais violentas, tal, e eu me escondia lá. Tinha concurso de contas, era uma beleza.
P - E como que era a sua vida de pequena dentro de casa? A sua relação com os seus pais e com seus irmãos, que tinha aquela coisa da briguinha e tal. Como era no dia-a-dia?
R - Com a minha mãe sempre foi muito difícil. Eu sempre briguei muito com ela.
P - Desde pequena?
R - Desde pequena a gente sempre foi muito diferente, não, a gente é idêntica, muito parecida fisicamente, o que eu acho que é um fator para a gente se desentender muito (risos) psiquicamente, porque tem que ter alguma diferença. Eu sempre fui turrona, assim. Ela me conta de coisa do tipo: pentear meu cabelo sozinha, porque eu não queria que ela penteasse o meu cabelo aos cinco anos, uma coisa meio autossuficiente. E com o meu irmão a gente faz uma diferença entre irmãos. O meu irmão sempre foi mais atlético, esportista, assim, sabe? E aí eu sempre fui mais tímida, sempre fiquei mais dentro de casa, eu desenhava sem parar, o tempo todo eu desenhava. Eu tinha uma mania de fazer uns quadradinhos e fazia modelagens de vestidos (risos), e essa história é muito engraçada (risos). Eu pegava um papel e colocava assim, como na brincadeira de Stop, fazia aquelas listas e desenhava os vestidos. Eu tinha uma tia costureira em Rio Claro e às vezes ela via o desenho e dizia: “Eu vou fazer” e ela pegava o desenho do vestido, não sei se vocês já desenharam vestidos, a gente coloca um monte de detalhe no desenho, colocamos umas coisinhas, e ela ficava copiando, e na verdade é uma brincadeira nossa, eu fazia e ela copiava. E eu vestia, e era um dos meus passatempos preferidos, fazia roupa de boneca, mas nunca foi para frente, porque eu não virei modelista (risos). Mas essa época eu gostava bastante de fazer isso. Era bem... teve sempre muita reação da minha mãe. A minha mãe era uma boa cozinheira, gosta de ser dona de casa, gosta dessas coisas de cuidar de casa e eu desde muito cedo achei que não, que não ia rolar. Hoje eu faço de tudo: cozinho, faço tricô, porque fiquei ali com ela, mas não fui essa filha que senta do lado. Fui ler, estudar, desenhar, para definir um cerco, assim, essa sou eu. O meu irmão era um cara que ia mal na escola, dava trabalho e eu fui a primeira aluna. Teve uma época horrível que ele repetiu um ano na escola e a gente se juntou na mesma sala, e foi tenebroso, porque ficou a comparação ali, né, a melhor aluna e o pior. A gente era assim, a melhor e o pior, não era o médio. Foi muito difícil tanto para mim quanto para ele. Naquela época a escola não era muito construtivista, era escola de Estado, de Ditadura ainda, né, ninguém trabalhava essa questão, e a gente ficou muito tempo com esse estigma, de eu ser a inteligentona e ele ser o problemático na escola, mas ao mesmo tempo dele ter uma destreza e eu não, e a gente ficou muito polarizado nisso. Ele da minha mãe e eu do meu pai. Eu sou queridinha do meu pai e ele da minha mãe. Hoje em dia a gente ultrapassou um pouco (risos).
P - E o outro irmão? São dois, né?
R - Eu sempre chamo o meu irmão, de irmão, que é o mais velho, Alexandre, e o Leonardo, porque o Leonardo é nove anos mais novo que eu.
P - Deu bastante diferença?
R - Deu bastante diferença. Eu tinha cinco anos e a minha mãe teve uma gravidez que ela abortou com cinco ou seis meses de gravidez. Ela teve que esperar um tempo. Ela pegou rubéola nessa época. A gente pegou rubéola e ela também pegou. E aí ela teve que esperar um tempo para ter uma gravidez e teve uma quase aos 40, que é esse meu irmão, que aí veio o Léo, mas ele não conta como eu digo para o mais velho, que eu chamo de Tati, que é o apelido dele. Eu falo: “Tati, o Léo não conta” porque quem disputa sou eu e o Alexandre. O Léo é tipo, tá bom. Hoje a gente briga para o Léo sair de casa e deixar os dois lá, porque ele ficou essa coisa meio bibelô, né? Hoje com 28 anos ela ainda compra bolacha, biscoito recheado, requeijão que ele gosta, mas assim, depois que ela teve esse aborto eu fiquei muito tensa com essa história, eu queria muito um irmão, ficou meio... um pouco de culpa, sei lá, porque a gente ficou doente, enfim, não sei o que rolou direito mas eu queria muito um irmão. Aí quando nasceu... Na verdade eu queria muito uma irmã, claro, a Aline, que já tinha nome e tudo, mas aí veio o Leonardo e eu tive essa oportunidade de aos nove brincar de mãezinha, né, de cuidar. E eu fui muito cuidadora dele, de dar comida, banho, assim.
P - De cuidar do irmão mais novo e... (23:39)
R - Eu sou meio irmãe do Léo porque ás vezes eu sento, converso umas coisas assim, que é uma coisa bem bacana para ele, eu acho. Tem a mãe lá, sei lá se é bacana, mas é uma outra relação bem diferente do irmão mais velho que tem uma disputa. Ele não, tudo a gente deixa o Léo fazer e ele é um cara muito doce que pega muito essa tradição da família. Ele faz macarrão em casa hoje para os meus filhos, compra maquininha, então ele resgata muito dessa história antiga. Ele está levantando. Ah! Essa história é engraçada. Ele estava levantando a... como é que chama, a árvore da nossa família para conseguir o passaporte italiano e aí confuso, porque tem todos aqueles nomes trocados e tal. Ele foi atrás, ligou para a tia avó, todo mundo meio velho, sem memória, sem papel, sem documento e ele começou a ir atrás porque ele tem essa coisa de ir buscar essas histórias de família. E ele foi chegando nuns becos sem saídas (risos), de achar um bisavô que fugiu. Ele veio da Itália, mas não aparece nenhum relato dessa vinda dele, a gente supõe que ele tenha vindo, porque ele engravidou a mulher porque nasceu uma tia avó minha, no navio e ela é dessas cidadãs que nasce no mar, ela é cidadã do mundo, a tia Vitória. Ele foi atrás disso para saber quem eram as pessoas, uma visão meio romântica, sabe, e foi caindo em uns lugares assim que um tio esfaqueou outro e eles tiveram que fugir de uma cidade para outra e ele falou: “Ana, vou parar porque daqui a pouco ao invés da gente achar que tem uma herança (risos) teremos dívida, realmente e dívida de morte” até porque tem umas histórias meio cabeludas de gente que vinha fugido da Itália, sabe, essa história linda que todo mundo quer contar, não meus parentes vieram (risos), não os nossos, acho que vieram fugidos de lá e aqui também meio que se estropiaram por aí. Diz o meu pai que soube da história que esse meu tio, o bisa que fugiu, era porque, tem um termo para isso, desvirginaram a filha, molestaram, não sei, fizeram alguma coisa para a filha e ele matou o cara que fez e fugiu da cidade, só que a cidade é uns 50 quilômetros de Rio Claro o que é engraçadíssimo pensar que a pessoa foge de uma cidade para outra, né, com 50 quilômetros (risos) e até por isso os documentos, eles trocam de nome, vai para outra cidade tira outro documento, muda o nome ou algum detalhe do nome, então a gente não consegue, além de não conseguir ter o passaporte italiano (risos) a gente esconde que são tudo uns salafrários.
P - E voltando para a sua infância em Santo André que outras lembranças você tem da escola e das amigas? O que você fez na escola?
R - Eu tinha umas amigas muito bacanas nessa escola de Estado. A escola do Estado foi uma experiência que eu acho muito importante para mim.
P - Você estudou sempre em escola estadual?
