Sou Aldo Moura da Silva e nasci em nove de setembro de 1951, no Seringal Caiçara em Feijó/Acre. Neste lugar, vivi com minha família, até meus 12 anos, ajudando meus pais na agricultura, no corte da seringa. Lá foi onde fui alfabetizado, aos nove anos. Acontece que, com decadência da borracha, não dava mais para viver do corte da seringa ou da agricultura e, desta forma, meu pai imigrou, em 1968, para Vila Feijó, hoje município de Feijó/Acre.
Na Vila Feijó, continuei meus estudos, estudando na cartilha até o segundo ano primário, como se dizia na época. Eu já era rapazinho, já “namoriscava” e trabalhava na Prefeitura como Gari. Neste período, meus pais permanecerem na zona rural trabalhando na agricultura. Ser Gari era um trabalho duro, mas gratificante porque eu ganhava meu dinheiro. Somente em 1970, eu vim para capital, Rio Branco, em busca de melhores condições de vida. Nesta época, falava-se muito da cidade grande, que tinha muito emprego e estudo. Eu tinha muita curiosidade de conhecer a cidade e, principalmente, os carros que não existiam no meu município.
Quando cheguei em Rio Branco, sem estudo e sem qualificação, fui trabalhar como servente de pedreiro nas construções civis, como o Edifício Luís Pedro, o prédio do Banco Itaú, o prédio da Embratel e na construção final da Ponte Coronel Sebastião Dantas. Isso aconteceu de 1970 a 1973 e, em 1973, consegui uma vaga para trabalhar de garçom em uma boate que ficava no Centro da Cidade.
Eu vivi “de bicos” até 1974, quando recebi o convite para trabalhar na Campanha de Erradicação da Malária – CEM, que depois virou Superintendência das Campanhas de Saúde Pública – SUCAM. Inicialmente, eu rejeitei o convite, porque meu irmão trabalhou lá, desde 1968, e passava muitos meses sem receber, com a família em dificuldades. Quando ele me convidou, eu disse que não iria morrer de fome junto com ele, mas, depois me deu um conselho que me convenceu. Disse que o...
Continuar leituraSou Aldo Moura da Silva e nasci em nove de setembro de 1951, no Seringal Caiçara em Feijó/Acre. Neste lugar, vivi com minha família, até meus 12 anos, ajudando meus pais na agricultura, no corte da seringa. Lá foi onde fui alfabetizado, aos nove anos. Acontece que, com decadência da borracha, não dava mais para viver do corte da seringa ou da agricultura e, desta forma, meu pai imigrou, em 1968, para Vila Feijó, hoje município de Feijó/Acre.
Na Vila Feijó, continuei meus estudos, estudando na cartilha até o segundo ano primário, como se dizia na época. Eu já era rapazinho, já “namoriscava” e trabalhava na Prefeitura como Gari. Neste período, meus pais permanecerem na zona rural trabalhando na agricultura. Ser Gari era um trabalho duro, mas gratificante porque eu ganhava meu dinheiro. Somente em 1970, eu vim para capital, Rio Branco, em busca de melhores condições de vida. Nesta época, falava-se muito da cidade grande, que tinha muito emprego e estudo. Eu tinha muita curiosidade de conhecer a cidade e, principalmente, os carros que não existiam no meu município.
Quando cheguei em Rio Branco, sem estudo e sem qualificação, fui trabalhar como servente de pedreiro nas construções civis, como o Edifício Luís Pedro, o prédio do Banco Itaú, o prédio da Embratel e na construção final da Ponte Coronel Sebastião Dantas. Isso aconteceu de 1970 a 1973 e, em 1973, consegui uma vaga para trabalhar de garçom em uma boate que ficava no Centro da Cidade.
Eu vivi “de bicos” até 1974, quando recebi o convite para trabalhar na Campanha de Erradicação da Malária – CEM, que depois virou Superintendência das Campanhas de Saúde Pública – SUCAM. Inicialmente, eu rejeitei o convite, porque meu irmão trabalhou lá, desde 1968, e passava muitos meses sem receber, com a família em dificuldades. Quando ele me convidou, eu disse que não iria morrer de fome junto com ele, mas, depois me deu um conselho que me convenceu. Disse que o trabalho na CEM ia ser no serviço público federal, que eu iria ter a oportunidade de me aposentar, que teria uma segurança para o futuro. Dizia que o serviço era difícil, mas futuramente poderia melhorar, me convenceu e me tornei um Guarda da Malária.
