Programa Conte Sua História
Depoimento de Olympia Palhares do Nascimento
Entrevistada por Carol Margiotte e Nori Navarro
São Paulo, 20/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV743 _ Olympia Palhares do Nascimento
Transcrito por Mariana Wolff
Revisão – Edição Paulo Rodrigues Ferreir...Continuar leitura
Programa Conte Sua História
Depoimento de Olympia Palhares do Nascimento
Entrevistada por Carol Margiotte e Nori Navarro
São Paulo, 20/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH
_ HV743 _ Olympia Palhares do Nascimento
Transcrito por Mariana Wolff
Revisão – Edição Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 –Dona Olympia, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui hoje.
R – Nada, estou à disposição.
P/1 – E para a gente começar, por gentileza, seu nome completo.
R – Olympia Palhares do Nascimento.
P/1 – O local e a data de nascimento da senhora.
R – São Carlos, que é São Paulo, no dia 12 de novembro de 1925.
P/1 – A senhora sabe por que os seus pais lhe deram esse nome? Olympia?
R –
Porque a minha tia - irmã do meu pai - chamava-se Olympia: Olympia Palhares. E a minha mãe estava grávida. Como ela faleceu com nó na tripa, que, naquela época, nó na tripa era apendicite, ela faleceu. Quando eu nasci, o meu pai botou o nome de Olympia Palhares e eu via lá no túmulo Olympia Palhares, que era o da minha tia.
P/1 – E aí, o que a senhora sentia quando via?
R – Achava normal, porque realmente, quando morria alguém, botava o nome da pessoa que morreu, entendeu? (risos) Era assim, antigamente. Tinha muita Olympia e Olympio na família nossa!
P/1 – E os seus pais contaram para a senhora como foi o dia do seu nascimento?
R – Não, porque a minha avó, mãe da minha mãe, era parteira. E ela é quem fazia o nascimento de todos os filhos, aliás, as filhas, as noras, etc., etc., que eram imigrantes italianos e que parece que foi em 1912 que eles vieram aqui para o Brasil e ficaram lá em São Carlos.
P/1 – E quais os nomes dos pais da senhora?
R – Meu pai chamava-se Guarino Soares Palhares e a minha mãe era Joaninha Patrize Palhares.
P/1 – E o que a senhora conhece sobre a história deles?
R – O meu pai, quando era mocinho, ele aprendeu alfaiate. Mas ele também era ator, ele fazia teatro com uma turma, com o Marmuratti (? 00:02:55), e eles iam nas cidades vizinhas, onde tinha cinema ou teatro e apresentava a peça deles, Romeu e Julieta e O pagador de Promessas, que ele fazia. Eu tinha as fotos dele todo maquiado, tudo, entendeu? Então, ele também era o combatente de 1932, como soldado constitucionalista. Minha mãe e o meu pai trabalharam como soldado constitucionalista de 1932.
P/1 – E a mãe da senhora?
R – Minha mãe fazia serviço de casa, aprendi a cozinhar com ela, fazer macarrão, etc., etc., etc., cozinhava muito bem.
P/1 – E eles são nascidos onde? Onde eles nasceram?
R – O meu pai era filho de portugueses e pouco sei da família dele. Porque a minha avó não falava muito, mas da minha mãe... Eles vieram da Itália, parece que em 1912, minha mãe tinha sete anos, eram nove irmãos e foram morar em São Carlos. E lá foram trabalhando, a minha mãe aprendeu a fazer camisa, aprendeu a bordar, aprendeu não sei o quê… Eu sei que com quinze anos, ela já trabalhava e bordava e tinha máquina de costura. Meu tio que pagava a máquina porque ela tinha pouca idade e não podia comprar, então, o irmão mais velho pagava para ela a máquina de costura.
P/1 – E a sua mãe contava histórias de como era na Itália?
R – Eram muito reservados, porque vieram da Guerra, entendeu? Vieram para cá, imigrantes, e não tinham nada. Mas lutaram lá fazendo as coisas, que sempre eu lembro do porco que o meu tio matava lá no quintal - um porco enorme - e depois dividia para a família. Todo mundo comprava um pedaço do porco, porque não tinha óleo, a gente cozinhava só com banha. Essa era a vida deles. E a minha avó italiana parece que ela sempre foi velha, porque era sempre aquela mesma roupa, roupa preta, aquela saia longa. Já a minha avó portuguesa, a outra, a mãe do meu pai, aquela lá era danada. Pouco falava, mas ela lavava roupa para a estrada paulista de ferroviária. Trabalhou bastante, lavava aqueles linhos, aqueles lençóis, aquelas toalhas, isso que ela fazia.
P/1 – E a senhora conheceu tantos os avós por parte de pai quanto de mãe?
R – Sim.
P/1 – A senhora se lembra dos nomes deles?
R – Sim, a minha avó era Jacinta Patrize, meu avô era Cármino Patrize - isso do lado da minha mãe. Do lado do meu pai, a minha avó chamava-se Carolina Palhares e o marido dela morreu com febre amarela - Manuel Palhares o nome dele.
P/1 – Em que momentos que a senhora ia para a casa deles?
R – Bom, à casa da minha avó portuguesa eu ia, mas ela só lavava roupa e passava, ela pouco falava, ela não contava do passado. Porque ela casou com doze anos, teve o primeiro marido, morreu com febre amarela; depois ela casou com o Palhares, teve cinco filhos, também morreu com febre amarela. Aí ela ficou cuidando dos filhos. Agora, da minha avó italiana, aquela os filhos é que faziam, ela parece que era velha a vida inteira, conheci ela só velha, ela só falava italiano puzzolenta, puzzolenta, entendeu? Puzzolenta quer dizer feia, boba, entendeu? (risos) Eu lembro das palavras (risos).
P/2 – Obrigada por traduzir a palavra em italiano para nós.
P/1 – E ainda da avó italiana, que imagem que a senhora tem dela dentro de casa?
R – Das duas?
P/1 – Pode ser.
R – Eu não sei, porque eu era menina. A minha irmã ficava muito com a minha avó portuguesa, que ela gostava, era a neta mais velha e ela gostava de ir em circo. Naquela época tinha circo nas cidades, então ela levava… E eu não ia porque eu ficava na minha casa com a minha mãe, com o meu pai, entendeu? Eu lembro bem disso. Agora, a avó italiana, aquela era uma velha sempre, não se ouvia falar nada, só ficava sentada e xingando os outros lá em italiano. (risos).
P/1 – E com a senhora e com as outras netas, como que a avó italiana, o que ela passava de ensinamentos?
R – Pouco ensinamento. Não sabia falar, ensinar a gente alguma coisa, não falava. E não falava nada. A minha avó portuguesa era muito reservada, não falava nada. A italiana,
como era uma velha, pouco falava também (risos).
P/1 – E das comidas, o que elas faziam?
R – A minha avó portuguesa tinha o meu tio caçula, então ela só fazia comida para ele, a gente ia lá, não comia não. Ela morava num quintal enorme, que tinha árvores frutíferas - manga, uva... Uva era a rainha dela lá, ninguém tocava. Todo mundo obedecia, ninguém tocava em nada dela. Já a avó italiana, às vezes, matava um porco, fazia muito macarrão em casa, que era comida italiana, macarrão vermelho, macarrão… Depois foram se aperfeiçoando mais com lasanha, com isso, com aquilo. Mas comia muito macarrão feito em casa, que eu aprendi com a minha mãe fazendo macarrão feito em casa.
Eu fazia macarrão também aos domingos, com a família. Macarrão, fazia bastante, todo sábado e domingo.
P/1 – E como era esse momento de fazer a massa? Quem participava, quem tinha que fazer o quê?
R – Eu fazia tudo. No sábado, enchia… Tinha a máquina... Quando eu casei, o meu pai me deu a máquina, aí eu fazia o macarrão, deixava tudo em cima da mesa, com bastante farinha, cobria tudo, deixava passar. Noite lá, entendeu? Depois, no dia seguinte, fazia o molho e botava o macarrão, o molho bem substancioso, não era como latinha de Pomarola, essas coisas não, era o molho feito em casa mesmo, com tomate, entendeu? E bastante carne, e eu fazia sempre. Eu lembro que, do lado do meu marido, falavam: “Nossa, você sabe cozinhar? Você sabe fazer pão?” “Aprendo e faço”. Agora já não faço mais nada. Fazia. De vez em quando, faço uma tortinha assim…
P/1 – E a senhora sabe por que a família dos dois lados foram para São Carlos? Por que São Carlos?
R – A minha avó portuguesa morou em São Carlos com a família Jesuíno de Arruda, que foi o fundador da cidade. Mas quem ficou autor da proeza foi a família Botelho, porque eles tinham dinheiro e ajudaram o Jesuíno Arruda, então, foi a luta eterna, que eu sei que eu lecionei na fazenda dos Botelho
em Gavião Peixoto, perto de Araraquara, então eu fiquei sabendo de muita coisa. Não podia ir contra os Botelho, porque eles eram Botelho, entendeu? E a minha avó foi criada com a família do Jesuíno de Arruda. Entendeu? Dai que eu sei da ascendência da cidade de São Carlos - São Carlos do Pinhal.
P/1 – E a senhora sabe por que a sua família escolheu morar em São Carlos?
R – A minha avó, não sei como ela foi parar em São Carlos. Já os italianos foram por causa da Primeira Guerra Mundial, qualquer coisa que a Itália estava ruim demais e vieram para cá, para sobreviver.
P/1 – E a senhora sabe como os seus pais se conheceram?
R – Meu pai era um homem muito bonito, super mulherengo, porque ele era lindo demais. Quando ele tinha dezenove anos, ele ganhou “mister sancarlense”. Ele nasceu em Rincão, eu lembro bem. Em Rincão. Minha mãe, na Itália, morou em ___00:14:08___. Isso que eu sei. Agora, quanto ao conhecimento dos dois, bonitão, sei lá, conquistou minha mãe e casou (risos).
P/1 – E além da senhora, eles tiveram outros filhos?
R – Sim, eu tinha uma irmã mais velha, Priscila, que faleceu já está fazendo uns dez anos, e tenho um irmão que mora em São Bernardo do Campo - é mais novo do que eu cinco anos.
P/1 – Que se chama?
R – Antônio Carlos Palhares.
P/1 – Eu quero falar da infância da senhora agora, mas eu queria que a senhora me contasse como era a casa onde vocês moravam, onde foi a infância da senhora.
R – Então, a minha infância, eu lembro… Eu não lembro da casa, depois o meu tio que contava que era a casa que morava lá, ele chamava Benedito Galdino, ele era mulato, casado com a irmã da minha mãe, e ele me levava para passear em São ___00:15:28____, Água Vermelha, tudo ali perto de São Carlos, ele gostava de me levar. O meu tio, também Palhares, quando ele ia noivar a Jandira - que eu lembro bem da Jandira - ele me levava junto para namorar. Então, eu ficava na rua, sentada na calcada ali e a porta ficava aberta, eles ficavam namorando, conversando, com a família lá e eu passeando na calçada. Alguém que me pegava para me levar para passear, foi assim.
P/1 – E do que a senhora brincava na infância?
R – Com boneca, boneca de pano, depois veio a celulóide. Celulóide é um tipo de plástico que não existe hoje, hoje tem plástico, mas o plástico só apareceu quando eu casei. Porque não tinham asfalto as ruas, nem aqui de São Paulo, estavam começando e…
P/1 – A senhora estava falando sobre as brincadeiras e a senhora falou em celulóide.