R - Então, não, eu fiz até a quarta série na escola do Estado, mas era um momento muito legal, mesmo sendo aquela coisa do hino nacional antes, né, tinha uma coisa muito militar, mas tinha muita mistura, muito legal essa mistura de gente de tudo quanto é jeito e... uma coisa de brincar na rua, na quadra, sabe, corre-corre, pega-pega, correr um atrás do outro e depois eu tive uma transição meio chata que eu fui para a quinta série, com 11 anos, e eu fui para uma escola de freira. Fiz uma olimpíada de matemática aos 10 e ganhei o primeiro prêmio e disseram para os meus pais que era melhor eu ir para uma escola, era também a decadência da escola pública, nesse período dos 80, era realmente o último suspiro da escola pública, né, e aí eu mudei para essa escola de freira, mas foi muito ruim para mim. Eu cheguei meio tarde com uns 11 e os grupos estavam formados e porque mudou demais a minha vida, era uma coisa da rua, para uma coisa mais... Os meus pais melhoraram um pouco de vida nessa época, mas era uma melhoria mais ou menos, dava para pagar a escola particular, pagar o clube, mas não tinha todo o resto, então ficou aquela coisa esquizofrênica de ir para a escola que era mais longe, não ia a pé mais, porque era escola pública a gente ia caminhando até a escola, uma mãe levava aquele bando e voltava. E ficou uma coisa mais distante, e essas minhas amigas mais chatinhas, eu achava, mais de colégio de freiras, sei lá, não foi tão legais quanto as minhas amigas da vizinhança. Eu tive um amigo ótimo na vizinhança, o Tom, ele até casou com uma amiga minha, a Thaís. A gente brigava muito. Ah, e o Tom era esse cara que quando todo mundo batia em mim, ele era da minha idade, fazia escola comigo, era magrinho, asmático, fraquinho, e eu batia no Tom (risos). Eu adorava, era uma válvula de escape, de vez em quando eu dava uns cacetes nele (risos).
P - Não tinha nenhum que te defendia?
R - Meu irmão sempre me defendia se não tivesse brigando comigo, né, mas grande parte do tempo era ele mesmo batendo, mas assim não. Não tinha meninas mais velhas, não tinha... mas eu sempre chorava, a defesa era essa, depois de um tempo eu parei de chorar. Eu voltei a chorar porque (risos) eu acho que essa é uma arma feminina (risos) bastante importante, né, quando não dou muita conta eu choro (risos). E teve um acontecimento ótimo que foi uma vez dele sair correndo atrás de mim e eu tropecei, escorreguei, cai e bati com a cabeça numa quina de calçada, eu fiquei um tempo desacordada, mas foi um acontecimento ótimo na vida (risos) porque durante uns oito anos eles pararam (risos) porque eles ficaram com medo. Imagina, essa sensação para uma criança e ele achou que eu tivesse me matado porque ele estava correndo atrás de mim, aí a gente ficou mais calmo pelos dez, onze anos. A gente sempre brigou muito, eu e o meu irmão, nessa fase de braço, assim, e eu sempre perdendo todas é claro, e uma outra verbal na adolescência, era uma briga de ficar xingando, brigando, hoje os meus fazem o mesmo.
P - Conta um pouco sobre a rotina da escola? Resgate um pouco essa rotina mais patriótica da escola pública e como era a rotina da escola de freira? Tinha alguma característica?
R - Eu acho que tem uma coisa muito característica, na escola do Estado naquele momento a gente se enfileirava para cantar o hino nacional, segundo ordem de tamanho, subia a escada, tal, era um prédio super modernista de concretasso, tudo concreto e cinza, uma escola triste e feia, mas, tinha um pouco de vida, pode ser que eu esteja romantizando um pouco, de ter muita gente correndo e fazer festa Junina, fazia aquela miss primavera, sabe concurso de miss primavera, mas eu nunca fui candidata, eu sempre era a narradora das histórias (risos) eu nunca fui de ir lá para frente ser atriz. Daí na escola religiosa, eu só estudei nessa escola de freira, então as coisas se misturam um pouco porque ao invés da ordem, não era a ordem moderna do progresso, a ordem militar, mas tinha outra ordem que era a religiosa do rezar e também eram preferidos os meninos e as meninas que fossem filhos daqueles que contribuíssem com o seminário ou sei lá o que eles tinham, então, no frigir dos ovos eu ainda prefiro aquela mesmo, porque também só tinham aquele resquício, já era no final de 70 e então tinha aquela coisa de cantar o hino nacional e até hoje se puxam o hino da bandeira, eu canto todos, o hino de Santo André, eu canto, porque era esse o padrão se ensinava isso, mas acho que tinha algo mais coletiva. A merenda, né, também eu sou da época que se comia soja. Quando tem esses programas de comer soja porque faz bem para a mulher, eu acho que eu já comi toda a soja que eu precisava nas minhas merendas porque foi o momento da soja no Brasil, descobriram a soja, então tinha leite de soja, sopa de soja (risos) toda a merenda era soja, transformada em leite com morango, medonho. Hoje não posso sentir o cheiro daqueles Ades, eu acho horrível porque me lembra muito esse momento que era só, mas era mais coletivo. Os meus pais também sempre valorizavam demais a história de ser igual a todo mundo, sei lá, é um pouco cristão, tem uma perspectiva cristã, mas o que eu mais senti na particular era de que não era todo mundo igual.
P - E o seu irmão foi com você para...
R - Não, o meu irmão não foi. Ele tinha problemas na escola. Ele ficou um tempo nessa do estado porque ele repetia, repetia, aí ele foi para uma outra particular que era mais fácil de passar. Hoje ele é ótimo, eu posso falar, eu até brinco, puxa, eu fiz tudo mais rápido do que ele. Eu entrei na faculdade aos 18, na USP que era o que eu queria e hoje ele é mais certo do que ele queria, demorou muito mais, foi fazer faculdade com 26 anos eu acho, parou o resto que ele estava fazendo, foi fazer faculdade em Rio Claro na Unesp. Foi morar com os meus tios, enfim, foi uma coisa meio chata, mas ele foi fazer o que ele gostava que era Educação Física.
P - Quanto tempo vocês tem de diferença?
R - Um ano e quatro.
P - É bem pouco.
R - É, é bem pouco.
P - Você estudou por quanto tempo nesse colégio de freiras?
R - Eu fiz até a oitava série, depois fiz o ginásio e fui para uma outra particular que era um colégio, Anglo, que preparava bem para o vestibular.
P - Boas memórias ou más memórias?
R - Boas memórias do colégio. Eu sempre tive aquela coisa de ser a primeira colocada e isso encheu o meu saco por muito tempo na vida porque era uma obrigação de ser e esse colégio incentivava muito a concorrência de quem passa em primeiro lugar. Então isso foi um pouco chato porque eu era tida como inteligente, essa coisa toda de fazer exame e ser inteligente por fazer mais pontuação. Então eu não tive aquela coisa de ser... a garota mais bonita do colégio, não tinha muito aquela coisa do namoro dos 13 aos 14 anos, era mais inteligente. Tinha muito amigo homem por ser boa Matemática, Física e Química e sempre tive facilidade de fazer amizades com meninos por peitar os meninos, tanto na infância brigando, quanto na disputa do conhecimento de quem é o melhor. O que é engraçado porque é uma disputa que as meninas não disputam muito de quem é melhor em Matemática, os meninos fazem, eles entram nesse jogo e eu entrei um pouco. Recentemente encontrei um amigo, o Fábio, e a gente lembrou várias dessa época, coisas de colégio que é um tempo bacana, mas eu estava me preparando para ir embora de Santo André. Então a gente começou a vir para São Paulo para ir ao cinema, saía nas baladinhas eu já estava com o pezinho fora.
P - Como foi a sua adolescência em Santo André que é uma cidade industrial? Ficou alguma coisa desse tempo para você?
R - Tem uma coisa que é super bacana que é o rock nacional. Chegou muito cedo lá, e muito inicialmente, eu assisti a shows de cinco a seis bandas que eram os Titãs, sabe, era uma coisa que você ia ao clube e tocava Titãs, tocava também RPM, Ultraje e tem essa coisa de banda de rock brasileiro muito forte em Santo André, em São Bernardo e em todas do ABC. Essa ligação de rock com metalurgia, não sei, mas ela tem uma ligação dos filhos de operários serem roqueiros nesse momento e isso foi bem bacana, de abria uma possibilidade, porque é uma cidade que não tem muito... não tinha muito atrativo.
P - Era mais industrial mesmo?
R - É, depois de um tempo teve um cineclube, mas nunca foi para frente esse tipo de projeto, sempre foi uma coisa mais de música, de rock’n’roll, blues, assim, agora acho que rap né, eu não sei, não conheço mais né, e menos essa coisa de praça e esse convívio, menos, e já tinha um pouco de violência também nos anos 80.
P - Nesse momento você diz que se identifica com o rock em Santo André, mas você também se encontra em São Paulo também. Como é essa parte cultural de lazer da sua adolescência, juventude?
