Projeto Conte Sua História
Depoimento de Janaína Rueda
Entrevistada por Rosana Miziara
São Paulo, 23 de abril de 2019
PCSH_HV 768 _ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Jana, começar da maneira mais clássica possível: você pode fa...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Janaína Rueda
Entrevistada por Rosana Miziara
São Paulo, 23 de abril de 2019
PCSH_HV 768
_ rev.
Transcrito por Selma Paiva
Revisado/Editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Jana, começar da maneira mais clássica possível: você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Janaina Rueda, sou nascida em São Paulo...
P/1 – Rueda já é nome artístico.
R – Janaína Cecília Torres dos Santos Rueda, nasci em São Paulo, aqui na capital, no Brás. E o que mais?
P/1 – Em que ano?
R – 1975.
P/1 – Qual a data completa?
R – Nove de fevereiro de 1975, domingo de Carnaval. (risos) Foi num domingo de Carnaval.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Sim.
P/1 – Rueda é do seu marido?
R – É do meu marido.
P/1 - Seu pai e sua mãe são de São Paulo?
R – São de São Paulo, os dois.
P/1 – Vamos falar um pouquinho da família do seu pai e do seu pai. Qual é a origem do seu pai? Eles são de São Paulo, vieram de algum outro lugar, seus avós paternos?
R – É uma confusão. Uma salada de frutas. Eu tenho, por parte de pai, índio, negro, português e italiano. Por parte de mãe eu tenho espanhóis e italiano, que é o pai da minha mãe.
P/1 – O que seu avô paterno fazia? Você o conheceu?
R – Minha história é um pouco complicada, enfim, mas o meu pai, que me registrou direitinho, é o Gilberto Torres dos Santos. Ele morreu em 1989, ele era filho de um alfaiate.
P/1 – Que é o seu avô?
R – O meu avô. Isso.
P/1 – Você conviveu com ele, eles vieram de São Paulo?
R – Minha mãe separou do meu pai muito cedo e eu tive contato com ele, sim, mas eu tive contato com ele mais quando ele ficou muito doente, em 1989.
P/1 – Mas ele não é seu pai biológico? É de criação?
R – Não, ele é meu pai. É uma história longa, assim, mas ele é meu pai.
P/1 – E a sua mãe, os seus avós maternos, qual a origem deles?
R – Aí são espanhóis. Minha bisavó é de Granada e ela era meio cigana.
P/1 – E você conviveu com ela? Ela veio de lá para cá?
R – Não, a minha avó nasceu aqui. Foi a única dos irmãos que nasceu aqui, a minha bisavó era de Granada, a mãe dela. Ela nasceu aqui em Catanduva, aqui, bem no interior.
P/1 – E a sua mãe foi criada em Catanduva?
R – É uma história...
P/1 - Não quer falar dela?
R – Não, eu posso falar, sim. A minha avó era uma mulher solteira, não casou. Casou depois de ter a minha mãe. Ela foi mãe solteira, a princípio. Então, a minha mãe foi criada ali no Centro de São Paulo, na rua Abolição, que eu me lembre, com a minha madrinha, que era prima da minha avó, e com a minha avó. E ela era mãe solteira. Depois ela se casou com um paraguaio. Mas ficou pouco tempo com o paraguaio. E, no final da vida da minha avó, já com 70 e poucos anos, eu lembro de um senhor bater na porta de onde a gente morava, se apresentando como meu avô. (risos) Ele era bem velhinho. Acho que estava doente.
P/1 – Ficaram morando, um período, você, sua mãe e sua avó?
R – Isso. Mas a minha mãe trabalhava muito fora, então eu fui criada pela minha avó.
P/1 – Sua mãe trabalhava com o quê?
R – Minha mãe trabalhou algum tempo no Rio de Janeiro, com a Rede Globo; trabalhou muitos anos com o Ricardo Amaral, no Hippopotamus e trabalhou no Gallery também.
P/1 – O que ela fazia?
R – Ela era RP, fazia Relações Públicas, fechava festas, fazia convite de festas. Era bem boêmia minha mãe. É boêmia. Agora não, porque já está mais velha.
P1 – E quando você nasceu, a sua mãe morava com sua avó, já?
R – Quando eu nasci a minha mãe morava com meu pai, pelo que eu sei, mas eu, com um ano, já meu pai foi embora.
P/1 - Mas você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Mais ou menos. Eu sei que eles se conheceram no Museu do Disco, porque a minha mãe trabalhava lá e o meu pai trabalhou lá uma vida toda. Ali na 24 de Maio, na Galeria, sabe onde tinha o Museu do Disco? Depois teve Hi Fi, que era do mesmo dono. Por isso minha mãe era muito do meio artístico. E o meu pai era fissurado em música. Então, ele foi trabalhar de vendedor, virou supervisor, gerente da loja, até ele falecer. Ele acabou trabalhando numa outra loja, ali na rua Direita, quando ele já estava bem velhinho, que eu lembro.
P/1 – E você tem irmãos?
R – Eu tenho duas por parte de pai, dois por parte de mãe e alguns de alguma história que eu ainda não sei direito. (risos)
P/1 – E esses por parte de mãe são mais velhos ou mais novos que você?
R – Eu sou a mais velha de todos os irmãos.
P/1 – Então, quando você nasceu, sua mãe se separou de seu pai e seus irmãos são de outro pai?
R – É, tudo de outro pai. (risos)
P/1 – De outro pai, de outra mãe?
R – Tudo. Isso.
P/1 – Mas esses irmãos moraram com você?
R – Não. Dois moraram pouco tempo. Muito pouco tempo. Porque a minha mãe foi morar em outra cidade, aí ela me procurou uma época, um dos meus irmãos era bem pequeno, ele morou alguns meses comigo, depois ele foi, a minha mãe também foi para outro lugar.
P/1 – Mas quando você era pequena, você morava com a sua mãe?
R – Com a minha avó. Eu morei um tempo com a minha mãe, alguns anos, mas eu ficava muito com a minha avó. Foi minha avó quem me criou, então, com sete anos, eu fui morar com a minha mãe. E aí elas acabaram discutindo e a minha avó foi morar numa casa e eu fiquei com a minha mãe, mas eu queria ficar com a minha avó. Aqueles rolos. (risos)
P/1 – Você morava onde? Onde era sua casa na infância?
R – Eu nasci no Brás, eu tenho fotos em que eu estava no Brás. Depois a gente foi morar na Mooca, ali, numa travessa da Orfanato, na rua Grandino, e depois eu fui morar na Bela Vista, ali na rua dos Franceses. E depois eu fui morar no Centro de novo, na São Luís, no Copan. (risos) E agora eu estou na São Luís de novo e no Copan. Eu fico... Eu sou um pouco... Eu gosto de circular. (risos)
P/1 – E na sua infância, qual bairro você lembra mais? Da Mooca, do Brás...
R – Eu lembro muito da Bela Vista, que foi onde eu andei, mesmo, ali na quadra da Vai-Vai.
P/1 – Como era? Quantos anos você tinha?
R – Eu, com sete anos, já ia para a rua. Já sumia no vento.
P/1 – O que você fazia?
R – Eu saía, descia. Não podia ouvir um batuque que eu já saía. Abria a porta e ia para a rua.
P/1 – Tinha escola de samba?
R – Tinha. Da minha janela dava para ver a escola. Que ela era... O prédio, no alto, então eu via todo o ensaio. Aí ficava louca e pulava a janela, fazia qualquer coisa para ir para o samba. Qualquer coisa.
P/1 – Como era a Bela Vista naquela época? Que ano era, 1981?
R – 1983, 1984, 1985. Depois eu lembro que, em 1988, 1987 tinha o Perdidos na Noite, do Fausto Silva, ali no Teatro Záccaro. Fugia de casa para ir lá assistir Legião Urbana e ficar com a galera da Bela Vista. Naquela época tinha muito baile funk também, não é? Era o movimento do Clube da Cidade, do Patropi, da Sunset Club e aí eu ficava ali, no meio da galera. (risos)
P/1 – Com sua avó?
R – Não. Aí eu ficava com a minha avó e com a minha mãe, porque eu fugia muito de casa. Fugia. Eu pegava o ônibus e ia parar no Sacomã, onde minha avó estava morando. E aí, cadê a Janaína? E eu já estava no Sacomã. Eu era assim. Eu pegava um ônibus, entrava e ia pela intuição. Onde está minha avó? Onde está minha madrinha? Eu não parava em casa.
P/1 – Mas você brigava com sua mãe?
R – A gente brigava bastante. Hoje não. Hoje a gente é bem amiga, mesmo. Naquela época a gente brigava bastante. (risos) Era bem conturbado.
P/1 – Por quê?
R – Não sei te dizer. Eu acho que idade, história de vida, minha mãe também era filha de pai não presente, rebelde também, eu também era. Acho que tinha um embate, assim, de personalidade, mesmo, na época. Então a gente vivia brigando.
P/1 – E você, com quantos anos foi para a escola?
R – Eu fui muito cedo para a escola. Desde o M aternal. Eu lembro de eu estudando no Nossa Senhora Menina, ali na rua do Orfanato. Depois eu estudei no Maria José - lá na escola pública - depois minha mãe já teve uma condição um pouco melhor e aí ela me colocou ali no Passalacqua. Ali na Rui Barbosa.
P/1 – Que lembrança você tem da escola? Algum professor, alguma história?
R – Eu sempre fui rebelde e eu sempre contestava as coisas na escola. E eu saí do colégio público, do Maria José, e eu lembro de ter ido para o Passalacqua. E lá era um colégio católico e eu gosto muito de religiões, de um modo geral. Eu me interesso em entender as razões pelas quais elas existem e lá tinha uma capela e primeira comunhão, e tinha aulas de religião. E quando uma professora foi abordar o espiritismo como sendo bruxaria, aí eu comecei a brigar com essa professora e a xingar essa professora. Eu não entendia nada de umbanda, de espiritismo, nada, mas eu já contestava que energia é uma só, eu falava. Eu já sentia muito essa coisa de energia. E que não tinha que um falar mal do outro. Porque ela era católica, ela vai falar mal do espiritismo? E deu meio que um rebuliço e eu comecei a ficar rebelde. Naquela época, tinha aqueles Garfield, você lembra desse gato? E eu comecei a levar esse gato, era meu companheiro. E um dia, a freira, a Irmã Sofia, ficou brava. Uma professora Rosana, de Geografia, tomou meu gato na sala de aula. Eu achei o fim do mundo ele me tomar o gato e aí eu saí da sala dela, era a última aula e fui direto para casa... Desci para a Diretoria, falaram que meu gato estava na casa da freira. Eu invadi a casa da freira e tomei o gato da mão dela.
P/1 – Elas moravam na escola?
R – Elas moravam na escola. E eu falava: “Você não tem o direito de roubar o meu Garfield”. (risos) E foi uma puta guerra lá na escola. Elas me adoravam, na verdade. Elas gostavam muito de mim, porque eu contestava bastante. E eu era uma menina diferente, minha mãe trabalhava à noite e aí a gente sofria um pouco de preconceito naquela época, até com os vizinhos e tal, porque minha mãe saía sete horas da noite para trabalhar e chegava de manhã. Então, ninguém entendia a profissão da minha mãe. Achava que minha mãe era uma prostituta do meio da rua. E não era isso. E mesmo que fosse, não teria problema nenhum. Apesar de que eu brinco que a minha mãe andou em todos os puteiros de São Paulo e me ensinou a andar em todos e entrar em qualquer lugar. Que isso é uma coisa que eu tenho até orgulho de falar. Ela sempre me deixou entrar em qualquer lugar e conhecer tudo. Sem nenhum preconceito. A gente sofria muito preconceito e não era diferente na escola. Na escola também eu era a ovelha negra, a menina rebelde.
P/1 – Tem alguma história que te marcou por isso? Ser considerada e tratada como ovelha negra por vizinho e na escola?
R – Vizinho, super. Imagina, eu tive um menino que eu comecei a gostar dele, namorar e aí ele era de uma família árabe, eles moravam na cobertura do lado do meu prédio e a minha mãe vivia muito no meio artístico, uma época ela trabalhou até no Palace, com o Fernando Altério e tudo. E na minha casa, minha mãe sempre foi muito democrática, entrava todo mundo da noite, ela não fazia distinção de ninguém, era uma puta festa. (risos) Um dia, ela viu que eu estava meio de namorinho com esse menino e minha mãe não era muito gentil, ela sempre foi muito dura, mas ela quis me agradar naquele momento e ligou para a mãe do menino, para a gente ir a um show do Djavan, porque ele gostava do Djavan também. E a mulher não deixou. E não deixava ele ir na minha casa. A minha mãe ligou, conversou e ela não deixou e fez tudo para o menino não se aproximar de mim, porque ela falava que a minha casa vivia cheia de mulheres da noite e que eu não ia namorar o filho dela. Até hoje eu falo com ele, ele é meu amigo. Uma época, eu trabalhava... Eu comecei a trabalhar muito cedo, com 12 anos eu vendia roupa para a minha mãe. Nessa coisa que ela trabalhava à noite, ela tinha uma confecção de roupa de couro. E eu vendia, saía na rua vendendo para as amigas dela, entregando, com romaneio e tudo. E é interessante, porque as pessoas tinham muito preconceito, mas eu sempre trabalhei bastante. Aí, quando o filho dela começou a dar muito problema, que aí ele não estava namorando comigo, aí ela foi me procurar para eu tentar ajudar. Mas já era tarde demais. (risos) Já tinha arrumado outra coisa para fazer. Outro namoradinho, enfim. E eu também era chateada com isso, deles. Foi uma família que foi bastante cruel comigo. Eu sentia que não podia entrar na casa dele, que tinha que ser tudo escondido. Quando a mãe não estava, quando o pai não estava.
P/1 – Mas ele falava por que não podia?
R – Falava que o pai não deixava, que a mãe não queria que a gente namorasse. Isso foi bem difícil para mim. Por conta da profissão da minha mãe. Por conta da minha mãe trabalhar à noite. (risos) É. É o mundo, como ele é.
P/1 – E na sua casa, quem cozinhava?
R – Minha mãe cozinhava, porque minha mãe, como trabalhava no Hippopotamus e tal, tinha muito acesso a chefs da época, então minha mãe fazia strogonoff, peixe assado e ela sempre me ligava à tarde, que ela acordava, lavava roupa, fazia as coisas de casa e depois ela saía, ia fazer as coisas dela e ela sempre telefonava na época e falava: ‘Pica a cebola, descasca cenoura”. E eu fazia todo o mise en place para a minha mãe cozinhar quando ela chegasse, porque ela não tinha muito tempo, não é? Aí ela fazia o jantar e ia trabalhar. Eu jantava e, às quartas-feiras, eu pulava a janela e ia para o Perdidos na Noite, sem ela saber. (risos) É. Porque eu ficava sozinha, não é? Então eu dava um jeito de pular para a varanda da vizinha, era uma senhora, a Dona Ionice, e a porta dela era aquela de trinco. Então, eu deixava a janela dela aberta e depois eu voltava (risos) pela casa dela.
P/1 – Como era o programa, na época?
