Vovó Azul... Vovó Marocas...
Vejo o azul e lembro de amor...
Do olhar terno de minha avó para comigo ou com minha filha.
Lembro de seus vestidos azuis preenchidos por uma figura altiva (adorava essa cor de tal forma, que sua casa era azul, e tudo que poderia ser em sua casa ou em sua vida , era assim que era, azul...). Não se deixava encabular pelo andar "cachingando" - como ela mesma falava -. Nem pelos dedinhos tortos dos pés e das mãos, muitas vezes amarrados para ver se voltavam ao lugar devido a artrite. Tinha macetes para em dias de festa, o dedo "do cotoco" não ficar arrebitado dando "cotoco" para todo lado.
O azul é minha avó Marocas, Maroquinhas como era chamada pela mãe, que a deixou órfã logo cedo encarregada de vários irmãos e um pai para cuidar. Lavava, passava, cozia, pilava a ração dos animais, fazia o "de comer" para os trabalhadores do pai.
Era tudo naquela casa, não havia descanso. E quando o pai anunciou um novo casamento, pensou: "Agora terei um pouco mais de sossego, pois terei uma madrasta que cuidará de mim..."
Na verdade veio mais uma "carrada" de irmãos para ela cuidar.
Marocas com "s" dizia, pois falava que "Maroca não existe só uma".
E ela tinha toda razão...
E ela era muitas em uma só.
Era mãe dedicada e atormentada com os problemas domésticos...
As dificuldades eram muitas no sertão do Ceará, e apesar de não faltar comida, carne às vezes era luxo
Uma vez contou-me, que num dia de carne à mesa, falou para o filho mais velho e muito amado brincando (como para explicar que a carne era pouca para cada um): "Moacyr é só para cheirar, viu?" Moacyr depois de comer tudo, deixou o pequeno pedaço de carne no prato , e ela estranhando perguntou: Moacyr, porque não comeu a carne? Não gostou? " E ele então lhe respondeu: " Não mãe, a senhora não disse que era só para cheirar?..."
Era esposa apaixonada e ciumenta em excesso...
Meu avó era delegado, e muito mulherengo, uma vez foi a...
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Vovó Azul... Vovó Marocas...
Vejo o azul e lembro de amor...
Do olhar terno de minha avó para comigo ou com minha filha.
Lembro de seus vestidos azuis preenchidos por uma figura altiva (adorava essa cor de tal forma, que sua casa era azul, e tudo que poderia ser em sua casa ou em sua vida , era assim que era, azul...). Não se deixava encabular pelo andar "cachingando" - como ela mesma falava -. Nem pelos dedinhos tortos dos pés e das mãos, muitas vezes amarrados para ver se voltavam ao lugar devido a artrite. Tinha macetes para em dias de festa, o dedo "do cotoco" não ficar arrebitado dando "cotoco" para todo lado.
O azul é minha avó Marocas, Maroquinhas como era chamada pela mãe, que a deixou órfã logo cedo encarregada de vários irmãos e um pai para cuidar. Lavava, passava, cozia, pilava a ração dos animais, fazia o "de comer" para os trabalhadores do pai.
Era tudo naquela casa, não havia descanso. E quando o pai anunciou um novo casamento, pensou: "Agora terei um pouco mais de sossego, pois terei uma madrasta que cuidará de mim..."
Na verdade veio mais uma "carrada" de irmãos para ela cuidar.
Marocas com "s" dizia, pois falava que "Maroca não existe só uma".
E ela tinha toda razão...
E ela era muitas em uma só.
Era mãe dedicada e atormentada com os problemas domésticos...
As dificuldades eram muitas no sertão do Ceará, e apesar de não faltar comida, carne às vezes era luxo
Uma vez contou-me, que num dia de carne à mesa, falou para o filho mais velho e muito amado brincando (como para explicar que a carne era pouca para cada um): "Moacyr é só para cheirar, viu?" Moacyr depois de comer tudo, deixou o pequeno pedaço de carne no prato , e ela estranhando perguntou: Moacyr, porque não comeu a carne? Não gostou? " E ele então lhe respondeu: " Não mãe, a senhora não disse que era só para cheirar?..."
Era esposa apaixonada e ciumenta em excesso...
Meu avó era delegado, e muito mulherengo, uma vez foi a um bordel por questões de trabalho, e ela soube. Travestiu-se de homem e foi ver o que ele fazia por lá.
Ah Maroquinhas
Ela sempre tinha muito a fazer. Era comerciante nata, que arranjava sempre uma maneira de ganhar algum dinheiro extra para ajudar meu avó no orçamento doméstico. Apesar de sempre dizer com orgulho: "Josias não deixa faltar nada em casa"
Era costureira habilidosa, artista caprichosa que com suas mãos ainda sem os defeitos da artrite, fazia uniformes policiais para vender aos soldados, ou delicadas colchas de "richiliê".
Carinhosa e enérgica, sofrida pelas dores da vida... dos destinos da vida...