R - A gente fazia muito o lazer no clube, na época, não tinha shopping e não tinha muito espaço aberto, então, ia muito no clube, Aramaçan, nós éramos sócios do Aramaçan e tinha a Domingueiras que era das sete da noite, no domingo, com grandes shows porque eram clubes imensos, tipo o Juventus. Aqui acho que teve no Juventus esse movimento. E era isso, passava o final de semana no clube. Eu menos nessa coisa do dia no clube porque eu não praticava muito, mas da noite, sei lá, nesse ambiente um pouco mais fechado porque tinham os sócios, podia entrar não sócios na Domingueiras, mas pagava mais. Era um jeito de dar uma separada, assim, os meus pais achavam que era um jeito de deixar a adolescência mais separada. E rolava muito rock n roll, fumo e tal, beck, mas não era nada, nem muito underground pesado, era um beck.
P - E você foi vindo para São Paulo? Saiu de Santo André?
R - Eu vim para São Paulo para fazer outras coisas. Comecei a me interessar por cinema. Lá mesmo em Santo André tinha amigos que gostavam de cinema, de cineclubes, tinha cineclubes do Bixiga, Biju, Oscarito e aí a gente começou a fazer esse circuito meio cabeção de vir para São Paulo e ficar uma tarde inteira no cinema, assistindo oito filmes do Fellini, enfim, uma outra história, que foi um pouco antes de eu vir para a faculdade. Foi um movimento muito importante no final 80 no mundo, na vida, é final dos anos 80, então teve eleição para a presidente, foi um movimento expansivo, né, e para mim foi uma certa inserção política, na vida política. Fui petista nessa época, me filiei ao Partido, né, e comecei a militar pelo Partido e conhecer umas coisas mais cabeça, saí um pouco do rock nacional, não sei como dizer, mas acho que mais politizada.
P - Marcou de alguma forma o período da Ditadura para você?
R - Não, diretamente não. O meu pai era metalúrgico, mas não era membro do sindicato então não teve esse impacto diretamente para nós.
P - Então você ingressou na faculdade?
R - Eu ingressei na faculdade...
P - Que ano?
R - Eu passei em 89.
P - Em que curso você entrou na faculdade?
R - Em Economia na USP. Fiz duas nessa época, eu fazia Economia na USP e Jornalismo na Metodista.
P - Como foi a escolha desse curso? Dos dois cursos nesse caso?
R - Pois é, eu era super boa aluna em Matemática, mas eu não gostava. Eu gostava de história e comecei a estudar e nessa época mais politizada de filiação ao Partido comecei a gostar de política e história e fiquei entre as duas não sabia se ia para a área de história ou matemática e um professor bacana que era o João, sentou um dia comigo e falou que tinha um amigo em Economia e era para eu conversar com ele para ver se é um pouco a sua praia porque tem um pouco as duas. E de fato foi um curso que deu a possibilidade de aproveitar um pouco a facilidade com o instrumento matemático e de estudar um pouco de história e escrever, né, porque eu gostava e foi por aí. Eu tinha uma super liberdade. Essa história de ter os pais operários é uma beleza porque chega na hora de escolher a vida fica aberta porque você não tem, um pai que era advogado, assim, a minha mãe (risos) não queria que eu fosse nada, então eu podia ser qualquer coisa, então deu muita abertura e eu fui pelo colégio, tinha muita gente bacana que vinha da USP então eles que ajudaram. Hoje eu não gosto de me chamar de economista, não pelo curso, mas porque hoje tem um preconceito grande em relação à profissão. Nesse momento, hoje em dia, parece que mudou bastante. O curso era muito bacana, tinha muita filosofia, Economia Política que se dava. Estudavam-se os clássicos Kant, Marx, a gente lia (Van Haus?) sabe, os caras e foi legal a formação. Me faltava muito isso. Quando eu cheguei na USP, Nossa Senhora, foi uma mudança de mundo porque eu me achava inteligentona e eu era inteligentona do grupo a qual eu participava, mas quando cheguei na USP todo mundo era no mínimo igual a mim e tinha uma coisa de cultura, de gente mais culta que foi me dando um certo desespero, sabe, de uma vivência maior, de gente que havia viajado mais que já tinha lido todos os clássicos e foi uma experiência muito acachapante. Acho ótimo no fim, hoje, mas aos 18 anos foi bem difícil. E eu entrei na FEA que era peessedebista e eu era petista, então eu entrei e fiquei com o estigma, sabe, de ser do ABC, eu vinha de ônibus (risos) fretado e montava uma banquinha do PT e, assim, eu não era uma pessoa íntima, não era uma pessoa da FEA. Eu era bem outsider da FEA, eu ia nas festas vizinhas e foi difícil.
P - Mas você conseguiu curtir um pouco essa coisa da ... porque você fez o curso no campus da USP Cidade Universitária, da zona Oeste, porque eu não sei como era na época que você fez, mas deu para curtir, essa coisa de integração entre os departamentos?
R - A FEA, não é não. É separada, ela ficava ali, Economia, Administração e Poli que era mais chata ainda (risos). A gente só mantém a Poli ao lado para dizer: “Nossa tem gente mais chata que a gente” (risos).
P - Mas tem a ECA ali ao lado?
R - Ah, então, eu namorei um cara da ECA que foi uma ótima ideia porque aí me fez esse ingresso de atravessar a rua, né, porque não é só atravessar a rua é atravessar um mundo. Entre a FEA e a ECA existe um mundo, assim, e eu pude entrar com esse cara, o Eduardo. Eu já encontrei agora, tenho a maior gratidão porque ele fez a travessia ótima (risos), para a ECA, para a FAU e daí para o mundo, enfim, eu morei no CRUSP [Conjunto Residencial da USP] em 90 e aí eu meio que abandonei Santo André.
P - Por um tempo você estudou e continuou a morar em Santo André?
R - Por um ano eu fazia faculdade a noite. Eu fazia de manhã a FEA, ia para a casa esperava, passava a tarde lendo e a noite eu ia para o curso de Jornalismo lá na Metodista. E depois do primeiro ano eu fiquei em dúvida. Eu gostava demais de Jornalismo, mas a USP era mais interessante para mim, me pareceu mais abertura para o mundo. Não sei por que eu não fui para o Jornalismo, mas estava no segundo ano, estava indo bem e comecei a namorar um cara na FEA. Depois que a gente virou alternativo, achei um grupo alternativo na FEA, que tinha, e fui morar um tempo no CRUSP, um ano, e depois fui morar em república com umas amigas até o final do curso.
P - E isso com mudanças as mil. Você já tinha namorado antes? E morando sozinha?
R - Não tudo isso aos 18, de uma vez só, sabe. Não, foi aos 19 no segundo ano da faculdade, a namorar, morar no CRUSP com outros dois caras no CRUSP.
P - Sempre meninos?
R - Pois é, sempre meninos, mas esse foi o que eu consegui, esse foi coincidência, mas é... aí foi mudança de uma vez, porque foi mudar para São Paulo. Mudei efetivamente para São Paulo em 90, a minha primeira moradia foi o CRUSP, né, e era medonho ninguém tinha carro e no final de semana não passava circular e nem ônibus, era coisa triste e até hoje eu acho que todos esses prédios que tem muito concreto, pode ser movimento bacana, o modernismo, mas é triste, entendeu? Fica frio, ah não, mais bonitinho tijolinho (risos) mais quente. E aí eu morei esse ano lá no CRUSP e foi uma desbundada, de morar no CRUSP e ir para as festas da USP, depois eu comecei a trabalhar no DIEESE [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos] e teve uma trajetória diferente de dar uma virada, um pouco.
P - Então conta um pouco sobre o seu primeiro emprego?
R - Do DIEESE.
P - É?
R - Engraçado, né, porque eu lembrei quando você outro dia perguntou o que eu fazia e a gente deu risada no trabalho porque eles escutaram eu falar. Eu fazia boletim de greves, eu sempre namorei o Sindicato dos Metalúrgicos. Eu fui quando o Lula foi candidato em 89, em 13 de maio teve o lançamento da candidatura e eu fui no Sindicato de Metalúrgicos e fotografei, tal, ... o que eu tava falando?
P - Você estava falando que você fazia os boletins de greve...