Aí eu fui chamado para fazer uma prova com perguntas sobre conhecimentos gerais. Os requisitos básicos eram: saber nadar, saber andar no mato, aguentar passar dois ou três dias com fome. Perguntaram se eu conhecia um seringal e se sabia conviver com os seringueiros e andar nos varadouros. De posse desse curriculum, eu passei no concurso e entrei na CEM, em seis de janeiro de 1974. Inicialmente, trabalhei como “serviço prestado” e, em janeiro de 1975, minha carteira de trabalho foi assinada.
Naquele tempo, quando se era contratado pela CEM, tinha que manusear o Dicloro-difenil-tricloroetano (DDT), mais precisamente o DDT G, que era 100% DDT. O produto vinha num tambor grande, em que se adicionava querosene e tinha que passar o dia no sol mexendo o DDT para misturar. Só assim que ele afinava e ficava no ponto pra colocar nas residências. Era um produto muito forte e a gente não aguentava muito tempo. Terminava a borrifação e inchava os lábios, dava tontura, porque se fazia tudo sem equipamento de proteção, só tínhamos capacete e a roupa cáqui.
O capacete de alumínio esquentava a cabeça, prendia a circulação do sangue e, por serem pesados, deixavam aquela marca. Aquilo só protegia mesmo o couro cabeludo, porque quando a gente borrifava caia muito no rosto. A gente entrava debaixo das residências para borrifar e tinha que tirar o capacete para caber debaixo das casas. Na parte da tarde, a pessoa estava toda branca e aquela farda parecia um couro, dura de DDT, até porque você não ia levar duas, três mudas de roupa devido ao peso que tinha que carregar, contando cargas de inseticida, bomba, sacola com roupas e panos de dormida, balde e tudo isso. Então, a gente passava 15 a 20 dias com uma farda só, às vezes, já toda molhada. Na época de chuva, molhava até nas botas sete léguas, que a gente comprava para se proteger dos espinhos no meio do mundo. De início, a bota não era doada, era doada somente o tecido de cáqui e a gente mandava fazer a roupa. O sapato era comprado, mas, de 1985 pra cá, a gente fez uma pressão muito grande. É preciso saber que estava no regime da Ditadura e a gente só começou a cobrar e ganhar força quando a Ditadura estava acabando.
No entanto, ainda na Ditadura, a gente começou a achar que tinha direito a ganhar o uniforme, porque quando se servia ao exército o uniforme era doado. Lá, também era um quartel e nós éramos chamados de guardas. A SUCAM funcionava num regime de quartel, tanto é que, até hoje, a gente ainda chama o colega de cabo. Além desse, tinha o guarda chefe, o inspetor de campo, o inspetor geral e o técnico de campo. Tinha aquele quadro típico de quartel, cheio de hierarquia. No dia sete de setembro a gente também fazia aquela apresentação, saia marchando pelo meio da rua, exibindo nosso equipamento que era a bomba e o balde. Ali, o regime era duro e um dia fui advertido só porque eu cheguei sem uniforme na instituição. Aquela reclamação era repassada para o inspetor de campo, para o inspetor geral e chegava até o coordenador, pedindo uma suspensão de tantos dias, por exemplo, com desconto do salário ou de diária. Então, era um regime muito duro e a gente era obrigado a trabalhar de domingo a domingo, sadio ou doente.
Em 1975, a SUCAM assumiu o controle de endemias. A gente tinha medo de ser mandado embora porque era trabalhador recente da CEM e os contratos antes eram sempre por um ano. O que nos dava certa segurança é que ninguém queria entrar lá naquela época, porque o trabalho era difícil, demorava a receber o salário de Cr$ 228.000 (duzentos e vinte e oito mil cruzeiros). Para você ter ideia, quando eu entrei, éramos 65 e só restaram três, contando comigo, porque todos os outros desistiram. Passávamos muito tempo andando a pé e não existiam as rodovias para transportar material. Naquela época, todo o peso era carregado nas costas da gente e dos animais e os trajetos eram na maioria por via fluvial e a pé. Passávamos de três a quatro meses viajando e, quando chegávamos, as namoradas tinham até arrumado outro. Eu passei muito tempo solteiro por isso (risos).