R –
Ah! Então tinha um senhor que morava na rua Major José Ignácio e ele fazia… Trabalhava numa fábrica e ele fazia caminhãozinho, fazia coisinha, tinha uma senhora que fazia bonequinha de pano, coisa de pano, depois a gente ganhava as bonequinhas de celulóide, bolsinha, isso que a gente ganhava de presente de Natal. A gente acreditava em Papai Noel, entendeu? Na época do Papai Noel.
P/1 – Como que era o preparo para o Natal?
R – Sempre carne de porco, frango, macarrão, isso não deixava de existir. Sempre assim.
P/1 – Eu queria saber se a senhora chegou a acompanhar alguma ida do seu pai para fazer alguma peça em alguma cidade.
R – Sim, o meu pai que conta e falava que ele me levava, porque minha irmã ficava com a minha avó e eu ia com o meu pai, com a minha mãe, minha mãe também, nós íamos viajar, mas eu propriamente dito, eu não lembro. Mas eles é que falavam. Tanto é que ninguém me chamava de Olympia, porque o meu pai me pegava no colo e ficava cantando: “Zizinha, Zizinha, meu bem, vem minha santinha, que eu quero tirar uma casquinha”. Como ele me pegava no colo e cantava – eu lembro desse verso – a minha irmã então achava que ele estava me chamando e que eu era Zizinha. E o meu apelido ficou Zizinha. Então, toda família só me chamava de Zizinha. Às vezes, alguém ia na casa do meu tio, que eles tinham máquina de beneficiar milho... Uma vez foi uma colega lá: “A Olympia está aí?”, a empregada falou: “Não, aqui não existe nenhuma Olympia”. E ninguém sabia que eu era Olympia.
P/1 – Mas a senhora sabia?
R – Eu não. Só quando eu entrei na escola. Quando eu entrei na escola, entrei no colégio das freiras, aí era diferente, aí me chamavam de Olympia, mas a família me chamava de Zizinha, então era Olympia e Zizinha, não é?
P/1 – Mas teve um momento na escola em que a senhora descobriu o seu nome?
R – Ah sim! Fui alfabetizada, tinha que aprender, não é?
P/1 – E como foi esse momento?
R – Natural, porque usava muito apelido. Antigamente, usava muito apelido. Francisca era Chica, não sei o que era Chiquinha, José era Zezinho. Existia muito apelido.
P/1 – E a senhora se lembra do primeiro dia em que a senhora foi para a escola?
R – Lembro. Eu fui para o Colégio das Freiras, que nós íamos quando eu era pequena. Depois entramos na Escola Normal Doutor Álvaro Guião, lá em São Carlos. Que era uma grande escola e me formei lá, fiz o ginásio, o normalista, que era normalista antigamente, fiz o magistério, e quando me formei, fui trabalhar. Nunca trabalhei na vida, só para ajudar a minha mãe em casa, fazer as coisas só, mas quando eu comecei a lecionar, quando eu me formei, fui lecionar, ganhar o meu dinheiro, então ganhava o dinheiro e era só meu, entendeu? Então, eu comprava tudo que eu queria, gastava, comprava alguma coisa para a minha mãe, que ela precisasse - qualquer copo novo, isso, aquilo, a gente comprava prato, mudava - mas o resto eu gastava. A primeira cidade em que eu fui lecionar foi… Eu fui primeiro, substituta efetiva de São Carlos. Numa escola que se chamava Grupo Escolar da Vila Néri. Aí, depois, passou… O nome da escola agora é Luís Augusto de Oliveira, ele foi meu professor de Matemática, melhor professor que existiu na vida, de tão bom que ele era. Ele era enérgico, mas aprendia Matemática, ele olhava para a cara da gente assim:
“A senhora não entendeu, vou apagar tudo para a senhora entender”. E apagava tudo e ensinava de novo, uma maravilha de professor. Aí, depois, eu fui trabalhar em Trabiju, eu era substituta efetiva em São Carlos, na Vila Néri, eu lembro bem da diretora, dona Maria Luíza Carneiro Narciso. E o inspetor de ensino daquela época, ele foi lá na escola, como proteção sempre existiu, pediu para Dona Maria Luíza para pegar uma substituta, procurar não sei quantos quarteirões, procurar aluno para formar uma classe para a filha dele, porque ele era inspetor de ensino. E tinha outra, que era filha do delegado, também conseguiu. Foi outra. Então, ninguém aceitou esse encargo, a única que aceitou fui eu. Como não tinha nenhuma outra substituta de ninguém, imagine se eu vou arrumar cadeira para filho de inspetor, não sei o quê? Não neguei, eu fui. E a dona Maria Luíza falou: “A Isaura vai com você”. Que era uma servente, uma mocinha. Então era numa rua lá, padre Teixeira, eu vinha num quarteirão, de um lado e ela do outro, e ia andando, batendo de porta em porta e anotando para arranjar os alunos para a classe. Conseguimos, arranjamos os alunos. Então chegou o seu Arlindo Bittencourt, era o nome dele. O seu Arlindo chegou na escola e perguntou: “Quem foi que arrumou os alunos?” Ela foi sincera e falou: Ninguém quis, só Olympia Palhares” Ele falou: “Essa professora vai ser eternamente feliz”. Então, ele me protegeu dai para a frente. Eu peguei uma escola em Gavião Peixoto, nunca tinha visto o meu nome numa lista numa delegacia de ensino - Olympia Palhares - sempre não pegava, era aquela coisa de dá lá e dá cá, troca. Mas ele foi muito bom, eu fui para uma escola,
lecionei de manhã e fazia curso de adultos à noite. Mas uma maravilha, uma beleza de alunos, eu fazia tudo, eu era polivalente, tudo que aparecia, eu fazia e resolvia. Até a fazendeira eu conquistei, porque eu chegava lá, aquela bandeja no quarto. Eu dormia sozinha, não rinha trinco na porta, só quando você entrava que você botava tranca, então, cheio de morcego, aqueles morcegos que você não podia ter medo de nada, aqueles morcegos… E na classe ficava aquela bola de morcegos também caindo… Você nunca viu, não é? Nunca viu. Já viu morcego? Já viu a bola do morcego?
P/1 – Mas se quiser contar para a gente como é, pode contar como é.
R – Ficavam os morcegos todos juntos, grudados, juntos, e estragava até a madeira da classe, porque fazia o xixi deles, marcava. Mas o fazendeiro não deixava matar nenhum morcego, nada, porque ele comia os insetos, então não podia. Então, como eu era polivalente, saía morcego de trás da lousa, porque eu lecionava à noite, eu tinha que ser forte, tinha que ser mais forte do que eles, porque eu sabia e eles não sabiam. Depois o fazendeiro, que não pagava ninguém, só dava vale para os coitados, ele não fazia nada para os alunos, mas eu fazia as coisas para as crianças, tudo, tudo. E tinha um filho retardado, dois filhos retardados - o que morava na fazenda era retardado, tinha quarenta e cinco anos, mas ele era meio louco, uma vez ele pegou um aluno e botou a cabeça do menino no tanque de água para matar o menino, louco! Aí, quando eu fui lá, eu sabia porque depois, eu conquistei a fazendeira e etc., ia lá, comia com ela e tudo, conquistei, estava numa boa. Eu sei que ele contava as coisas que tinha na fazenda para ninguém pegar, eu achava um absurdo isso, entendeu? Mas eu subia na jabuticabeira com os alunos, com o porco embaixo e pegava as jabuticabas, chupava com os alunos, via os alunos, o menino que eu vi que estava cheio de impingem, sabe? Impingem é uma doença de pele que dá, não sei se é por causa de planta e eu vi o menino com aquela calça aqui, e a blusinha. Você vê, essas coisas eu não esqueço nunca, eu vi aquelas placas vermelhas de impingem - dava no rosto - dava no ‘coiso’, impingem, dava muito impingem. Mas me ensinaram uma coisa para impingem, então eu curei o menino. Que era pólvora com limão, espremia o limão, pegava aquela pólvora das bombinhas de pólvora, mexia e passava em cima. E chamei a mãe e ensinei a mãe, a mãe fez, o menino sarou. Outro tinha dor de dente, eu não podia dar nada para dor de dente do menino. O que eu podia fazer? Eu pegava um pedacinho de Melhoral, cortava um pedacinho, punha no dentinho da criança e sarava, era dentinho de leite, sarava. Outra vez o que foi que aconteceu com o aluno? Uma família morava lá e foi embora, se desentenderam com o fazendeiro e foram embora. Mas as meninas eram minhas alunas e escreviam para mim, o fazendeiro ficou sabendo que eu tinha amizade com a família e pediu para eu interferir e mandar a família de volta, eu escrevi para a família, que não lembro mais em que lugar que eles foram morar e voltaram para a fazenda, entendeu? Essas coisas bonitas que a gente não esquece na vida. Tudo que a gente faz tem que ser com bom grado, com amor, que dá tudo certo.
P/1 – E, além do morcego, tinha algum outro bicho que aparecia que a senhora tinha que fingir que não tinha acontecido nada?
R – Quando eu estava sozinha, que ainda não tinham começado as aulas à noite, ou era sábado e domingo, que eles faziam festa lá para eu não sair da Gavião Peixoto, lá da fazenda. Quando chegava que eu ia buscar uma menina, os outros falavam assim: “Cuidado, dona Olympia, que naquele lugar tem sempre fantasma, cuidado”. Eu então sabia que naquele lugar tinha fantasma, mas eu tinha que enfrentar porque eu era professora, não podia ter medo, tinha que mostrar que eu não tinha medo. Uma vez uma menina, que a irmã dela era minha aluna de manhã e a outra era aluna à noite e ela dormia comigo, um dia, ela ficou ruim, e eu chamei o ‘seu’ Apriccio, em Gavião Peixoto, que o filho dele foi meu colega lá em Gavião Peixoto, ele era farmacêutico, então a gente chamava e ele ia. Chamei, ele foi lá para a menina que estava com febre e tudo. Mas eu limpei, era só um cômodo que tinha na casa, tinha galinha, eu peguei a palha do colchão - porque era de palha - então fazia assim, fofinho, para ficar um colchão mais fofo para a menina deitar. O Apriccio veio, deu para ela a medicação, tudo, já sabia mais ou menos, não sei como eu mandei chamar, não lembro. Eu sei que ele foi, o ‘seu’ Apriccio. Aí, ele falou: “Mas a senhora tem que dar esse remédio aqui até meia-noite, é o último que a senhora tem que dar”. Eu fiquei até meia-noite para dar o remédio para a menina, Teresa. Uma é Teresa, a outra Helena. E a irmãzinha dela, coitada, só tinha uma roupinha no corpo, não tinha mais nada. Às vezes, eu levava ela lá para a casa grande em que eu ficava, naquela casa vazia, e eu dava banho na menina, dava um penhoarzinho para ela, lavava a calcinha, lavava o vestidinho, pendurava, em meia-hora secava, porque era muito quente, calor demais, botava na menina, penteava o cabelo e mandava ela para casa. Então, essas coisas eu não esqueço que eu fiz na minha vida. Não esqueço. Foi muito bonito.
P/2 – Você morava na fazenda onde você trabalhava?