R - Os boletins de greve. Olha só para vocês terem uma ideia em 90 isso. Em 90 tinha greve ao ponto da gente fazer um catálogo, eu era estagiária e o meu trabalho era recortar os jornais de todo lugar do país, nós recebíamos como se fosse um clipping e fazíamos catálogo de greve, com data de início, o que negociou, um histórico de greves, todas, era um calhamaço e hoje eu me dei conta que esse trabalho é um dos trabalhos que não existe mais porque não existe mais greve para isso. Agora parece ter começado a despontar de novo, mas nesse período era o movimento, o sindicalismo era presente, era o governo Collor, inicio do governo Collor, então tinha muita movimentação, esse foi o meu primeiro trabalho. Depois lá eu trabalhei com ICV – Índice de Custo de Vida, que é pesquisar preço, trabalhar com uma coisa mais interna no DIEESE e por um tempo eu fui aprender a fazer negociação.
P - Como assim negociação?
R - Com negociação sindical.
P - Como funcionava?
R - O DIEESE fazia uma intermediação, fazia, não sei se faz ainda, uma intermediação entre empregados e patrões. Ele assessora, vê o quanto é de reajuste, o que é de cláusula, de acordo, e a gente era treinado nisso, imagina a gente só tinha 18 anos, era rodada de negociação. Uma época que ainda o sindicalismo era muito presente, que fazia essas negociações, dava na imprensa, depois isso passou, em 94 e 95 deu uma boa, uma suavizada nesse movimento que era muito forte.
P - E para você deve ter sido um aprendizado grande, para conseguir estar no meio desses dois lados e ter que fazer esse trabalho de negociação?
R - É, o DIEESE sempre foi revestido de um caráter muito técnico, de não tomar partido, mas é obvio que a gente trabalhava pelos trabalhadores. A gente não batia na mesa, não jogava cadeira, mas a gente defendia as reivindicações dos trabalhadores, era essa pauta dos advogados da empresa, dos assessores e era essa a conversa, a gente fazia mais a conversa de assessor para assessor.
P - Imagino que não deve ter sido tranquilo.
R - Não, era muito tenso. Não, eu morria de medo cada vez que tinha uma negociação. Eu era nova, sabe, era dificílimo.
P - Por que além ter que fazer o seu papel, você tinha que se colocar como a menina nova que estava ali para cumprir o seu papel.
R - Isso, isso, é difícil principalmente no sindicato que é um lugar muito machista, muito..., mas eu sempre vim com essa história de ser filha de operário e achar que é um mundo conhecido para mim, né, o meu pai, os amigos do meu pai, da fábrica, eu visitava muito a fábrica, a Cofap, porque tinha um, naquela época não tinha muito aquela coisa de seguro saúde, tinha o ambulatório da empresa, a medicina da empresa era lá dentro, que (risos) era uma coisa, hoje eu fico pensando, louco porque você entra lá dentro da fábrica poluidíssima e vai se tratar no ambulatório, criança dá vacina e tudo, então eu visitava muito. O chão da fábrica que depois eu falava para os meus amigos, vocês ficam visitando esse chão de fábrica como fosse estudo de campo e para mim é comum o chão da fábrica, o meu pai viveu, eu conheço esse lugar, “Vamos lá ver o papai” e era lá, né? No DIEESE eu aprendi muita coisa, eu aprendi a trabalhar, a me relacionar com as pessoas, no trabalho. Eles foram muito bacanas. Já disse isso para eles, varias vezes. É uma escola que ensina muito amorosamente como se trabalha, sabe um lugar que não tem muita competição, que não é assim, enfim, é um lugar ótimo para se aprender a trabalhar. E além do que fica dentro do Parque da Água Branca que é maravilhoso.
P - Depois do DIEESE o que você fez? Você chegou a se formar quando trabalhava lá, ou você saiu antes?
R - Eu saí antes de formar e fui trabalhar na FUNDAP [Fundação do Desenvolvimento Administrativo] que era no ali no Itaim. Era um organismo, de pesquisa, ainda faz, né, mas era um escritório que só fazia pesquisa em economia.
P – FUNDAP é a sigla de que instituto de pesquisa?
R - É um instituto de pesquisa ligada ao Estado de São Paulo. E aí eu tive uns chefes bem bacanas, o Christian e o Fernando e eles montaram uma consultoria depois do trabalho da FUNDAP eu fui trabalhar nessa consultoria, mas fiquei pouco tempo. É a minha única experiência de trabalho em empresa, depois eu trabalhei na CUT como assessora e na Prefeitura de Santo André.
P - Isso já formada?
R - Isso depois de formada, no final da graduação eu fui para a FUNDAP.
P - E como foi depois de formada? Você já tinha passado por todo esse choque, de sai de casa, ir para a USP, atravessar a rua, ir para a ECA e vislumbrar o mundo, como foi?
R - É, foi muito, eu namorava com um cara, eu me lembrei disso, foi muito difícil porque eu me separei logo depois. Fiquei namorando os últimos dois anos de faculdade esse cara que escrevia no jornal, era bem legal na FEA, o Sander, e eu me separei dele logo no final da faculdade e rompi com o grupo. Na verdade larguei dele para ficar com um outro, então teve uma coisa meio mau vista, assim, e teve uma ruptura muito grande de grupos. Eu estava formada, trabalhava nessa consultoria longe desse grupo e fiquei numa trajetória individual e comecei a namorar com o Fernando que é o pai dos meus filhos, depois a gente ficou casado durante 12 anos. Fui morar na Paulista sozinha numa kit, sabe, brincar de ser adulta, jovenzinha, né? E logo depois sai dessa consultoria que eu achava baixo astral, e sempre teve dessa coisa de eu precisar trabalhar para os outros, de alguém que realmente precisasse. Eu nunca gostei desse negócio de ganhar dinheiro, porque eu fiz Economia e lá na FEA as pessoas trabalhavam em bancos para ganhar dinheiro e escolhi outra trajetória desde muito cedo aos 19 anos e voltei para o DIEESE. Fiquei um tempo no DIEESE e depois eu fui para CUT, então na verdade, tem uma só saidinha do DIEESE. O DIEESE era uma coisa difícil para mim, porque a gente saía do trabalho, de carteira assinada, então com vinte e um anos e vinte e dois anos, tinha show ao meio dia no MASP e eu não podia ir, porque eu não podia faltar, o trabalho era muito bacana, mas tinha uma coisa que me atrapalhava aos vinte e poucos anos. Se tomasse todas a noite eu não conseguia trabalhar no dia seguinte e era uma idade que tinha muita responsabilidade no trabalho e pouca idade, sei lá, tinha coisa para fazer. Depois quando voltei mais adulta foi legal, trabalhei em outros projetos mais técnicos, assim, fui do DIEESE para a CUT e da CUT para a Prefeitura na gestão do Celso Daniel.
P - E nesse período você conheceu o Fernando?
R - Foi o final da faculdade que eu troquei (risos) de namorado.
P - E como que foi?
R - Ele era da FEA.
P - Você o conheceu direto da faculdade?
R - Conheci ele na faculdade. Ah. Trabalhávamos juntos na FUNDAP.
P - E vocês se conheceram...?
R - A gente se conheceu e foi tão bonitinho que eu vou contar. A gente trabalhava junto, éramos estagiários, e ele era amigo do Sander, mais ou menos do mesmo grupo, eu era amiga também, a gente começou a ler um livro do Cortázar, ele na verdade lia o livro que se chamava “Os Prêmios”. Ele começou a ler o livro e eu me interessei pelo livro, e um dia, acho que ficou um em cima da mesa do estágio e eu comecei a ler, então nós repartimos o livro, a leitura do livro. Eu lia um pedaço ele ia para a faculdade, enquanto ele ia para a aula, ele fazia a noite e eu de manhã, ele ia para a aula e eu ficava lendo o livro e depois ele trocava comigo, dava na manhã seguinte. E a gente ficava nessa de trocar o livro até que um dia a gente se encontrou para se encontrar porque o livro era grande... a gente se encontrou para trocar o livro e eu o beijei. Tomei uns três chopes, agarrei e beijei (risos) depois disso a gente ficou junto. Eu morava com o outro cara, o Sander, eu peguei fiz a minha mala alguns dias depois que era toda a minha mudança e não tinha onde morar. Não era uma vida de casal, morava com ele, com o primo dele, a prima, era uma semi-república, mas fui embora, “Meu não dá, me apaixonei pelo cara, to indo embora” então fui com a minha mala e ele morava, o Fernando, em uma outra república na Rua Paes Leme (risos), com outros quatro caras fixos e sei lá, com uns outros oito gringos que passavam com aqueles sacos, sabe, cheio de roupa suja e eu fui morar um mês lá, naquela casa, não tinha onde morar, saí da minha, enfim, fui lá, morei com ele esse tempo, procurei uma casa na Paulista e depois fui morar e ele foi entrando com a escova de dente, livro e cueca, moramos juntos, depois casamos.
