Projeto: Memória da Convenção da Diversidade Biológica e Protocolo de Cartagena e da Convenção sobre Mudança do Clima e Protocolo de Kyoto
Entrevistada por Stela Tredice e Augusto Cesar
Depoimento de Maria ngela Marcovaldi (Neca)
Local: Estúdio da BM&F (São Paulo - SP)
Data: 15/02/2006
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: BIO_HV001
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Augusto Cesar Mauricio Borges e Grazielle Pellicel
P/1 - Stela Tredice
P/2 - Augusto Cesar
R - Maria ngela Marcovaldi (Neca)
P/1 - Neca, eu gostaria que você começasse dizendo o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Então, meu nome é Maria ngela Marcovaldi, eu nasci em Porto Alegre no dia 3 de julho de 1958.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chamava Oni Azevedo e minha mãe Elvira Silva de Azevedo.
P/1 - E você se lembra dos seus avós?
R - Olha, na verdade, eu só me lembro da minha avó materna, porque os meus avós morreram quando eu era muito pequena, então o único registro que eu tenho de avó é da mãe da minha mãe.
P/1 - E o que a sua avó fazia? O que os seus pais faziam ou fazem?
R - Bom, os meus pais já morreram. A minha mãe era originalmente professora de educação física, depois ela fez um mestrado em educação e começou a trabalhar numa equipe multidisciplinar no Rio Grande do Sul fazendo os currículos mínimos das escolas públicas, da escola elementar. Na época se chamava escola primária. O meu pai era contador, trabalhava numa companhia de peças de automóveis e era mais ou menos o braço direito da pessoa lá, [no lugar] onde ele trabalhava.
P/1 - E você tem irmãos, irmãs? O que eles fazem?
R - Eu tenho um irmão mais velho que hoje é diretor, presidente da Mannesmann, que é uma siderúrgica.
P/1 - E o seu nome, Marcovaldi, qual é a origem desse nome?
R - É, então, eu sou casada, esse é o nome do meu marido. Na verdade, o meu nome ficou com tantos sobrenomes que eu cortei...
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Entrevistada por Stela Tredice e Augusto Cesar
Depoimento de Maria ngela Marcovaldi (Neca)
Local: Estúdio da BM&F (São Paulo - SP)
Data: 15/02/2006
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: BIO_HV001
Transcrito por Michelle de Oliveira Alencar
Revisado por Augusto Cesar Mauricio Borges e Grazielle Pellicel
P/1 - Stela Tredice
P/2 - Augusto Cesar
R - Maria ngela Marcovaldi (Neca)
P/1 - Neca, eu gostaria que você começasse dizendo o seu nome completo, local e data de nascimento.
R - Então, meu nome é Maria ngela Marcovaldi, eu nasci em Porto Alegre no dia 3 de julho de 1958.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - Meu pai se chamava Oni Azevedo e minha mãe Elvira Silva de Azevedo.
P/1 - E você se lembra dos seus avós?
R - Olha, na verdade, eu só me lembro da minha avó materna, porque os meus avós morreram quando eu era muito pequena, então o único registro que eu tenho de avó é da mãe da minha mãe.
P/1 - E o que a sua avó fazia? O que os seus pais faziam ou fazem?
R - Bom, os meus pais já morreram. A minha mãe era originalmente professora de educação física, depois ela fez um mestrado em educação e começou a trabalhar numa equipe multidisciplinar no Rio Grande do Sul fazendo os currículos mínimos das escolas públicas, da escola elementar. Na época se chamava escola primária. O meu pai era contador, trabalhava numa companhia de peças de automóveis e era mais ou menos o braço direito da pessoa lá, [no lugar] onde ele trabalhava.
P/1 - E você tem irmãos, irmãs? O que eles fazem?
R - Eu tenho um irmão mais velho que hoje é diretor, presidente da Mannesmann, que é uma siderúrgica.
P/1 - E o seu nome, Marcovaldi, qual é a origem desse nome?
R - É, então, eu sou casada, esse é o nome do meu marido. Na verdade, o meu nome ficou com tantos sobrenomes que eu cortei a maioria [e] fiquei só com esse. É de origem italiana.
P/1 - Italiana?
R - O meu marido é filho de italianos.
P/1 - Eu queria que você descrevesse como é que era a rua e o bairro onde você morava quando você era criança?