R – Morava na fazenda. Eu ia só sábado e domingo para São Carlos, mas eles faziam qualquer coisa para me prender. Eu ia dançar nas outras fazendas, que eram parentes e não se davam. Porque eu lembro da família Botelho, da Yolanda, que foi minha colega no Colégio das Freiras. Eu lembro de que eu ia na casa dela, que a minha avó portuguesa ia lá, porque tinha amizade com os Botelho, e a minha avó ia lá abrir a casa, tinha um relógio grande, que eu tinha medo do relógio. Eu era pequenininha e aquele relógio enorme, de pé, grande, entendeu? Depois de anos, Quando eu casei, eu encontrei a Yolanda morando perto da minha casa e fui na casa dela, estava aquele relógio: “Yolanda, o seu relógio me dava medo quando eu era pequena”. Nunca me esqueço disso, de encontrar a Yolanda depois de muitos anos. Faleceu. Era ela e o irmão. Família Botelho. Pegaram os dois irmãos para criar e eles foram criados por eles, gente rica. Nunca mais vi, morreu a Yolanda, morreu o Toninho, que é irmão dela. Lembro bem. A Yolanda faleceu quando eu morava aqui em São Paulo já, quando ela faleceu. Essas coisas eu não esqueço. E a minha primeira professora primária chamava dona Sílvia. Eu lembro dela, que ia tomar lanche comigo. Nós repartíamos lanche, não sei se ela gostava tanto de mim, então, no recreio, eu ficava com ela na classe. Interessante, também não esqueço. Aí, a vida foi crescendo, eu fui lecionar em Trabiju, lecionei em Gavião Peixoto, ganhei meu dinheiro, parecia que era um monte de dinheiro porque não tinha, não é? Depois aparecia aquele dinheiro, gastava, torrava o dinheiro, comprava roupa, adorava. Roupa sempre gostei, sempre, sempre. Comprava roupa.
P/1 – Dona Olympia, posso voltar na infância da senhora?
R – Pode.
P/1 – Eu fiquei interessada em saber sobre a época da escola de freira em que a senhora estudava.
R – Escola de freira, eu fiz o curso de admissão. Você sabe o que é curso de admissão? Antigamente tinha um livro grosso, que tinha Matemática, História, Ciências, Educação Cívica que hoje, civismo ninguém aprende mais na escola, não aprende mais nada, então, eu estudava no Colégio das Freiras, fazia o curso de admissão, aprendi Francês no curso de admissão, no Colégio das Freiras. A minha irmã era semi-interna, porque ela gostava de estudar, era mais estudiosa, eu não era tão estudiosa assim, entende? Mas eu aprendi o Francês. Quando eu fui para a Escola Normal, que eu passei para a primeira série e tudo, que depois eu fui para a Escola Normal, eu era a primeira aluna, em Francês, da classe. Professor falava: “Nossa...”. Porque eu prestava atenção na aula de Francês, que não interessava, mas quando não tinha uma professora para dar, chamava de madame Noeli, não esqueço dela. Aprendi o Francês. Depois, achei que eu sabia demais e hoje não sei nada mais, umas coisinhas assim, a gente sabe, lê, olha, traduz, sabe um pouco. Inglês também sei arranhar um pouquinho, entende? Aprende agora, com a Ruth morando nos Estados Unidos, a gente desenvolve um pouquinho, mas não sei dialogar.
P/1 – E ainda na infância, quando a senhora estava na sua casa, com os seus pais, você tinha alguma tarefa de casa para fazer dentro da casa?
R – Não, nunca fiz nada. Estudava. Meu pai pegava o livro, abria e falava: “O que é antípodas?” Eu não sabia o que era antípodas porque ainda não… Ele pegou e jogou o livro longe, porque eu não sabia o que era antípodas. Até hoje, eu nem sei mais o que é antípodas. (risos) De vez em quando, eu procuro alguma coisa para lembrar o passado, alguma coisa. Ainda mais que agora, com a ortografia moderna, a gente é obrigado a acompanhar, comprei aquele dicionário, tudo. Qualquer coisa eu olho no dicionário para escrever a palavra certa, senão, você pensa que está escrevendo errado, não é? De repente, de repente, agora é
derre… dois erres, pente. E outras palavras, preciso olhar no dicionário novo, agora. De vez em quando, eu pego para aprender mais coisa.
P/1 – E ainda na infância da senhora, lá em São Carlos, a vizinhança conversava? Como era a relação com as outras meninas?
R – Ih, Nossa! Conversava: “Oh, dona fulana”. “Oh, dona cicrana”. Conversavam… As comadres conversavam demais. Tinham uns fatos horrorosos. Uma vez, eu lembro bem, eu era menina, o meu pai ganhou… Eu sou do tempo do réis, o meu pai ganhou parece que quinhentos réis e comprou uma casa, porque nós só morávamos em casa alugada. Aí, a família Galdino lá, que morreu a família, e aquela era a madrasta, vendeu a casa e o meu pai comprou, eu lembro bem. Com os réis, não eram reais. Aliás, reais não, cruzeiro. Foi em 1942 que passou de réis para cruzeiro. Aí, teve aquelas coisas: cruzado, isso, cruzeiro novo, não sei o quê e está esse dinheiro maravilhoso que nós temos hoje.
P/1 – A senhora estava contando dos fatos horrorosos que a vizinhança conversava e que…
R – Tinha um tio meu, que eu lembro bem que nós estávamos lá em casa, quando veio a notícia de que um tio meu tinha falecido. Um louco... Como tem loucos hoje em dia... O meu tio era taxista, ficava no centro, era domingo, minha tia fez macarrão, tudo, comeu, e esse cara louco entrou num bar lá e [som de tiros] atirou em todo mundo e matou o meu tio, do nada, do nada. Ele era louco, família louca. Eu não lembro mais o sobrenome deles, só esse que era louco. Então foi uma coisa horrorosa, eu lembro do meu tio no caixão, todo mundo gritando, todo mundo chorava, todo mundo berrava e eu sentada lá em cima da janela - eu e a minha prima que era filha do meu tio. Então, essa coisa horrorosa de que eu sempre me lembro, não sai da minha cabeça, essa morte do meu tio, que existia.
P/1 – A senhora também estava contando da casa que o seu pai comprou, que ele tinha ganhado os quinhentos réis, não é?
R – É, ele ganhou dinheiro, comprou essa casa, porque até então a gente morava só em casa de aluguel, em várias casas, todas de aluguel. E aí, fomos para essa casa na rua Quinze de Novembro, primeiro era 316, depois foi 2.428; no começo, o primeiro número era 316, eu me lembro, era uma casa boa, tinha três dormitórios, cozinha, copa, tinha quintal; naquela época não tinha banheiro dentro de casa, o banheiro era fora, só o banheiro que era fora, a privada só fora. A gente tomava banho de bacia dentro de casa. Então, lembro bem disso também. Isso que… A minha vida de criança, brincava com boneca, até com doze anos, eu brincava com boneca.
P/1 – Mas a senhora se lembra de quando vocês mudaram para essa casa de vocês?
R – Lembro.
P/1 – E como foi esse dia? Qual foi a sensação?
R – Ah! Foi uma beleza, não é? Porque também não existia… A madeira era branca do chão, era lavada. E não existia o que tem hoje, Veja, isso, limpeza pesada, essas coisas não existia. Às vezes, passava cinza no chão e esfregava com soda para o assoalho ficar branquinho, eu lembro que a minha mãe limpava, lembro bem. Aí, na rua Quinze começou a encerar, era tudo encerado, passava cera, tinha congólio, um tipo de tapete que hoje é plástico, gruda no chão, então aquilo era congólio, era um tapete, desse tipo, chamava congólio, tinha na sala de visita e na sala de jantar. Então, ficou a casa bonita e tudo mais, toda ajeitada.
P/1 – E lá em São Carlos, nessa fase da infância, tinha alguma festa?
R – Meu pai era muito enérgico, não deixava namorar. Eu tinha fã para chuchu, pedidos de casamento de monte, mas ninguém chegava perto de mim. Depois outra, não podia namorar. Aí, quando eu vim para São Paulo, já conhecia o meu marido, porque o pai dele foi diretor da Escola Industrial em São Carlos e, numa dessas idas e vindas... Eu nunca saía de casa porque o meu pai não deixava, saía duas horas, tinha o footing, sabe o que é footing? Antigamente, tinha uma praça, a gente descia no footing com as amigas, virava, voltava, uma ia, a outra voltava, os rapazes assim, tudo em volta, a gente flertava, olhava, aí por intermédio de flerte, a gente namorava. Meu pai, todo sábado... A família inteira ia ao cinema. Então, tinha aquelas… Que hoje não é mais ficção, existia ___00:45:32___ Gordon, em capítulos, então todo sábado, parava e continuava no outro sábado. Ia a família, meu pai, minha mãe, eu, minha irmã e o meu irmão. A gente saía. Eu lembro que eu tinha um flerte, eu olhava para ele assim, só… Às vezes, ficava meses sem conversar, porque o meu pai ficava em cima de mim. E não sabia porque fazia assim. Quando eu comecei a lecionar, meu pai fez questão que eu fosse conhecer um moço em Tabatinga. Eu falei para ele: “Por que eu vou em Tabatinga?” Chamava Osmar, o rapaz - Osmar Dabroso - nunca me esqueço. Aí eu fui, um dia… A minha irmã lecionava em Dourados, uma cidadezinha pertinho de Trabiju, tinha só uma linha de trem... Era trem, só trem. Aí, falei para a minha irmã: “Vamos lá para Tabatinga?” “Vamos”. “Você entra no trem, se você ver que eu estou lá na estação, você põe a cabeça, faz assim, aí eu vou comprar a passagem para ir”. Então, eu fiz isso e fomos para Tabatinga. Tudo bem, o rapaz simpático, tinha um posto de gasolina, percebia que ele tinha posses, tinha um carro bonito, tudo, era ele, a avó e a mãe. Aí, quando foi à noite, ele se vestiu com aquele linho 120, era um terno superbranco, lindo e maravilhoso, parecia para casamento, parecia que ele ia casar, coitado. Eu, então, em Nova Europa, é uma cidadezinha lá perto, fomos lá porque tinha um não sei o quê dançante, não é que nem hoje, pega… Eu lembro que tomei um guaranazinho só. Aí, quando foi na volta, o rapaz levou um amigo dele, um médico, para fazer companhia para a minha irmã, então eu dancei com ele e a minha irmã dançou com o outro. Aí, quando foi de manhã, a mãe dele começou: “A senhora dançou com o Osmar? Gostou?” “Dancei com ele. Gostei”. “O que a senhora conversou?” “Conversa trivial, conversei com ele”. “Ele não falou nada para a senhora?”
“Sabe de uma coisa, pergunta para o seu filho”. E não quis saber do moço, já estava encomendada, ele pegou todas as escolas de Tabatinga, mandou pelo meu pai para eu escolher uma escola em Tabatinga”. Estava escrito, não é?
Maktub, estava escrito isso. Mas eu não fui, eu não quis, não foi por causa do moço, por causa do meu pai. Porque se ele me contrariou, então nesse dia, eu, cara a cara com ele, falei: “Eu não vou, eu vou para o quinto dos infernos, mas para Tabatinga eu não vou”.
P/1 –E ele?