P - Mas deu para sentir o gosto de morar sozinha um tempo?
R - Deu, bem sozinha mesmo. Foi a minha primeira experiência de morar bem sozinha e foi uma experiência de muita solidão porque eu corto os laços com os amigos da faculdade, porque eu rompi com essa história de eu e o Sander era aquela coisa, hoje eu vou para a faculdade e as pessoas falam: “Ah, você não namorou com o...”. Ficou aquele casal da FEA de final da faculdade, foi muito forte, uma coisa de centro acadêmico, a gente sempre era de chapa vencida (risos), a gente nunca ganhou nenhuma eleição, mas todo ano concorríamos com a chapa e fazíamos umas coisas chatas, além de colocar uma banquinha do PT para vender os bótons, a gente chamava uns caras muito chatos para falarem (risos), era assim, o pessoal do PSDB chamava tipo a Zélia que tinha acabado de sair do Ministério, com o auditório lotado, a gente chamava uns caras sei lá, Venceslau, um cara que sido Secretário da Erundina e éramos só nós dez do PT, era um fracasso, era a experiência de só fracasso, a gente só fracassava, fazia chapa e não vencia, os nossos seminários ninguém ia, mas éramos resistentes na FEA. Eu fiquei muito ligada a ele lá, então quando eu perdi os amigos, fiquei morando sozinha, comecei a fazer aula de artes, fiz História da Arte no MuBE [Museu Brasileiro de Escultura], curso de desenho livre, foi um tempo que eu fiquei mais no indivíduo e depois voltei ao DIEESE e a vida...
P - E a família nesse tempo de faculdade de morar sozinha?
R - A minha mãe chorava, né, não gostou até porque o meu irmão não tinha saído, então tem disso e era uma família italiana, aquela mãe, “Por que vai morar, se é tão perto” “É a vida” sempre foi essa coisa de brigar, não eu quero essa outra vida. Foi comum para mim, então eles meio que esperavam, tipo vai, mas também tinha aquela coisa de malandro. Quando eu fui morar sozinha na kit da Paulista não tinha área de serviço e eu ia lavar a roupa na lavanderia e a minha mãe às vezes falava: “Traz o saco” aí começou a ir saco de roupa pra ela lavar e aí uma vez foi uma calça do Fernando e eu e o Fernando morando juntos já ia a roupa do Fernando também, punha tudo no mesmo saco de roupa suja, ia roupa do Fernando, eles olhavam tipo... Uma vez foi uma calça rasgada do Fernando, sabe aqueles rasgos, que ele cultivava anos aquele furo que tinha na calça e aí chegou a roupa pra ela lavar, voltou toda passadinha com a bermudinha cortada com a barra feita (risos). Então a gente vivia essa coisa meio sozinha, muito independente, mas sempre tinha um, tinha um respaldo assim, não muito de grana, porque não teve, mas muito dessa coisa “se precisar de ajuda”, podia ir lá almoçar, levar uns amigos. Eu levava os amigos do CRUSP, na época do CRUSP, para almoçar na casa da minha mãe (risos) era uma coisa, sabe aqueles caras que parecem que não come há dez dias assim, e ela gostava de ver todo mundo comendo, uma mãe canceriana, acha bonito, né, ver todo mundo, comia, limpava o prato e repetia. Eu levava uns cinco amigos do CRUSP famintos, então tinha uma relação, mas eu me afastei muito do mundo Santo André e foi o que eu retomei com esse amigo. Eu não vi mais os amigos do colégio, me distanciei disso. Depois com o Fernando nós criamos um outro grupo da FEA, teve que fazer uma outra turma porque aquela turma ficou defasada, a gente fez uma outra, mas foi um momento ótimo, depois de uns cinco anos eu engravidei, eu acho que uns cinco anos mais ou menos depois que nós começamos a namorar, aí a gente casou nesse ano, tivemos a primeira filha depois a segunda e agora estamos há três anos separados.
P - E como que foi a filha? Qual é o nome da primeira filha? Como foi a chegada da filha?
R - A primeira é a Helena e foi bem bacana. Esse é o momento mais arriscado da vida de qualquer um. E foi muito legal assim, hoje eu percebo que não foi muito planejado. A gente ia fazendo as coisas. No começo morávamos em uma casa emprestada quando eu fiquei grávida da Lelê. Eu trabalhava em Santo André, eu ia de perua (risos) uma van com cinco colegas, então saia de casa às sete chegava às oito e meia no trabalho e de volta para a casa a gente chegava às nove horas e essa era a vida.
P - Você morava onde nessa época?
R - Eu morava na Maria Antônia.
P - Mesmo morando em Santo André, você continuava a morar no centro?
R - É então, eu continuei, ficava meio pesado esse esquema de trabalho. Eu ficava o dia inteiro fora e ainda engravidei dela e fiquei muito feliz. Os meus pais ficaram felizes, embora nós não fossemos casados, morávamos juntos a uns quatro a cinco anos e foi uma experiência não pensada. Eu não tive esse pensamento de ai vou ter filho, de quando com quem, com esse, não, engravidei. Dei dois meses de intervalo de pílula e engravidei, assim, a gente ficou feliz da vida. Ih morávamos em um apartamento assim, de um dormitório, não tinha onde pôr (risos) aí foi procurar uma casa maior, um apartamento maior. O Fernando começou a trabalhar, ficou mais responsável, mas não foi tudo pronto, porque hoje eu vejo as minhas amigas da mesma idade minha, que tão tendo filho pela primeira vez, então tem uma série de planejamento de não depois do doutorado, não depois do apartamento pronto, do doutorado prararam da casa da praia, do campo e ..., eu tive filho antes de qualquer coisa. Eu estava fazendo mestrado, e aí no meio assim, eu tive um filho no mestrado e outro no doutorado, e também deu pra fazer sabe, juntando, sempre fui meio mais ou menos. Só a única coisa que eu fiz quando eu tive a Lelê, porque ela chama Helena, mas o apelido é Lelê, eu saí da Prefeitura.
P - Como era o seu trabalho na Prefeitura de Santo André?
R - Eu trabalhava com incubadoras de cooperativas populares. O meu trabalho era organizar cooperativas, então tinha uns três ou quatro grupos de pessoas que eu tinha que organizar para fazer um trabalho de incubagem mesmo, né, que é ensinar o que é fazer contrato, como dividir a renda, então era um trabalho que não o de escritório. Eu ia nas favelas Tamarutaca e Sacadura e ficava em assembleia pra fazer estatuto, tinha o banco do povo nesse projeto, então era um trabalho muito militante e quando eu fiquei grávida continuei a fazer isso e quando a Lelê nasceu não voltei a trabalhar nesse projeto.
P - Quanto tempo você ficou nesse projeto?
R - Dois anos.
P - Depois que a sua filha nasceu, você foi fazer o que?
R - Fui dar aula.
P - Junto com o mestrado é isso?
R - Junto com o mestrado.
P - O mestrado você fez em quê?
R - Em Políticas Públicas na GV. Estudei sistema de emprego, políticas de trabalho, estudei um pouco de banco do povo e cooperativas.
P - Você começou a falar um pouco sobre essa rotina de dar aula, fazer mestrado, estar com a filha nova, de primeira viagem, como que foi?
R - Teve um pouco de tensão quando eu tive a filha, hoje eu acho que eu poderia ter ficado mais tempo com ela, mas é uma aflição sabe, de sempre ter sempre trabalhado de ter sido independente financeiramente e pensar, ai vou ter que ficar aqui tendo filho, mas é maravilhoso. Fiquei quatro meses com ela e depois eu fui dar aula, mas era um esquema para dar aula porque eu dava aula na UNIBAN, lá na via Anchieta, fácil né. Então eu ia com ela às quatro da tarde para a casa dos meus pais, dava peito às seis e ia dar aula e às nove no intervalo os meus pais levavam a Lê para mamar. Ela mamava e voltava, aí às onze o Fernando saía aqui de São Paulo para buscar a Lelê (risos) na casa dos meus pais (risos). A gente movimentava uma estrutura e eu não ganhava sei lá, trezentos reais para dar aula, mas era uma coisa de querer manter a atividade, tal e parei de dar aula durante um tempo e voltei a trabalhar em ONG, na Secretaria do Trabalho, com pesquisa.
P - Quais lembranças você tem da sua filha pequena, além dessa correria?