R - Então, eu morei no centro de Porto Alegre, bem na frente do campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, da Faculdade de Direito. Morava num apartamento num bairro completamente cheio de trânsito. Na época não era tanto, não tinha tanta gente no mundo, mas era um lugar bastante urbano. Então, a minha lembrança desse lugar é que, a grande facilidade é que era muito próximo da escola e eu podia ir a pé todo dia pra escola. Era uma mordomia.
P/1 - E a cidade nessa época, o que você se lembra de... Como que era Porto Alegre? O que mais marcou pra você dessa cidade nesse período?
R - Então, Porto Alegre era uma cidade... Eu sempre, de alguma forma, tinha alguma coisa que não me deixava querer viver em Porto Alegre. Eu sempre achei Porto Alegre uma cidade fantástica, mas sem mar, [e] eu gostava muito de ir pra praia. Nós tínhamos uma casa na praia e todos os anos, desde pequena, quando chegava dezembro, praticamente todo o acampamento familiar ia pra praia e voltava só em março. Na época, eram três meses de férias. E eu sempre tive esse registro de querer sair de uma cidade onde não tinha mar pra uma cidade onde tinha mar. As coisas boas de Porto Alegre: eu estudei numa escola genial, acho que é o maior registro que tenho de Porto Alegre, na Escola de Aplicação que era dentro do campus da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Então a nossa adolescência foi convivendo com o bar da filosofia, do lado da Faculdade de Medicina. Éramos no máximo 30 alunos que entravam por ano, só tinha uma, no máximo dois, duas classes por série. E essa escola, na minha vida, foi super importante; eu diria que ali acontecia tudo. Nós tínhamos aula de manhã e de tarde, só não tinha um dia aula à tarde, e foi a melhor formação que eu podia ter tido foi a Escola de Aplicação.
P/1 - Antes de adentrar um pouquinho nessa questão da escola, eu queria que você voltasse um pouquinho pra esse período da infância: aonde vocês iam pra praia, pra casa da praia? E falasse o que te atraía no mar, o que você sentia, qual era essa relação sua, quando você era menina, com o mar. O que você se lembra?
R - Então, pra um gaúcho... Primeiro que nós convivíamos com o inverno, então, a ideia de ir pra praia, de estar na frente do mar, era de liberdade, de horizonte aberto, de poder ficar de pé descalço, de poder não ter horário. Então, na verdade, a simbologia... A nossa casinha era uma casa pequena, mas era bem na frente do mar num lugar que não tinha nenhum desenvolvimento ainda, então era um paraíso. Ir brincar na onda e ver o caranguejinho passar, e, enfim, todo aquele entorno pra nós, o cheiro de maresia era uma coisa fantástica. Durante anos da nossa vida nós cumpríamos esse ritual. E era muito legal, muito legal.
P/1 - E na sua casa em Porto Alegre, como que era o cotidiano? Quais as lembranças que mais marcaram você?
R - É, então, a vida na cidade pra nós sempre foi mais atribulada, né? A minha mãe e o meu pai trabalhavam direto de manhã e de tarde, às vezes até final de semana. E nós tínhamos, os dois, eu e meu irmão, essa agenda de escola todo dia de manhã e de tarde. Então a nossa vida realmente, durante muito tempo, a nossa vida [era] como se a escola fosse um clube, porque todos nós que convivemos com essa turminha, a maior parte do nosso tempo passávamos lá. Até, às vezes, a gente almoçava na escola porque não queríamos voltar pra casa. Eu, hoje, vejo até uma diferença nisso, que eu sinto que a escola hoje em dia é uma grande obrigação, e na nossa época conseguia ter a parte formal que todo mundo achava meio chato, mas era uma grande diversão também.
P/1 - E como que você se divertia com esses seus amigos, com essa sua turma?
R - Ah, o Aplicação... Nós tínhamos aula de teatro, era uma escola que valorizava metade da nota formalmente. Era criatividade e apresentação de conteúdo [informal], e a outra metade era conteúdo [formal]. Nós também éramos bastante rebeldes, então, nossa! Fugia, matava aula, ficava lá embaixo. Enfim, toda a nossa adolescência rolou ali naquele lugar.
P/1 - E você acha que esse período, essa Escola Aplicação, enfim, toda essa vivência de alguma forma influenciou, te influenciou em algum momento sobre essa questão ambiental? Te despertou em algum momento pra essa questão?