R – Ele calou a boca assim, cara a cara. Aí, eu já conhecia o meu marido, entendeu? Já conhecia, mas não namorava, porque eu morava em São Carlos e ele morava em São Paulo. Mas quando eu ia para São Paulo, no fim de semana, às vezes... Assim... Porque tinha um tio que morava em Rio Claro, era o Patrize, aí conseguia passagem, porque ele trabalhava na estrada de ferro, a gente só andava de trem. E sempre eu telefonava e ele ia me ver, por pouco tempo ele me via, eu ficava um dia, ele me via: “Ué, se está me vendo pode ser que esteja gostando, não é?” Aí, depois, eu fui para Nova Guataporanga, barranca do Rio Paraná, quase divisa com Mato Grosso. Daqui de Pauliceia, você via os passarinhos, periquitos lá, aqui você escutava, mil e duzentos metros o Rio Paraná. Nós fomos para lá, no Rio Verde, que as águas não se encontravam, no Rio Verde. Agora dizem que é uma maravilha, que tem hotel, tem tudo, mas eu fui até lá. Então, na primeira remoção, eu fui para São Paulo, aí continuei, dai era 1953. Eu fui casar em 1957, casei com ele, o Rubens.
P/1 – Antes da gente falar do seu marido, eu queria que a senhora tomasse um pouco de água para eu encerrar a parte da infância. Eu tenho mais uma pergunta para fazer, da infância. Tudo bem?
R – Pode perguntar.
P/1 – Para encerrar a parte da infância, eu queria que a senhora me contasse se nessa época de estudar, ainda criança, a senhora sonhava em ser alguma coisa quando crescesse?
R – A única coisa que eu poderia pensar era ser professora. Só que eu imaginava e queria ser, e fui. Estudei e fui professora, e só trabalhei nisso na minha vida.
P/1 – E quando a senhora começou já a ficar mais jovem, adolescente, a mãe da senhora conversava sobre as…
R – Não! Nunca conversou nada sobre assunto feminino. A gente foi aprendendo sozinha. Italiana, era demais reservada. Fui aprender. O primeiro livro que eu fui ler escondido, porque o meu pai vigiava até os livros que a gente…Nem Madame Delly a gente podia, que era água com açúcar, entendeu? A minha irmã ficava olhando pela coisa da janela, batia a luz, claridade no quarto, e ela ficava lendo, eu não lia. Eu lembro que eu li um livro - Presença de Anita - como eu li agora, há pouco tempo, Cinquenta Tons de Cinza, todo mundo ficou bobo. Com esse tom de cinza, eu consegui uma coisa que o meu genro tinha pedido para eu ir ao Banco Bradesco e a moça não me atendeu, eu precisava de um papel, conversar, que o meu genro tinha pedido um cartão não sei o quê, daqui para lá, para os Estados Unidos, aí ela falou: “Não, mas não tem o endereço do seu genro, não tem nada, não sei o quê, não sei o que lá”. Eu falei: “Meu Deus, o que tem, não é?” Eu pensei comigo. Aí, ela tinha um livro grosso assim no parapeito assim, no banco, e eu falei: “O que você está lendo?” “Este livro aqui – Suzana o nome dela e a outra, Vanessa, do lado – eu estou lendo esse livro”. Eu também estou lendo o livro, eu estou lendo Cinquenta Tons de Cinza”. Aí, ela caiu na gargalhada:
“A senhora está lendo Cinquenta Tons de Cinza?” “Eu estou no terceiro, falta o quarto”. Aí ela pegou e saiu e falou para a outra, era pegado ali, no banco, tinha aquele tapume assim, separando uma da outra, ela falou: “Olha, atende ela que eu preciso sair”. Era hora de almoço, aí eu sentei, na hora, a moça já se comunicou com o meu genro: “’Seu’ Camilo, a sua sogra está aqui na minha frente”. E acertou tudo. Quer dizer que precisa usar umas artimanhas para conseguir outras coisas, está bom?
P/1 – E nessa que a sua mãe não conversava com a senhora sobre o que ia acontecer, sobre essa parte do feminino, quando a senhora ficou mocinha, como foi?
R – Foi normal, não se usava o que se usa hoje. Era pano higiênico, fazia os panos higiênicos e botava numa cintinha aqui, aquilo era lavável. E fui fazendo. Conversava com a colega, fui sabendo e fui desenvolvendo, a vida foi me ensinando. Tudo que eu sei, a vida me ensinou também; foi uma grande universidade a vida.
P/1 – Mas a senhora lembra onde a senhora estava quando veio a primeira vez para senhora?
R – Lembro! Lembrava tudo.
P/1 – E como foi esse primeiro dia?
R – Normal, porque a gente já conversava com colega, sabia, tudo normal. É coisa que todo mundo tem que passar por isso, não é mesmo? Até hoje. Hoje é tudo diferente, muito diferente tudo. Coisa eu, antigamente, não era nada disso.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse como conheceu o seu esposo.
R – Então... Eu comecei a falar para você que ele, o pai dele, era diretor da Escola Industrial em São Carlos. E o pai dele, Malito Nascimento de Luca, casou com uma colega minha, ele já era velho, depois que eu casei que eu fui ver a verdadeira idade dele, porque eu tinha… Fui obrigada a ter aquilo na frente, então fiquei amiga dela. E ela teve o nenê, casou grávida, a Alair, eu ia muito na casa dela, quando eram férias, assim que eu podia sair, eu ia na casa dela. O Malito que arranjou também a substituição na escola do Luís Augusto de Oliveira, ele que me arrumou substitutiva com o delegado de ensino, mas não conhecia o filho dele. Eu sei que no dia seis de abril de 1950 eu estava entrando na casa dele e estava o filho dele ali, fui apresentada naquela hora, era uma sexta-feira santa, aniversário do pai dele, foi dai que eu o conheci. Aí, ficamos lá jogando buraco, que ele ficou sexta, sábado e domingo, porque ele vinha embora para São Paulo - ele morava em São Paulo - mas gostei. Foi uma atração, entendeu? Aí, depois, eu fui para Nova Guataporanga, fui longe, tudo, quando eu voltei, em 1953, aí nós começamos amizade, namoramos e casamos. Não casou antes porque não tinha dinheiro.
P/1 – Mas como vocês ficavam se comunicando nesse tempo em que ele estava em São Paulo e a senhora nas outras cidades?
R – Escrevia de vez em quando, porque eu não era namorada dele. Só fui apresentada. Uma vez, eu escrevi uma carta para ele - está lá - que eu estava escrevendo à luz de vela, desabafando, porque às dez horas apagava a luz, porque tinha dois alto falantes, como é? Que Beijinho Doce, Cascatinha & Inhana, tocava
o dia inteiro; e Benny Goodman apagava a luz. Cascatinha & Inhana tocava o dia inteiro e Benny Goodman (risos). Essas coisas que a gente não esquece.
P/1 – E o que mais a senhora escrevia na carta?
R – Falava para ele que eu tinha ido ver o Rio Paraná, conhecer o Rio Paraná, que eu estava escrevendo com vela acesa, que eu estava com as colegas ali e eu dormia com a minha diretora, japonesa, uma mulher maravilhosa! A gente só cumprimentava uma a outra, porque tinha as colegas que tinham inveja que eu dormia com a diretora e a mulher não abria a boca. Uma coisa que eu aprendi com ela, levantar, passar perfume (risos) - levantar e passar perfume - aprendi com a japonesa. Também quando ela entrava no quarto, eu virava para lá e ela virava para cá, às vezes eu dava a cama para o marido dela, o marido tinha farmácia em Lucélia e eu dava a cama e ia dormir com uma outra, a Angelina, que era de Bragança Paulista. O marido dela ficava lá, aí depois eu dormia com a Angelina e quando o ‘seu’ João, o marido da Massaé vinha... E uma vez, ela me convidou e eu fui jantar em Dracena - é uma cidade aqui no Estado de São Paulo. Acho que foi a primeira cidade… Para lá de Marília. Eu sei que as outras então ficaram… Aí foi disputa, porque quando os alunos iam para a escola, de manhã, ficavam lá jogados na rua. Eu pegava os meninos e levava na… Era tudo de madeira e eu ficava dando aula para eles, fazendo lição com eles, então elas ficavam disputando, entendeu? Foi a coisa mais gozada e eu deixava disputar, porque eu falava: eu não estou ganhando nada com isso, estou fazendo só o bem para alguém. Essa foi a minha vida.
P/1 – E dona Olympia, essas cartas que a senhora mandava para ele, ele respondia?
R – Uma vez só ele respondeu. Depois, eu queria distrair, quando foi em 1953, eu nunca na minha vida tinha viajado, eu, a Áurea, a Inês, a Míriam, a Marta e a Carmem, que morava em Campinas, elas conheciam uma Pensão Palacete, em Santos. Então, eu queria aproveitar, nunca tinha saído na vida, eu tinha dinheiro, então eu passei quinze dias em Santos com elas - Pensão Palacete - bem ali no centro de Santos, pela Bandeirantes ali, que tinha o hotel Bandeirantes. Então, eu fui para Santos e não avisei, não falei nada para ele, nada, nada, porque eu tenho o direito de me distrair. Então, eu fui para me distrair. Eu sei que naquele dia em que iam chegar os marinheiros americanos, ia ter uma festa e nós estávamos todas prontas para ir na… Eu lembro, uma saia preta com rosas amarelas, eu lembro, godê guarda-chuva, aquela saia, uma blusa preta, nunca me esqueço. Aí eu estava sentada ali, esperando a hora em que nós iríamos lá, quando eu vejo o Rubens descendo, ele me viu e desceu correndo, ele veio correndo e veio ao meu encontro. Então eu levantei, não é? Saí, pegamos o bonde, porque tinha bonde em Santos, e fomos na Biquinha, que também tinha uma coisa dançante lá, de tarde lá, aí fiquei com ele, aí começou a namorar. Aí, começamos a namorar.
P/1 – E foi o primeiro beijo aí?
R – Não, não foi. Nada de beijo.
P/1 – Mas como era o começo do namoro? O que vocês faziam?
R – Aquela educação rígida, ninguém se aproximava de mim, era difícil, eu fui difícil. Eu gostei dele, só.
P/1 – E como a senhora sabia que estavam namorando? Como era…
R – Porque o pai dele...E porque eu tinha amizade com o pai dele, por causa da Alair, da madrasta, eu ia… Tinha um ônibus que saía, Saúde, até o… Era Brás Saúde o ônibus, pertinho. Ficava uma hora dando volta em São Paulo para chegar, depois lá em cima andava um pedaço na rua das Hortênsias, onde eu morava, que eram umas casas todas nova, bonitinhas, e o meu marido comprou uma daquelas casas que foi uma beleza. Aí, começamos a namorar, namorava na rua porque ele morava em pensão, e eu morava com os tios, então era tudo difícil.
PAUSA
P/1 – Dona Olympia, voltando para a nossa segunda parte aqui da nossa conversa tão gostosa, eu queria que a senhora me contasse da vez em que o Rubens respondeu uma carta da senhora. Como foi receber a carta dele?
R – Sabe como é, não tinha aquela aproximação, não existia, porque ele morava em pensão, tinha a madrasta… E eu morava na casa dos parentes, do lado italiano, então chegava tarde… Eu então aguentei quatro anos, porque eu tentei sair da casa da minha prima e pensei: “Eu vou entrar num pensionato de moça”. Porque eu pagava mais barato do que a casa da minha prima. Mas aí, conversando com o Rubens, que era o meu namorado, falou: “Você não vai se sentir bem porque o banheiro é coletivo, tem que ficar na fila de banheiro…”. Então eu aguentei, deixa eu fazer tudo direitinho, como manda o figurino, entendeu? Então, eu fiquei lá na casa da minha prima, que a minha tia tinha falecido e o meu tio levantava cedo porque ele trabalhava em um mercado, sei lá; aí eu sei que, então, o nosso namoro foi assim, foi mais namoro de rua porque ele não entrava na casa da minha tia, eu ia na casa do pai dele mas passava o dia só lá com eles e voltava para casa, ele me levava para casa. Assim era a nossa vida, entendeu? Nosso namoro, entendeu?