R - Ah, nossa foi muito legal. A Lelê nasceu de parto normal e sempre sem preparar direito, eu acho que tenho essa lembrança de nunca antecipar os problemas, eu vou te falar porque depois eu tive o segundo. Na gravidez da Lelê eu estava ótima, quando eu tinha seis meses da grávida, nós decidimos passar um mês na Europa viajando, aí a gente foi, sabe (risos). Nós tínhamos um amigo em Paris, uma amiga em Milão, a irmã do Fernando estava em Barcelona, nós falamos: “Ah, não, é essa a hora, é a chance” e eu peguei um mês de férias e a gente foi viajar. Até pouco tempo atrás a gente lembra, nossa que gente louca, sem seguro saúde, os bolsistas saem todos assim, mas a gente não e viajamos. Andava e descia escadaria, comia pão, tomava, sabe, assim sem muita glamourização da gravidez. A gravidez é uma coisa natural, eu estava lá grávida e ela nasceu. Eu fui uma mãe de primeira viagem bem sossegada sem muita neura de que não ia dar conta, uma certa confiança assim. Eu acho que é uma coisa assim, a gente sabe o que é ser mãe tendo, quanto menos minhoca puser talvez seja melhor. A segunda foi mais difícil. Eu perdi uma, tive um aborto espontâneo entre uma e outra e essa outra gravidez do João foi mais difícil porque com a experiência do aborto e mais velha, acho que aí é diferente.
P - E a sua mãe também teve um aborto, também.
R - Pois é, nós duas tivemos aborto em gestação avançada, ela com cinco e eu com quatro que é bastante já, é uma hora que a gente está sentindo grávida, assim, não é de um mês, dois, quatro meses você tem barriga, é engraçado, né, repetir depois eu tive outro logo em seguida.
P - Depois você teve o João?
R - É eu tive o João Pedro que nasceu em 2003. Eu tive uma gravidez mais difícil, ele nasceu de oito meses, o João, prematuro e ficou um tempo em UTI, foi um momento muito difícil para mim e eu achei que não podia mais rolar porque tinha noites que ele ficava muito mal, com a respiração e o aparelhinho de respiração, eh, foi muito doloroso. Então teve essa coisa da Lelê que foi muito natural de parto normal e eu fiquei sozinha com ela na enfermaria, o meu plano de saúde é de enfermaria, então não podia dormir ninguém comigo, eh, a enfermeira deixou a Lelê comigo pela primeira vez e eu dava de mamar, acho que a experiência que eu tive com o meu irmão mais novo já tinha me deixado um pouquinho segura, mas foi muito legal. Foi bem tranquilo com ela, mas com o João foi um desafio, sabe essa coisa de achar, não, eu já sou mãe, sabe, de achar que eu já sei tudo. O cara veio e era outra história, porque nasceu de cesariana, nasceu prematuro, ficar na incubadora, tirar leite, sabe, eu peguei o João no colo a primeira vez seis a sete dias depois que ele nasceu e eu estava desesperada, e teve um dia uma mulher muito bacana. João nasceu na sexta à noite, eu entrei em trabalho de parto e ficava esses médicos rodando no hospital, então a cada seis horas mudava os médicos e eu não sabia com quem eu falava e eu fiquei muito confusa e aflita e aí depois de quatro dias eu falava para a auxiliar de enfermagem, eu acho que assim que se chama: “Eu quero tanto dar de mamar, eu peguei o João no colo e ele fica colocando a mão” ela disse: “Vou falar com o doutor”. E teve um dia que ela: “Vamos conseguir”. Ela mesmo assim, eu não sei o nome dela, então não da para denunciar, ela falou vamos tentar, então ela colocou uma varinha de oxigênio, aqui para o João, cheio de esparadrapinho e eu dei de mamar no quinto e no sexto dia com a equipe de enfermagem porque nenhum doutor tinha autorizado para tirá-lo e também ele começou a melhorar e eu acreditava que tocar no bebê. Ele estava sofrendo, cheio de agulhas, tirando sangue, fazendo exame e eu queria pegar, né, aí todo mundo melhorou, eu melhorei, ele melhorou e três a quatro dias depois ele estava em casa, mas eu tenho duas experiências bem distintas de maternidade, né?
P - E eles foram crescendo. Você tem alguma história para contar para a gente deles pequenos?
R - Ah, um monte eu falo deles o tempo inteiro. Outro dia eu contei para o João Pedro, não, ele me olhou e perguntou: “Mamãe sabe o que vou ser quando crescer?” e eu fiquei chutando eu falei: “João você já falou, você quer ser jogador de futebol” que ele gosta, motoboy, ele gosta, acha lindo ser motoboy quando crescer, ele falou: “Não eu resolvi que vou ser eu mesmo” (risos) “Então ta, tem muita gente que demora para chegar nisso, mas se você já chegou com cinco anos filhos, vai lá seja você mesmo” às vezes eles tem uma tirada assim. Ela também é muito safada, muito falante e ela quer ser líder de torcida, muito especial. Eles são meus, assim, eu acho eles muito especiais.
P - E como foi esse seu momento com o Fernando, você falou que vocês se separaram durante três anos, é isso?
R - Foi em 2005, é um momento muito difícil. O João tinha dois e meio e a Lelê tinha seis e foi bem punk mudar de casa, saímos os dois da casa e aconteceu assim. Somos dois amigos, até hoje, enfim, o casamento acabou, o amor acabou e eu me apaixonei loucamente por um cara, gaúcho, ih, aí foi cada um para o seu lado. Eu namorei durante dois anos aquele cara, eu fiz a minha casa, comprei a minha casa, fiz a minha casa de vila, sobradinho, fui morar com os dois, com as crianças, mas ele é super presente, vai de terça e quinta para a casa dele. Ele é casado de novo, casou com uma mãe, uma pessoa que eu conheço, a Patrícia, ela é a mãe da Laura amiga do João da escola, então ficou tudo em família, mas é um momento difícil a separação porque separar é muita coisa, isso eu não sabia, é muita coisa, desde os álbuns de fotografia e é difícil porque tem 12 anos da minha vida de 37 que é com esse cara e é 12 anos da vida adulta e por mais que tenha amizade tem coisa que fica perdida e perder o vínculo de afinidade é foda.
P - Vamos voltar para a sua carreira profissional. Você fez mestrado na GV e depois?
R - Eu fiz, logo que eu acabei em 2000, teve uma época que eu fui ser foca da Folha, trainee da Folha, que eu achei que fosse ser jornalista, resgatar aquela história, mas não rolou, não quis continuar na Folha, imagina eu formada naquela coisa amorosa do DIEESE, na Folha de São Paulo era o oposto, esquema competitivo, muito diário, aquela coisa da informação, eu não sou desse tipo, faço as coisas lentamente. Lentamente que eu digo é de que gosto de estudar ao fundo, tenho medo de falar as coisas sem substância, assim, não rolou na Folha. Aliás eu acho que não rolaria eu ter sido jornalista, eu acho, e aí eu comecei a trabalhar na Fundação SEADE [Sistema Estadual de Análise de Dados] com uma coisa de espacialidade ao referenciarizar, e aí comecei pela primeira vez a pensar sobre a cidade e mudei um pouco de tema de trabalho, assim antes era o trabalho, com sindicatos, montando cooperativa e aí comecei a pensar que o espaço é muito importante na vida das pessoas. E foi um momento de resgate da minha história, de análise, regatando um pouco da história, essa coisa da trajetória da vinda de um lugar para o outro e como isso é importante e aí eu quis fazer um doutorado na FAU, mas para entrar na FAU, como eu era economista eu fiz um projeto que era meio de mapinha, ver onde estavam distribuídas as ocupações do Estado de São Paulo. Começou muito quantitativo de fazer mapa e olhar isso. Eu vinha de um trabalho assim, na Fundação SEADE, da taxa de desemprego.
P - O que é Fundação SEADE?