R - Olha, eu vou ser bem sincera: nessa época não se falava em questão ambiental. Essa época foi a que se falava em ditadura, o mundo estava mudando, mas tinha-se pouquíssima, pouquíssimo foco na questão ambiental. Eu, sinceramente, não me lembro de registro na minha adolescência nesse período de nada que me chamasse atenção, né? Talvez até porque não tivesse tanta pressão, talvez a coisa ainda não tivesse decolado. Realmente, não me recordo de ter me preocupado com a questão ambiental quando eu era adolescente. Me preocupava muito com a parte política, me preocupava muito com participação e tentar mudar, vivia muito naquele ambiente universitário. Quando tinha greve, a escola nossa também tinha greve porque tava dentro do campus. Mas não pensava muito em área ambiental não.
P/1 - E nem no próprio conteúdo, nas aulas mesmo, o conteúdo programático, não há nada que você se lembre de uma aula de biologia que tenha te atraído, chamado mais a atenção?
R - Não, não, não. E a minha vida era muito urbana mesmo. Na verdade, a própria escola estimulava muito a parte mais humana, a parte mais cultural, tinha bem pouco trabalho de campo, trabalho fora desse circuito, ali, mais urbano.
P/1 - Então, com esse grupo de amigos, adolescentes também, que depois foi se transformando isso em faculdade... Passou a ser faculdade, não é? O que vocês faziam propriamente dito, assim, mais velhos, né, que atividades que vocês tinham que marcou, ou como vocês se divertiam?
R - É, então, a grande mudança da minha vida foi quando eu fiz vestibular, que optei por fazer oceanologia na Faculdade de Rio Grande, que era o único curso de graduação de oceanografia na América Latina na época, né? Então, a minha vida mudou radicalmente: eu saí de um centro urbano com muitos recursos culturais, como Porto Alegre, e fui morar em Rio Grande, uma cidade portuária, já quase na divisa com o Uruguai. Não tinha, praticamente, nenhuma referência de pessoas. Então foi uma mudança bem radical. E também foi muito radical porque eu saí integralmente de uma vida urbana e fui morar, não era nem na cidade do interior, nós morávamos a 30 quilômetros da cidade do interior, então era bem uma área rural entre a cidade de Rio Grande e o Cassino, que é uma praia, aí lá eu morei cinco anos, né? Eu acho que a minha experiência de Rio Grande por sermos todos exilados. [Em] Rio Grande, a faculdade de oceanografia tinha gente do Brasil inteiro, tinha gente da América Central. Enfim, éramos uma grande família também, novamente éramos um grupo muito forte porque todos estávamos com 17, 18 anos morando num lugar onde o clima era muito difícil. Rio Grande, a umidade do ar chega a 90%, é super frio, não é fácil você sobreviver às condições de lá. Então, nós também tivemos novamente um grupo que nos segurou muito. E esse... Eu acho que foi [em] Rio Grande que eu aprendi. Aí nós vivemos numa casa que era quase um sítio, em um período chegamos a ter 22 animais nessa casa, de macaco a onça pintada. Tudo oficial. O zoológico de Porto Alegre nos entregava os animais que eles não conseguiam criar e nós tomávamos conta, e lá eu passei cinco anos da minha vida.
P/1 - E o que era de tão específico também com esse grupo aí. Já começou a ter alguma discussão de fazer algum projeto? Teve alguma semente desse grupo que deu caminho, deu a diretriz pro seu futuro profissional?