P/1 – Isso, a senhora já está contando de quando a senhora já estava em São Paulo, não é?
R – É!
P/1 – Eu queria que a senhora me contasse antes, como é que foi a decisão de vir morar em São Paulo?
R – Eu que tomei a decisão, porque eu gostei dele, achei que ia dar certo, falei: “Eu vou, se não der certo, eu volto para qualquer lugar”. São Carlos, não. Mas eu ia para outro lugar qualquer, não é? Então eu resolvi ir para São Paulo por causa dele, entendeu? Que eu tinha gostado dele, da primeira vez, eu já gostei dele, ele era simpático, delicado, foi atencioso, então me apaixonei por ele e deu tudo certo, graças a Deus.
P/1 – E como foi se mudar para São Paulo? Qual foi a primeira impressão daqui da cidade?
R – Eu nunca na minha vida pensei que um dia eu viesse morar em São Paulo, nunca! Foi um… Sei lá, um ‘coiso’… É uma coisa de Deus, mesmo. E gostei, porque eu gostei dele, a vida foi difícil, não foi fácil, mas depois ele começou… Ele era funcionário público também e ele…Nós casamos em 1957, quando foi em 1958 ele queria largar o funcionalismo, ele era desenhista. Eu falei: “Não faça isso, porque esse dinheiro vai fazer falta um dia, não faça isso”. Aí, ele estava fazendo o curso de Direito - para fazer Direito - que ele gostava, mas ele foi assaltado, foi roubado na Rodrigues Alves, que tem um curso ali, e ele depois não fez o curso de Direito, ficou como desenhista. Então, ele falou que, como a família dele, todos trabalhavam com tecido, ele foi trabalhar com tecido também. Aí, ele conseguiu ser relações públicas da Secretaria de Educação, porque ele trabalhava na Educação, levar papel para cá, para lá, porque antigamente não existia celular, não existia nada disso, era só telégrafo, não sei o quê, não sei o quê lá, carta... Então, ele começou a vender tecido também e ganhou dinheiro com isso. Comprou a casa, ali nas Hortênsias, onde o pai dele morava, comprou uma casa lá por intermédio do IPESP, antigamente, agora é SPPREV, agora, sabe, não é? Então, a vida foi indo. Compramos apartamento na praia, que está lá encrencado o apartamento, fechado, e foi assim a nossa vida.
P/1 – Conta para a gente como foi o dia do seu casamento?
R – O dia do meu casamento eu não estava interessada em… Porque a família dele é toda de gente rica. Hoje, coitados, quando a avó dele… A família Lemos, porque ele era parente da Sara Kubitscheck, a avó dele, a vovó Binha, era prima-irmã da Sara Kubitscheck, e a Sara, quando casou com o Juscelino, nós tínhamos uma herança do Barão de Cocais, de seis mil dólares na época. Em 1960 e poucos, então, todo mundo fez a papelada, mineirada, não sei o quê, mas o Juscelino entrou, aquela onda, vai e vem, vai e vem, Brasília… O dinheiro sumiu de Cocais, entendeu? Então, falando nisso, ele trabalhou com tecidos porque todo mundo trabalhava com tecidos na família dele. Ele, o irmão, o primo, o Zezito, o Ivan, e ele também começou a ganhar dinheiro com tecido, e assim foi indo a vida, não fomos ricos, mas tinha conforto.
P/1 – E o casamento, como foi?
R – O casamento, o dia… O dia mais feliz da minha vida não foi tão feliz assim, porque estava toda a turma dos grã-finos na minha casa, que não tinha nada de requinte. Então, eu com a minha mãe que fizemos tudo. Encomendei o bolo em Rio Claro, veio o bolo de Rio Claro, que era bolo não sei o quê, elas trouxeram lá as corbeilles daqui de São Paulo e botaram e levaram, o meu marido também, quando foi, ele ficou no hotel e levou o meu vestido também, que estava na costureira aqui em são Paulo. E foi assim. Então, aquele tumulto… Dei um jantar no civil. Um jantar na Estância Suíça. Aí, quando foi no dia seguinte, foi um coquetel pequeno, casamos de manhã no religioso e foi um coquetel, mais ou menos assim, quando foi três e meia, o táxi estava na frente, entrei no trem e fomos embora, nós fomos de Pulmam, era um carro para a família, entendeu?
Então, ver a tristeza da minha mãe, eu viajei a noite toda chorando - a noite toda - foi essa a tristeza, porque a minha mãe ficou sozinha. Eu falei: “A senhora não vai ficar sozinha nunca, eu estarei sempre do seu lado e vou lhe ajudar”. Assim foi o casamento.
P/1 – E como era o vestido da senhora?
R – O meu vestido era fustão bordado, tem a fotografia aí, você vai ver. Fustão bordado, aqui o sutiã inteiriço, a manga até aqui, luvas, e a saia bem rodada. Fustão bordado, não precisava de nada de enfeite, porque o tecido já era inteirinho bordado.
P/1 – Teve buquê?
R – Teve, veio aqui de São Paulo, foi para lá. A família dele que levou, as primas, lá.
P/1 – Como era?
R – Branco, tudo branco. Branquinho. Umas orquídeas bonitas, brancas. Não sei, estava de um jeito que chegou perfeita.
P/1 – E a senhora falou que a sua mãe ficou muito triste. O que ela falava para a senhora nesse dia?
R – Porque ela ia ficar sozinha, meu pai viajava demais, saía, era mulherengo, e a minha mãe ficava muito só. Então, ela ia para São Paulo e ficava comigo. Quando ele estava para voltar da viagem, ela voltava para São Carlos. Quando ele não estava lá, ela vinha comigo para São Paulo, ela me ajudou muito no começo de casada. E eu tinha as empregadas, todas mineiras, mas as mineiras boas ficavam do lado de lá, dos mineiros, dos Lemos, etc., Juscelino e a companhia limitada e as porcarias vinham para mim, entendeu? Então, aguentava aquelas porcarias porque eu precisava.
P/1 – Por que porcaria?
R – Porque não sabia fazer serviço. Não sabia nem o que era privada. Moravam todas em roça e foram trabalhar em São Paulo. Então, chegavam lá, era uma casa, tinha que saber trabalhar, não é? Varrer, passar pano, lavar uma louça.
P/1 – E dona Olympia, teve lua-de-mel?
R – Tive, vim para Mongaguá. Já estava marcado, tudo. Fomos pra Mongaguá no dia seguinte, já pegamos o ônibus ali na Avenida Nazaré, que não precisava ir para a rodoviária, coisa nenhuma, já entrava no ônibus e já pagava ali na hora e fomos para Mongaguá, ficamos uma semana em Mongaguá, eu estava de férias. Agora, ele teve o tempo dele de casamento, tempo certo, de uma semana.
P/1 – E como foi esse começo de vida de casado? Como foi descobrir a intimidade do casal?
R – Vivia muito bem, porque eu gostava muito dele, vivia bem mesmo. Mas, às vezes, tinha algum arranque por causa das filhas - ele era ciumento com as filhas, com a Ruth... A Ruth era a primeira filha, então a gente tomava cuidado, tinha cuidado com isso, com amizades, com tudo. A Rosângela já saía mais, a Ruth não, era mais tímida, pouco namorou, casou com o Camilo, que é de Pompeia. Mas eu vivi bem com ele. Mas um arranquezinho sempre tem, por causa dos filhos.
P/1 – E onde era a casa em que vocês foram morar?
R – Quando casamos, fomos morar no Ipiranga, uma casinha com porta na rua. Tinha embaixo uma sala, banheiro, cozinha, não tinha quintal. Existia quintal, que agora ninguém sabe o que é quintal, só português que fala quintal, que hoje virou quintal os jardins de antigamente não é? Que é estacionamento de carro. Então fomos morar no Ipiranga, eu consegui a escola no Ipiranga, a transferência, aí perto, também pegava ônibus, às vezes, tinha uma colega minha que passava com aqueles carros pequenininhos, como chamava? Tem uns carros pequenos, antigamente, como era o nome? Romiseta, carrinho pequeno, abria assim, e a gente entrava, o marido dela tinha lá, sei lá, negocio de propaganda, mas de mais a mais eu pegava… Peguei chuva no caminho, Vila Carioca, que tive que atravessar a avenida de carroça para não me molhar, por causa da minha filha que ficava… Quando a minha mãe não estava, aí eu pegava o carrinho da minha filha, botava na casa da vizinha, com tudo direitinho, com três horas que eu saía, era a primeira a sair, saía correndo para pegar a minha filha, estava direitinha, não acordava, ninguém precisava trocar fralda, nada, nada. Olha, era o que eu pedia a Deus. Porque eu rezava a toda hora para proteção da minha filha, a Ruth, que foi a primeira filha.
P/1 – Como foi a primeira gravidez?
R – Foi normal. Eu casei em 1957, dia 25 de janeiro de 1957. A Ruth nasceu dia 29 de novembro de 1957, no mesmo ano, janeiro… Era para nascer em dezembro, ainda um dia antes foi uma amiga dele, do meu marido, lá, conhecida, foi namorada do irmão dele, foi lá, eu com aquele barrigão, e ela foi jantar lá na minha casa. Aí, estava tudo bem, jantamos, estava com as malinhas arrumadas, porque o doutor Nelson falou: “Do dia primeiro ao dia quinze vai nascer o bebê”. Estava sossegada, mas estava com tudo arrumado, a mala, as roupinhas dela e uma malinha pra mim que era... Só faltava colocar escova de dentes, essas coisas, estava tudo arrumado. Quando foi de madrugada, ficou aquela loucura toda, o meu marido falou: “Deixa…”. O meu irmão estava em casa, o meu irmão estava mudando para São Bernardo, nunca me esqueço. O meu irmão foi deitar, nós fomos deitar, quando foi… Que eu tinha o livro que o doutor Nélson Samezina, que foi meu ginecologista, foi o médico dos três filhos, que nasceram no Hospital Santa Cruz, aí o doutor Nélson falou: “Não, você pode ficar sossegada…”. E foi numa segunda-feira, que eu achei que estava muito baixo, eu falei:
“Está acontecendo alguma coisa, eu estou sentindo alguma coisa, estou sentindo um peso”. Fui no Nélson. O Nélson falou: “Não, calma”. Numa segunda-feira. Na sexta eu estava no hospital e quase que eu falei: “Acertei mais do que você”. Não podia falar, porque ele era fabuloso, uma beleza de médico. Foi assim.
P/1 – E a primeira se chama?
R – Ruth, que era o nome da mãe dele, Ruth.
P/1 – E como foi ter a primeira filha? Quais as primeiras dificuldade de ser mãe?