R – Era bem legal. Era um programa diverso, já, não é? Um programa animado. Eu sempre ficava nas primeiras fileiras, assistindo. Eu lembro do Legião Urbana, Fausto Fawcett, todos. Camisa de Vênus. Tudo acontecia naquele programa. Era o maior barato. Era bem diverso. Falava bastante da coisa que estava acontecendo no país. Era um programa legal. Eu achava bem diferente. Minha mãe só descobriu porque ela estava de folga numa noite, num sábado, nunca me esqueço, e o programa passava aos sábados. Gravava às quartas e passava aos sábados. E a gente ficava assistindo, não é? E eu pintei o cabelo, cortei o cabelo e fiz uma mecha loira no cabelo, enorme. E aí entrou o Legião Urbana e eu sempre falo do Legião Urbana, porque tem o vídeo de eu dançando ali no meio do Legião Urbana, com aquela mecha loira. E aí, minha mãe passando roupa, eu deitada no sofá e, de repente, (risos) ela me vê. Eu bem inocente, deixei no programa, eu não vi que eles tinham me filmado. (risos) ‘Meu’, aí ela descobriu tudo, não é? Porque... Como eu estava no programa? (risos) Ela sabia os dias da gravação, era no Teatro Záccaro, quarta-feira à noite. Nossa, ela ficou muito brava. Eu lembro que, ‘meu’, aquela época podia bater, a gente apanhava e eu apanhei, mas não adiantou nada, não serviu para nada a surra. Porque eu continuei fazendo coisas piores ainda. A gente vai animando.
P/1 – O que eram coisas piores? O que você arrumou aí?
R – Eu sempre... Eu fui gótica, eu ia para o Madame Satã, escondido.
P/1 – Como é que era ser gótica?
R – Não sei. Era uma coisa assim: se vestia de preto para causar; fazia as maquiagens pretas. Imagina: eu ia para o samba e, de repente, eu estava gótica, rock and roll. Eu fazia tudo, eu me interessava por tudo.
P/1 – Você tinha alguns amigos daquela época?
R – Tinha um monte. Tenho ainda. Tem muitos que ainda, daquela época, convivem comigo até hoje. Muitos, mesmo. A gente conversa até hoje, daquela época. (risos) Muitos, muitos.
P/1 – Voltando, você deixava os ingredientes preparados e ela que lhe ensinou a descascar, a fazer tudo? Você a via cozinhando? Como era sua relação com ela na cozinha?
R – Via. Ela não cozinhava muito, assim, mas ela ficava ali e eu ficava vendo. A minha avó também cozinhava. Minha avó fazia algumas coisas, só. Eram sempre as mesmas coisas: era bolinho de arroz, bolinho de espinafre, tortilha, puchero. O puchero virava sopa e a sopa virava puchero. Era a mesma coisa. E eu sou especialista em cozidos hoje e acho que talvez por causa da minha avó. Por causa da minha madrinha também, que também era espanhola. E também era desquitada. Porque na minha casa eram todas, as mulheres, desquitadas. Era minha mãe desquitada, minha avó separada e a minha madrinha também. Então, eram as três. A gente ficava muito juntas, por isso que saía muita briga, também. E todo mundo cozinhava, minha madrinha e minha avó: puchero, puchero, puchero. Porque era da região delas, da família delas, da Espanha. E aí eu sou especialista em cozido, por coincidência. (risos)
P/1 – Você viveu isso?
R – Eu vivi muito isso, dessa coisa do ensopado, de panela de pressão, porque todas trabalhavam, não é? Minha avó era bordadeira, minha mãe trabalhava à noite e minha madrinha era massagista. Esteticista. Então, ela atendia dentro do quarto dela. Ela tinha uma maca e ficava atendendo a mulherada o dia inteiro, fazendo massagem. E aí ela ia para a cozinha fazer, rápido, uma comida e sempre era o puchero. (risos) Sempre. Com pão e alface. Salada de alface. E até hoje eu sirvo. Eu não gosto de servir com arroz. Eu gosto de servir com pão e salada de alface. Manias que a gente pega dos ancestrais, não é? Das coisas ancestrais.
P/1 – E aí, essa adolescência, você estudava? Você ia à escola? Nesse período você estava com quantos anos? Nessa época do programa do Fausto Silva?
R – Ah, tinha 11, 12 anos.
P/1 - Você já saía de casa para ir no programa? E a escola? Como você estava levando a escola?
R – Eu sempre fui boa aluna. Muito boa aluna. Eu tirava notas muito boas. Até a sétima série. Depois eu já não me adaptava à escola, com o formato da escola. Eu nunca gostei de sentar atrás de uma pessoa e ficar, sabe, para ver o que estão falando. Eu acho que aprender é conversar, é o que a gente está fazendo, não é? É o bate papo, mesmo. Então, mil vezes ficar numa mesa de bar enchendo a cara e vendo a vida acontecer do que muitas vezes você ficar ali, numa escola que está lhe ensinando lá uma fórmula. Não é aquela fórmula que você vai levar para a sua vida, não é? Não é. Cada um tem um jeito de viver. “Mas você não incentiva as pessoas a estudarem?” Eu superincentivo. Eu estudo muito, eu pesquiso muito. Mas são coisas que eu quero aprender, que eu me identifico a aprender. Então, eu não concordo com o modelo de escola desse mundo. Para mim, é ultrapassado. Naquela época, eu enxerguei isso e não teve Cristo...
P/1 – O que aconteceu? Você estava na sétima série. Aconteceu alguma coisa que desencadeou, especificamente, esse ano?
R – Não. Talvez, sim. Da sétima para a oitava série, o meu pai ficou muito doente, não é? Meu pai teve HIV; um tio meu morreu no ano anterior e ele também, porque eles pegaram e um passou para o outro. Eles tomavam droga na veia. Um passou para o outro, um morreu num ano e meu pai morreu no outro ano. E foi em 1989 que ele morreu, mas o processo começou em 1987. E eu comecei a perceber que a vida era diferente da escola, a realidade. A vida era outra. Meu pai estava com uma doença que ninguém sabia o que era. A vida passa, não é? E eu comecei a querer conviver mais com ele, também pelo fato de saber que ele estava morrendo, ele estava definhando, e isso também me fez perder, um pouco, a vontade de estar ali ouvindo. Você está com um problema do tamanho do mundo e aí tem uma pessoa falando para você um monte de mentira, de história, porque ninguém conta a verdade para a gente
na escola. Ninguém fala: “Olha, vocês foram colonizados e aí as terras que existem hoje, os grandes latifundiários, são parentes dos bandeirantes, que exterminaram os índios”. Você aprende isso na rua. Não aprende isso na escola. Você aprende isso numa mesa de bar. Na escola, eles não ensinam, não sei por quê. Não me pergunte por quê. Porque eu não sei e também não me interessou mais a escola, por isso. Eu comecei a enxergar mentiras na escola e isso foi me desmotivando, assim: “O que eu estou fazendo aqui? Quem são essas pessoas que estão falando essas coisas para mim? Tem coisas acontecendo que não estão nos livros. Como é que eu vou recorrer? Meu pai está com Aids e cadê, onde está isso nos livros?” Acho que por isso eu quis começar a aprender as matérias na rua mesmo, não é? Fui para a rua e comecei a ficar na rua mesmo.
P/1 – O que você fazia na rua?
R – Tudo. Ia para a balada, saía, enfim, comecei a conhecer a rua como ela é
mesmo. Bem nua, bem crua. Minha mãe acabou... Nessa época, foi morar fora.
P/1 – Foi morar onde?
R – Foi morar em Londrina. Ela casou com um moço mais novo que ela, que eu conhecia, e ela acabou indo embora para Londrina, eu fiquei cinco anos sem ver minha mãe. Aí, foi quando eu fiquei bem assim conhecendo o mundão, mesmo. Minha avó já era mais velha, já não tinha tanta voz ativa. Aí, coitada. Eu tinha uma tia, que morava ali na Bela Vista, que eu ficava um pouco lá, comecei a morar um pouco em cada... Morava um pouco com a minha avó, morava um pouco aqui...
P/1 – Sua avó morava aonde?
R - ... Morava com as minhas amigas. Minha avó, nessa época, estava morando na Vila Zelina, Vila Prudente.
P/1 – Aí você ficava Vila Zelina, Centro, Bela Vista...
R - ... Aí eu dormia na rua, porque não tinha ônibus.
P/1 – Que lugares você frequentava?
R – A rua Rocha, a Japurá, a Conselheiro Carrão... Eu tinha vários grupos, assim, que eu frequentava na época. A gente brinca: várias gangs. (risos)
P/1 – Essa época era do gótico ou já era outra?
R – Teve vários momentos. Teve os momentos da Treze de Maio. Tinha muitos bares, não é? Então, ali tinha aquele Carbono 14 e eu comecei a ver aquelas performances, foi quando eu virei gótica. Mas, ao mesmo tempo, eu andava com o pessoal do samba, eu descia na Vai-Vai e deixava o pau cantar, também lá, com o samba. Ia com eles para o Patropi, para o Clube da Cidade. Aí eu comecei a andar em tudo, na verdade. Onde tinha lugar para andar, eu andava. E eu trabalhava muito.
P/1 – Você vendeu, primeiro, as jaquetas de couro da sua mãe...
R – Eu comecei vendendo roupa aos 12 anos, mais ou menos, depois minha mãe foi embora, meu pai faleceu e eu tive meu primeiro emprego aos 13 anos, numa loja de sapatos ali no Top Center 3. Aí, não podia trabalhar com 13, na época a carteira de trabalho era com 14 e eu fiquei tipo enrolando para levar a documentação, para ver se eu chegava aos 14, porque eu queria trabalhar. E aí eu comecei vendendo sapato. Enrolei muito para levar a documentação, ele me mandou embora. Eu lembro que minha avó me levava pão com ovo para comer nos intervalos. Tinha aquele momento de sair para comer, minha avó não pagava ônibus, saía lá da Vila Zelina para me levar lanche para eu comer, porque ela sabia que eu ia ajudá-la a pagar aluguel, essas coisas todas. Aí, depois, eu fui trabalhar numa empresa que se chamava Faciol, já registrada. Ali na Bela Vista, na Treze de Maio. Aí eu atendia telefone, recepcionista. Logo em seguida, eu comecei a trabalhar como vendedora, em loja de shopping. Aí eu ficava, assim, 12, 13, 14 horas e eu comecei a ganhar dinheiro. Porque, naquela época, eu trabalhei na Pakalolo, Surf More, eram lojas que vendiam muito. Era moda, fazia fila para comprar. Então, eu comecei a desempenhar um bom papel, assim, como trabalhadora de loja, como vendedora. Eu adorava. Então, eu trabalhava muito de dia, à noite eu saía, não dormia. Novinha...
P/1 – E os programas eram essas baladas, à noite?
R – Era tudo que era balada. Tudo. Acho que eu conheci todas as baladas. Para você ter ideia, eu cheguei a fechar o caixa do Val Show, na Amaral Gurgel. Eu ia no Proibidos, da Andréa de Mayo, dava bênção para travesti, para entrar. Maravilhosa! Ela ficava numa cadeira, com o peitão, maravilhosa a Andréa de Mayo. Eu andava em todos os buracos, andei em tudo que você possa imaginar de buraco do Centro.
P/1 – Você usava drogas?
R – Ah, na adolescência, usei. Provei drogas, claro. Todo mundo provava droga naquela época, porque era uma loucura, mas eu nunca gostei muito. Eu tinha medo. Aliás, eu tenho muito medo de qualquer coisa que me tire do ar, que me controle. Eu nunca deixei ser controlada por nada. Então, essa foi uma das coisas que aliviou bastante para mim. Enquanto todo mundo se drogava muito, eu ficava sempre na segunda, sabe, sempre com medo, com muita ressalva. Tinha medo. Tinha medo de me poluir, tinha medo de agressão sexual. Eu acabei sofrendo algumas coisas na adolescência e eu tinha medo, tinha receio, não gostava que ninguém ficasse pegando em mim, não gosto até hoje. Eu tenho meu marido maravilhoso, ele pode tudo, mas sempre foi muito difícil, assim, sabe, porque não é muito agradável ter alguém te tocando quando você não quer, não é? Então, eu sempre fui ressabiada com droga por causa disso. Porque eu achava que eu ia sair de mim, que as pessoas iam abusar de mim, assim. Então, eu ficava bem...
P1 - E nesse período, você andava, então, muito, na região central? Como era o Centro naquele momento?
R – Era bem interessante. Porque o Centro, anos 90 - 1988, de 1988 até 1990- tinha alguns movimentos. Um deles era o hip hop, que a periferia tomava conta do Centro. Tinha altos movimentos. Até hoje eu vejo essa coisa da polícia e tal, que naquela época a gente já lutava para que a polícia não fosse agressiva, que os movimentos fossem mais amenos. E eu me lembro de que eu fiz um clip para uns amigos, que tinha um grupo que chamava Região Abissal, de hip hop. Foi um dos primeiros grupos de hip hop, não é? E eu tenho um clip dançando com eles no escadão ali da Martiniano de Carvalho e eles ficavam bastante ali no Anhangabaú. Ao mesmo tempo que tinha esse movimento hip hop...
P/1 – Você dançava?
R – Dançava. Dançava muito. Adorava dançar. Adorava. E antes, eu também gostava de dançar. Quando minha mãe trabalhou no Gallery, ela me colocou para fazer ballet no Stagium. Ali na rua Sarandi, imagina. Ao som de piano. Eu fiz um tempo, achei muito legal, mas eu gostava de dança de rua, mesmo. Eu estava muito acostumada com a rua, eu fui uma menina que foi criada assim, para andar na rua, mesmo. É muito da minha personalidade, não é? E, ao mesmo tempo em que tinha esse hip hop ali no Anhangabaú, você tinha a Woodstock Discos, que era quase no mesmo lugar. Era um aqui, aí você olhava, um monte de rock and roll. E todo mundo se respeitava. Não tinha muito... Tirando os carecas, na época, que aí era pesado, a gente tinha que sair correndo, porque eles chegavam e devastavam o Centro de São Paulo. Eles batiam em todo mundo, movimentos punks, não é? Tirando isso, não tinha perigo nenhum, não. A gente só tinha receio, mesmo, dos carecas. Quando eles apareciam, era mais pesado. (risos)
P/1 – Como você começou a dançar hip hop?
R – Ali, pela Bela Vista. Eu andava muito com a galera. Desde sempre. Essas minhas fugidas de casa, eu ficava nos movimentos das esquinas. Tinha um grupo na esquina, já fazia amizade e então era muito fácil para mim, eu conhecia todo mundo, já. E aí o Giba, que era esse meu amigo, que morava ali no Carrão, me chamou: “Vamos participar de um clip, tal”. Eu e umas amigas, e a gente foi participar. Nós andamos um período com eles, com o movimento, mas eu também andava em várias turmas, porque eu trabalhava bastante e, como eu era muito curiosa, fazia amizade muito fácil.
P/1 – E tem esse clip?
R – Tem, na internet. Eu te mostro. (risos)
P/1 – Eu quero ver.
R – Tem do Perdidos na Noite. Tem. De vez em quando eu olho, assim, para relembrar, não é?
P/1 – E você prestava atenção, lhe chamava atenção lugares para comer na adolescência, nesse período?
