Perdido na Vila
Eu me lembro que com três dias aqui na cidade eu fui atrás de um bar que o pessoal disse que esse bar é o que tem reggae, era um bom bar, um bar legal mesmo... chamado Duban dos Palmares, do Vinícius, falecido Vinícius que Deus o tenha. E eu saí, sem conhecer, três dias na ci...Continuar leitura
Perdido na Vila
Eu me lembro que com três dias aqui na cidade eu fui atrás de um bar que o pessoal disse que esse bar é o que tem reggae, era um bom bar, um bar legal mesmo... chamado Duban dos Palmares, do Vinícius, falecido Vinícius que Deus o tenha. E eu saí, sem conhecer, três dias na cidade, a Vila tem ruas muito parecidas... e lá vai eu, procurando o bar que só sabia que o nome do bar era Duban dos Palmares, mas eu só me lembrava de Palmares. E saí perguntando, subi e desci e tal... eu estava morando na rua Arapiraca. E fui ao bar, fiquei, o bar maravilhoso, fui ficando, fiquei vendo e tal... aí deu três horas da manhã, eu querendo voltar pra casa, fui pedir informação lá: pô, eu tô na rua Arapiraca... a menina falou: "só desce aqui e sobe ali que tu tá na Arapiraca, é pertinho". Aí lá vai eu descendo daqui, subindo dali, descendo daqui, subindo dali, e caminhei pra mais de duas horas sem encontrar a rua que eu morava, rapaz, eu me perdi... e já sabendo que São Paulo violento Aí vinha um cara numa kombi, o cara ía passando eu perguntei: dá uma informação O cara "não tenho informação nenhuma pra dar, não". O cara foi embora e eu disse: agora eu tô f... vou ter que esperar o dia clarear. Aí veio uma kombi entregando o jornal, então assim, pela minha aparência, os dreads, negão, tal, assusta um pouco algumas pessoas, né? Aí eu cheguei bem devagar, assim: oi, moço, tudo bem? Eu sou da Bahia, o senhor tá tudo bem? Ele falou: "tudo bem, meu velho, qual é o problema? Eu também sou baiano". Eu disse: velho, é que eu fui num bar e faz três dias que eu estou na cidade, eu estou perdido. Ele falou: "tu vai pra onde?". Pra rua Arapiraca número 13. Eu estava cansado, bêbado... Ele falou: "ô cara, que bom, eu entrego jornal na sua casa, entra aí". Aí me botou dentro da kombi, eu tive que passar a noite toda entregando jornal com ele até chegar na minha casa, que foi o último jornal que ele veio entregar. Isso é Vila, né?
O painel do Acaraxé
A idéia de fazer o painel surgiu num domingo no Acaraxé, estava lá tomando uma cervejinha, conversando com o proprietário da casa que também é baiano e a gente estava olhando pra rua que tinha uns... não é o grafite, era o piche. Era pichação, num muro do lado do bar. E a gente conversando que o grafite é uma coisa legal, tem uma informação, tem um desenho. Mas essa pichação não diz nada, é uma espécie de rebelde sem causa. Aí ele falou pra mim: "vamos fazer um negócio aqui pra Vila Madalena, vamos fazer a Bahia aí de ponta a ponta". Aí eu falei: vamos, eu dou o trabalho e você dá a tinta. Ele falou: "é, eu dou a tinta e a gente pede autorização". Aí eu comecei a fazer e foi engraçado que as pessoas gostam bastante do trabalho. É um presente pra Vila Madalena e pra São Paulo, porque vão surgir mais. O Flavinho, aqui da Vila Madalena, um das antigas, nativo do bairro, gostou tantodo trabalho que me convidou pra fazer mais três muros nas oficinas dele, uma que fica na Fidalga, outra que fica na Aspicuelta e outra descendo a Girassol. E eu vou fazer então... outros presentes como esse, a Vila e São Paulo vão ter.