Eu não fiz nenhum curso, aprendi tudo na prática. É como se diz no Acre: aprendi “na tora!”. Naquela época, a gente era destacado para longas distâncias e, como eu era conhecedor da floresta e acostumado a passar fome cortando seringa, fui destacado para trabalhar na fronteira do Brasil com a Bolívia, no Rio Abunã. Nessa época, na fronteira, todos os seringais e colocações eram infestados por malária. A gente chegava na colocação e não tinha quem desse água para o outro, todos estavam muito doentes. Era uma grade tristeza. Assim que éramos contratados, já nos mandavam para a floresta, acompanhado de um guarda chefe para que ensinasse as técnicas de borrifação na prática. O tratamento oferecido para as pessoas doentes durante a vigência da CEM e SUCAM era feito com “Camuquim” e “Daraprim”, “Cloroquina”, “Modiaquina”, “Primaquina” e “Quinino”.
Em 1976, mais ou menos, eu comecei a pesar o DDT em pó. A gente passava um mês pesando DDT, que passou a vir a granel, num saco com aquelas mãos que simbolizavam o acordo com os Estados Unidos (“Aliança para o Progresso”). O DDT a granel vinha da Indonésia e da Malásia e a pesagem era sempre em local fechado, porque ele flutuava muito. Quando era na parte da tarde, você olhava o seu nariz, ouvidos e os lábios e estava tudo branco de pó. A gente cuspia, raspava a língua e cuspia aquela “prastada” de massa branca. Você suava e saía aquele cheiro de inseticida. O máximo que fazia era enrolar um pano no nariz e na boca, mas era muito quente e nem todo mundo tinha essa iniciativa.
O DDT era perigoso até para quem fazia serviço interno, isso porque os folhetinhos de área eram guardados junto com a sacola que continham o veneno para uso. Quando chegava na estatística, que os profissionais de lá iam folhear aqueles papéis, era costume passar o dedo na língua e no papel branco de veneno. Eu acredito que aquelas mulheres da estatística também se contaminavam, inclusive uma que trabalhava nessa área está com câncer e já é aposentada agora.
Muitas vezes não se tinha tempo suficiente para pesar tudo o que se precisava, porque a gente trabalhava por ciclo de seis em seis meses. Então, a gente ia daqui para Xapuri/Acre e, às vezes, ia até pesando na proa da canoa. Certamente aquele vento ia carregando produto para dentro do rio, porque só em colocar o pó dentro do saco já levantava aquele fumaceiro. Só de carregar, às vezes, caía dentro do rio. A gente lavava o barco semanalmente, porque aquele pó apodrecia dentro do barco e era muito fedido. Todos os resíduos da limpeza dos barcos eram jogados na água e as bombas também eram lavadas onde tivesse água. Não tinha nenhuma instrução sobre como se deveria proceder.
Os barcos eram muito pequenos e iam sempre carregados. Aconteciam muitas alagações e, se a gente perdesse um material, tinha que pagar, mesmo que fosse uma bomba ou um motor. Teve uma ocasião em que a gente se viu numa alagação no Riozinho do Rola, o barco virou às cinco da tarde. Naquela situação, foi o jeito passar a noite todinha agarrado nos galhos das oranas, sem saber onde estavam os outros. A noite estava escura e chovia muito. O Rio estava alagado e ninguém sabia para onde foi o barco, o motor, nada. Escapamos a noite todinha, gritando um pelo outro e foi a noite mais comprida que já vi na minha vida. Ainda deu uma punição tão grande para o chefe de turma e, mesmo tendo encontrado alguns equipamentos no balseiro, muita coisa se perdeu.