R – Minha mãe, por trabalhar à noite, conhecia todo mundo de restaurante. Então, ela me levava muito para comer fora. A minha mãe nunca fez conta disso. Então, o Rodeio, por exemplo, a minha mãe sempre gostou de restaurante badalado, tal, e a gente ia no Guanabara, no Brahminha eu ia tomar chopp, minha mãe ia tomar chopp e me levava junto. A gente brigava, mas muitos momentos ela me apresentou muita coisa, assim, bacana. ____________ [39:34]. Então, ela sempre me ensinou a tomar vinho. O Giovanni Bruno era muito amigo dela. Muito. Então, se eu não ia lá comer a lasanha e tomar um pouquinho de vinho, que ele misturava com água e me dava, com cinco anos, ele mandava uma lasanha para a minha casa. E graças a Deus, eu consegui fazer uma homenagem para ele, antes dele morrer. Porque eu, pequenininha, ficava atendendo telefone e tudo, e eu consegui gravar com ele lá para... Essas coisas são intuitivas, não é? Eu senti que ele não estava muito bem e quis deixar uma coisa dele para São Paulo. Ele foi o grande anfitrião de São Paulo. Ele tinha o Il Sogno di Anarello, nunca me esqueço e ele era um homem incrível. Incrível, incrível, incrível. E eu, pequenininha, ele já me ensinava a comer e beber. Ele era muito amigo da minha mãe, não é? Então, ela me levou para muitos lugares. Eu tive um desenvolvimento gastronômico que eu devo muito a ela. O livro que eu escrevi, junto com meu amigo Rafael Tonon, que é um jornalista de Campinas, maravilhoso, eu apresentei esses restaurantes para ele, que eram os 50 restaurantes da minha lista, com mais de 50 anos, que eu frequentei com a minha mãe. Acho que eu fui em todos com a minha mãe. Então, ela não fazia conta.
P/1 – Esse livro dos 50 anos que você conheceu com ela?
R – Que eu conheci com ela. Quase todos.
R – Desde quando eu era pequena, até...
P/1 – Qual um outro que lhe marcou?
R – Muitos. O Il Sogno di Anarelllo está na primeira página, porque ele estava fechado quando a gente fez o livro e depois reabriu. A filha dele reabriu, do ‘seu’ Giovanni. Mais o Capuano, que era ali na Bela Vista, que eu estudava com as meninas, filhas das donas, as netas dos donos, não é? E o Roperto, as cantinas do Bixiga... Onde eu andava, não é? Tudo ali. O Casserole, onde eu lancei o livro, que é um patrimônio. São restaurantes que são grandes patrimônios da história de São Paulo. Eu amo os restaurantes antigos. Amo. Tenho o maior respeito e admiração total por eles.
P/1 – Você sempre ia?
R – Sempre ia.
P/1 – Quem ia? Você, sua mãe...
R – Às vezes eu ia com a minha avó. A minha avó, como a gente passava muita necessidade e a minha mãe, às vezes, tinha dinheiro... Só que a minha mãe tinha muita amizade com os donos de restaurantes, porque ela trabalhava no Gallery e no Hippopotamus e eles frequentavam esses lugares, e então eles falavam: “Regiane, vai amanhã lá almoçar com sua filha, para conhecer e tal”. Ela tinha muito bom relacionamento com as pessoas do Rubaiyat, com seu Belarmino pai, a minha mãe conhecia. Então, ela tinha portas abertas. A minha avó já tinha uma outra história: na adolescência dela - ela me conta - não na adolescência, porque ela ficou grávida com 30 anos, mas ela frequentava ali o Terraço Itália, ela conheceu o pai da minha mãe no Terraço Itália e no Círculo, porque ela era bordadeira da La Selva, ali na São Luiz, que é onde eu moro. Ela ficava bordando o dia inteiro, depois ia badalar, não é? Linda, ela era linda, usava salto, umas roupas maravilhosas, bordava as roupas dela. Mas minha avó, a família muito pobre. Eles perderam tudo que tinham em Catanduva, os irmãos jogaram tudo o que eles tinham de sítios, as terras que eles tinham em Catanduva, o irmão veio para São Paulo e detonou no Jóquei Clube. Então, a família inteira ficou na miséria. Mas a minha avó tinha um requinte: ela não saía na rua sem passar um batom, sem se arrumar. Ela não gostava de fuxicar da vida dos outros, ela não tomava conhecimento da vida dos outros, ela não gostava que a gente falasse mal da vida de ninguém, e ela falava: “Eu não quero saber o que se passa da minha porta para lá. Cada um sabe o que faz”. Ela era muito centrada, minha avó e é interessante... Ela tinha um preconceito: ela não gostava muito de negros. E eu achava aquilo o fim do mundo e aí era onde eu a peitava, que eu ia... Só andava com negros. E a minha mãe acabou casando com um negro. E ela teve dois netos negros. E eu sempre falava para ela: “Então, você veja só, o seu único defeito, até o final da sua vida, você pagou. Como a gente paga na Terra, não é? É aqui mesmo”. E ela tinha adoração pelos netos, principalmente o mais negro, que é o Ronaldo, que é meu irmão, que ela cuidava dele, que ele nasceu de seis meses, com o olho pendurado e foi o amor dela, ela tinha muito amor por ele e ele é negro. E eu falo: “A vida é interessantíssima, porque a lei da natureza é implacável. Se tem uma coisa que funciona, é a lei da natureza”. Enfim, ela tinha muito pouco dinheiro, voltando ao assunto dos restaurantes, e ela conseguia me levar para comer um cachorro quente nas Lojas Americanas uma vez por mês. A minha avó. Mas quando a minha mãe aparecia, aí minha mãe já vinha e já me levava para algum lugar diferente. E foi assim. Eu fui trabalhando...
P/1 – E aí você continuava trabalhando em loja, mas você tinha uma coisa assim: “Eu quero fazer tal coisa na vida”? Você estava trabalhando, você pensava assim: “Vou ser tal coisa”?
R – Nada. Teve um momento em que eu gostava tanto de vendas e aí chegou o momento que loja de shopping já não era assim uma coisa que vendia tanto. Teve o ápice e depois deu uma baixa, porque começaram a abrir muitos shoppings em São Paulo. Foi quando começou a abrir o Shopping Plaza Sul, o Shopping Paulista. E para complementar a renda, porque eu estava acostumada a ganhar mais, eu vendia muito, ficava 12, 13 horas em pé... Tinha varizes na perna inteira - fiz tratamento de varizes - eu não sentava, porque eu queria vender. E eu era a melhor vendedora em todas as lojas em que eu trabalhava. E aí, para complementar a renda, não contente, eu fazia sanduíche, punha numa sacola de uma grife qualquer, punha tudo dobradinho nos saquinhos e eu fazia iogurte natural, punha numa térmica, punha na geladeira, eu que fazia o iogurte, a coalhada, deixava coalhando da noite para o dia, direitinho e depois batia com uma fruta do dia. E eu chamava de Dan Up da Casa Especial e eu saí vendendo para lojistas, anotando numa caderneta. E elas me pagavam.
P/1 – O sanduíche, o que era?
R – Era beirute. Eu fazia de queijo fresco, tomate, alface, rosbife. Eu que fazia tudo. O rosbife, tudo. Aí eu ia montando os sanduíches e elas me pagavam todo dia cinco e dia 20. Então, de manhã eu vendia e à tarde eu trabalhava em loja. Até à noite. E à noite eu saía para badalação, para badalar. Era assim minha vida.
P/1 – E você que fazia? Comprava os ingredientes?
R – Comprava tudo e fazia tudo. Esse foi o meu primeiro negócio no ramo gastronômico.
P/1 – Você nunca pensou em comida, era uma alternativa?
R – Não, era só uma alternativa, mesmo, para complementar a minha renda, naquela época. Eu tinha 15 anos. 16. Foi depois que meu pai faleceu. E meu pai também não podia me ajudar. Meu pai também era doidão, ele vivia sem dinheiro, assim, sabe? Era uma vez ou outra que ele me levava para comer no Grupo Sérgio, (risos) naquela época, não é? O rodízio de pizza. E só. Não tinha como. Meu pai ficava 15 dias sem aparecer na casa dele, com as minhas irmãs pequenas e com a minha madrasta e tudo. Ele era doidão. E um coração incrível, assim, sabe? Você falava: “Gilberto, essa camiseta é linda!” Ele tirava e lhe dava. Ele era assim.
P/1 – E aí você foi vendendo, você estava trabalhando em loja, vendendo lanche Dan Up da Casa...
R – Era, do dia. Que eu batia com alguma fruta que estivesse barata na feira, não é? Não tinha dinheiro. Então, tinha que ser assim. Hoje está super na moda você fazer o seu iogurte e bater com a fruta da estação. É o que todo mundo tem que fazer, hoje. Naquela época, isso nem passava pela minha cabeça. Era super inconsciente. Totalmente inconsciente.
P/1 – Aí você foi trabalhando, chegou um momento... Teve algum momento em que você falou: “Vou parar de vender”? Você parou de estudar, não foi mais?
R – Eu, na sétima série, parei. Depois, eu fiz um supletivo ali no Inácio, na Brigadeiro Luiz Antônio, mas eu nem ia à escola. Tinha que fazer a prova e tudo certo. Eu nem conto, porque... Não conto com isso como estudo, porque não é verdade. Eu não estudei. Parei na sétima série e pronto, fui trabalhar, pronto. Então, eu fiz esse supletivo, porque quando eu comecei a ficar um pouco mais velha - 17, 18 anos - eu falei: “Gente”... O shopping já não estava com aquele fervor todo, eu estava vendendo lanche... “Como é que eu vou fazer para ganhar mais?” Porque eu não queria não ter uma casa para morar, minha família não tinha, morava de aluguel, num quarto e cozinha, tinha um banheiro para não sei quantas mil pessoas que moravam no quintal da casa da minha avó e então eu queria melhorar. Eu lembro quando eu aluguei a primeira casa, que tinha um quarto para mim e para a minha avó, uma sala e um banheiro dentro de casa, que eu chorei de emoção. Porque eu tinha um banheiro para usar, meu, sabe? Que eu não tinha que dividir com 50 pessoas. E, de manhã, você tem que tomar banho e ficar na fila do banheiro para poder ir trabalhar. Então, você tem que acordar muito mais cedo. E era meu sonho alugar uma casa e eu aluguei trabalhando. Eu tinha o quê? Dezesseis anos. Eu aluguei uma casa e fui morar com a minha avó num quarto, sala, cozinha e banheiro dentro de casa. Foi lindo! Uma casa super modesta.
P/1 – Onde? Lá na Vila Zelina?
R – Na Vila Zelina. É. E aí eu falei: “Eu preciso arrumar um método de ganhar mais dinheiro”. Eu não pensava o que eu ia ser, porque eu não ia poder pagar Faculdade, não ia ficar estudando porque, ou eu estudava ou eu trabalhava. Não tinha como. Para trabalhar do jeito que eu trabalhava, para pagar conta, mesmo, não tinha como. Então, foi quando eu resolvi ser corretora de imóveis. (risos) Aí eu fui ver, tinha que ter o terceiro grau. Foi quando eu falei: “Espera, que eu vou fazer um supletivo”. E aí eu estudei um pouco sobre imóveis, tudo e eu tirei o Creci e fui vender terrenos em Avaré
, naquelas Terras de Jurumirim, sabe? Naquela empresa. E eu vendi um monte de terreno e comecei a ganhar um dinheirinho.
P/1 – Era boa de venda?
R – Eu era boa de venda.
P/1 – O que você fazia? C
omo era? Tem algum ‘causo’ de alguma venda?
R – Eu tinha uma tia que namorava um professor da USP – ele se chamava professor Fonseca e ele frequentava um bar que era ali no Bar do Museu, que era do MAM, ali onde eu estou com o Bar da Dona Onça. Lá tinha muita gente da Bolsa, onde eu conheci o meu sócio, que me conheceu criança, mas eu não lembrava dele. Ele lembrava de mim e eu não lembrava dele. Tinha umas mesas assim, e eu chegava já oferecendo as coisas. Teve uma época em que eu era corretora de imóveis, vendedora de lingerie, de bijuteria, de lanche, tudo dentro de um fusca. Comprei meu primeiro carro, pus tudo dentro de um fusca. E eu saía vendendo tudo por aí. O que você quisesse, tinha. Aí eu vi, lá no jornal: “Precisa-se de vendedora para pet shop”. Quando eu cheguei lá, era para vender pastilha de chocolate para cachorro. E eu ficava vendendo tudo junto. Então, tinha um talão de chocolate para cachorro, tinha lingerie, tinha as bijuterias da lojinha da minha irmã - que minha irmã tinha uma lojinha ali na Quintino Bocaiuva - eu pegava tudo e saía vendendo, junto com tudo. Os terrenos... Aí, teve uma época em que eu peguei até filtros Europa. Sabe esses filtros Europa da época? Então, eles ligavam lá na empresa para fazer manutenção, eles falavam: “Vai lá, vende outro para a pessoa”. Eu ia lá, vendia outro filtro: “Não, até consertar esse... É melhor devolver esse, eles revendem, vamos comprar um mais inovador, com mais tecnologia”. E eu vendia, e assim fui trabalhando. Quando eu vendi o primeiro terreno...
P/1 – Mas aí morando ainda na casa...
R - ... da minha avó. A minha mãe já não estava aí, estava em Londrina. E aí, eu lembro que fiz a primeira venda de um terreno, que custava muito caro e eu vendi para o pessoal... Era uma família de um posto de gasolina ali na Marginal Pinheiros. Não lembro agora de cabeça, mas era uma família árabe e eles queriam construir uma casa nessa represa, onde eu tinha os terrenos. E eu ganhei tipo 15 mil reais na venda, assim. Eu falei: “Nossa, que maravilhoso. Eu lembro de que fui no Santa Luzia, porque minha mãe já tinha me levado lá. Ela trabalhava ali no Gallery e então eu passeava ali nos Jardins, com a minha mãe, e aí eu comprei um monte de coisa: um vinho de sobremesa, um vinho não sei o quê... Eu lembro de que tinha uma revista que se chamava Gula, na época, e tinha um vinho, assim, super toscano,e eu olhei aquela revista e falei: ‘Nossa, eu quero fazer esse prato aqui”. Chamei todos os meus amigos da Bela Vista, (risos) fomos todos para a casa da minha avó e lá eu fiquei cozinhando, aí comprei charuto, sabe? Tudo que eu vi na revista, eu quis fazer. E eu comecei a me interes sar por vinhos. Eu tomei aquele vinho de sobremesa, achei tão maravilhoso, mas tão maravilhoso...
P/1 – Até então, você não tinha esse desejo? Quer dizer: você conhecia...