R - É uma Fundação do Estado de São Paulo que faz a pesquisa de emprego e desemprego, junto com o DIEESE e faz uma série de pesquisas. Eu fazia de emprego e de desemprego. E aí comecei a colocar esses dados no mapa, ver como estavam espalhados os desempregados pelos Municípios e região Metropolitana e entrei na FAU com esse projeto. E estudando na FAU eu participei de um seminário, eu fui apresentar o meu trabalho em Coimbra, cheio de sociólogos e eu não sei por que comecei a achar que esse projeto era pouco demais, que só os dadinhos e os mapinhas explicando as trajetórias pelo mapa não estava legal. Então uma das professoras falou: “Por que você não faz uma etnografia, pega um campo” isso no meio do doutorado e eu com dois filhos pequenos, com João de um ano, falei: “Tá bom”, mas como fazer um campo na favela longe daqui, na favela do Heliópolis, era difícil com esquema de criança, trabalho e comecei a fazer um projeto piloto na favelinha da Light, porque era perto de casa, eu deixava as crianças na escola e eu ia fazer etnografia. Eu não sabia fazer etnografia e comecei a estudar, a ler, fazer uns grupos de estudo e aí peguei o meu caderno de anotação e sentava todo dia na favela, conversava com as pessoas, comecei a anotar tudo que poderia dar em um estudo e aí como dizem alguns amigos meus eu fui capturada pela favela. Era só para virar um laboratório, para eu aprender a fazer uma etnografia em vários lugares que era o meu plano no doutorado. Cara, eu fui completamente dominada pela favela porque eu fazia a pesquisa e seis meses depois eles receberam um comunicado que deveriam sair, então aquela movimentação e eu era amiga deles e comecei a fazer a história da favela. A história da favela, como eles estavam indo embora eu comecei a fazer a história de vida deles e foi um projeto muito bacana. Eu mudei um título, mudou tudo na tese e eu passei a acompanhar a trajetória de vida de pessoas de imigrantes que chegam em São Paulo na década de 70, com a formação da favela, como foi a saída, como se organizavam e eu fiquei completamente fascinada pelo por esse outro jeito de ver o mundo, como se eu tivesse um instrumento para ver o mundo e com a história de vida ela mudou e é viciante, é horrível. Agora eu trabalho em outro projeto, mas assim, e a história das pessoas e tem coisa que um dadinho só economista, mulher branca, cara, tem caminhos nesse curso de rio mais interessantes de como se chega, como sai, diz como você lida com a história e aí foi maravilhoso. Foi um momento muito importante para mim, porque, é, eu tinha escolhido esse objeto de trabalho, mas esse objeto se destruiu porque a favela foi embora, então eu fiquei uns meses que eu não fazia nada, eu estava fazendo a pesquisa, mas as pessoas se dispersaram e não tinha como pesquisar mais. E eu, não, e ao mesmo tempo eu estava separando do Fernando, apaixonada por outro cara, comprando a casa e nossa um momento caótico, um caos geral. Caos de método, de tema, tudo mudado e seis meses se passaram que eu fiquei nesse tumulto e eu voltei, resgatei algumas pessoas e foi muito interessante, assim, como eu chegava nas pessoas para saber a história de vida. Eu queria saber a história da favela, ih, a gente começava a falar da história da favela, mas tinha tantas outras histórias, mudou tanto a minha concepção de história de o que pode intervir, num estudo, numa tese, em uma política pública que seja, eu tinha tanto uma visão de que ordenando, urbanizando resolveria o problema deles e abrindo a história de vida, tem um buraco muito mais embaixo. Eu lembro de uma das minhas entrevistadas que eu fiquei procurando e eu desisti e encontrei um cara, foi muita sorte. E eu não sabia por onde procurar esses caras, eu ligava no celular e ninguém respondia porque tinham se mudado e aí eu sentei um dia em um boteco do lado da favela e eu falei: “Vocês conhecem alguém?” e o cara do boteco “Graças a Deus que foram todos embora e eu não sei mais de ninguém” (risos). Eu tinha vontade de chorar e passou um deles, uns que eram dos meus entrevistados na época e eu comecei a conversar mais longamente e ele foi me conectando com outras pessoas e tinha uma mulher que era imprescindível para o meu trabalho, a tia Madalena, porque ela tinha fundado a favela e eu queria a tia Madalena de qualquer jeito. Eu queria entrevistá-la, porque a tia Madalena dava muitos furos, até que um dia eu bati na porta da casa dela e falei: “Olha, Madalena, hoje você vai falar comigo” e puta, a mulher começou a falar a história dela porque ela não estava falando comigo. Ela estava se separando do marido que tinha 85 anos e, ih, ela 69, acho, porque ele molestava sexualmente o filho dela de cinco que era adotado porque a filha queria dar o menino para adoção e ela adotou como neto. E esse cara molestava e eu entrevistei o velhinho eu falei “não é possível, não é esse” e aí você vai descobrindo que tem muita história debaixo do tapete, sempre, a superfície é uma coisa e quando você abre essas caixinhas tem muitas outras e depois que eu fiquei três, quatro entrevistas falando do problema dela, aí ela voltou e contou a história da favela de como havia começado e tal, mas sabe, quando fica um assunto menos importante, assim. A favela tinha virado em um assunto menos relevante, se tornou uma tese mais de humilhação social, pelo que os caras passam de como a trajetória deles, eh, não planejada de como o improviso é muito importante e eles são mestres de improviso e o improviso é muito importante, um jogo de cintura, para as pessoas viverem e é uma coisa totalmente desvalorizada na vida deles, porque eles o tempo todo estão dando um jeito, seja na casa, na vida, nos relacionamentos, não, tudo é dando um jeito. E tem uma ciência do improviso, sabe, (risos) que eu acho que existe e é um ensinamento importante, né, que vive. E esses caras sobrevivem a coisas, a mortes de um jeito que eu não sobreviveria, acho, com a mesma tenacidade e aí eu comecei a escrever a tese com enfoque nessa história de vida deles e um pouco com essa história do improviso, o que era habitado aqui, essa passagem deles pelos lugares como é a nossa e daí eu retomo os filósofos como Heidegger que fala que habitar é, que a gente habita como uma passagem que a gente habita a terra como uma passagem, e aí esses caras tem uma filosofia tão sofisticada introjetada no modo de vida deles. Eles não estão aqui para serem nada. Eu fiquei nesse tema e nessa pesquisa. A minha orientadora quase enlouqueceu comigo e eu também quase enlouqueci também e terminei a tese agora em novembro do ano passado e defendi. Foi uma defesa muito difícil porque as pessoas me esperavam de um jeito e eu tinha virado outra com esse processo, não só com a tese, mas com o jeito de mudar a tese, mais separar, sabe, e mudou tudo de novo. E é engraçado as conexões que a gente faz porque eu escolhi aqui por ser mais pertinho, entendeu e aí sai e eu vou atrás, então as coisas às vezes são colocadas, né, de um jeito improvisada, a gente nunca planeja. A gente planeja algumas coisas, mas o resto que vai costurando a vida e é o mais importante.
P - Muito legal a sua experiência. E marcou bastante você?
R - Marcou muito, mas eu vim aqui pensando nisso porque fazer o próprio relato é, hoje em dia tudo o que eu leio, assim, tudo que eu interpreto tem sempre esse outro lado. A interpretação que a gente faz dos acontecimentos da vida da gente é mais importante o que de fato é, o que a gente fala sobre isso ou a possibilidade de cura que tem a gente falar sobre a vida para esses caras que eu estudei me parece mais efetivo escutar falar por algum tempo. Era impressionante, assim, eu transcrevia e eles falavam que não era possível porque eles não queriam falar a princípio, né, não tem nada para falar, mas então eu começava de qualquer jeito, aquela coisa difícil de falar. Fiz muito trabalho com as fotos, eles mostravam as fotos e falavam de onde nasceram, as história de infância, um pouco do que estamos fazendo aqui. E quando eu devolvia a transcrição, os caras falavam que não era possível, 13 páginas, eles falavam: “Não é possível” às vezes eu tinha que ler para eles a história porque eles não eram alfabetizados, mas o fato de ver escrito e registrado é mais importante que ver a casa, eu não vou dizer mais, mas tem uma ação aí que é deixar eles falarem porque são poucos ouvidos e tinham uma reclamação constante pra mim que eles saíram da Vila Madalena porque eles eram tidos como um câncer dos milionários daqui, então tinha um momento que eles se achavam integrados como algo meio pitoresco do pedaço na Vila Madalena, e quando começaram a negociação teve um jogo pesado da incorporadora e teve essa boataria, esse comentário de que na Prefeitura tinha um monte de abaixo assinado por causa do barulho que eles faziam, porque a música deles era alta, então era a hora que eles se começavam a ver como estranhos. A música deles não servia, o jeito deles não servia direito e juntava com os trabalhos que eram de domésticas e os homens faziam os reparos nas casas, então era uma inserção na Vila que era muito insubordinada e é, uma classe social inferior. E eles começavam a se dar conta disso, durante a saída deles, durante as nossas entrevistas eles se deram conta de que não participavam da vida da Vila Madalena e que tinha muita gente que não queriam eles lá, e realmente eu comecei a ver a importância da fala como um processo de cura e de reparação e de gente que nunca teve contado de como conheceu a mulher e de como eles são apegados aos objetos. Eles carregam tudo porque está ali, como ela não está registrada, né, não tem muita fotografia dos ancestrais na parede, não tem os ancestrais importantes e as coisas carregam. O armário que é da mulher o deixou, sei lá, um bibelô é muito carregado de sentido, eu acho que falta outras coisas, eu acho, eu conheço as justificativas, não sei se é bem por isso, mas tem essa coisa de carregar na mala a história. E a hora que ela se dissolve em palavras, eh, é muito bonito para eles, assim foi um momento para mim maravilhoso, mudei completamente, hoje ainda eu faço os dadinhos (risos), mas eu não dou nem bola, acho que não é importante.