Então, nessa situação, eu trabalhei como “Guarda de OI” (Aplicador de inseticida) por dez anos consecutivos, de 1974 a 1984. Como me sentia muito mal, pedi para trabalhar como Guarda de EP (Guarda da Epidemiologia). Como "Guarda de OI", além da aplicação do inseticida, fazia a coleta de lâminas e entregava medicamentos. Rascunhávamos também os mapas das localidades, que eram entregues para o setor de cartografia, que melhorava o trabalho feito. Tinha um técnico, da parte administrativa, que trabalhava melhor esses mapas e ajudava a planejar a distribuição das equipes no espaço. Como "Guarda de OI", eu questionava muito o uso do DDT e me tornei o revoltado da instituição, porque não aceitava as imposições que eram colocadas. Era tudo muito rígido.
O trabalho de “Guarda EP” era contínuo, não era por campanhas, não envolvia borrifação. Envolvia coletar lâminas, fazer medicações e notificações. Era um trabalho em que você andava limpinho e não carregava peso e eu lutei muito para conseguir esse posto e me manter. Fiquei só um ano e eles nunca me deixavam na cidade, me colocavam sempre na mata, assim eu não influenciava os outros, ficava sempre na mata.
Eu casei, em 1975, com Maria Miranda da Silva. Naquela época estava no Baixo Acre e saí no meio da atividade de campo para casar, mas no outro dia já tive que me reapresentar. Tive que fazer isso porque, se fizesse diferente, seria considerado abandono de emprego. Dormi um dia com a mulher e passei um mês e quinze dias fora de casa. Quando a primeira filha nasceu, eu estava na BR 364, no Km 120, num varadouro. Passaram uma mensagem que a minha esposa tinha ido para maternidade ganhar neném e pediram minha presença com urgência. Quando eu cheguei em casa, a menina já estava quase andando (risos).
Com esses trabalhadores da SUCAM, houve sempre um desagregamento familiar muito grande, porque a gente viajava e não deixava um quilo de farinha para família. O dinheiro que a gente recebia era muito pouco e passava de três, quatro, até cinco meses para receber. As mulheres não aguentava a fome e desertavam, né. Eu deixei, muitas vezes, minha esposa e filhos na casa dos pais dela, que sustentavam minha família até eu receber e voltar. Os filhos ficavam chorando, com medo da gente não retornar, porque tinha muita chuva, correnteza de rio, jacaré, cobra venenosa, onça e até bando de queixada. Muitas vezes, eu me perdi na mata e tinha que dormir à noite, atrepado em galho de pau, correndo risco de ser comido por uma fera.
Naquele porto, no Bairro Base, tinha dia que você terminava de carregar o barco e, às cinco horas da tarde, você tinha que sair do barco e dormir por ali. Não te permitiam dormir em casa, mesmo que você morasse perto. Engraçado é que eu morava na Cidade Nova, dormia na lancha porque não podia dormir em casa para não cortarem meu ponto. Se adoecesse uma pessoa em casa, naquela época não tinham os meios de comunicação que a gente tem hoje. A rádio que tinha era a Difusora Acreana, mas as condições não davam pra comprar rádio e, quando os seringueiros tinham rádio, os familiares passavam mensagem e avisavam pra gente.
Em 1985, eu fui trabalhar na Entomologia, um setor que cuidava das pesquisas, que via o comportamento dos mosquitos, fazia capturas e identificação de mosquitos. Os cursos que os “Guardas de OI” faziam eram para readestramento, onde iam ensinar as técnicas de borrifação, no final de cada campanha ou ciclo. O curso era realizado de forma prática, num painel bem grande que se pintava. Como “Guarda de EP”, e na Entomologia, eu aprendia também direto na prática. A captura de mosquito era com você sendo a isca. Você levantava a perna da calça e, quando o mosquito sentava na tua perna, você sugava ele com sua boca, por uma mangueirinha. A mangueirinha tinha uma tela antes de chegar na boca. Mas, no serviço de captura, a gente pegava malária, de forma que, quando eu peguei a décima malária, eu parei de contar. O serviço de captura ocorria sempre que os índices de malária eram altos em algum lugar.
Em 1986, eu passei também pela Viscerotomia, um setor que tinha dentro da SUCAM e cuidava do controle da febre amarela. Quando morria alguém com febre altíssima e repentina, a gente usava um aparelho que furava e coletava uma parte do fígado da pessoa, como se fosse uma biópsia num morto. O material era mandado para o Laboratório Carlos Chagas. O equipamento era tipo uma espada e, quando eu furava um morto, passava de semana sem comer direito. Era muito difícil e eu aguentei só seis meses naquele lugar.