R – Não. Eu conhecia vinho, minha mãe tomava em casa; quando a gente saía no ‘seu’ Giovanni Bruno, e tal. Mas esse vinho de sobremesa, essa coisa... Aí eu falei: “Nossa, eu preciso trabalhar muito, ganhar dinheiro, porque eu preciso tomar esses vinhos. Eu quero aprender de vinho agora”. Aí, minha mãe falou assim: “Nossa, você gosta tanto de vinho, vende vinho”. Aí eu mandei uma carta, uns currículos para tudo que eu vi na revista, as importadoras atrás, eu comecei a escrever carta de currículo para levar para essas importadoras. Escrevi para umas cinco, seis. E eu vi lá uma Expand, na época era super famosa, era a importadora mais legal, assim. Aí me chamaram para uma entrevista. Nossa, eu vibrei, não é? Falei: “Meu Deus do céu, que coisa maravilhosa! Eu vou ser chamada para fazer uma entrevista na Expand”. Aí nunca me esqueço, ela chamava Márcia, se eu não me engano, a moça que me entrevistou. Ela era diretora da Diageo e depois foi para a Expand. Uma graça ela! Ela me entrevistou, me adorou, mas ela falou: “Olha, você não tem Faculdade, não é?” Falei: “Não”. Aí ela falou: “Putz, então... Eles estão dando prioridade para quem tem Faculdade”. Eu falei: “Mas para vendas?” Ela falou: “Aqui é meio assim, complicado”. Aí fui para casa, chorei, falei para minha avó: “Está vendo? A gente não tem dinheiro para nada, não consegui”. Fiz um drama e minha avó falou: “Eu vou acender uma vela do seu tamanho para Santa Rita de Cássia” - eu nunca me esqueço disso – “e essa empresa vai te chamar”. Aí deu, assim, um mês, mais ou menos, o telefone toca e a mulher me chama e fala assim: “Você é uma bruxa”. Eu nunca me esqueço. Eu falei: “Por quê?” Porque eu fiquei muito brava que ela falou isso para mim, da
Faculdade, e falei: “Um dia você vai me procurar. Eu ainda vou vender vinho”. E ela falou: “O cara que eu contratei não deu certo e eu vou te dar uma chance”. E eu deixei uma carta para ela, na recepção da Expand, falando dos problemas com a minha avó, da minha família, minha batalha de vida e tal, e ela leu a carta. E ela me chamou e falou: “Eu vou lhe dar essa chance, sim. Você vai vender vinho”. E eu comecei a fazer todos os cursos lá dentro, com a Anna Rita Zanier, com o Jeanne Tartare. Eu tinha um chef diretor lá, que se chamava Stefano Zanier. E eu comecei a vender muito e eles me deram os restaurantes mais populares, porque eu não sabia nada. Até aprender. E foi incrível! Eu fui crescendo dentro da empresa, fiquei lá dois anos, mais ou menos. E é engraçadíssimo, porque deu esses dois anos, tinha uma empresa concorrente da Diageo, Pernod Ricard, nunca vou me esquecer. A gente era, na época, a importadora mais badalada e eu era bastante agressiva em vendas, porque era minha forma de viver, então eu vendia mesmo, era competitiva. E você montava um restaurante naquela época, eu chegava para você e falava assim: “Olha, então, nesse canto aqui...”. Naquela época, ninguém tinha adega de vinho. Eu via algum espaço e falava: “Olha, aqui cabe uma adega de vinho. Eu vou te dar essa adega em comodato, mas eu preciso que a Carta seja 100% dos nossos vinhos”. Como a gente era a importadora com maior número de rótulos - tinha mais de três mil rótulos - a pessoa punha 30 rótulos e a adega era dela. E essa empresa, Pernod Ricard, tinha vinhos e ela fez a mesma coisa que eu, só que com destilados. Ela montava os bares das pessoas com Chivas, algumas marcas de bebidas, na época. Porque tudo muda, não é? Conforme vão passando os anos, vai mudando. Na época, tinha um monte de bebida: vodka, whisky, tudo, e eles tinham alguns rótulos de vinho e queriam colocar nas Cartas em que eu estava. E eu não deixava, de jeito nenhum, entrar um vinho deles. Até que eles resolveram querer me contratar. Aí me fizeram uma primeira proposta, uns head hunters, na época, e eu falei para o meu chefe, Stefano: “Eu fui chamada para trabalhar na Pernod Ricard, nessa empresa de bebidas”. “Ma che, está louca?” -
italiano – “o que você tem a ver com destilado? Você gosta de vinhos. Que vai vender destilado, para quê? Está louca?” (risos) E ele me convenceu, eu não fui. Porque eu tinha muita gratidão por eles, estava aprendendo muita coisa. Eu vendia muito, me sustentava. Era muito legal. Aí, de novo, vieram com uma outra proposta: eles me deram um carro, um gol zero; um cartão corporativo para eu gastar – eram, na época, cento e cinquenta reais por restaurante, para eu conhecer os restaurantes e ter acesso. Eu não ia mais vender, não ia mais ser vendedora. Eu ia promover os produtos deles dentro dos restaurantes. Um sonho! Aí cheguei para o Stefano: (risos) “Desculpa, mas eu acho que eu quero e eu quero entender de outros produtos também”. Era uma empresa que tinha, além dos vinhos, um monte de outros produtos para eu aprender. “Tá bom” - ficou puto – “mas vai, tá bom. Esses jovens!”. Porque ia desfalcar a equipe dele. “Vou te dar um monte de restaurante bom. E agora? Você ia ter a Carta, a melhor Carta”. Falei: “Não, então”. E aí eu fui para a Pernod Ricard, para essa empresa. E aí, lá, eu fiquei durante sete anos nessa empresa. E o interessante dessa história, que tem a ver com gente, com vida e com pessoa, é porque eu comecei a viajar o mundo todo com eles, aprendi Espanhol lá dentro - eu falo Espanhol, perfeitamente - eu comecei a negociar com os chilenos, com a Concha Y Toro, com as empresas de vinho, eu mesma negociar diretamente, fazer as ações promocionais. Todo mundo gostava muito de mim, os meus chefes todos era incríveis. Eu não tive um chefe ruim. Todos que passaram por mim. E teve trocas nesses sete anos, quase oito.
P/1 – Você foi crescendo lá?
R – Fui crescendo, aí eles me promoveram, eu era a chefe dos vinhos que viajava o Brasil inteiro dando curso de vinhos e de cachaça. A,í quando precisava falar de whisky, eu comecei...
P/1 – Você foi estudando?
R – Fui estudando tudo, tudo, tudo, tudo, pesquisando, estudando.
P/1 – Como é que você fazia?
R – Fazia todos os cursos que apareciam, todos. De vinhos eu fiz todos que existiam no Brasil e todos que eu vi fora, que eu podia ficar dentro das vinícolas. Imagina, trabalhei na Almadén, junto com os enólogos, na época, para entender o mercado. E para melhorar o produto. Depois eles acabaram vendendo até para a família do Fábio Miolo, que eu falei: “Gente, vocês não estão conseguindo fazer vinho bom, vende para quem faz”. Eles venderam a vinícola para o Fábio Miolo. E foi incrível, uma época maravilhosa. Eles alugavam jatinhos para levar chefs de cozinha para as vinícolas. A gente ia de jatinho para promover as ações com vinhos, que era divisa com Uruguai, ali. Era incrível. Eu tive experiências, assim, maravilhosas, de gente. Nessas minhas andanças por restaurantes, eu conheci um restaurante japonês que chamava By Aoyama...
P/1 – Porque você tinha tudo isso, mas também comia...
R – Tinha que comer. Se eu não comesse, eles falavam... E, muitas vezes, eu ficava tão amiga do pessoal dos restaurantes... Porque eu ficava 24 horas trabalhando, eu não tinha essa, eu trabalhava 24 horas para essa empresa, porque eu amava o que eu fazia, sabe? Era uma oportunidade única de aprendizado, ali, para mim, então eu vivia para restaurante, eu não fazia outra coisa, foi uma paixão. E aí ele falou para mim assim... Eu nunca me esqueço, o Adriano Kanashiro: “Você tem que conhecer um restaurante. Dois jovens, um que fica no salão e outro na cozinha. O cozinheiro é incrível, um jovem, tem 20 e tantos anos, maravilhoso. Você tem que conhecer esse cara. Ele vai ser o grande chef do Brasil”. “Se você está falando, eu vou. Marca lá”. Acho que ele ligou, marcou, porque os caras eram meio chatos, era um restaurante meio chato, pequenininho, tinha cinco meses, só atendia com reserva, chato para caramba, e lá fui eu para esse restaurante. Chamava Pomodori. E aí eu nunca me esqueço: eu entrei, (risos) bati o olho no cozinheiro e falei: “Gente, eu vou casar com esse cara. Nossa, o amor da minha vida”. E olhei para ele e fiquei louca! Me deu um negócio, uma comichão, uma coisa. E ele nem olhava na minha cara!
P/1 – Você tinha namorado? Não tinha?
R – Ah, eu tinha um monte de namorados, imagina! Um monte. Um namorado? Tinha um monte. Nossa, eu tive um monte de namorados. Um monte. Adorava namorar. Mas nenhum me encantava, não é? Eu bati o olho e falei: “Gente do céu! O que é isso?” E aí veio o sócio dele me atender, conversar comigo e eu fiquei amiga do sócio e ele não olhava para mim, nada. Zero. Falei: “Mas, gente, que coisa horrorosa esse cara, não é?” (risos) Aí eu levava o presidente da minha empresa para ir almoçar lá.
P1 – Lá no Pomodori?
R – No Pomodori. E eu fazia reserva, porque era caro. Todo mundo: “Onde vai comer?” “No Pomodori”. Tudo e nada. Aí eu fazia muitas promoções, a gente tinha uma balada, eu chamava de Quinta, eu aluguei um camarote para fazer a festa para os cozinheiros, para os donos dos restaurantes, para promover nossas bebidas lá dentro. Eles provavam e depois eles colocavam nos restaurantes. E aí eu passava no Pomodori, porque eu fiquei amiga desse amigo dele e, muito engraçado: o amigo dele ia comigo para a balada e ele tipo aparecia, bem chato, assim. Eu falava: “Gente, que homem difícil, não é?” Ele nem falava, falava um oi assim: “Oi”. E saía. Um dia, uma quinta-feira, era um frio danado, eu parei o carro, estava jantando numa amiga, falei: “Vou parar lá no Pomodori”. Porque eu o paquerava. E vou chamar o Rodrigo para ir comigo - que era o amigo dele - porque ele não vai, mesmo. Parei o carro, quando eu abri a porta, tinha um segurança: “Ô, Janaína”. Eu entrava sem reserva, já fiquei amiga. Que eu abro a porta, que ele me vê, ele vem correndo e me dá um abraço: “Estava atrás de você”. Falei: “De mim? Por quê?” Ele falou: “Nossa, você não viu minha mensagem?” Eu falei: “Que mensagem?” Naquela época ficava mensagem no celular, não é? Você ouvia a mensagem. Falei: “Não, que mensagem? Você mandou mensagem para mim?” Eu fui ver. “Nossa, ele me deu telefone errado, não era o seu telefone”. Ele foi ver, o Rodrigo deu telefone errado. Ele pediu meu telefone, o Rodrigo deu de outra pessoa. (risos) Aí, enfim, ele falou: “Eu estou atrás de você, porque eu estou com um pessoal. Você sabe que eu sou do interior, não é? Eu estou com um monte de gente aí do interior e não sei onde levar. Você pode me ajudar?” Falei: “Nossa, posso, super”. Como eu tinha muito conhecido no de Quinta, toda quinta-feira tinha muita gente de restaurante, meu chefe geralmente estava lá e tudo e eu estava de olho no Jefferson, eu falei: “’Meu’, não, eu vou te levar em outro lugar”. Nunca me esqueço. Eu o levei no Sarajevo da rua Augusta, com o Alaor todo tatuado a cara, meu amigo de muitos anos, lá do Madame Satã. E lá eu entrei com ele e os amigos caipiras dele de Rio Pardo. Quando eu cheguei na pista de dança, que estava tocando aquelas músicas do Madame Satã e tal, eu encostei no bar e falei: “O que você quer tomar?” Ele falou: “Eu tomo cachaça”. Eu falei: “Bom, então eu vou te acompanhar e vou tomar um conhaque”. (risos) Aí eu pedi um conhaque (risos) e ele pediu uma cachaça. E a gente foi para a pista de dança. Quando eu cheguei na pista de dança, estava assim meio dançando lá, ele me agarrou, minha filha, e me deu um beijo na boca, de língua, aqueles maravilhosos e eu fiquei: “Nossa, não acredito”. E aí eu fui dormir com ele. Quer saber? O maior tesão nele, eu vou e pronto. Depois ele não vai me procurar nunca mais, porque esse cara é difícil para caramba, não é? Cara chato. Mas enfim, fui, saí com ele e ele foi muito carinhoso. A gente foi dormir junto, ele falou: “Espera”.
P/1 – Na casa dele?
R – Não. Os amigos estavam na casa dele, era um flat e ele me levou para um hotel.
P/1 – No Centro?
R – Não. Ali no Itaim. Aí, um puta rolo, porque eu não queria subir no quarto com ele, eram aqueles hotéis, sabe? Tipo de rua, assim. Eu me enrolei, não quis transar com ele à noite, fui transar com ele só no outro dia.
P/1 – Por quê?
R – Não sei. Porque eu falei: “’Meu’, ele quer se aproveitar de mim. Filho da p...”. Essas coisas. E aí, deu certo. Porque ele foi para o Pomodori, era uma sexta-feira, eu liguei para minha chefe, falei que não ia trabalhar, que depois eu contava para ela o que tinha acontecido e eu contei para ela o que aconteceu, de verdade. Porque eu não gostava de mentir e ela era muito minha amiga e eu falei: “Eu não vou trabalhar” - porque eu fazia a rua Amauri – “eu não estarei na rua Amauri, depois eu te conto. Hoje eu não vou”. Ela: “Não, está bom, depois você me conta, então”. Aí ele foi para o Pomodori, trabalhou, quando foi umas três horas da tarde ele voltou com uma marmita de comida para mim e começou a falar que eu era linda, que ele me adorava, que ele me paquerava e não sei o quê. Eu falei: “Mas você nunca... Você está falando isso só porque você quer transar comigo. Para, que idiota, não é? Eu vou dar para você, não precisa ficar falando isso para mim”. E ele começou a rir, me abraçou e a gente transou e eu falei: “Nossa, nunca mais, não é?” Mas ficou aquela coisa. Aí ele virou para mim e falou assim: “Olha, você pode me ligar a qualquer hora, qualquer momento, eu estarei à sua disposição”. Falei: “Ai, que mentira!” Mas está bom, o deixei. Eu falei: “Não vou ligar no outro dia”. No outro dia é fogo! Eu esperei dois. (risos) Aí eu liguei. Nisso que eu liguei, eu falei: “Tem uma festa para a gente ir, você quer ir comigo?” “Claro! Passa aqui. Só que você sabe, eu sou cozinheiro, tem que esperar, eu saio só meia-noite, meia-noite e meia. Tem que esperar fechar a cozinha, mas depois eu sou todo seu”. E aí a gente saiu, eu fui dormir na casa dele e a gente nunca mais se desgrudou. Nunca mais. Eu engravidei com três meses...
P/1 – De namoro?
R – De namoro. Casei. Namoro? Sei lá o que era aquilo. A gente foi viver junto. Eu peguei minhas coisas, eu estava com a minha avó, a minha avó foi ficar com a minha mãe...
P/1 – Mas você não estava mais na Vila Zelina? Já tinha...
R – Não. Estava na Vila Zelina. Aí eu conversei com a minha mãe, minha mãe já estava em São Paulo, eu estava apaixonada e eu precisava morar com ele. Aí a minha avó foi morar com a minha mãe, para eu poder viver isso. Eu conversei com a minha avó, conversei com a minha mãe, minha avó foi super contrariada, mas eu precisava viver.
P/1 – Você continuou no trabalho?
R – No trabalho, na Pernod, até meu filho nascer, tudo normal. Foi ótimo! E aí eu engravidei. Nisso, a minha avó não estava conseguindo viver com a minha mãe e eu estava ficando mal. Aí ele falou: “Não, nós vamos alugar uma casa e vamos viver nós três juntos”. E foi quando eu levei minha avó para morar com a gente, nós nos casamos na igreja, lá na cidade dele e tudo.
P/1 – Em São José do Rio Pardo?
R – É. E aí a minha avó começou a ter Alzheimer. Aí foi bem difícil, porque eu trabalhava muito fora e nasceu meu primeiro filho e aí eu peguei uma pessoa para cuidar dela e descobri que essa pessoa judiou da minha avó e eu fiquei muito mal. A gente acha que nunca vai acontecer com a gente, mas as coisas acontecem. Aí eu entrei em pânico e não sabia o que fazer, porque minha avó estava incontrolável com o Alzheimer.