R – Olha, não é fácil, mas o amor fala mais alto. Eu lembro que eu estava no hospital, a minha mãe não tinha chegado ainda, aí eu estava lá, ele falou: “Eu vou voltar para casa e lavar toda aquela louça que está em cima da pia”. Aí ele foi correndo porque, de Santa Cruz ao Ipiranga, não era difícil, era facinho, eu ia também... No hospital pegava também... Às vezes, quando a Ruth nasceu, eu ia ao pediatra, o Nélson falou: “Vem aqui e conversa com o pediatra aqui, traz todo mês”. E todo mês eu ia lá levar a Ruth lá no pediatra. No Hospital Santa Cruz... Pegava um táxi, descia bem na porta, e já estava no hospital. Ia sozinha, meu marido trabalhava o dia inteiro. Mas foi trabalhoso, porque é filho. Uma vez, a Ruth ficou doente e eu tinha o endereço do doutor Plínio Vieira, que era o pediatra. Ele não atendeu na casa da sogra, não atendeu no consultório e não atendeu, também, lá no hospital - também não atendeu. Meu marido achou ruim, falou com o Nélson. Como o doutor Nélson, que comandava o Hospital Santa Cruz, que era do pai dele, que era o Hospital do Câncer há anos atrás, o doutor Nélson então era o maioral, o hospital era dele praticamente, aí mandou: “O Rubens falou que aconteceu isso assim, assim…”. Aí eu sei que mandou ele embora. Depois de anos, a Ruth… As meninas dela estudavam no Pasteur e tinha uma amiga dela que tinha os filhos no Pasteur e era amiga da Ruth. Um dia, conversando, a Ruth falou: “Mãe…”. Conversando com a Marcela - chama Marcela, morreu, coitada, a Marcela - conversando com ela, falando que ela nasceu no Hospital Santa Cruz, não sei o quê… Aí então, a Ruth chegou em casa e falou: “A Marcela, o sogro dela trabalhou no Hospital Santa Cruz, ele chama Plínio” “Ah, Plínio Vieira!” “Você conhece?” “Desde que você nasceu”. “Por quê?” Aí, contei a história do Plínio Vieira para a Ruth, que era amiga da Marcela que era sogro dela. Então, chegou lá a Ruth e a Marcela... Porque nunca mais tocou no assunto, então a Ruth falou negócio de… Porque o Edson, marido dela, também era pediatra. Aí, um dia, a Ruth falou assim: “Vai lá no Santa Cruz, doutor Nélson está lá, arranja lugar para você”. Justamente esse fato aconteceu, foi a coisa mais engraçada da vida. Ficou sabendo depois de anos que o pediatra dela era o sogro da Marcela, que trabalhava no Santa Cruz e que foi mandado embora por causa disso, de não ter atendido a Ruth.
P/1 – E, dona Olympia, e a segunda gravidez?
R – Pois é, a segunda gravidez, sabe, a gente não tem aquele traquejo, não sabe das coisas. Podia ter falado para o doutor Nélson: “Não quero filho tão já”. A Ruth tinha seis meses, eu engravidei. Era para eu ter cinco filhos, eu engravidei do Rubinho. O Rubinho nasceu, foi tudo certo também, aí depois eu estava grávida, caí da escada, porque eu morava já nas Hortênsias, já tinha saído lá da Oliveira Melo, lá no Ipiranga, eu caí da escada e fiquei toda roxa aqui. No dia seguinte, fui ao doutor Nélson. Falou: “Não te aconteceu nada, está tudo bem”. Quando foi umas sete da noite lá, eu acho que eu tinha cinco meses, aquilo explodiu, entendeu? Aí, não tinha telefone, porque não tinha telefone naquela época, era difícil telefone, demorava um ano para você conseguir um telefone, aí o meu marido desceu, tinha o padeiro que, no ‘coiso’ de luz, era de madeira e ele botava a bengala, o pão ali, então o Rubens desceu e deu, mandou ele ligar para o Nélson para ir correndo lá em casa. Então, o padeiro fez, ligou e o Nélson foi correndo lá em casa, que eu tinha perdido o bebê. Aí, depois, eu fiquei… Outra vez, eu fiquei também com menstruação atrasada também, mas depois desceu, aí depois fiquei outra vez grávida da Rosângela, depois de cinco anos. Aí, acabou.
P/1 – E por quê Rosangela?
R – Rosângela é outra minha filha.
P/1 – E por que o nome dela?
R – Porque tinha uma vizinha que se chamava Rosângela e eu achava bonito esse nome. Como era tudo com erre na família dele, o irmão era Reinaldo, o outro Renato, Ruth, Rubinho, Rosângela. Só eu que era Olympia.
P/1 – E depois dos filhos, como que ficou a profissão da senhora? A senhora continuou dando aula?
R – Sim, continuei dando aula, com sacrifício. Eu lembro que a turma dos grandinhos lá falavam para mim: “Larga de trabalhar”. “Por quê? Me sacrifiquei tanto para me diplomar, por que eu vou jogar meu dinheiro fora, que vai me fazer falta?”. Eu fiz jornada integral, trabalhei trinta e cinco anos, então, eu tenho ordenado dobrado por causa disso. E a minha vida é isso, com esse dinheiro que eu ganho. E mais a aposentadoria dele, que ficou reduzida porque ele tinha gratificação. ‘Quando ele morreu, acabou a gratificação, ficou aquele pouquinho, sorte que eu tinha obrado, então a gente vivia muito bem, dava para viver.
P/1 – E, dona Olympia, o que vocês faziam para se divertir com os filhos, qual era a programação em família?
R – Meu marido, quando a Rosangela nasceu, em 25 de julho de 1962, o meu marido, uns dias antes, ele comprou um fusca, porque o primo dele era chefão da Volkswagen. Por intermédio do nome, aqueles mineiros, que ele tinha negócio ____01:31:12____ aqui em Pinheiros, aí ele então pegou e o Rubens foi na Volkswagen e pegou um carro fresquinho, novinho, na hora, e trouxe. Foi uns dias antes da Rosângela nascer. Aí, foi mais fácil tudo, porque tinha carro e nós éramos sócios do Banespa. Mas a gente ia muito para a praia, era difícil, porque a praia era só uma ida, não tinha hoje… A facilidade que a gente tem hoje. Muito acidente também, com toda facilidade, e assim mesmo morre gente para chuchu. Aí eu sei que nós íamos para a praia, armava barraca, ficava o dia inteiro na praia, até frango frito eu fazia na praia.
P/1 – Como?
R – Levava tudo no carro.
P/1 – Que cor que era o fusca?
R – Ele teve uns cinco fuscas. Teve azul forte; o primeiro foi azul-claro; depois foi azul forte; teve dois fuscas verde. Verona, aquele carro que ele ficou bastante tempo com ele, como é que chamava? Bonito na época, já comprava os carros novinhos, saídos da loja, e assim foi indo a vida. Tocamos a vida.
P/1 – E a senhora voltava para São Carlos para visitar a família?
R – Sim, ia sempre para São Carlos.
P/1 – Quais eram as ocasiões que a senhora ia visitar a sua família?
R – Às vezes, fim de semana, ficava lá; às vezes, ficava bastante tempo lá em São Carlos e vinha, tinha facilidade nas férias, eles ficavam muito… Meus filhos ficaram muito em São Carlos, com a minha mãe também. Nós viajamos muito - eu e o Rubens - nós fomos duas ou três vezes para o Sul, para o Norte, a gente viajava, foi muito bom, Senti muito a morte dele, até hoje, eu sinto. Até hoje eu sinto a morte dele, eu rezo para ele até hoje. Toda noite eu rezo e lembro dele, que está certo, ele não estaria mais vivo, mas ficava mais tempo na companhia, agora dia nove de setembro vai fazer aniversário - sete anos - que ele faleceu.
P/1 – Se a senhora puder contar para a gente o que aconteceu com ele…
R – Ele era muito teimoso. Eu pagava plano de saúde, mas tinha um bom hospital perto de Parelheiros lá na Sabará, tinha dois hospitais. Um que ficava numa rua e outro na rua Professor não sei o quê. Muito bom o hospital, tinha tudo, todo o conforto. Ai, eu falei para ele: “Se acontecer alguma coisa com você…”. Porque ele operou o intestino e usava bolsinha, ele operou também a bexiga, depois operou como chama aqui? Que tem pedra, como que é aqui? Vesícula, depois ele operou e tirou um pedaço do intestino, e usava bolsinha. Aí, a vida dele acabou, porque ele não tinha vontade de nada, ele não podia dirigir, o carro dele até hoje está com a Ruth. Antes dele morrer, eu fiz questão que ele fosse no Cartório passar o carro para o nome da Ruth, entendeu? Que ela ia ficar aqui comigo e tudo. Então, seria um carro... Porque ela me levava nos lugares. Deu para a Ruth, houve briga, tudo. A filha outra: por que deu, por que não deu… Aquelas coisas todas que acontecem. Foi isso que aconteceu na nossa vida. Isso que aconteceu… Aí, ele foi… Quando ele ficou ruim a primeira vez, como eu era funcionária pública e ele também, levei-o ao Servidor Público - morreu aí no Servidor Público. Ele não tomava remédio, ele botava na boca e depois jogava; tudo o que faziam ele não aceitava; eu fiquei cadavérica, porque eu fiquei o tempo todo ao lado dele. Ele tinha tanto ciúmes, que ele falava: “Vai embora, eu me viro” “Não vou embora”. Uma vez, o doutor Ivo, que era amigo só do meu marido e da Meritor - que ele trabalha nos Estados Unidos e aqui a Meritor é em Osasco - doutor Ivo ligou uma vez para conversar com a médica, aí a médica falou: “Eu estou preocupada mais com a dona Olympia do que com os senhor Rubens, porque ela está abatida,
está acabada”. Porque eu dormia numa cadeira do hospital, ficava às vezes com quatro no quarto, às vezes ficava com dois, às vezes sozinha. A gente tinha tanta sorte que sempre tinha quatro, não é? Via gente morrer na frente, assim. Quantos que eu vi morrer na frente, vi gente morrendo na minha frente, no hospital. E ele, então, não fez as coisas direito, morreu na UTI, foram tirar a veia dele, era a safena, porque ele precisava para usar a safena, e furaram a veia. Aí, ele foi para a UTI e morreu, mataram-no no Hospital do Servidor Público, uma porcaria.
Eu não esqueço, mas Deus quis assim, e a vida continua. Tudo na vida tem uma recompensa. Como eu falei - estava contando para você - aquele rapaz lá em São Carlos, que matou o meu tio, que era taxista, que eu lembro bem disso, eu lembro bem que depois de uns anos, esse rapaz que matou - que o pai tinha dinheiro, foi preso e tudo mais, mas saiu logo - no dia seis de agosto é Dia de Bom Jesus. E, na cidade de Ribeirão Bonito, todo dia seis de julho tinha festa em Ribeirão Bonito, você nunca ouviu falar nas palavras Ribeirão Bonito, não é?
P/1 – Não.
R – Perto de São Carlos, ali. Então… ah! Eu lembro bem de umas palavras que uma vizinha falando, comenta com a outra… “Escutou dona Juninha, oh, dona Juninha? A senhora viu quem morreu?” Minha mãe: “Não”. Ela fala o sobrenome, que eu não lembro mais “Ele morreu”. “Como?” “Aqui se faz, aqui se paga”. Então, essa palavra nunca sai da minha boca: Aqui se faz, aqui se paga. Que eu lembro disso por causa desse negócio. Eles foram para Ribeirão Bonito, tinha aquela baratinha antigamente, que tinha o ‘coiso’ e dois lugares atrás, tipo uma baratinha - chamava Baratinha. E eu não sei como foi, que estava escuro, aconteceu qualquer coisa no carro, algum inteligente pegou o fósforo, justamente aquele único que morreu. Então, dai a razão: aqui se faz, aqui se paga. O que ele fez no passado, que foi horrível, diz que ele pegava lá em Ribeirão Bonito notas de 5quinhentos cruzeiros e botava fogo, todos bêbados, sabe? É o que eu falo. Aqui se faz, aqui se paga. Isso está escrito – Maktub - que quer dizer: “está escrito”.
P/1 – E como a senhora recebeu a notícia do falecimento do seu esposo? Onde a senhora estava?