R - Teve, teve. Esse grupo, inclusive, eu convivia com pessoas um pouco mais velhas do que eu. Era um grupo muito aventureiro e que tinha muita, muita vontade de conhecer melhor o litoral brasileiro. E Rio Grande foi o grande... Na verdade, o grupo de Rio Grande foi o grande embrião do Projeto Tamar, porque todos os períodos de férias, quando nós podíamos, organizávamos uma expedição para uma ilha oceânica distante. Assim, nós fomos pro Atol das Rocas, pra Fernando de Noronha, pro Arquipélago de Abrolhos. E a maneira como nós conseguíamos fazer isso era pedindo recurso, na época, para as empresas locais, né, que já era uma forma de patrocínio. Então, a gente pedia um dinheirinho pra Ipiranga Petróleo, um dinheirinho pro Museu Oceanográfico. Normalmente, a nossa missão era coletar material malacológico, conchas para o Museu Oceanográfico, essa era a grande, não era a desculpa, era na verdade a nossa missão pra que a gente pudesse se apresentar e chegar nesses lugares, e fizemos isso praticamente todos os anos durante o período de faculdade. Numa dessas expedições pro Atol das Rocas, nós, essa expedição eu nem, ainda foi o ano que eu entrei no Rio Grande, foi um pouco anterior à minha história, mas esse grupo presenciou os pescadores virando 14 fêmeas de tartarugas que estavam vindo à praia pra desovar, pra matar, né? Um grupo de jovens, ficou todo mundo chocado com a cena. Houve um embate com os pescadores, conseguiram salvar a metade [e] a outra metade morreu. E isso foi fotografado, documentado e gerou um primeiro documento que era o relatório de jovens estudantes que foi para Brasília pedindo pra o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), que era uma parte do IBAMA na época, que tomasse alguma providência. Ao mesmo tempo, é engraçado, porque nesse período nós dizíamos que tinha tartaruga no Brasil, que elas desovavam no Brasil, e na sala de aula nossa professora dizia que não, que não tinha ocorrência de tartaruga marinha no Brasil porque não tinha nenhum trabalho científico publicado. Então também essa mentalidade que mudou muito ao longo desses 25 anos era impressionante, as pessoas não conheciam e não aceitavam nada que não [era] extremamente acadêmico, mesmo que comprovado fotograficamente, né? Então, isso foi pra nós um registro inicial muito forte. Nós éramos os malucos que diziam que tinha tartaruga marinha no Brasil e o pessoal da academia, na universidade, dizia que não era verdade. Essa história toda rendeu anos depois uma chamada do pessoal de Brasília – quando você perguntou aí – que formou um primeiro trabalho na área de conservação marinha. Esse grupo de pessoas que tinha mandado esse relatório.
P/1 - E nesse período na faculdade, se falava da questão ambiental, se falava em meio ambiente, ecologia?
R - A minha geração se falava pouco. Acho que quando eu estava saindo já, a partir de 80, eu saí em 81, começou a ter os grupos das pessoas mais jovens. Começaram a se organizar, inclusive, a criar Organizações Não-Governamentais pra trabalhar na própria região de Rio Grande. Nós pegamos um período intermediário. Acho que a faculdade no nosso momento foi mais acadêmica, tentou ser mais acadêmica, e nós, por iniciativa aí, uma ansiedade própria, quisemos, de alguma forma, sair dessa linguagem.
P/1 - Fala um pouquinho da Caravana Rolidei. Por que vocês... Acredito que o grupo tenha se auto denominado de Caravana Rolidei.
R - É, então, quando nós fomos chamados pra fazer um trabalho de levantamento sobre as tartarugas marinhas e os peixes bois marinhos... Na verdade, quem iniciou isso foi o Catu, um amigo mais velho que já tinha se formado. Ele até morreu depois, e ele foi chamando, quer dizer, foi chamando, ele não podia ir sozinho. E a Caravana Rolidei, resumindo, era o seguinte: nós não tínhamos nada nessa época e eu acho que o IBDF fez um grande negócio, ele procurou um milagre com quase nada, com pessoas que estavam dispostas a fazer qualquer negócio, né? Então nós saímos a pé, a cavalo, de barco, nadando, do jeito que dava, do jeito que podia, fazendo um levantamento do Rio de Janeiro até o Amapá numa enorme equipe de no máximo quatro. (risos) E, nessa época, nós não tínhamos nem um carro apropriado pra andar na areia, nada, absolutamente nada, né? E essa turminha que às vezes eram dois, às vezes eram três, no máximo quatro, às vezes nós nos dividíamos. Quando nós tínhamos quatro, iam dois pra cada lado. Presenciamos cenas que, na época, eram a descrição absoluta do “Bye Bye Brasil”, onde tinha realmente a Caravana Rolidei, onde tinha aquela televisão na praça no nordeste, em todas as vilas, o grande Deus na pequena pracinha. Mal tinha luz elétrica [e] tinha uma televisão numa caixa de cimento, uns banquinhos onde as pessoas ficavam vendo normalmente a Rede Globo, né? E, praticamente, não entendiam a mensagem do que estava sendo falado. Eu me lembro de uma situação da gente estar vendo o jornal da Globo falando na Guerra das Malvinas: quando tava na maior crise, as pessoas desligaram a TV e foram tomar cachaça pra comemorar o final da Guerra. Então a gente acabou apelidando. Foi tanta coisa comum que nós vimos naquele lugar que nós estávamos como aquele filme, [e] ficou a Caravana Rolidei.
P/1 - E nesse momento, então, já era constituído um projeto, enfim, vocês já tinham um projeto, vocês já tinham um apoio ou ainda era uma coisa bastante improvisada? Como você se lembra desse momento?