Em 1980, teve um momento em que você poderia optar por outras atividades dentro da instituição e eu fiz opção para motorista oficial. Como eu era chamado de revoltado, eles engavetaram meu processo e me deixaram nestas atividades, bolando de um lugar para o outro. Em 1986, veio, novamente, a pergunta de Brasília se alguém queria fazer a reopção de função e, como o Chefe de Operação de Campo não queria que eu fosse beneficiado, por uma questão pessoal contra mim, ele disse que eu já tinha feito antes e tinha sido reprovado. Uma moça do Recursos Humanos viu como eu fui tratado e me deu a ficha que ele me negou. Nessa época, ela mandou pra Brasília e de lá mandaram um telex pra SUCAM dizendo que o servidor já tinha a opção aprovada em segundo lugar no Brasil, desde 1980. Eles mandaram também que me pagassem todo o retroativo, já que como motorista eu ganharia mais.
Eu passei, então, a ser motorista no papel, mas continuei trabalhando como guarda e tive que voltar pra bomba ou conduzir barco, nunca o carro. Em 1986, eu fui ao Ministério do Trabalho e me deram uma carta para apresentar ao Chefe de Operação de Campo, se ameaçassem me demitir. Um dia, eles me mandaram para campo, para fazer borrifação e eu disse que não ia. Naquela época, eles dariam a suspensão de uns 20 dias, com ponto descontado no salário. Eu fui, então, para uma reunião depois com o Chefe de Operação de Campo, todos os Inspetores e o Guarda Chefe. O Chefe de Operação de Campo me questionou se não ia para o campo e eu respondi que iria, mas só na minha função de motorista, que não iria borrifar. Disseram que eu era bom de língua para falar malcriações, mas que eles eram bons de caneta para me dar suspenção. Foi nesse momento que eu puxei aquela Carta do Ministério do Trabalho, uma carta que eu nem sabia o que estava escrito, porque era lacrada. Quando leram, eles começaram a recuar, disseram que era brincadeira. Nesse dia, eu não sei como não perdi meu emprego, porque perdi a paciência e fui pra cima deles.
A parti de 1986, eu passei a exercer a função de motorista de veículo e minha vida melhorou muito. Eu conduzia o inseticida, mas na carroceria do caminhão. O contato não era mais direto. Antes, eu sentia tontura, ânsia de vomito, tremedeira e dor no estômago. Nessa época, nem se ouvia falar em exames periódicos. Até hoje, exerço essa função de Motorista. Quando teve a mudança de SUCAM para Funasa, eu não fui afetado, continuei como motorista.
Em 1999, quando teve a descentralização dos serviços de Endemias, a SUCAM se extinguiu e ficamos cedidos para Estado e municípios. A partir deste período, eu fiquei cedido para a Secretaria de Saúde do Município de Rio Branco. Eu estou até hoje, como substituto do Chefe de Transporte da Secretaria Municipal de Saúde em Rio Branco. É uma função complicada, porque tem que trabalhar com muita gente que já é do quadro do município, com algumas pessoas que não têm amor pelo que fazem, que não cumprem com as responsabilidades e muitas nem são do quadro de servidores.
Às vezes, eu penso que já contribuí muito, que tenho pouco tempo para conseguir me aposentar, mas sempre penso que seria melhor aproveitado em ações de combate às endemias. Com as experiências que eu tenho eu acho que daria uma contribuição grande na coordenação de qualquer setor do combate à dengue ou malária, dessas doenças transmitidas por insetos. Eu converso muito com minha esposa sobre a evolução das tecnologias, digo que se desenvolveu muito material e muitos aparelhos que facilitam o combate às endemias. Mas o que falta hoje é a responsabilidade das pessoas que são agentes de saúde. Nossa missão era combater as endemias e encontrar mecanismos para reduzir a malária e não deixar que o mosquito Aedes Aegypti ganhasse força e causasse os danos que causa hoje.