P/1 – Você estava com um filho pequeno...
R - ... E trabalhando.
P/1 – Qual é o nome dele?
R – João Pedro.
P/1 – Como foi o nascimento dele?
R – Nossa! João Pedro é a maior bênção que eu tenho, assim.
P/1 – Quando você descobriu que estava grávida?
R – Nossa! Eu, na verdade, sei o dia exato em que eu fiz o João Pedro. Eu senti. Eu senti um negócio que veio até aqui, assim. Veio um negócio aqui e parou aqui. E eu falei: “Eu estou grávida. Engravidei”. Eu pensei. Dito e feito.
P/1 – Você já estava morando?
R – Eu estava morando com ele. E veio e foi dito e feito. Engravidei, eu sabia, eu senti alguma coisa diferente naquele dia. E o João é abençoadíssimo, porque ele fez uma união, mesmo. Eu sinto que o Jefferson é minha alma gêmea. Ele não é uma alma companheira. É de outra dimensão, assim. É uma outra história. É uma alma que a gente não consegue ficar longe. A gente se encontrou e não consegue ficar longe, e ele é muito tímido. Então, ele diz que sempre viu isso em mim. Que ele sempre, também, teve essa conexão, mas ele tinha medo. Ele me achava bonita e tal, expansiva. Então, ele ficou observando, sabe? Mas diz ele que ele também sentia a mesma coisa que eu. E é bem louco, porque o nascimento do meu filho fez assim com as nossas almas. Serviu, mesmo, para fazer assim, falar: “Nossa, é para o resto da vida”. Eu sinto. É muito louco! Eu já sei que é uma coisa que supera qualquer coisa. O nosso amor é muito acima de qualquer coisa. E eu sinto que ele também não vê, sabe? A gente briga, como qualquer outro casal e tudo o mais, mas foi um encontro de almas, mesmo, assim.
P/1 – E aí, nesse período, moravam seu filho, você, ele e sua avó? E a cuidadora?
R – Aí aconteceu isso, que ela maltratou minha avó, meu filho pequeno acabou me falando e aí foi uma comoção, porque eu fiquei mal e como é que faz, não é? Ela me criou, era a minha vida ali e como é que eu faço? Vão judiar, como é que é isso? Eu viajava o Brasil todo, viajava para a França, viajava para a Itália, viajava para o Chile, ficava dias. E a minha sogra me ajudava muito, assim. Muito. Me ajuda ainda. E foi quando minha sogra falou: “Olha, aqui em Rio Pardo eu ajudo numa casa. Tem a particular e tem a do Estado, que cuidam de pessoal com Alzheimer e tudo o mais. Mas, se você quiser trazê-la para cá, para eu ir todos os dias lá e ver como ela está e tudo, eu organizo para você”. Eu quase morri porque... Como é que faz, não é? A pessoa que te criou e tal ir para 300 quilômetros e eu ficar indo a cada 15 dias visitar. Muito difícil para mim. Aí eu fui, aquela sensação de culpa, aquela coisa louca.
P/1 – E a sua mãe?
R – Então... A minha mãe... Elas brigaram, na verdade. Então, elas estavam meio brigadas, mas elas se amam, se amavam e brigavam e se amavam e brigavam e a minha mãe também trabalha. Agora não mais, porque a minha mãe está doente agora e não está trabalhando, mas ela trabalhava bastante também. Ela trabalhava no Walmart na época. E também tinha que sustentar a casa e tudo o mais. Aí, a gente decidiu levá-la para Rio Pardo, lá para essa clínica. Aí deu uns 15 dias, eu fui visitar, eu fiquei muito deprimida, porque não é fácil você ver uma mãe sua ali, não é? A velhice não é fácil para ninguém. Tem que estar preparado para ela. E aí, enfim, eu fui, visitei, voltei, estava muito mal. Aí a minha sogra me ligou e falou: “Jana” – minha sogra é um barato – “você pode me emprestar a avó?” Eu falei: “Nossa, emprestar a avó?” Minha sogra faz muito doce para fora, bala. Gente do interior, não é? Eu falei: “Posso. Se não for te atrapalhar”. “Eu queria que ela me ajudasse aqui, vou trazê-la em casa para fazer umas balinhas, umas coisas.” E eu falei: “Não, Carminha, se não for te atrapalhar”. Não queria dar trabalho para a Carminha. Aí a minha avó foi. E eu liguei para saber. A mulher da clínica me ligou: “Oi, Janaina, tudo bom? Está sabendo, não é?” Eu falei: “O quê?” “Sua avó foi embora”. Falei: “Embora?” “É, a Carminha a levou embora”. “Como assim?” “É, liga para ela, que ela te explica melhor”. Eu liguei: “Ô Carminha, tudo bom?” “Tudo, e você, Jana, como estão as coisas aí?” “É, tudo bom. E a avó, o que aconteceu?” “Ah, vai morar comigo”. Eu falei: “Como assim, ela morar com você?” “Não vou deixar a avó lá no asilo, não. Deixa eu cuidar dela, eu tenho espaço aqui em casa, ela vai ficar comigo”. E aí, ela cuidou da minha avó para mim até o último dia de vida da minha avó, minha sogra. Eu sou muito grata à família do Jefferson por essa bênção. Porque eu passei muitas coisas na adolescência, na infância, não é? Coisas que foram boas, porque me tornaram mulher, mas discriminação, essa coisa toda, ter que trabalhar muito, não estudar, porque também não quis e foi ótimo. Mas eu fui muito recompensada nesse meio da minha vida. Porque tive uma família que me amparou, achei a minha alma gêmea, tive dois filhos maravilhosos, lindos, perfeitos, abri o Bar da Dona Onça...
P/1 – E como é que foi? Você estava trabalhando lá nas bebidas, viajando o mundo, como abriu isso? O Dona Onça foi o primeiro restaurante?
R – É, em 2008. Então, eu nunca me esqueço...
P/1 – Porque o Jefferson, do Pomodori foi para onde?
R – Aí, do Pomodori ele estava lá, ele ficou até 2010, não é? 2012. Ele ficou oito anos no Pomodori. Ele era um dos sócios e ficou lá oito anos. Depois ele veio abrir o Dona Onça comigo, porque eu abri em 2008. Ele abriu o Pomodori em 2002 e em 2008 nós abrimos o Dona Onça, mas ele continuou no Pomodori.
P/1 – Mas foi sua ideia? De quem foi a ideia? Porque você estava bem lá na empresa...
R - Estava ótima, maravilhosa. Eles estavam querendo, até, me promover. E a história é bem legal, porque eu comecei a querer ter alguma coisa minha e comecei a querer viver igual ao Jefferson. Porque meia-noite, sábado, domingo e feriado, cozinheiro é assim. Ele está ali para servir as pessoas quando as pessoas estão se divertindo e você se diverte em um outro dia ou, tá, no sábado ou domingo, mas que seja sua folga; mas era raro naquela época. Como a gente não tinha nada, não tinha equipe... Hoje eu tenho 200 funcionários mas, naquela época, tinha o Pomodori. Tinha seis funcionários. Então, ele tinha que trabalhar muito. Eu falei: “Gente, eu vou fazer a mesma coisa que ele. Vou seguir o mesmo estilo de vida para poder combinar o horário. Ele não está, eu também não estou”. (risos) Fica mais fácil assim, do que ficar cobrando o cara. Não. Ele não vai estar, você também não está, fica tudo certo, não é? Eu falei: “Bom, eu vou virar cozinheira”. Porque eu cozinhava, ele adorava a comida de casa e não tinha um bar com comida caseira naquela época. Comida de casa. E eu comecei a amadurecer essa ideia com ele dentro de casa, ele começou a me ensinar as coisas como profissional: cortar...
P/1 – Cozinhar era sua vida, sua história?
R – Dessa história toda. Sempre cozinhei. Sempre adorei cozinhar. Fazia as minhas coisas. Mas não profissionalmente. Então eu comecei a cozinhar para ele, ele começou a achar a minha comida incrível e eu comecei a acreditar, ele era um chef badalado, já. Super na moda, saía em revista. E ganhava prêmios. Ele está falando, eu vou acreditar, não é? Por mais que o cara seja apaixonado, ele não é irresponsável de falar que eu cozinho bem e não ser verdade. E aí eu comecei a entender a importância de não usar industrializado, ele já tinha essa pegada desde lá atrás, por causa do interior. Não usar caldo industrializado, não usar nada que agredisse a cozinha, principalmente a caipira, que a cozinha especialidade dele sempre foi essa. Então, ele fazia os molhos, os caldos, a massa, os embutidos. Ele foi açougueiro. Então, ele sabe fazer tudo. Tudo é produzido por ele. E eu comecei a entender um pouco disso, porque eu, urbana, a indústria, para mim, era legal, não é? A gente, quando nasce aqui e tal, é tudo mais prático. E ele começou a me dar uns toques, começou a pegar no meu pé nesse sentido, de me ensinar, já que você quer cozinhar. Aí eu comecei a falar para ele que eu queria abrir um restaurante: “Para, ‘meu’, vai sofrer e tal”. “Eu vou, você também sofre, sofrem os dois”. Aí ele falou: “E como é que vai chamar esse restaurante?” Aí eu falei: “Ah, o apelido que você me dá”. “Que apelido? Eu não te dei apelido”. “Que não deu apelido! Eu sei, faz tempo! Toda vez que eu passo vocês falam: ‘Olha a dona Onça vindo lá. Você pensa que eu sou idiota? Você e seu maitre”. Na época, era o Fábio. Os dois ficavam de cochicho: “Dona Onça”. E eu escutava e ele achava que eu não escutava. “Eu não sou idiota. Eu vou pôr Bar da Dona Onça. Só para você, agora, ter que me engolir”. E ele achou uma graça, (risos) ele falou: “Gente, o nome é ótimo”. E ele foi me incentivando, ele foi me ajudando, ele foi criando esse sonho também na cabeça dele, de eu ser a dona Onça, de eu ter o bar. E ele achava que eu cozinhava superbem. E ele me ajudou a montar, ficou três meses comigo no Bar da Dona Onça, mas antes, quando eu comecei a dar o nome...
P/1 – Já tinha ideia do lugar?
R – Então... Não tinha ideia ainda, nada, de onde ia ser e eu queria que fosse no Centro, porque eu nasci lá. Eu queria conviver com o que eu sempre convivi e que eu conhecia todo mundo: o guardador de carro, o Bar do Museu, tudo, eu vivia ali. Minha mãe vendia. O Copan, eu cansei de levar roupa para minha mãe no Copan, para As Andorinhas, do sertanejo, que elas compravam aquelas jaquetas retalhadas, de roupa de couro. Elas eram minhas melhores clientes na época. Todas moravam no Copan. Tinha a mulherada em peso lá no Copan, as travestis, minha mãe conhecia todas. Vendia para as travestis, tudo. Eu que levava, ficava lá no Copan, no bloco B, no bloco A, rodava tudo. E aí eu escrevi, num papel de relatório da empresa, Bar da Dona Onça. Sabe inconsciente? Escrevi num papel. Chegou na mesa do meu chefe o relatório com os lugares em que eu tinha ido, o que eu tinha feito e tal. E ele falou: “Nossa, é um bar novo. Que bar engraçado! Bar da Dona Onça”. Eu comecei a rir. E eu, como não sei mentir - eu tenho uma coisa que não consigo - falei: “Então, Felipe, eu preciso te contar uma coisa”. Na época era o Felipe, o Alan tinha saído, o Zerbini tinha saído e ele era meu chefe direto. Ele lembra dessa história até hoje. Eu falei para ele: “Cara, eu vou abrir um bar. Vai chamar Bar da Dona Onça e eu preciso ir embora daqui”. (risos) Ele falou: “Para, ‘meu’, que loucura. Por quê? Maior trabalho, você sabe o que é ter um bar e tal”. Falei: “Mas eu quero, meu marido é cozinheiro, você sabe”. Eles iam muito no Pomodori, conheciam o Jefferson, já, meu filho já estava um pouco maior e aí eu falei: “Cara, eu tenho que ir embora, eu só queria te avisar que eu preciso me desligar da empresa e tal”. “Puxa, não acredito”. Aí foi aquela conversa, aí o diretor na época, o Ricardo, me chamou na sala dele: “Oi, Janaína, tudo bom? Estou sabendo que você quer ir embora. Nossa, mas aqui você tinha até uma perspectiva de crescimento”. Falei: “Mas vou crescer para onde?” Porque toda vez que alguém era promovido a um cargo muito alto, tipo sei lá, uma Gerência-geral, vinha o currículo da pessoa. Vinha tudo que ela tinha feito: Faculdade Harvard, Colúmbia. Os caras estudavam em tudo que era lugar. E eu ficava só olhando. Eu já achava que a minha promoção já era bem acima daquilo que eu via as pessoas, ali, não é? Ele falou: “Não, imagina, você, com a Faculdade que você tem e tudo...”. Eu falei: “Mas que Faculdade, Ricardo?” “Comunicação, não é?” Eu falei: “Quem te contou isso?” “Não?” Eu falei: “Não”. Ele falou: “Mas como você entrou aqui?” Eu falei: “Não sei. Você não é o diretor?”
P/1 – Depois de quantos anos?
R – Sete. Sete e poucos. Aí ele falou assim: “Nossa, o RH te passou?” Falei: “Não só passou, como quis me contratar duas vezes. Eu neguei a primeira. E vocês vieram atrás de mim a segunda”. “Nossa, porque a gente só pega com Faculdade”. Eu falei: “Então, não sei. Eu não menti. Meu currículo, o que eu fiz direitinho, o que eu tenho documentado, está lá. Pode ir lá ler”. Ele ficou impressionado que eu não tinha feito Faculdade. Ele falou; ‘Nossa, sempre, na minha cabeça, você tinha feito Comunicação. Era certo isso para mim”. E aí eu falei: “Não. Eu vou abrir o Bar da Dona Onça”. Aí contei o projeto, ele me desejou boa sorte e tudo o mais, e eles, quando eu inaugurei, foram lá - o presidente da empresa, seu Edmundo, um bom tempo. Um querido. Me levava para o Chile. Eu não falava Espanhol. Mas ele gostava, porque eu falava muito no mercado, só que eu não falava Espanhol. Aí ele falou para mim: “A gente vai lhe levar para o Chile, você tem que aprender a falar”. (risos) Aí eu já fiquei nervosa, não é? Mas eu sou muito rápida com idioma. Aí eu fiquei estudando em casa, minha avó é espanhola. Só que minha avó já tinha perdido um pouco, mas entendia tudo. Aí eu comecei a treinar com a minha avó um pouco, cheguei no Chile, na negociação de trazer o vinho screw cap, que era o primeiro vinho a chegar ao Brasil - e a gente queria a concessão desse vinho. Aí eu, falando do mercado, que era dinâmico, que o vinho tinha que se popularizar mesmo, que o vinho era muito enjoado ficar abrindo com a rolha, que um vinho assim mais jovem, mais moderno, mais dinâmico, ia tomar o mercado da Coca-Cuela. (risos) E eu estava falando em Espanhol e superbem. Só que aí eu pego e falo assim: “Coca-Cuela”. O seu Edmundo põe a mão na cabeça: “Ah, estava indo tão bem! (risos) Meu Deus do céu! Nossa, você estava direitinho”. A mesa inteira começou a rir, eu pedi desculpas. Até então não tinha entendido por que estavam rindo. (risos) Aí ele falou: “Coca-Cola. Não tem Coca-Cuela”. E foi um barato, assim. E ele não resistiu. Falou: “Ai, você estava indo tão bem!” E o cara deu a concessão de vinhos, óbvio, e a gente trouxe. A primeira empresa a trazer screw cap para o Brasil. E foi incrível a negociação. Eu fui embora da Pernod com o coração na mão, com esse novo desafio, que era abrir um restaurante e ter um restaurante meu. E foi isso.