R – Estava no hospital. Eu estava esperando ele voltar, porque ele ia fazer uma diálise. E lá no hospital, uma moça muito educada, ela falou: “Daqui a pouco ele está chegando”. Já estava quase morto, já estava na UTI. Aí, depois, o rapaz que veio e falou a verdade: “Por que não falaram?” e a outra, pensando que eu fosse deitar na cama ou qualquer coisa, não é? Fiquei na cadeira, sentada, com as malas prontas, direitinho, já tinha comunicado com a minha filha, com a Rosângela, já tinha ido lá, que a Ruth não estava. E morreu assim, lá. No dia sete de setembro eu fui, era feriado, ele ainda sorriu para mim, assim, eu vi que ele puxou a cama e ele fez força e levantou o corpo, então estava com forca. Isso no dia sete de setembro de 2012. No dia oito, eu fui, ele estava estático, assim, já estava morto. Mentindo que estava ligada aquela aparelhagem toda. Eu falei: “Ruth, teu pai está morto”. ‘Não, mãe, não está”. Porque ele não olhou para mim, ficou assim só... Estava assim, já estava morto. Quando foi no dia seguinte, ligaram do hospital que o Rubens tinha falecido. Eu já sabia, já sabia e não podia falar mais nada, que eu já sabia que ele estava morto, eu tenho intuição também. Tenho medo de pensar, eu tenho que pensar só positivo, porque eu tenho intuição. Essa foi minha vida. Eu não esqueço dele um minuto. Tem gente que fala: “Marido já foi, não sei o quê…”. Cada um tem o seu, não é? Não são todos iguais. Nós não somos iguais. E tem que tocar a vida agora. Quando ele morreu, ele falou: “Você vai ter que tocar a vida sozinha”. Eu tenho que tocar, ué, se é esse o meu destino... Um tempo depois, entrei na Cinemateca… Entrei na igreja, primeiro entrei na igreja, ambiente de igreja não serve - sou eu e Deus - o resto é o resto. Porque tem fofoca do mesmo jeito que tem em qualquer lugar, escola, em qualquer coisa, pior ainda que devia dar o exemplo e não dá. Então, eu saí da igreja. Aí, entrei na Cinemateca. Entrei. Um moço lá da Cinemateca, que mora no meu prédio, que era da igreja, que estava na Cinemateca, me levou - também não era boa companhia. Também falaram para mim uma vez... A Tutai falou para mim: ”Você brigou com a Teresinha?” “Não, nunca briguei com ninguém, eu só me afastei porque não servia para mim”. Então, quando eu vejo que não serve, eu afasto. Mas a Cinemateca eu estou levando com o pulso firme. Quero… Só para sair um pouquinho. Hoje, eles iam lá no Banco do Brasil, a Tutai falou que era Banco do Brasil, depois a outra falou que era Banco Itaú, eu falei: “Itau e Banco do Brasil eu vou todo mês (risos).
P/1 – A senhora é avó?
R – Ah, eu tenho dois bisnetos. Avó, seis; bisnetos, dois. Lindos! A menina é um doce, vocês vão ver a fotografia aí. Você fica boba, cai, a menina. Quando eu estava lá, no ano passado, eu falei para ele… Eu estava deitada assim, no sofá, e ela também deitou. Eu falei: “Olívia, a bisa vai embora”. “Vai para São Paulo?” - dois anos - “Vai para São Paulo?” ”Vou. Vou ficar com saudades de você”. Ontem mesmo eu falei com ela e com o menino também. A Ruth tem um telefone direto dos Estados Unidos, ela fala o dia todo com eles. Eu também posso falar. Mas não vou poder, porque quando ela vai embora, desliga toda a internet…. Eu não tenho celular e nem internet, que isso não me interessa.
P/1 – E como é ver a família crescendo?
R – É uma beleza. Todos têm um pequeno problema, emprego, lá elas ganham bem. Tem cabeça ultra, ultra… As duas passaram em primeiro lugar nas Universidades, tem aquele cordão da Gabi, aquela cordão dourado. Da Bruna tem um cordão cinza, passaram em primeiro lugar. A Gabriela passou no MBA, na Universidade Ann Arbor, lá perto de Detroit e fez MBA, também passou em primeiro lugar. E sabe cinco línguas. A Gabriela fala Inglês, Português, Espanhol – lá tem mexicano que só fala espanhol, você entende tudo – o Francês e o Italiano. São dignas de notas. As duas meninas.
P/1 – A senhora comemorou os noventa anos?
R – Onde eu estava nos meus noventa anos? Noventa, não. Cinquenta eu ganhei uma viagem de navio. Parati eu já conhecia, Angra e Búzios conheci. Uma beleza a viagem. Muito boa. Agora, os noventa anos não, porque ele não estava mais do meu lado, não sei… Se eu fiquei com os filhos aí, eu não lembro mais. Nem lembro.
P/1 – A senhora falou que reza para ele todos os dias. Como é esse momento? O que a senhora pede? O que a senhora fala?
R – Eu rezo para ele e peco a proteção dele, onde ele estiver. Olhar pelos filhos e por mim. Eu falo: “Não saia de perto de mim, nunca, me proteja o mais que você puder e os seus filhos também”. Toda noite eu rezo. O Padre Marcelo que fala: “Abençoai-me Senhor, abençoai-me Senhor”. Toda noite eu falo: “Abençoai-me Senhor, abençoai-me Senhor”. Olha aqui, eu não largo disso.
P/1 – Quem deu para a senhora?
R – Esse aqui era do meu pai. Quando ele morreu, eu vi na gaveta dele lá e peguei. E eu ponho aqui assim, porque à noite eu ponho, até antes de deitar eu ponho no pescoço, que eu fico com ele na mão. No pescoço, depois eu tiro do pescoço, mas não largo disso.
P/1 – Dona Olympia, eu tenho mais duas perguntas para fazer para a senhora…
R – Pode perguntar…
P/1 – Mas antes, eu não sei se a senhora quer contar mais alguma história que até agora a senhora não contou? Tem alguma coisa para contar para a gente que ainda a gente não falou?
R – Se fosse com minúcias, dai seria livro. Porque o que você faz, uma pessoa, uma caridade, você não deve falar. Agradecer. Porque só a Ele eu posso agradecer, e não adianta falar tanta coisa que eu fiz. Por que eu vou comentar tanto que eu fiz, se só beneficiou aquela pessoa? Quando foi… Tem uma amiga minha que mora bem perto de Valinhos... Gioconda, e a filha dela é a Regina. Numa época, ela estava necessitada. Hoje ela está em cadeira de rodas, coitada, e a filha tem problemas. Uma época, ela estava ruim de vida e o marido, como vendia tecido, tinha bastante amostras de tecido e ela não tinha uniforme para os filhos. Então, eu dei… Cinza e branco, eu dei os uniformes para os filhos. Ela agradeceu, nunca toquei no assunto, porque eu dei para ela. Quando foi... Faz uns anos atrás, ela mora em Campinas, e eu falei para ela: “Você não precisa ligar para mim, só eu ligo para você”. Aí, ela falou: “Você, sim, Olympia, que na hora em que eu mais precisei, você me ajudou”. “Deixa para lá, Gioconda, deixa para lá”. Eu não esqueci e ela foi lembrar, porque eu nunca toquei nesse assunto com ninguém e ela foi agradecer depois de anos, ela foi me agradecer e falar: “Você é uma própria irmã, porque você me ajudou”. “Deixa disso, deixa disso”. Então, como esse, eu fiz outras, que nem adianta comentar. Aluno ia na minha casa chorar porque eu tinha ajudado ele, eu dava de comer para ele, para que falar? Só a ele que interessa. Outros… Depois, no ano seguinte, eu tinha menino que eu… Até o doutor Osvaldo, que era dentista, tinha um menino que eu cuidava dele, ele sentava na minha casa, sentava na mesa, na cozinha, que tinha uma mesa grande, um outro espaço, e ele comia junto. Eu dava tudo para ele, ainda pegou um lambisco de uma árvore qualquer e veio dar esse presente para... Uma maravilha. Depois, de moço, ele ia me visitar; e cada vez que ele ia, ele chorava: “A senhora é a mãe que eu não tive”. Meu marido ficou com ciúmes do rapaz, que ele me abraçava, me beijava. Ontem eu encontrei um aluno, ontem, o Marcelo. Parei em frente, na rua Santa Cruz, eu desci e falei: “Vou ver o Marcelo”. Os quatro meninos foram… Dois meninos e duas meninas foram meus alunos, da mesma família. Eu falei: “Ruth, você fica aí que eu vou descer”. Quando eu desci, eu vi uma pessoa diferente que não podia ser… Devia ser empregado. Olhei para um outro senhor que entrou, me cumprimentou, e eu o vi descendo no mezanino, descendo correndo, eu fiz assim para ele: “Dona Olympia!’. Aquele abraço, beijo... Ele não parava de me beijar, me abraçar. O pai dele estava ruim, no hospital, estava morrendo no Hospital Santa Cruz, estava ruim. Aí, ele desceu do carro, veio até a Ruth ali, a Ruth não lembra que eu ia na casa dele, que a gente comia bolo, que a mãe fazia, a avó, o pai era Gustavo, o outro Gustavo, a Rita; a Márcia e o Marcelo não tinham nascido.
Fui professora deles todos e o vi nascendo. E ele foi meu aluno, ainda. Vi ontem! Vi ontem o Marcelo.
P/1 – Então, me conta qual é o segredo de passar dos noventa, ter uma cabeça tão boa como a senhora tem, continuar do jeito que a senhora é, qual é o segredo?
R – Uma vez, fizeram essa pergunta para mim. Uma moça até portuguesa, estava na Cinemateca, ela foi embora para Portugal e tinha uma reunião, naquela época você não estava... Teve uma reunião e teve uma festa grande, aí na Cinemateca, tudo, falando quando a gente não pagava nada, aquela coisa toda que tinha mais conforto… Eu sei que ela chegou e falou: “Olympia, vem cá” - Carmem era o nome dela - ela falou: “Por que você é bonita assim?” “Porque eu nasci assim”. Eu vou me elogiar por quê? A turma fica com raiva, fica com inveja, falei: “Eu nasci assim”. A resposta que eu dei.
P/1 – Como foi para a senhora contar a sua história para a gente hoje? O que a senhora achou do nosso encontro?
R – Maravilhoso! Coisa que eu tinha guardado, que eu nunca falei para ninguém. Tudo isso que eu faço, ajuda, todo lugar por que eu passei, que eu lecionei, eu deixei marcas por ajudar as pessoas, eu... Não adianta falar. Ajudar é ir, isso é um pecado, é uma inveja das pessoas. É duro esse mundo, não querem saber viver direito e eu não quero botar nada de dúvida na minha cabeça. Qualquer coisa de ruim, eu afasto, ainda peço perdão para Deus pelo que aquela pessoa fez, ou que faz. Se fosse assim, eu não estaria na Cinemateca, mas eu faço questão de ir, ter esse fardo para carregar. Outro dia, eu na Cinemateca, eu fiz uma... Eu falei: “Eu quero falar com todo mundo e dar a notícia para todo mundo, para todo mundo ficar sabendo do mesmo jeito”. Aí eu falei para a Marli: “Eu quero falar com todos”. Eu levantei e falei: “Eu caí no dia de carnaval, caí, machuquei, não sei como eu caí, não tem explicação. Depois disso, eu também não sabia, tive uma surpresa grande, porque minha filha chegou…”. A Ruth já tinha comprado a passagem e eu não sabia, e estava conversando com a namorada do Rubinho, quando eu vejo a Ruth assim, parecia uma imagem, que a Ruth chega de supetão, entendeu? E eu já tinha dito para ela que eu tinha caído, então veio, com a graça de Deus, a Ruth veio. Aí, então, eu continuei a história para elas lá: “A minha filha chegou, graças a Deus, eu fui no médico correndo, a doutora Cláudia me atendeu, fiz os exames todos, diz que está tudo ok, que eu tive… Depois disse que era um pouco de anemia, não sei o quê…”. Tudo isso eu contando para elas, estou contando igualzinho para a história não chegar toda deturpada para cada um; então, foi isso que aconteceu. Eu não tenho nada, a não ser um pouquinho de AVC, eu... foi na minha cabeça, porque eu não sei como que eu caí, não sei.