Os agentes de hoje estão mais preocupados com a tecnologia, se tem ou não GPS e moto, mas as ações de combate são simples. Tem a questão dos baixos salários, mas nós também passamos por baixos salários. A questão política também prejudica muito. A área está cheia de apadrinhamentos políticos. Na SUCAM, não tinha vinculação de política ou partido, não tinha intervenção política, troca de chefes. O interesse era combater e não aparecer em cima das doenças. A gente precisa repensar isso, encontrar meios pra combater não só a malária, mas agora a dengue, zica e chickungunha.
Quando a gente trabalhava no combate a endemias, tínhamos o interesse em erradicar, queríamos fazer parte disso, queríamos fazer a história acontecer. Hoje, eu não vejo essa motivação. A gente não conseguiu erradicar, mas conseguiu controlar. Nosso compromisso era com a população e não com a política ou o partido. O Guarda de Endemias fazia coleta de lâminas e levava para laboratório e, de posse dos exames, fazia a medicação nas casas de pessoas em que se identificava a doença. Eu mesmo percebi que as medicações não faziam efeito, que a doença estava resistindo à dose de medicação proposta. Quando eu percebia isso, aumentava a dose daquele e do outro não. Fazia assim e dava certo, porque não tinha como voltar na cidade e perguntar para o médico se podia. Os coordenadores não aceitavam que fizéssemos isso, mas assim é que a malária era controlada, pela ciência e pela nossa experiência de campo. Hoje, se tem mais facilidades de acesso e não precisa fazer isso, mas naquela época nós fazíamos e refazíamos as estratégias, porque era tudo distante e o tempo de voltar e reclamar com os superiores significavam mortes. Estávamos as vezes em lugares que nenhuma política chegava.
De 1994 a 1996, fui presidente da Associação dos Servidores da Fundação Nacional de Saúde do Acre - ASFUNSAC, para pensar em atividades de lazer e fazer algumas reivindicações. Em maio de 2008, criamos a “Associação DDT Luta pela Vida”, que presidi desde a criação. Desde a década de noventa, eu comecei a perceber que os nossos colegas estavam falecendo com muita frequência, com muita proximidade um do outro, e eu não tinha como atribuir aquelas morte ao veneno. Passei a pesquisar o inseticida, mesmo de forma silenciosa e, buscando informações, consegui assimilar que o que estava acontecendo, tinha muito haver com o veneno. De 2001 a 2003, eu fui assimilando e vi que tinha tudo haver, mas como era que eu ia levar isso ao conhecimento de autoridades, principalmente da Funasa, se eles não queriam nem ouvir falar que o DDT fazia mal ao ser humano?
Só que a ditadura tinha acabado e, em 2008, já tínhamos o direito de se expressar. Foi então que eu comecei minha luta, chamei a imprensa numa reunião que a gente teve lá na sede da Associação e atribuío índice elevado de morte dos nossos companheiros a esse produto, o DDT. Esse povo não tinha trabalhado em garimpo, nem em derrubadas, o único trabalho foi com inseticida. O trabalho na Funasa era o que ligava todo mundo ali que tinha aqueles sintomas parecidos. Só que isso me custou caro, primeiro que eu era e sou um cidadão comum, eu não podia falar e nem posso falar hoje o que eu sinto, o que eu tenho vontade de falar, porque ainda sou funcionário, estou na ativa. Eu tive muita coragem, e essa luta me levou ao Congresso Nacional, ao Senado Federal, ao Ministério da Saúde e, em todos estes órgãos eu fui sabatinado. Desde 2015, sou também Vice-presidente do Sindicato dos Servidores Públicos Federais no Acre (SINDSEP/Acre).
Nesse período, o único político no Acre que abraçou essa causa foi a Deputada Federal Perpétua Almeida e, na época em que eu denunciei, apoiou também o Edvaldo Magalhães (o marido dessa Deputada), que era presidente da Assembleia Legislativa aqui do Estado do Acre. Tudo o que a gente pedia era uma prova, eram os exames que eram caros. Fomos, então, solicitar à Coordenação da Funasa em Brasília, para que eles realizassem esses exames gratuitamente nesses trabalhadores e eles não quiseram nem me ouvir. Aí eu não tive outra solução a não ser o Ministério Público Federal, por intermédio da Deputada Federal Perpétua Almeida, porque eu também não sabia muito como ter acesso ao Ministério Público Federal. Levei em forma de denúncia ao Ministério Público Federal e o Procurador Federal Ricardo Gralha condenou o Estado e a Funasa, exigindo que garantissem o atendimento médico hospitalar e os exames, a prova e a contraprova. Assim, eles atenderam a determinação judicial, mandando colher amostras de sangue. Só que mandaram fazer no Evandro Chagas, que é na própria Funasa e no Adolfo Lutz. Só colheram o sangue e não se interessaram pela urina ou alguns tecidos. Mesmo assim, foi encontrado no sangue, em alguns colegas, um valor de DDT muito alto. Mesmo assim, eles não acreditam, dizem que não tem como provar que os danos foram consequência desse produto que passou no organismo dessas pessoas.