P/1 – Aí, como você escolheu o lugar?
R – Eu sempre guardei o carro ali, porque eu sempre vivi ali. E eu vi uma placa ‘aluga-se’ e essa placa ficou meses ali. E eu falei: ‘Nossa, é aqui”. Eu fui viajar, voltei das minhas férias e a placa estava lá. Eu falei: “É aqui. Copan. É bom, porque aqui é um lugar tão improvável, Centro”. Porque as pessoas não gostam do Centro, não é? Naquela época, não gostavam. Eu sei por que eu atendia, trabalhei na Expand, a gente não atendia. Atendia o Casserole. O Terraço Itália, sim. Era pontual. Não ficava andando ali, nada. Todo mundo falava que era perigoso e eu, imagina, parava meu carro ali e ficava horas conversando com o Eduardo e rodando. Mas as pessoas não tinham essa coisa do Centro. Então eu pensei comigo: “Estou livre de crítica. Porque o Jefferson é do Itaim. É um chef badalado, mas as pessoas vão no Itaim. Ninguém vai vir para o Centro. Eu fico descompromissada dessa coisa de ser uma cozinheira, de ter um lugar badalado. Vou criar meus filhos” – eu morava em cima, no Copan, no terceiro andar, que agora é meu laboratório – “e eu desço, cuido dos filhos e faço minha comida e venho”. Eu não queria nem abrir à noite. Eu ia trabalhar só de dia ali, fazer a comidinha de panela de pressão e tchau, tchau. Bom, aí o Jefferson foi para lá, ficou comigo três meses...
P/1 – Vocês desenvolveram cardápio? Como foi esse processo de escolher as comidas?
R – As comidas, o primeiro cardápio foi através da história da cozinha boêmia de São Paulo. Então, eu queria resgatar aquilo que eu tinha vivido com a minha mãe. E o Jefferson queria um pouco do interior de São Paulo. Então, a gente mesclou uma coisa com a outra: tinha galinha ao molho pardo, frango com quiabo e tinha picadinho. Mas tinha filet au poivre. A gente mesclou as duas coisas, as duas histórias: uma que era dos fazendeiros, que comiam aquilo nas fazendas, mas quando vinham para a cidade, naquela época, queriam comer as coisas chiques. Então, a gente uniu as duas coisas num cardápio só. E ele me treinou bastante nesses três meses, para me tornar a chef, a que comandava a cozinha na época. Não só a cozinheira, porque tinha que __________ [1:39:15], eu não sabia disso. Eu não tinha trabalhado com isso. E foi bem difícil para mim, no começo. Foi bem... Eu tinha que, às vezes, ligar para ele, pedir para ele voltar, porque ele ficou três meses, voltou para o restaurante, às vezes eu falava, sábado: “Você tem que vir para cá, porque é muito difícil para eu comandar”. O bar lotava, não é? E o que aconteceu é que na primeira...
P/1 – Desde o comecinho lotava?
R - ... Na primeira semana que eu abri o Bar da Dona Onça, uma jornalista amiga descobriu. Ela se chamava Suzana Barelli. Maravilhosa! E ela falou: “’Meu’, vou dar uma nota”. Falei: “Nossa, não. Eu ainda nem sou cozinheira”. “Não, vou dar uma nota”. Eu tenho até hoje guardado o quadro, que era rabada, que foi o primeiro prato que eu fiz para ele, não é? Ela deu a nota e aí o boca-a-boca foi falando: “A mulher do Jefferson, Janaina, casou com o Jefferson, ele a está ajudando, eles estão abrindo um bar no Centro de São Paulo”. Na primeira semana abarrotou aquilo. E, no quinto mês, eu ganhei... A Veja, na época, tinha um papel bastante importante na gastronomia, a Veja São Paulo, porque era o que lotava os restaurantes. No quinto mês, eu ganhei a melhor cozinha. E aí foi uma loucura. E, de lá, não parou nunca mais. Então, o que eu queria criar meus filhos e aquela vidinha e não ter nenhum jornalista lá, crítico, nada, nos primeiros quinze dias, nos primeiros três meses era o que mais tinha: jornalista criticando, escrevendo sobre o restaurante, comendo a comida e falando do Centro, que era uma coisa super improvável, para gente. A gente nunca imaginou que as pessoas iriam até o Centro. Até porque alguns conhecidos falaram: “Não, vocês vão abrir no Centro? Ah, não, não vou até lá”. E, no fim, todo mundo foi. E o Dona Onça foi aquele estouro, que até hoje eu atendo 12 mil pessoas/mês. Sempre foi na crescente. Eu comecei atendendo 3 mil, 4 mil, 5 mil...
P/1 – E as equipes foram crescendo?
R – Não. Do Dona Onça os cozinheiros são os mesmos, praticamente. Eles não me abandonam. Eles começaram comigo e estão comigo praticamente até hoje. De salão, sim, todo mundo renovou. Tem duas pessoas que são desde aquela época, que estão desde o primeiro dia. Mas o restante, não, a gente já renovou. É que depois chegam outros restaurantes. Que vem A Casa do Porco...
P/1 – Como é que foi a decisão da Casa do Porco para lá?
R – Acho que o Jefferson queria ficar perto da gente, não é? Onde eu entendi é que ele queria, mesmo, ficar perto da família. Porque ele era muito longe, o Attimo. Era um restaurante no qual ele gostou bastante de trabalhar e foi bem feliz lá, bem reconhecido. Fazia uma comida caipira, mas o lugar era longe, a casa também era muito imponente, de mármore e tal, ele não se identificava tanto assim com o local, mas ele gostou, ele se adapta muito com os lugares, é uma pessoa que gosta do que faz, de cozinha. Então, era uma cozinha muito boa, muito bonita, foi bem interessante, sabe, essa transição. Mas ele ficava 16 horas longe de casa. Era difícil para a família conviver longe dele. Porque a gente é bem ligado, a gente vive muito grudado, as crianças e tudo, não é? E ele começou a se incomodar de não ver a gente, de não ver os filhos, de não me ver, de estar muito distante, e aí ele falou: “Ah, acho que eu vou realizar meu sonho, que é trabalhar como açougueiro de novo e alta cozinha junto. Eu quero mesclar alta cozinha com a minha profissão de açougueiro, com o que eu estou acostumado a fazer, que é o porco, que é da minha região, que foi o que eu aprendi a fazer, mesmo”. E aí ele falou para mim que ia conversar com o sócio dele, lá do Attimo, e ia tentar fazer um acordo para ele ir se desligando aos poucos. E ele foi se desligando aos poucos. Ele ficou lá por quatro anos e veio desenhando projeto de ter A Casa do Porco lá no Centro. Foi mais por isso, assim. Porque ele queria viver ali o entorno junto, fazer as coisas ali a pé.
P/1 –
E viver no Centro para ficar perto e tinha também, já, essa questão da ocupação do Centro? Ou não tinha isso naquele momento?
R – Não. Não tinha. Não tinha nada ainda de ocupação, assim. Era normal. Hoje está tendo um movimento bem grande, mas isso começou assim um pouco depois da Casa do Porco. Quando ele vai para lá, que aí vira uma badalação mesmo, que as pessoas entenderam que tinha um potencial para que o Centro fosse ocupado mesmo, não é? E aí começaram alguns movimentos. Ele criou uma hashtag, nunca me esqueço, que era #vemprocentro, que a gente falava: “Nossa, seus clientes chiquérrimos, será que vão vir para o Centro?” E ele brincou e colocou uma hashtag no Instagram dele: #vemprocentro. E a gente começou a, tudo, colocar: #vemprocentro”. E começou a pegar o #vemprocentro”. E virou uma coisa de #vemprocentro”, mesmo. É o inconsciente coletivo. Essa energia foi transbordando e foi legal, assim, de ver.
P/1 – Janaína, como é que foi sendo, assim, a mudança do cardápio? Como é que você foi desenvolvendo? Teve essa primeira edição, que vocês falaram, com a história de vida de vocês, vocês misturaram e fizeram esse primeiro cardápio da Dona Onça?
R – Sim. E depois ele continuou o mesmo. Ele vai mudando uma coisa ou outra, a gente vai renovando técnicas, mas é um público muito fiel. É como se eu mexesse no cardápio do Tatini, do Casserole. As pessoas querem aquilo. Elas vão para comer aquilo. Então, se você tira um prato do Dona Onça, é guerra. Por isso que a Casa do Porco trabalha com menu degustação e renova sempre. Porque... “Nossa, se eu fizer como o Dona Onça, de ter um cardápio, eu estou morto, eu não vou poder renovar nunca”. E ele vive de criação, não é? Ele é um homem muito criativo. Ele vive de renovação, ele não para, o tempo todo, com a criatividade. E eu sou mais tradicional, eu gosto de voltar no tempo, eu gosto daquela coisa... O que eu busco de mudança, sempre, é procurar ingredientes ainda melhores. Então, a galinha é criada solta; o porco, a gente é quem cria, procura ter um pouco mais de produtos orgânicos, ter um cuidado maior com o sal. Então, essas coisas a gente vai mudando lá dentro, mas não o prato, entendeu? Mas a carne, por exemplo, é de um fornecedor, não é da grande indústria. O frango não é da grande indústria. O porco não é... A gente trabalha quase zero com a grande indústria. A gente trabalha com o produtor. Então, a minha cozinha é baseada nisso e a gente, a cada ano, vai renovando nesse sentido de ir ajudando na economia dos pequenos. E do nosso envolto, mesmo. Principalmente de Rio Pardo, Mococa e aquela região toda.
P1 – E como é que você se envolveu nesse projeto da melhoria da merenda escolar da Secretaria de Educação? Como é que nasceu esse projeto?
R – É difícil falar. Em 2015, 2016 começou a ter as ocupações nas escolas por conta de uma CPI. Eu não entendia nada disso, não é? Na verdade, nunca nem me interessei por nada disso. Mas eu sempre, com esse movimento do #vemprocentro, Parque Minhocão, que a gente é super a favor de ter um parque, eu conheci muita gente, ativista ali do Centro, não é? Empresários, arquitetos, urbanistas, essa coisa toda. Advogados, juristas. O Tribunal é em frente ao Bar da Dona Onça, inclusive. E aí eu tenho um amigo, que se chama Wilson Levy, que é do Parque Minhocão. E ele era assessor do Renato Nalini, que era do TJ. Quando deu essa bomba da CPI, pelo que eu entendi, eles queriam uma pessoa dentro da Secretaria que fizesse uma reestruturação, porque estava bem pesada essa coisa das ocupações, essa coisa da merenda, CPIs e tudo o mais. Então, colocaram o Nalini lá porque era um jurista. Obviamente ética, moral, eles estudam para isso, para que sejam assim e então quiseram alguém com bastante credibilidade. Ele era meu cliente no Bar da Dona Onça, almoçava ali, o Tribunal em frente, o Wilson Levy, assessor dele me conhecia das coisas que eu falava do Parque Minhocão e resolveu me convidar. Falou com o Nalini: “Vamos chamar a Janaina para dar uma olhada, não é? A gente entende de Educação, eu sou jurista, mas não entendo de alimentação. Tem um dinheiro lá, está tendo ocupação, tem verba, mas como é que faz?” Resolveram chamar uma cozinheira para entender a alimentação. Uma especialista no assunto. E aí eu estava cheia de coisas para fazer, mas muita coisa para fazer, e eu não estava com o mínimo interesse de ir para merenda escolar ou de trabalhar para o governo ou de fazer nada para o governo, porque eu nunca me meti nisso. E não gosto. Particularmente, eu detesto. Mas eu conheço o Wilson, conheço o Renato, eles conversaram comigo rapidamente, ali no Dona Onça, eu dei um monte de ideia de Educação, que eu estudei através da cozinha. Tudo que eu sei, o que eu escrevo, as coisas que eu falo, a forma de falar, tudo veio através da cozinha. Então, a cozinha, para mim, é uma disciplina. Cozinha, para mim, é mais uma disciplina, que pode ser a merenda escolar. Pode ser a hora do recreio. Inclusive dá para ensinar muito mais ali do que na sala de aula, não é? Na minha cabeça. Como eu já te falei antes. Eu falei: “Nossa, taí. A mudança da escola pode começar pela merenda escolar”. Mas eu nunca imaginei, na minha vida, que alguém fosse capaz de servir coisas enlatadas para criança. Tipo ultraprocessados, salsicha. Na minha cabeça não era isso. A minha cabeça já era mais avançada, estava querendo contar a história do prato, fazer os pratos, mas para mim já tinha tudo lá, os produtos, carne, tudo. Como é que não tem isso dentro de escola pública? Impossível. Merendeira, para mim, é cozinheira. Cozinha. Normal. Mas não era bem assim. Quando eu chego lá, não era produto in natura. Eram esses paus, que parecem Whiskas de gato, produto enlatado, era um monte de coisa... Eu falei: “Pelo amor de Deus, o que é isso?” Eu tive um troço, assim. O Jéfferson foi comigo, olhou para a minha cara e falou: “Eu tenho reunião, eu estou indo embora”. (risos) Ele deixou lá. Ele fez para mim: “Não. Eu estou indo embora. Eu não vou ter com essa gente de jeito nenhum. Eu estou indo embora”. Eu falei: “Não, agora eu vou entender”. Eu fiz para ele bem assim, eu olhei bem: “Não. Agora eu quero entender”. Ele: “Tá, então eu estou indo e você fica”. (risos) E eu fiquei desolada, falei: “Mas pelo amor de Deus, eu estava pensando em uma outra coisa. Eu não posso me
envolver com isso”. Aí falei que não, que eu não ia, não dava, não tinha condição. “Mas prova”. “Não vou provar, não tem nada a ver comigo isso aí. Não tenho nada que me meter nisso”. Fui para minha casa e fiquei pensando. Falei: “Jesus amado, o que é isso, que eu nunca imaginei?” Você tinha ideia de que era assim? Não sei. As pessoas acho que não sabem, não procuram saber, não se informam. Pô, a gente está falando das nossas crianças, não é? Por que a gente não olhou isso? Aí eu pensei: como eu não olhei isso antes? Aí, comecei a me culpar também, como cidadã. Nossa, que coisa horrível! Aí eu liguei para o Levy, falei: “Levy, quero falar com você” “Claro”. Falei: “’Meu’, não dá, não tem condição”. Ele falou: “’Meu’, então vamos desenhar um projeto. Eu também não sei nem por onde começar. A gente está entrando agora, por isso que a gente te chamou. Não me apedreja. Eu também sou tão novo quanto você e o Secretário deixou você vir porque é para você falar, realmente, o que é para fazer”. Aí eu respirei fundo e falei: “Fuuuu, uau. Olha, primeiro passo é trocar tudo por in natura”. “Nossa, e como é que faz isso?” “Não sei, ‘meu’. Como é que eu vou saber isso aí? Não sei. Vocês que são pagos para saber, não eu, não é?” “Mas a gente nunca teve especialista em cozinha. A gente tem nutricionista, mas não especialista em cozinha. Por isso que a gente quer uma pessoa igual a você”. E eles foram me convencendo e ele falou: “Olha, eu tenho uma luz no fim do túnel. Tem uma moça, ela se chama Geórgia, é uma nutricionista. Ela já pediu até amostra de produto in natura, porque ela também acha que deveria ter produto in natura. A gente está pensando em fazer meio a meio. Meio in natura, meio indústria”. Falei: “Não. Meio eu não aceito. Meio a meio. Não sou mulher de meio a meio. Ou a gente muda tudo ou a gente não muda nada. Eu vou embora e vocês veem o que vocês fazem, porque também não é problema meu. Eu não vou associar meu nome com meio a meio”. Aí chamaram a Geórgia. A Geórgia ainda tentou me dar uma convencida, porque ela tinha medo de como ia ser essa logística. Depois ela olhou para a minha cara e falou: “’Meu’, você sabe que é meu sonho, também? Quer saber? Vamos fazer? Você vai ver como vai dar certo” Chamamos a menina que fazia as compras, a Vivi: “Pelo amor de Deus, eu faço uma compra por mês. E eu vou ter que abrir Edital de tudo”. A gente falou: “É, Vivi”. Aí, lavagem cerebral na Vivi, não é? “Vivi, é uma causa, uma missão, são as crianças. Esquece que você está ganhando dinheiro, que você tem que trabalhar, finge que é uma instituição de caridade, que a gente tem que mudar. Vamos pensar assim que é melhor. Eu sou voluntária, já não ganho nada. Vocês ganham e vão ter que trabalhar o triplo. Então pensa que essas duas vezes mais é em prol de uma instituição de caridade, sabe?” Aí conversamos com o Levy, com o Secretário, eles falaram: “’Meu’, vai ter que fazer um piloto,
uma escola primeiro, para ver se isso é viável, para ver como é que vai ser a mulher cozinhando, como é que vai ser tudo, a merendeira, os alunos, o cardápio e tudo”. Então, eu começo a desenvolver essas receitas num outro projeto social que eu tinha, da Vai Vai, que era o clube de futebol deles, ali na Vila Mariana, Aclimação. E aí eu começo a desenvolver as receitas, eles comiam e as nutricionistas iam lá para avaliar, do estado. E lá eu desenvolvi essas dez receitas, durante alguns meses. E a gente falou: “Bom, agora vamos para a escola piloto”. A escola onde eu estudei - Maria José. E aí eu vou para essa escola e lá eu fico 15 dias. Depois eu fiquei mais cinco, mas esses cinco eu não cozinhei. Esses 15 eu cozinhei com as meninas. Então eles só entregaram produtos in natura nessa escola e essa escola foi a piloto.