Sabe quando você está num lugar... Estava na cama, pegando a carteira, porque eu ia dar dinheiro para o meu filho comprar umas coisas na padaria, quando eu me vejo, me vejo no chão. Eu não mexi o pé, não estava em lugar horrível, tem duas cadeiras no quarto, então parece que veio um vendaval e me jogou, não sabia como explicar isso. Então, a doutora Cláudia lá, resolveu o negócio, falou que era... Mandou fazer exame, hoje fiz outro exame, tirei sangue de novo. Já deu o resultado, parece que não tem nada, ela já deu o resultado, tudo, tudo. Aqui, também não. Cabeça não, o ‘coiso’ de cabeça, horrível, horrível! Mas estou aqui viva. Então, eu falei, eu não sei qual foi a cabeça deles como funcionou, mas eu falei que eu ia falar a verdade, porque sempre chega deturpada: “Ela caiu…”. Um dia, perguntara para mim - eu ia ao dentista - a Márcia, dentista, marcou na quarta-feira, quando eu cheguei em casa é que eu vi o cartão que estava marcado na quarta-feira, então eu falei que não ia, então, acho que alguém falou: “Mentira, ela não foi em dentista nenhuma, ela que não quis vir…”, entendeu? Por causa de uma pergunta ou de outra, eu estou percebendo que aqui já tinha esse comentário, entendeu? Então, eu não podia falar nada, porque quem está com a batuta na mão, ainda nas duas mãos, é quem tem o poder.
P/1 – Dona Olympia, quando a gente fez o intervalo, a gente desligou a câmera e eu perguntei como a senhora estava. E a senhora falou uma coisa muito bonita que eu queria que a senhora registrasse no vídeo; a senhora falou assim: “Está sendo tão legal falar, não tem para quem a gente contar essas coisas” - a senhora lembra?
R – Lembro.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse de novo, falasse de novo: a senhora se lembra de como foi que a senhora falou?
R – Sim, que a entrevista que eu dei para vocês foi muito saudável. Adorei. Coisa que eu botei para fora, que eu nunca tinha falado para ninguém. Não sei se interessa, se não interessa, eu guardo para mim e fico quieta e pronto, está acabado. Hoje não, eu botei tudo para fora, tudo, tudo. Coisas de que eu lembro, até de quando eu nasci, quase. Só faltou lembrar de quando eu nasci, que, às vezes, eu lembro de coisas... Contava para a minha mãe, a minha mãe: “Você vê que coisa”. Batia exatinho com o que eu falava para a minha mãe e ela não acreditava. E eu falava exatinho. Então, eu abri minha alma e o meu coração, minha vida todinha. Eu não vi nada de anormal, uma coisa que a gente vive para ajudar alguém, isso eu sempre fiz. Às vezes, eu atravesso gente na rua mais nova do que eu, eu atravesso, eu pego, atravesso a pessoa, se eu vejo que está em más condições, eu vejo que… Um dia, uma moça, coitadinha, estava no Dia, no supermercado, e ela não achava o dinheiro, estava frio e cheio de bolso e ela não achava: “Eu vou pagar para a coitada, ela não acha”. Aí, tinha outra perto: “Põe aqui, aqui a senhora não pôs”. Apareceu o dinheiro dela e ela pagou, mas eu já estava prontinha para pagar para a coitada. Coisa que a gente faz, a gente não precisa falar para os outros por que foi feito. Eu faço ainda, se eu vejo mais coisa, eu faço. Eu peço a Deus saúde para as pessoas, como diz: “O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. Teu cajado me conforta”. Isso é da Bíblia, salmo 23. Então, Deus conforta a gente com o cajado dele e transborda tudo, e todo mundo vive.
P/1 – Eu tenho mais uma pergunta.
R – Pode perguntar.
P/1 – Quais são os seus sonhos hoje?
R – Viver mais um pouco. Até para a médica eu perguntei como seria a minha morte. Se eu morrendo, ela vai me dar Atestado de Óbito direitinho, como manda o figurino. Eu não vou morrer um dia? Eu não espero, eu peço para Deus me dar mais um pouquinho, mas parece que eu vi a morte quando eu caí aquela vez, parece que eu vi a morte perto de mim. Eu perguntei para ela: “Se eu morrer? O que é? Foi da Prevent Senior? Vai para lá, não sei o quê… Não dá… Por isso que eu quero uma médica só para cuidar de mim, que ela vai ter que dar o porquê de que eu morri, o que me deu, entendeu? Foi isso que eu pensei outro dia, estava pensando e perguntei para a médica. E aí, os exames que ela mandou fazer, tudo, e agora eu fiz hoje, outro exame de sangue que ela mandou também, foi feito e disse que não tem nada também, está roxo só.
P/2 – Olympia, o que você acha que é importante hoje na vida?
R – Viver, procurar viver e deixar, perdoar todas… Eu soube perdoar, sabe, o que foi feito, foi feito, maldade que foi feita. Você não viu aí o Bolsonaro, coitado? Eu não sou nada de nada, mas rezei para ele sempre, porque uma pessoa que está precisando de reza, rezei para ele, não conheço. Pedindo a Deus todo dia para ele fazer o povo feliz, isso eu rezo, todo dia, fazer o povo feliz, Não sou só eu, todo mundo. Quantos que estão passando por aí quanta coisa que você vê, horrível? Não vê em Suzano, aqueles meninos? Você vê que coisa., Brumadinho. Outra coisa que agora que eu vim a descobrir o porquê de a família do meu marido, os ricaços Lemos lá, moravam em Casa Branca - eu não sabia o porquê. Está certo, eles perderam tudo que eles tinham, aquela riqueza, mas as fazendas ficavam todas perto de Casa Branca, perto de Brumadinho, perto daquele ricaço lá… então, por quê…? Eu passei uma vez por Casa Branca e vi aquela casa, e aquela casa foi descrita para mim, mas ninguém tocava no assunto por que eles tinham perdido tudo, não tinha nada, nada. Santa Cruz das Palmeiras ali, Casa Branca, o que mais ali, aquelas cidades? Que eles moravam… Santa Cruz das Palmeiras, tudo ali perto, porque era perto de Minas. Por isso que ele tinha... Eu fazia ideia de que Minas era lá, e aquilo lá era outra coisa. E agora que eu vi que… Você vê, agora que eu vim a saber por que eles moravam em Casa Branca. Porque tinham fazendas ali perto. E eu vi Casa Branca, uma vez que eu passei ali perto por Casa Branca, que eu estava em Santa Cruz das Palmeiras, porque o marido da minha irmã era gerente de uma fazenda lá, então, nós fomos para Poços de Caldas e passamos por Casa Branca e eu vi aquele casarão que, depois, me descreveram uma vez, na família dele, que aquela casa em Casa Branca, que eles moravam, que era uma beleza, não sei o quê. Logo, logo, eu percebi que passei por aquela casa. Dito e feito, agora com toda essa confusão de Brumadinho e essas coisas, que eu vim descobrir coisas que, no passado, ninguém falava. Gozado, tarde demais, não é? Lembrar isso agora! Coisas de vida. A vida é para ser vivida, sabe? Deixa para lá, tudo! Qualquer mágoa, qualquer coisa, deixa, não liga não. Pede perdão a Deus pelas maldades deles, não liga não. Eu rezo para as pessoas que não gostam de mim, eu rezo, se tem alguém, eu rezo. Fazer o quê? Vai discutir? É duro, não é? Às vezes, eu choro sozinha na minha casa, eu estou sozinha, eu choro, fico lembrando e chorando, depois eu falo, rezo, porque toda noite eu vejo a novela. Depois da novela, eu vou rezar, eu tenho um oratório no meu quarto, que tem mais de cem anos porque, quando o meu marido nasceu, que a mãe dele comprou em Aparecida, porque ele tinha bronquite, então aquele oratório está comigo, no meu quarto. Então, eu tenho velhinha com pilha, eu posso ligar a vela com pilha sem obstáculo nenhum, porque não vai acontecer nada. Todo dia nove de mês eu ponho, que é aniversário de morte do meu marido, eu acendo a vela. Isso que eu faço. De noite eu não saio, não vou a lugar nenhum, não tenho vontade, prefiro rezar do que sair, entende? Para pedir para o Brasil inteiro, eu rezo todo dia pedindo para o Brasil inteiro, cuidar desse povo, todo mundo está precisando, todo mundo está passando pedaços que não precisava passar, estão passando, todos nós estamos passando. Mas a vida é assim, vocês têm que viver a vida, vocês são moços, vocês têm que viver a vida e deixa para lá qualquer mágoa, deixa para lá. Eu lia muito a Bíblia, agora não tenho lido porque a minha vista também está fraca. Agora, eu comprei outro livro do Mário Cortella, eu estava lendo o primeiro, ontem eu fui na Saraiva e comprei o outro, eu gosto dele. Padre Marcelo também, todos os livros do Padre Marcelo eu tenho, leio também. E já li Cinquenta Tons de Cinza (risos).
P/1 – O que a senhora achou desse livro?
R – Uma coisa… Tão absurda uma mulher ter aquela cabeça para escrever aquilo tudo! Porque é uma autora, não é? Mas foi muito repetitivo, os outros… Você leu também?
P/1 – Não.
R – Leia. É interessante. Coisa que acontece, cada um… Não tem gente louca na vida? Que mata o outro? Aquele tem uma loucura, é um homem louco que depois ficou apaixonado por ela.
P/1 – Mais alguma coisa, dona Olympia?
R – Eu não sei, vocês precisam de mais alguma coisa?
P/1 – Eu estou superfeliz de ter ouvido a senhora, foi um presente passar essa tarde com a senhora hoje.
R – Uma beleza, também adorei. Isso fez bem, porque saí de casa, perto de pessoas que eu adoro, então me senti bem, gostei, ficava mais vezes ainda aqui. Agora querem ver as fotos?
P/1 – Sim, vamos lá. Muito obrigada, dona Olympia!
R – Nada querida, que seja feliz, Deus te ajude e viva a vida. O que é de mal você põe para fora, entendeu? E viva, porque o mundo não vai mudar, nunca. Pode melhorar um pouco, mas mudar, não vai mudar, desde o temo de Cristo. Antes de Cristo, quanta coisa acontecia? Inquisição, tudo aquilo, não aconteceu casa coisa… Viver. O Papa Francisco aí, coitado, lutando com os padres pedófilos aí, de anos atrás, que barbaridade! Igreja deixa para lá, fazer o quê? Eu rezo muito para João Paulo II, tenho uma medalha dele e uma vela grande também, com pilha, do João Paulo II; rezo para ele também toda noite.
P/1 – Vamos encerrar? Viva!Recolher