No Brancaleone
O pessoal lá do Brancaleone tem uma segunda-feira que cultural, que chama Segunda Blackleone e eu, negão, rasta, um estilo black... lá toca black music com o DJ Um, eles me convidaram, perguntaram se eu queria pintar nas segunda-feiras à noite lá, pintaria ao vivo. E eu topei a parada e já fazem nove meses que eu estou lá toda segunda-feira eu vou lá e pinto enquanto o pessoal dança e o DJ coordenando os squashes e eu nos pincéis. O destino da produção de lá é o pessoal que está lá que me compra, às vezes, o dono da casa, quando ele gosta do quadro, algum amigo, quando ele está do lado assim que o cara gosta demais do trabalho e eu estou de bom humor, acabo dando pra ele... O destino, só Deus sabe o destino de cada filho. São como filhos
De descarregador de caminhão a artista plástico (Histórias da Bahia)
Morreu minha mãe... minha mãe é portuguesa, casada com um holandês, aí ela conheceu um motorista de taxi que passou a ser o funcionário da casa. E esse funcionário da casa era baiano, filho de angolano que nasceu na Bahia. E aí, viu o que se deu, eu nasci. Família conservadora, me colocaram no orfanato e expulsaram meu pai do trabalho, meses depois minha mãe faleceu e meu pai, sumiu ou morreu, não sei. Colocaram-me no orfanato e eu fiquei por ali mesmo. Eu saí fora do orfanato quando eu tinha nove anos. Encontrei um lugar chamado CEASA, que tinha frutas, verduras, fiquei por lá mesmo. Fui aprendendo com os caras a técnica de levantar o peso do descarrego do caminhão e aí, com 13 anos de idade, tinha um caminhoneiro que vinha da CEASA de Pernambuco pra São Paulo, e eu sempre vinha meus amigos que vinham pra cá comprar, voltavam lá pro Nordeste com um som, uma televisão. Aí eu falava: pô, eu vou lá em São Paulo buscar uma televisão pra mim também. Aí o caminhão quebrou na Bahia. Eu nunca tinha visto tanto negro junto na minha vida. O caminhão quebrou em Feira de Santana, eu cheguei em Salvador de outra carona. O caminhoneiro veio pra São Paulo, e eu fiquei lá em Feira de Santana mesmo porque ele falou que nunca tinha quebrado o caminhão, a primeira vez que ele deu uma carona o caminhão quebrou, ele ia me largar lá na Bahia mesmo. Eu fui ficando, fui ficando, mas continuei a mesma coisa que era em Pernambuco: pobre, órfão, negro, sem ter pra onde ir, sem dinheiro, semi-analfabeto. Tentei a CEASA da Bahia pra descarregar caminhão, mas os negões não deram chance. Viram-me magrinho, pequenininho, 13 anos, não deixaram. Aí eu fiquei mal. Dormia num albergue da noite. Tinha uma praia que eu sempre ia, um domingo eu comecei a chorar nessa praia, chorei, chorei, chorei, aí fui no no Pelourinho visitar o Olodum e estava acontecendo o festival de dança. Eu me apaixonei por uma dançarina. Era um grupo de Angola que estava se apresentando. E uma negra dançava, linda, mágica, aquela coisa linda dançando na minha frente e eu me encantei e fiquei uma semana com aquela mulher na minha cabeça sem saber o que fazer. E tinha um amigo meu que é pintor, fazia faixas e letreiros. Eu falei: Jorge, me empresta um pouco da tua tinta que eu tenho que pintar uma coisa. Ele falou que não podia, porque a tinta era do trabalho dele e eu não era pintor, depois ele falou: "tá, tudo bem, mas não gasta muito". Eu consegui um pedaço de pano de faixa e pintei um quadro. Um movimento, um traço preto, como uma mulher se movimentando. E ela tocava e dançava, eu fiz essas coisas assim, um tambor no meio... Ficou tão bonito que eu resolvi vender: eu vendo e faço outro. Aí eu levei pro Pelourinho pra vender, apresentei numa galeria chiquésima, os caras me expulsaram de lá. E daí eu saí, triste, né? Fui numa lojinha menos, sem segurança. O moço falou: "esse trabalho é legal, mas quem pode comprar esse tipo de trabalho é outro moço, o Palito, ele é escultor afro-brasileiro". Eu fui e o Palito gostou do trabalho, mas só que ele estava bêbado. Ele viu que a tinta não era de qualidade, meteu o dedo na cerveja e passou no quadro, tirou a tinta do quadro e eu fiquei muito arretado. Disse: você agora paga, destruiu o que é meu Olhe como é que eu estou aqui, dormindo na rua, passando fome, faço um negocinho pra vender e você destroi Ele disse: "calma, calma... Agora é o seguinte: eu podia lhe dar um dinheiro pra você comer, mas eu não vou dar, não. Podia deixar você dormir na minha casa, mas eu não vou deixar, não. Eu vou deixar você dormir sua última noite na rua pra você nunca mais esquecer que essa vai ser a última noite que você vai passar fome. Amanhã de manhã eu vou lhe arrumar umas tintas pra você pintar uns quadros pra mim e vou lhe comprar seus quadros". No dia seguinte, ele apareceu e ele tinha um ateliê lá no Pelourinho atrás da casa de Jorge Amado e falou que eu podia ficar: "você vai pintando uns quadros aí nesse estilo, mas bota mais movimento, olha pro seu corpo, dança e vai lá e pinta". E eu comecei a pintar e o Palito saía e me trancava dentro do ateliê porque ele não me conhecia direito, não me dava a chave... e eu ficava trancado, mas feliz Eu pintei em três meses 18 telas. E as negras voltaram, pra encerrar a turnê na Bahia. Essa negra tinha 15 anos e eu falei pro Palito que queria dar o quadro de presente pra negra, dar de presente, porque foi a partir dela que surgiu meu primeiro trabalho. Aí fui pra casa do Palito, tinha lavado minha roupinha, engomado... tomei um banho, quando saí do banheiro falei: Palito, minha roupa aí. Ele falou: "venha aqui" Aí eu fui no quarto dele, tinha uma bata amarela e preta, uma calça marrom, tipo assim uma pele de tigre, um sapato branco e um chapeuzinho que parecia uma coroa... e uns colares africanos... Ele falou: "veste minha melhor roupa, meu chapéu, meu colar e meu melhor sapato". Aí ele veio com o quadro numa moldura. Disse: "quando ela acabar de dançar você vai lá e dá o quadro. Até aqui eu lhe ajudei, mas daí pra frente o caminho é seu". Quando ela acabou de dançar eu entrei e os caminhos estavam abertos. Eu falei: "pra você".Recolher