P - Você tem contato com essas pessoas, tem um trabalho de continuidade?
R - Mantive com algumas, muito poucas aquelas que ficaram por aqui porque alguns foram para longe e tem umas quatro famílias por aqui nos arredores, na favela do Mangue, nos cortiços da Rua Fradique e com esses eu mantenho contato.
P - E o seu trabalho?
R - Parou dois anos depois, em 2005 na remoção e eu fiz as entrevistas em até 2007. E assim, eu parei de fazer a entrevista, né. Eu dei o retorno da tese, tal, e teve um documentário filmado lá, dois anos antes da remoção e na época da remoção eu encontrei a documentarista e falei para filmar a remoção e ela filmou a saída e a gente acompanhou as pessoas mudando de casa e é tenebroso. As filmagens da remoção da favela são horríveis, porque as pessoas ficam morando no meio dos escombros e nesse momento é horrível, é uma destruição visível, não é que sai e destrói, mas fica destruindo junto com a moradia e procurando casa, é bem chocante, o documentário tem essa imagem dos escombros. É perigoso porque fica em um monte de casa destruída, sem estrutura e eles morando lá no alto porque não acharam outro lugar para morar.
P - E a partir desse momento, qual foi a sua trajetória, depois dessa experiência que marcou?
R - Eu tive que ficar uns quatro meses respirando e aí, voltei para fazer o trabalho na ONG que eu já trabalhava com uma pesquisa de saúde e tá difícil porque para voltar fazer aquilo que eu fazia antes, mas parece que você gira e o mundo ficou parado. Ficou um pouco difícil essa experiência de trabalho, as pessoas são muito bacanas, o trabalho é bacana que é sempre organizar a ONG e agora estou organizando para trabalhar com esporte, agora é assim, é trabalhar na Ermelino Matarazzo, eu continuo a fazer a pesquisa, mas às vezes eu vejo algumas pessoas, esse trabalho de questionários para mil e quinhentas pessoas, você sentar e conversar duas horas. Tem umas pessoas que tem uma história mais rica e enriquece também porque tem muita imaginação da pessoa, né? Essa história de contar a história de vida tem um episódio, eu falei: “Vai Luis Henrique contar, hoje” que eu encontrei com ele. E ele me disse que não acha que tem história de vida para contar, mas o que a gente não tem, nós imaginamos, porque imaginar faz parte da história. Óbvio que assim a leitura que eu faço aqui, vem o meu primo e vai falar do meu avô e da minha avó é outra. Não sei a tinta que escolhe, o colorido que põem, se é cinza e é isso ai. Até tem uma história coletiva feita pelos documentos, mas essas das pessoas me parece mais interessante, agora, depois que eu descobri que é enriquecedora, cada gente que eu conheci, cada um com uma história completamente distintas e tem essa fala um pouco, deles sobre a linguagem e como é difícil transformar a experiência em linguagem porque não está acostumado a fazer e muito a gente que faz análise que conversa, enfim, reunião, a gente está acostumada com a comunicação e tem dificuldade de chegar em uma coisa mais pura. Por um lado essas pessoas que não falam sobre a sua própria vida é mais pura porque quando a história vem ela não está lapidada. O que é difícil também porque tem umas pessoas que você fica com medo, pois “puta, ele me contou tudo isso e agora o que você faz”? Às vezes eu parava na livraria da Vila para tomar um café e um dia eu encontrei uma amiga, a Ana, e ela falou: “O que está acontecendo”? E eu preciso de um tempo para decantar a história porque ela me pega de um jeito muito forte assim, tem uma histórias fortes e eles contando, né, o que eu deixei na casa. Tem muitos que eu terminava a entrevista e perguntava como foi contar a sua história de vida, meu foi a primeira vez que eu fiz isso e foi muito pesada de lidar, separações, mortes e enfim essas linhas que a gente nem para pra contar e quando conta é para visita.
P - E desse trabalho tem alguma coisa que você queira adicionar?
R - Agora eu vou fazer um documentário com uma amiga desse trabalho paralelo, tem umas mulheres que dançam no SESC Vila Mariana, são cinco senhoras de uns 60 a 70 anos e a gente vai fazer um documentário com elas porque elas dançam sozinhas. Elas abdicaram, não é um bairro igual ao Baile da Saudade. Elas vão e dançam em tudo que é lugar. Elas se arrumam, são todas empetecadas e cada um tem um modelinho, então começou com uma brincadeira com a Chiara que conta história no SESC da Vila Mariana, e toda vez que ela conta uma história, ela é contadora de história, essas velhinhas estavam lá. A gente ficava olhando e brincávamos: “O que você vai ser Ana” porque elas fazem tipos, uma é mais bailarina, tem umas tranças, a outra é tipo gostosona e assim a gente ficou brincando do que a gente ia ser, o que será que elas fazem, sabe, ficava inventando história para elas, e aí a gente pensou quer saber, vamos filmar elas. Vai ser um vídeo caseiro, vamos pegar uma câmera emprestada e levantar um pouco das histórias delas, dos amores, porque dessa história da favela os amores e afetos são os mais estruturantes da vida porque o resto, assim, “Que ano você trabalhou?” “Ah, eu estava casado” sempre tem uma coisa do afeto é o que lembra a história, depois você lembra do resto, mas sempre é uma presença de um sentimento naquele momento, ih, como eu não estou com nenhum projeto cientifico, nós vamos só falar de amor para elas, o que vai ser ótimo para nós porque nós vivemos conversando de relação com mulher, homem, tal, mas agora a gente vai falar no documentário.
P - Então você se maravilhou com essa coisa de história e você vai seguir fazendo trabalhos assim?
R - É, agora menos acadêmicos porque a Academia eu não gosto muito. Quando eu estava defendendo na FAU é visto como, eh, na minha, por exemplo, teve muito questionamento se eu não estava me projetando na história, “Será que você não puxa que os relacionamentos interferem muito, não é você?” e até é numa entrevista se eu estiver lá de verdade, né, é claro que interfere o que eu penso o que eu sinto, a expressão que eu faço, são duas pessoas conversando, né? E é um pouco dessa coisa do objeto e do sujeito sabe, teve um questionamento e é muito difícil quando você conta uma história de vida, tendo alguém para escutar ou até não tendo porque você imaginando para quem você está conversando, é lógico que tem uma mistura, para essa eu conto assim, para aquela eu conto, é uma ciência e essa ciência que se acha tão isenta é muita bobagem e a Academia está marcada por ela. Até tenho um projeto de fazer um pós doc., mas agora a ideia é de fazer um pouco isso. Eu até brinquei com a minha analista, essa história de querer fazer história é meio viciante porque você quer saber o tempo inteiro o que faz a pesquisa no campo de achar pessoas que podem contar história, aí vira e mexe eu estou em algum lugar escuto no ônibus e penso: “Essa mulher ia contar uma boa história” (risos), sabe com tipo de um gravador, assim, (risos), mas é viciante e é gostoso é agradável. Eu só não tinha passado pela experiência contrária que foi bem bacana também, porque o que você vai falar e como você vai falar tem um improviso, porque o que eu racionalizo aqui, tem o seu roteiro, mas vai por um fio que a gente não espera e isso é o bacana. A surpresa desse encontro e não o daqui a três dias ou três meses eu posso contar outra história, sobre isso.
P - E resgatar outras coisas, Que bom que você gostou nós vamos encerrar, mas não sei se tem algo que você queira adicionar ao seu depoimento, alguma historia que você queira contar de última hora.
R - Não.Recolher