P/1 – Você quem escolheu a escola?
R – É porque foi onde eu estudei. E eu queria começar pelo Centro, porque era mais perto para mim, também, não é? Para facilitar. Porque eu tenho que trabalhar também. Eu também tenho filho, eu também tenho restaurante, eu também tenho coisas para fazer. E eu, todos os dias, acordava às seis horas da manhã, ia lá para a Portuguesinha, fazia as receitas e depois... E eu odeio acordar seis horas da manhã! Odeio. Tenho pavor de acordar cedo. E eu fiz isso com o maior sacrifício do planeta, porque eu não gosto. Não, mesmo. Mas eu tinha que estar lá às sete horas, dentro da escola, trocada e arrumada, junto com a merendeira, para fazer essa escola piloto. Então eu fiz essa e deu muito certo. Elas foram maravilhosas - a dona Angélica, a Irene e a
ngela. Eram três merendeiras. Ficaram, fizeram comigo, a comida ficou incrível e elas continuaram recebendo. Aí, como é que faz para expandir para as outras escolas? Aí tem que fazer a compra, não é? Mais tanto de carne, na,na,na. Bom, eu não vou poder ficar 15 dias em cada escola. São cinco mil escolas. Para. Eu tenho vida, tenho que trabalhar e eu não posso. Então, vamos arrumar um espaço. Aí eu pensei no meu restaurante, para trazê-las para fazer o treinamento. Não cabe. Fizeram um e eu falei: “Pelo amor de Deus, não dá, porque acaba com a vida do meu restaurante. Aí, a gente pensou, pensou e aí eu lembro que eu fui jurada da Etec Santa Ifigênia, de um concurso lá. Eu conhecia a diretora. E a Geórgia conhecia também uma outra pessoa lá de dentro, que não tem nada a ver com a Secretaria, porque Etec não faz parte da Secretaria de Educação, é de Ciências e Tecnologia.
P/1 – Mas essa Secretaria de Educação que você está falando é do município ou do estado?
R – Do estado.
P/1 – Tudo do estado. E a Etec é do estado, mas é outra, fora da estrutura da Secretaria?
R – Fora. E aí a gente falou: “Meu Deus do céu, não é da Secretaria, complica”. Mas a diretora foi ótima: “Vou ajudar, sim”. Toda terça-feira ela cedia sala de aula para a gente, com dez fogões, e eu colocava lá dentro 50 merendeiras. Então, essas 50 merendeiras formavam grupos e eu fazia os dez pratos do cardápio e ensinava, ali, como é que fazia a comida. E, a cada 50 que eu treinava, 50 escolas iam recebendo esses produtos in natura, gradativos: “Olha, vai ter mais tantos”. E ela já fazia o Edital, a licitação e já ia trazendo um monte de fornecedores. Não é um só, testando. Tem um monte de fornecedor. Para poder atender a demanda da carne in natura. Daí eles vinham e, nesses treinamentos, eu via os produtos que vinham in natura e fazia os pratos e os pratos sempre foram os mesmos, os dez pratos. Para quê? Para a gente ter controle de ficha técnica, de tudo, igual a restaurante. Senão fica descontrolado, não é? Cada um fazendo uma coisa não dá.
P/2 – Quantos anos você esteve no projeto?
R – Três anos. Três e pouco.
P/2 – Sempre com o mesmo cardápio?
R – O mesmo cardápio. Sim. Porque, primeiro, que são os pratos do dia.
P/1 – Espere aí, vamos voltar. Aí você entrevistou as primeiras 50, fez essa primeira aprovação e foram indo as 50 nesse processo?
R – A gente ia manter isso até fechar todo o estado de São Paulo. E essas dez receitas foram contando a história da imigração de São Paulo. Então, todos os pratos tinham uma história voltada para a imigração. E aí uma semana você comia um e, na outra semana, você comia o outro.
P/1 – E foi você quem escolheu esse cardápio?
R – A gente desenvolveu juntos - eu e as nutricionistas do estado.
P?1 – Mas, e o conceito?
R – Fui eu. Para ser um cardápio enxuto, para poder ter uma logística igual à de restaurante e para ser como se fossem os pratos do dia, de bares e de restaurantes tradicionais. Você tinha, antigamente, as pensões. Começaram assim, com pratos do dia. Só que era um por semana. E servia só aquele prato. Aí, para os alunos não enjoarem, não reclamarem, porque era pouca comida e toda semana tinha que comer a mesma coisa, eu fiz duas semanas. Para não ter essa coisa de ser o mesmo cardápio; então, cada semana mudava, de uma semana para outra. Um dia você comia feijoada e, na outra quarta, era carne de panela. Depois... E cada dia da semana um prato.
P/2 - ___________ [2:05:05].
R – Claro! O prato que a gente criou na merenda escolar foi strogonoff, que as crianças adoram. E aí, eu contava como o strogonoff chegou ao Brasil e como ele chegou em São Paulo, principalmente. Qual é a história do strogonoff, desde a Rússia, passando pela França? Por que chegou ao Brasil? E porque ele foi tão idolatrado em São Paulo? E que ele faz parte da cozinha popular hoje, não é?
P/1 – E você contava isso para as merendeiras?
R – Para as merendeiras. E depois a gente mandava para os alunos.
P/1 – Aí passava isso para os alunos também?
R – Elas passavam para os alunos. A gente as orientava para que elas fizessem. Obviamente que você está lidando com gente. E tem gente e tem pessoa. Gente vai passar para frente a informação, vai estudar, e pessoa não vai. E é o risco que a gente corre sempre em lidar com o ser humano. Tem gente que se empenha, faz o seu papel e tem gente que não se empenha em nada e que não faz o seu papel. Aí é uma roleta russa do jogo da vida. Mas na maioria das escolas, assim - porque a gente fez uma avaliação junto com a Secretaria - 86% das merendeiras acabaram falando, em algum momento, sobre algum prato. Então, o bolonhesa, por exemplo, que a gente falava da imigração italiana, a gente contava a história de Bolonha, como os imigrantes italianos chegaram aqui, o por que chama Bolonha, porque era essa história do ragu de carne moída. O macarrão com moela também, a importância das vísceras, do aproveitamento total do animal. Porque tinha muita resistência para comer moela. E eu pus de propósito mesmo, que é para as pessoas aprenderem a comer. Não achar que filet mignon e filet de frango é o melhor e aí eles querem ganhar voto, porque é assim. E aí eles colocam nugget e salsicha e filet de frango, porque eles querem ganhar voto e depois eles mandam tudo enlatado de novo: o frango, a almôndega, tudo com molho rosé, congelado, com glutamato. É assim que eles são. A política pública no Brasil... Não é só no Brasil, é do México para baixo, acabou, e Inglaterra também acontece isso. Agora teve um retrocesso gigante na Inglaterra, com a merenda do Jamie Oliver, por exemplo. Você vê que é a questão humana. Se você tem gente do bem fazendo a coisa correta, a coisa anda. Se não tiver, não vai andar. Não adianta. Enquanto as pessoas não mudarem a energia, a coisa não anda. O negócio não vai para a frente. Mas a gente teve 86% de aproveitamento, que as pessoas gostaram.
P/1 – Quantas pessoas? Qual o impacto? Quantas merendeiras? Quantas escolas? Tem esse número?
R – Tem. Foram 1700 e poucas merendeiras e quase o mesmo número de escolas. Porque a cada uma merendeira, era uma escola. Então, é quase o mesmo número. Quase 1800 escolas a gente atingiu.
P/1 – Foi de que período a que período?
R – Começou em 2015 a negociação. Ele já sabia que ia ser o Secretário, ele foi chamado no final de 2015 para a gente começar em 2016. Então, a gente ficou quase três anos fazendo esse cardápio, que se chamava Cozinheiros pela Educação.
P/1 – E qual era a sua dinâmica: era toda semana, uma vez por mês?
R – O quê? De terça-feira? Não, era quase toda semana. Quando eu viajava, não. Aí eu tinha agenda, não é? Duas vezes, três vezes, já chegou a ser quatro, já chegou a ser seis, porque teve uma época que a Etec me deu dois dias e a gente...
P/1 – E era só você? Não teve outros chefs? Não teve uma proposta de engajar outros chefs?
R – Até teve uma proposta anterior de engajamento de chefs. O que aconteceu é que todo mundo dava palpite e a coisa não saía do lugar. Eles tentaram isso antes, aí um queria um prato, o outro queria outro, o outro queria outro, um dava uma ideia, outro dava outra, outro dava outra e a coisa não conseguia sair do lugar, porque virou um jogo de ego, em vez de ser uma coisa em prol da gastronomia. Então, aí, o próprio Wilson Levy falou: “’Meu’, vamos focar aqui no cardápio de uma pessoa e fazer a coisa acontecer”. Porque as pessoas começaram a viajar, não é? Primeiro você tem que estar preparado para a cozinha popular. Segundo, você tem que estar preparado para treinar merendeira. Você tem que ser da rua. Primeiro passo. Se você não falar a mesma linguagem da merendeira, ela, primeiro, não vai nem lhe respeitar, não vai nem olhar na sua cara. É assim que elas fazem, entendeu? Elas são maravilhosas, só que você tem que saber falar com elas. Você tem que saber chegar. Você tem que saber se posicionar. É gente como eu, que não estudou. É gente que é agressiva, é revoltada. Não vem. Não aceita ordens, não aceita imposição. Então você tem que ir com muita tranquilidade, conversar muito, ser amável, passar uma orientação. Senão, não adianta você chegar impondo regras. E muitas vão fazer de uma maneira brilhante e outras vão fazer de maneira mediana. Tem gente que é cozinheiro profissional, tem gente que não é...
P/1 – Você conheceu alguma história especial?
R – Nossa, eu conheci algumas. Eu conheci as 1800 merendeiras, pessoalmente. Eu nunca deixei ninguém treinar. Nunca foi ninguém da minha equipe treinar as merendeiras. Sempre fui eu, pessoalmente, treinar todas elas. Todas me conhecem. Todas. Uma por escola. Porque são três merendeiras, não é? Geralmente são três, às vezes, quatro. Mas uma me conheceu, que era a que depois replicava para as outras três. Essa uma, que era mais ou menos a líder, replicava para as outras três. Foi muito legal. Eu tenho 4800 fotos com elas.
P/1 – Você tem esses registros?
R – Tenho todos os registros. Todos. Vídeo. Foto. Documento.
P/1 - ___________ [2:12:33] merendeiras.
R – Eu estou escrevendo um livro, estou indo na Companhia das Letras para negociar esse livro. Vou contar toda a história, nua e crua. Quem vai escrever o livro, na verdade, é o Ivan Finotti, da Folha, e eu estou desenvolvendo toda a investigação, para a gente apurar bem o que é a merenda do Brasil. Se não der para contar a do Brasil, pelo menos de São Paulo a gente vai contar bem contada.
P/1 – Aí acabou o projeto como?
R – Não tenho ideia de como é que acabou.
P/1 – Porque acabou a gestão e aí acabou esse trabalho?
R – É, eu tinha os treinamentos marcados até dezembro deste ano e já marcando, já negociando para marcar de fevereiro em diante, às terças-feiras. O que aconteceu foi que, em setembro, eu senti uma movimentação bem errada dentro da Secretaria, umas pessoas que eu não conhecia... A Viviane foi exonerada, grávida - a menina que fazia as licitações, a que comprava; a Geórgia foi afastada para uma sala bem distante, para ela não ver mais nada e entraram pessoas que eu não conhecia. Nutricionistas, exoneraram uma parte. Mas até então não dá para você imaginar que alguém possa acabar com o projeto, assim. Um projeto que está em 1800 escolas, é difícil, não é? As pessoas terem coragem. Primeiro, coragem. Segundo, é vergonha também. Era um projeto que não ia ter fim nunca. Você sempre ia ter uma coisa para melhorar dentro dele. Era uma coisa daqui para 20 anos. Ia ficar velha dentro do projeto, de tanta coisa que tem que fazer. Você tem que construir a casa com cimento, depois você vai decorando-a. Aí você vai pôr a horta. Você não faz a horta antes de construir a casa, como muitos querem fazer. Eles constroem uma horta para mostrar, mas é tudo lixo. O alicerce está todo esbagaçado. Então, eu nunca deixei que eles mostrassem. Primeiro, a gente mostra o concreto. Depois, a gente vai decorando. A gente pensou em ter chás, infusões de chás com as coisas das hortas. Aí, o segundo passo era falar dos orgânicos, porque eu não conseguia falar de orgânico porque não tinha nem o convencional. Não chegava verdura convencional nas escolas. Era nada, quase. A diretora comprava com aquela verba e tinha que ter um controle disso tudo. Primeiro, você tem que mapear tudo muito bem mapeado. Para depois você ir acrescentando coisas e desenvolvendo projetos dentro de um projeto. Na minha cabeça, ia mudar governo e outro governo e esse projeto ia continuar, e a gente ia só agregar. Ia ser o projeto mais bonito, talvez, do mundo. E eu, realmente, acreditei que esse projeto poderia ser o mais bonito do mundo. Aí foi o que eu falei: “Poxa, a gente tem que chamar cozinheiras como a Mara Sales, para fazer parte”. Mas eu precisava, pelo menos, arrumar a casa, para não ficar aquela coisa solta e tudo. Porque se todo mundo for falar naquele momento, é capaz do negócio não sair, porque fica uma confusão de ideias. A Neide Rigo a gente ia chamar, para ajudar a gente na parte das hortas de Pancs. Então, tudo estava dentro de um projeto que precisava ser construído sem pressa. Porque não era um projeto de campanha política. Era um projeto de política pública, completamente diferente de campanha política. Eu não tinha nenhuma pressa. Nada. Zero. E eu achei até que, em 2018, ele deu uma expansão shuuuuuuuuu bem rápida. Que foi quando parou, em 2017, depois o Alckmin foi até o bar, me agradeceu e falou que ia dar todo o apoio e deu mesmo, e o projeto fez assim: shuuuuuuiiiiiiiiii. Foi bem rapidinho. Qual o motivo, eu não sei, se era campanha ou se não era. Não me importa. Eu não tenho partido político. Eu tenho pessoas em quem eu voto, de diversos partidos, nas quais eu acredito, então, eu não consigo entender muito bem a política, não é? Que não é para o bem-estar do próximo. É para o bem-estar do poder, não é?