Perdeu seu filho Moacyr, então tenente da polícia. Lindo, atlético, poeta... Filho carinhoso e querido.
Metade dela se foi, junto com o corpo baleado com 5 tiros do tio Moacyr...
Sofrimento de um ano em uma rede, sem comer praticamente só a escrever a saudade que sentia, o desespero que a saudade lhe dava... E rezava, rezava... "Ah Moacyr, que saudade filho querido"
Sinto o coração de minha avó nessa saudade, nesse desespero...
Emagrecida , sofrida... Veio a doença. Um quase derrame... a artrite que lhe causava dores horríveis, as deformações nas mãos e nos pés... A doença lhe curvara, mas o espírito era forte e andava erguido mesmo com todos os problemas que a vida lhe trazia.
Mas sempre ativa quando as dores lhe permitiam...
Foi companheira fiel e enfermeira dedicadíssima de seu amor...
Amou seu velho Josias até o fim. Orgulhava-se de mais de cinqüenta anos de casamento. Comemorados em família com ele já doente entrando na igreja com ajuda, pois teve uma trombose e já o valente delegado, "caçador de jagunço" pelo sertão do Ceará, não tinha mais a independência de seus movimentos.
Num dia de folga da empregada, ao ajudá-lo a levantar-se, tombaram os dois ao chão, e ele caiu sobre ela. Ficaram os dois alí por quase uma hora, chamando alguém, mas não eram ouvidos. Ao serem socorridos, era constatado que ela quebrara o fêmur, e uma operação foi feita e um metal foi colocado.
Muito sofrimento passou, mas recuperada, perdeu um pouco daquela atividade que não a fazia parar um só instante.
Minha vozinha azul daí por diante foi se entregando ao medo de tudo, principalmente de cair novamente.
Foi-se o companheiro amado, e mais um pedaço dela se foi junto com ele.
Ficaram os outros filhos, os netos, os bisnetos e muitas lembranças.
Ficou a saudade, aliviada pelas rezas. Rezava 3 terços de manhã, 3 à tarde, 3 à noite... rezava por seu filho amado que se fora ainda tão jovem, por seu esposo amado, pela filha distante, pelo filho bacharel, pelo filho rebelde e problemático... Enfim os filhos que ficaram... E os filhos que morreram ainda bebês ou em idades primeiras, com doenças comuns nos sertões, como a diarréia principalmente.
Ao todo teve 8 filhos, sobrando-lhe 3.
Rezava pelos netos, pedia proteção para eles e seus filhos.
Enfim, para todos que se foram deixando saudades, e para os que ficaram com seus problemas, com seus e seus karmas pessoais.
Passado alguns anos, foi-se minha vozinha numa nuvem azul, ao encontro dos amados que a esperavam no espaço azul... Sua mãe, Moacyr, Josias... e tantos outros que a saudade lhe fez o coração sangrar em certos momentos.
Ficou comigo a saudade dessa vovó que sempre me amparou com carinhos, com beijos , defesa e palavras consoladoras... Eu sempre fui a neta rebelde e a que dizia ser a mais querida.
Primeira neta, vinda logo após a perda de seu filho. Criada por ela até os 5 anos praticamente...
Nossa ligação era e é muito grande.
Muitas vezes levei uns cascudinhos para obedecer. Logo depois esquecido pelos carinhos e adulações...
Muitos doces momentos tivemos.
Muitos papos alegres e cheios de risada comigo e minhas amigas... Ela era muito querida por minhas amigas, que a achavam "uma vovó bem legal" Severa, mas muito divertida quando queria ser.
Cantante, com suas modinhas antigas. Na juventude tocava violão... Não foi à toa que meu avó Josias largou a prima de minha avó, na porta da igreja, por ter se apaixonado pela donzela de cabelos negros que tocava violão e cantava modinhas para encantar à todos.
Lembro-me de nossas viagens pelo interior do Ceará, acompanhando meu avó de delegacia em delegacia.
Do copo de leite morninho tirado da vaca, do doce de "alfinim" dos engenhos de açúcar, puxado pelas velhas. Do doce de leite coalhado e de "gergelim", feito por ela com tanto carinho para mim.
Das tapiocas quentinhas com manteiga de garrafa... das costelinhas fritas que ela me via comer com tanto gosto
Ah vó... que saudade de seus carinhos... que saudade de você... de ouvir você ... de ver você... Minha vozinha deve estar numa nuvem azul, repleta de esperanças. Olhando por nós. Desejando que todos nós que somos a continuação do que ela plantou, sejamos felizes. Ela aprendeu e se fortaleceu com as dores do caminho. E sei que reza ainda por nós, para que sejamos fortes para suportarmos os nossos espinhos. Vó, sei aonde estás, além de aqui dentro de mim...
Te amo muito
(Maria Filgueiras Pedrosa foi homenageada por sua neta Paola Pedrosa Bacelar em 16 de novembro de 1999, através do nosso site da internet)
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