Quando a gente vai num médico, diz que trabalhou com DDT, ele diz que as doenças que a gente tem podem ser por isso, mas nenhum tem coragem de dar um laudo. Por essa razão, a gente vive nesse dilema, só contando as vítimas. No Rio de Janeiro, uma toxicologista afirmou que a gente sofre hoje as consequências do produto DDT, mas ela não tem autonomia para obrigar o governo a reparar essas pessoas. Eles não resolvem nossa situação e nem pensam que, depois da descentralização, só piorou a situação dos agentes, porque eles também passaram a trabalhar com novas fórmulas de inseticida e, a princípio, também sem proteção.
Os sintomas que sentimos são basicamente os mesmos, são problemas cardiovasculares e câncer, enfisema pulmonar, nervosismos, alergias e desligamento do mundo, tipo esquecimentos. A gente vive tomando remédio pra não ficar com aquela tremedeira, que quase todos nós temos. Muitos de nós temos aquele treme-treme que os médicos chamam de “Mal de Parkinson”. Eu lembro que, quando a gente colocava aquele veneno nas residências, esse mal dava em gato, dava em porco, dava em carneiro, dava em galinha, cachorro, que morriam com aquela tremedeira.
Equipamentos de segurança apareceram, de forma constante, só na época da descentralização. Esse material que eles passaram a utilizar, como Cipermetrina e Icom, queima demais. A pele da pessoa não aguentava máscara, porque no sol quente ela sufocava muito. Como não tinha troca de filtros das máscaras, a respiração ficava ruim, pesava, por isso eles tiravam. Os novos trabalhadores acabam tirando e não tem consciência da gravidade do que vão enfrentar mais na frente, assim como nós não tínhamos quando trabalhamos com o DDT. Só que hoje existe máscara, então, tem que usar. Em alguns municípios, os guardas antigos ficaram por bastante tempo borrifando com outros produtos, mas hoje já saíram da atividade de campo e trabalham só meio expediente. Isso é resultado de muita luta.
A SUCAM era uma instituição importante, a gente era querido pela população. Nas minhas andanças nos seringais, eu fiz parto de mulheres, pequenas cirurgias e ajudei a salvar vida de pessoas que estavam alagadas ou morrendo afogadas. Certa vez, ajudei uma criança no Seringal Porto Dias, no Rio Abunã. Antes de chegar nesta colocação, eu ouvi os gritos de uma criança e apressei o passo, porque era uma localidade com muitas onças e imaginei que estavam atacando. Lá, tinham três crianças, uma de oito, uma de sete anos e a de um ano, dada como morta. As maiorzinhas estavam numa aflição grande.
Antes daquele dia, o corpo de bombeiros deu um curso de primeiros socorros pra gente. Quando eu vi aquela criança, pensei no que tinha aprendido, coloquei a criança em cima de um fogão de barro e comecei a fazer os procedimentos de reanimação. Com um litro de álcool, dava a massagem cardíaca e fazia respiração boca a boca. Depois de uns quinze minutos, a criança retornou à vida. Perguntei para o filho mais velho pelos pais e ele relatou que estavam na mata, cortando seringa. Deixei eles ali e fui ao encontro dos pais, na estrada de seringa. Ao encontrar os pais, pedi que retornassem comigo e dei a notícia só quando cheguei. Eles ficaram aflitos, mas felizes com meu trabalho. Para aquelas pessoas, a gente era médico, éramos um posto de saúde ambulante, porque já andávamos com alguns medicamentos básicos. Essas coisas me faziam permanecer na SUCAM e me fazem ficar na saúde até os dias atuais.