P/1 – Mas aí, com a sua saída mudou toda essa equipe?
R – Mudou toda a equipe. Aí eu não tive mais acesso, a Geórgia ficou, em dezembro cancelaram os treinamentos. Eu falei: “Ah”. Aí, já começou a me dar uma dor de estômago, eu tentei falar com o novo governador, por um grupo que eu tenho, de whatsapp. Eu sei que pessoas muito ligadas a ele estão dentro desse grupo, mas eles não conseguiram me ajudar, ele também não se interessou em vir conversar comigo. Nem ele, nem o antigo governador. Ninguém se interessou em conversar comigo para a gente tentar resolver qual seria a fórmula melhor. Eu já li alguns depoimentos do Renato Nalini, muito bravo, porque ele sabe muito bem da importância que era esse projeto. Eu nunca vi o Nalini bravo na minha vida, um cara muito ponderado, um jurista bonachão total e ele deu uma entrevista na Gazeta que me arrepiou, assim, eu nunca vi o Nalini tão bravo. Ele falou: “Não a procurou, mas por que não me procurou? Era um projeto lindo”. E ele falou: “E o país não muda por isso, porque as pessoas não deixam a comunidade participar, a política não deixa a comunidade estar por dentro de nada, logo eles retiram e não vir conversar comigo, que fiz o projeto, que não sou político, sou só um jurista?” Quer dizer: a falta de respeito com as pessoas, também, que se doam. Eu não quero ser política, apesar de ter sido convidada, eu nunca vou ser política, eu não quero me meter nisso, mas eu gostaria de ter uma política melhor no país. Enfim, em janeiro, férias, fevereiro vem a bomba: um cardápio completamente fora do normal, tipo, arroz com ervilha e farofa pronta. Cozinheiros pela Educação. Aí, graças a Deus que a Geórgia era muito sabida e o nosso cardápio era timbrado com uma faixa azul. Todos o que ela fazia. E tudo foi documentado. Até mandaram uma carta falando: “Retira o nome, não é o nosso cardápio”. Foi quando eu escrevi a carta para a Folha e quando a Folha apurou e, enfim, a coisa está aí, andando, mas é inacreditável como existem pessoas e não tem gente no mundo. Falta gente no mundo. Enquanto a gente não tiver gente no mundo, a coisa não vai andar. A gente tem que criar. Eu falo: “A gente tem que criar cidadãos e é pelas crianças. As crianças serão o futuro. Esquece o resto. Está todo mundo contaminado. Todo mundo se contaminou. A política é uma doença muito grave e que agora os jovens vão precisar, realmente, entender qual é a cura”. Por isso eu acredito muito nos movimentos ativistas hoje, das meninas, principalmente, das jovens. Hoje eu tive uma reunião com um monte na minha casa. Porque são eles que vão mudar. Eles precisam entender e essa velha política tem que ir logo embora, porque eu não dou conta mais, de trabalhar com a velha política. Se eles me chamarem de novo para o projeto, eu vou ser conselheira, mas eu mesma ir lá... Eu ensino uma jovem que esteja disposta a fazer. Eu tenho o maior prazer de levá-la para minha casa e ficar 20 dias com ela dentro da minha casa, ensinando como ela faz, eu fico na orelha dela, mas eu não quero mais. Porque foi muito duro para mim. Muito duro ver o que é a falta de respeito com a comunidade, com as pessoas do nosso país. Essa é uma ferida que acho que nunca vai fechar dentro de mim. Nunca. Eu nunca vou entender os motivos pelos quais uma pessoa, duas, três, quatro, cinco, sei lá eu, faz uma coisa dessas. Eu nunca vou entender. E eu nunca vou perdoar, o que é pior. Quem fez, vai pagar. Pela lei da natureza. Isso você pode ter certeza. A única coisa que eu sei que vai acontecer é que as pessoas que fizeram isso vão pagar com a lei da natureza. Da natureza. Porque não pode fazer isso com criança. Não pode.
P/1 – Jana, como é seu cotidiano hoje?
R – Nossa! Enfim, whatsapp, não é? É uma loucura. Oito horas da manhã, você abre meu whatsapp, tem 25 mil mensagens. É o cara do vinho, é o amigo de não sei quem, é não sei o quê, babababa, é o fornecedor, é muita coisa. Se eu ficar falando aqui, é muita coisa. Mas coisas que eu gosto de fazer. Que eu me proponho a fazer. E gosto. Eu não faço mais nada de que eu não goste. Nada. Não me permito mais. Se for alguma coisa que não é muito bacana, que não vai deixar uma experiência boa, que não vai ser legal para mim, eu não vou fazer, sabe? Não me permito mais. Não quero mais me ferir, sabe? Não quero deixar que ninguém me fira também.
P/1 – Agora eu vou fazer umas que são específicas do projeto, a _____________ [2:24:30] que ajudou a gente a elaborar. Para encerrar, eu vou fazer uma pergunta e a gente vai para essas específicas. O que você achou de contar sua história aqui no Museu da Pessoa?
R – Eu achei o máximo! Eu adorei! Eu acho que é quase uma terapia. Quase, não. É uma grande terapia humana. De você se despir. Obviamente que eu não me despi muito, porque eu tenho as minhas ressalvas. Não quero me abrir, assim tão... Mas eu me abri bastante. Oitenta por cento você sabe da minha vida. E foi muito bom para mim relembrar a história do meu pai, da minha família e de toda essa... De conhecer o Jefferson e toda a minha trajetória. Foi bem bom para mim. (risos)
P/1 – Que bom!
R – É.
P/1 – Janaína, eu quero que você volte aqui, porque eu não perguntei metade ainda.
R – Claro! (risos)
P/1 – O que você acha... Quais são os aspectos que caracterizam a culinária em São Paulo? Tem uma identidade que diferencia São Paulo de outras cidades, de outras Capitais?
R – Bom, São Paulo é imigratória. É uma cozinha totalmente imigratória. Quando você fala da cozinha de São Paulo, você tem que falar de todas as culturas de todos os países, mas principalmente daqueles que chegaram aqui. Que foram... A indígena é nossa, porque obviamente a terra é deles, não é? Então, você tem muita coisa indígena, que ainda pouca coisa está resgatada na culinária do estado de São Paulo, mas tem coisas. Por exemplo: o cuscuz, tem relatos de que índios faziam, na folha de bananeira. Pamonha, tem relatos de que não era a pamonha do interior, mas eles faziam, de certa forma, embrulhada em folhas. Os moquins, a coisa do moquear, e tudo o mais. Mas o que vinga muito hoje ainda - você percebe que não perde - é a imigração italiana. Você tem muita influência italiana, muita influência japonesa, você tem armênios, árabes, que são maravilhosos. Então, arroz com lentilha, por exemplo, vem da Mijadra. Vem dessa receita árabe. Parmegiana só tem no Brasil. Polpetone só tem no Brasil. Strogonoff é russo, que vira francês, que o que tem aqui não é nem da Rússia; na França não existe. É uma coisa muito popular brasileira, o strogonoff. Acho que não tem nenhum outro lugar do mundo que tenha. Então, isso vem da época da belle époque, da coisa do glamour, dessa coisa dos fazendeiros querendo comer filet mignon picadinho, metido a besta. São histórias lindas. Muitas vezes complicadas, porque você vai lidar aí com bandeirantes, você vai lidar com escravocrata, você vai lidar com a disseminação indígena, mas é a nossa história, é o que aconteceu e é o que São Paulo conta. São Paulo é uma terra de verdade. Ela não conta mentira. Ela absorve toda a imigração, seja ela nordestina, seja ela de onde for, ela vai absorvendo coisas, tudo para ela. E ela conta histórias de todo mundo, porque somos todos nós. Somos descendentes dessa miscigenação toda. Eu brinco: dentro desse circo todo. É um circo maravilhoso, de brincar. É um guarda-roupa lindo de mostrar, também, não é?
P/2 – Eu queria saber que pratos você identifica... Você falou do bife à parmegiana, falou do strogonoff... Tem mais algum ou alguns pratos que você identifica como bem paulistano?
R – É o virado à paulista, não é? Ele tem uma influência aí desde a época dos bandeirantes, muito enraizada no estado de São Paulo. Virou até um patrimônio da cidade, e com razão. Eu adoro os clichês, eu acho o máximo, acho que a gastronomia do Brasil não foi tão reconhecida fora do Brasil justamente porque a gente fica com esse monte de ideias e ninguém resolve nada. Quem identifica o que realmente é conhecido lá fora é a feijoada. Acabou-se. É a caipirinha. E é o brigadeiro. A partir daí você, depois, abre o seu guarda-roupa e mostra todos os seus outros vestidos. Mas, se você não mostrar esse vestido, que é o que é o conhecido, o que todo mundo está lhe vendo e o que todo mundo gostou, já, em você, não adianta. Para você vestir outro, vão falar: “Aquele é mais bonito”. Sempre a feijoada vai ser mais bonita. Não adianta. Aí, todo mundo quer fugir da feijoada. “O Brasil não é só feijoada”. Eu vejo um monte de chef falando: “O Brasil não é feijoada”. É claro que o Brasil é feijoada. E qual é o problema dele ser feijoada? Ele é reconhecido, já, lá fora, como sendo. Não tem um estrangeiro que não me peça para fazer uma feijoada. Ou não me peça uma caipirinha. Poxa, para que essa luta contra as raízes? Porque é uma luta desnecessária. É por isso que o ceviche do Peru é o que é. Então, eu acho que a nossa feijoada tem aí um papel bastante importante na cozinha não de São Paulo, mas do Brasil todo.
P/1 – O que você acha que pode ser feito para desenvolver o setor da gastronomia aqui na cidade?
R – Trabalho. Trabalhar seriamente. Entender que um restaurante pode receber muito mais pessoas do que um museu, por exemplo. E saber que as pessoas estão ali, já, abertas, para compartilhar algo e aí você tem que investir em quê? Turismo. Só que um país que não investe em merenda, não investe em saúde, não investe em outras coisas, fica até difícil aqui eu falar do turismo, fica até... A gente está passando por momentos tão difíceis na saúde pública, que eu espero que logo se solucione e que um dia a gente possa falar que o Turismo tem que investir em alguma coisa.
P/2 – O Turismo investindo, vai gerar renda também, não é?
R – Sim, mas as pessoas estão morrendo. O Hospital Público da Aclimação está caindo aos pedaços. Eu não posso falar de Turismo quando o hospital público está abandonado. Aí fica muito difícil para mim, apesar de ser desse setor e querer o investimento. Mas eu não posso fechar os olhos para as coisas horripilantes que estão acontecendo no nosso país hoje, que é a saúde pública e alimentação escolar. Não tem nem como eu ficar aqui, nesse momento, nessa atual conjuntura, falando: “Olha, vamos investir no Turismo”. “Caspita”, as pessoas estão morrendo no hospital!
P/1 – Mas quando você fala isso, como é que a gente pode pensar na gastronomia como um fator para ativar o desenvolvimento sustentável da cidade?
R – Ah, bom, aí é uma outra história. Quando você começar a enxergar o seu entorno e começar a ajudar o seu entorno, principalmente buscando produtos de qualidade para aquele cliente que está ali e não pensar tanto no lucro, mas pensar que você ganha na quantidade, não é? E pensar sempre em produtos que tragam essa sustentabilidade para dentro do seu restaurante. Porque, a partir daí, você cria uma nova tendência atual da gastronomia, isso gera curiosidade, só que você tem que ter preço acessível. Se você não tiver preço acessível hoje, não adianta nada. Você faz uma alta cozinha que ninguém pode pagar. Aí fica difícil. Você trabalhar de uma maneira que dê resultado na sustentabilidade. Você tem que trabalhar a sustentabilidade em grande quantidade. Esse é o trabalho. E a partir daí, você desenvolver ações. Isso é tão individual, às vezes, porque cada um pensa de uma forma, não é? E cada um tem uma metodologia de trabalho. Então, eu penso que quando você faz um trabalho respeitando o próximo, respeitando o seu trabalho e o seu entorno, isso já é até automático, esse desenvolvimento já vem com você. É energia. Energia gera energia. Não existe segredo. É muito louco! Você tem o que você dá. Você vai dar coisa boa, você vai dar coisas sustentáveis, você vai ter também coisas sustentáveis. Então, não tem que depender de nenhum órgão para nada. Você tem que ir lá e fazer. Ponto.
P/1 – Você tem algum insight, alguma ideia do que pode ser feito na cidade de São Paulo para ela ser ainda mais criativa no setor da gastronomia?
R – Isso, sim. Economia criativa, hoje, para mim, é um dos maiores pilares da tendência atual, não só da gastronomia, como de qualquer: artesanato, moda, tudo. É você investir. Primeiro é você conseguir ter um desenvolvimento através de Bancos que não cobrem juros tão altos para essas pessoas que queiram abrir uma MEI, por exemplo, de faturamento pequeno. E as licenças delas trabalharem na rua, ocupando as ruas de São Paulo. Eu acho superimportante que tenham barracas, de moda, de gastronomia, de cultura, de artesanato, mas sabe, lugares onde as pessoas possam se instalar. O Parque Minhocão, por exemplo, é uma grande área de seis quilômetros, onde você pode ter Feiras ali. Na hora em que ficar tudo verde, pintarem de preto, porque é só pintar de preto e colocar verde. Então, em cima do Parque Minhocão, você pode ter, como tem em Nova Iorque... Não é igual, porque eu acho o Parque Minhocão muito melhor, mas não tem nem comparação com o High Line. Ele é muito mais diverso, ele é muito mais bonito, a vista é muito mais bonita, o entorno é mais bonito. É só pintar de preto e colocar verde e fazer licenças para que as pessoas trabalhem ali em cima. Isso já vai gerar uma economia criativa incrível para o Centro de São Paulo. Não só para o Centro, acho que para São Paulo todo. Ali é a área do desenvolvimento. O Centro de São Paulo sempre foi. Os teatros todos se desenvolvem ali. O meio artístico todo se desenvolve ali. Os movimentos hip hop. Tudo. E o que é muito claro para mim é que as pessoas colocam muito empecilhos nas coisas, muitos percalços e a coisa não anda, por causa das pessoas. Porque por gente anda. Quando é gente que faz, sempre anda. (risos)
P/1 – Para mim, está bom.
P/2 – Para mim também.
P/1 – Querida!
R – Ai, obrigada!Recolher