Eu também levava notícias da cidade para pessoas do interior. Levava sempre da cidade, a pedido das mulheres, fotografias de artistas para enfeitarem as paredes das casas. Ensinava as pessoas a desenharem os nomes, escrevia cartas para os parentes dos seringueiros que moravam no Ceará. Quando a carta era respondida, ia para o meu endereço, e eu levava de volta pra ler no outro ciclo. Então, a gente tinha uma importância grande na sociedade. Esse era o lado bom da Funasa, junto com o controle da malária e de outras endemias.
Tudo que eu tenho e sou devo a esta instituição. A instituição não tem culpa nenhuma do que aconteceu conosco. Os administradores é que foram omissos com nossa saúde. Eu sou grato a Deus, porque nunca aconteceu um acidente grave com meus familiares. Eu sinto meu dever cumprido como servidor federal. Hoje eu me revolto com o que acontece no país. As pessoas que a gente confia são as primeiras que nos envergonham, esquecem essa população que está morrendo doente.
Eu voltei a estudar em 2011, quando fui concluir o ensino fundamental. Eu viajava muito a trabalho e, estudar estava fora de cogitação. O inspetor geral me disse, certa vez, que tinha que escolher entre estudar ou trabalhar. Mas eu tinha vontade e necessidade, porque via a evolução do mundo e da tecnologia, via o homem indo pro espaço e pensava que, com tanta coisa acontecendo, precisava ficar a par da metade do que acontecia.
Minha esposa me incentivou muito. Gosto muito de ler e de filosofia, história e sociologia. Eu me fascinava e me fascino com os filósofos e isso me despertava a curiosidade. Depois, eu precisava de estudo para luta política na “Associação DDT Luta pela Vida”. Então, resolvi iniciar tudo de novo, começando do ensino fundamental. Eu bati nas portas das instituições e elas estavam fechadas, porque não aceitavam meus diplomas, diziam que não estavam registrados no MEC. Me aceitaram só no Programa de Educação de Jovens e Adultos no SESC, onde cursei o ensino fundamental. Com o diploma do Ensino Fundamental, eu me matriculei no Ensino Médio, na Escola Raimundo Gomes. Fui tratado com grosseria numa escola e me surpreendi com aquilo, mas outra pessoa me ajudou e me matriculou no ensino médio. Eu concluí em junho de 2015 e, no mesmo ano, fiz o ENEM e passei.
Agora, com 64 anos, vou começar o curso de Bacharelado em História, na Universidade Federal do Acre (UFAC). Para mim, foi uma grande surpresa, devido a multidão que fez o processo seletivo e faziam cursinhos. Um professor mesmo disse na sala que, dificilmente, nós daquela escola passaríamos no vestibular, mas eu não aceitei aquilo. Eu abri a internet e comecei a estudar, me aperfeiçoando em redação, li muita sociologia, filosofia, ciências, bastante inglês e espanhol. A física e a matemática eu ainda sabia do ensino médio.
Eu fiz prova na União Educacional do Norte - UNINORTE e, quando via a multidão de jovens, tentei me manter sem nervosismo e deu certo. Quando eu peguei a prova, já senti que ia fazer alguma coisa. No primeiro dia, conclui em cima da hora e, no segundo dia, fiz logo o rascunho da redação e respondi as questões. Depois, passei a redação a limpo, revisei e aguardei uns quinze minutos. Quando saiu o resultado, eu vi que passei no curso que era minha primeira opção, que era História.
Meus filhos ficaram orgulhosos e motivados a estudar mais. Eu disse que, se tiver mais anos de vida, eu vou passar deles, coragem para isso eu tenho. Tenho dois filhos formados em Administração e uma que faz Odontologia. O mais novo queria ser jogador de futebol, era muito talentoso e se atrapalhou um pouco nos estudos, mas com a graça de Deus vai retomar também. Agora, vou fazer faculdade, eu e minha esposa. Eu vou fazer Bacharelado em História e ela em Ciências Sociais, ambos na UFAC. Se eu pudesse traduzir toda esta história numa palavra, ela seria determinação, porque isso sempre tive de sobra.
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