R - É, nesses dois primeiros anos não era um projeto, até porque se estava levantando a tartaruga marinha e peixe-boi, né, informação geral. O apoio era muito, muito incipiente. Na verdade, o apoio que nós tínhamos eram algumas caronas. Duas dessas pessoas eram contratadas pra fazer o trabalho os outros. Eu, na época, era uma voluntária, era uma estagiária. E, enfim, o apoio era quase que mais espiritual do que material, né? (risos) E no final dos dois anos, quando nós já tínhamos condições de fazer um mapa da distribuição dos animais, já tínhamos uma ideia de quais eram as principais ameaças e ficamos querendo resolver o problema da forma melhor e mais imediata possível, se separaram em dois e criou-se o Projeto Tamar, que se chamava Projeto Tartaruga Marinha e o Projeto Peixe Boi. E essa equipe enorme de quatro se dividiu pra implementar as ações embrionárias do que hoje nós temos conhecido como Projeto Tamar.
P/1 - Quer dizer, o começo pra você, o que eu entendi, é que o começo, a primeira relação que vocês tiveram que despertou talvez essa ideia de trabalhar com as tartarugas, foi quando vocês viram elas viradas, elas sendo viradas para cima?
R - Foi, exatamente. Essa cena nós temos até no arquivo fotográfico, as fotos são muito chocantes. Todas as tartarugas abertas com ovos, elas estavam prontas pra... Viradas de cabeça pra baixo. Que a tartaruga é um animal super vulnerável... No momento em que vira um adulto, ela não consegue desvirar e os pescadores sabiam disso. E, na verdade, não era só uma questão de subsistência, também era uma questão de falta de informação. Durante a Caravana Rolidei pelo Brasil, que sempre tem a legislação falando alto, mas ao mesmo tempo, de alguma forma, não tem tanta aplicação prática, a maioria dos lugares no final do mundo, barzinhos de pescadores, [no] mínimo tinha uma portaria da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), que na época era a encarregada pelas tartarugas marinhas dentro d’água. Já existia uma primeira legislação, mas a legislação [que] estava colada na porta, o nome dos animais eram nomes científicos [e] o pescador mal sabia ler. Obviamente não tinha comunicação, né? Que foi essa tradução que nós vimos que era essencial, que era o primeiro passo a dar era tentar fazer com que as pessoas entendessem a problemática e dar um nível de informação traduzido fácil.
P/1 - Então, qual foi o primeiro passo? Vocês começaram a trabalhar com a comunidade? Como se deu essa gênese do projeto pra conseguir ter um primeiro resultado?
R - Então, de novo, não existia nenhuma receita de bolo, não se falava em trabalho comunitário, não existia essa informação como um modelo, um marco teórico, e o início do Tamar foi completamente intuitivo. Na verdade, o problema era: se nós não conseguíssemos imediatamente parar com a coleta dos ovos na praia e da matança das fêmeas, automaticamente o ciclo, esperava-se, já estava em declínio e estaria interrompido pela ação do homem. Então, antes de qualquer coisa, pela nossa experiência durante dois anos nesses lugares, nós vimos que era impossível fazer um trabalho de educação ambiental médio-longo prazo com uma geração de velhos pescadores, que na verdade eram os que mais entendiam de tartaruga, né? E nós também entendemos que pra fazer um projeto desse tipo nós teríamos que contratar pessoas pra nos auxiliar. Quem mais entendia de tartaruga marinha eram as pessoas que mais matavam e coletavam ovos, então, como um preventivo, como uma medida de urgência, nós contratamos os pescadores da geração mais velha que estavam acostumados a ir pra praia matar as tartarugas e coletar os ovos, pra nos ajudar a protegê-las, né? Então, na verdade, eles estariam no mesmo lugar que eles costumavam pescar e teriam um trabalho estável e regular por um período de duas a três horas por dia. Isso nos deu chance pra provar e comprovar que aquele recurso era deles, né? Nós não tiramos nada do lugar, ao contrário, além de criar uma oportunidade imediata de trabalho, nós ainda estaríamos devolvendo a eles um recurso natural que quem sabe é possível, não sei, possa ser que venha a ser controlado, possa até vir a ser consumido. Não é o caso agora. E com isso, nos deu tempo de iniciar um trabalho de base com as crianças que hoje já tem 25 anos, quer dizer, já tem uma geração formada que sabe que vale mais uma tartaruga viva do que morta.
P/1 - E nessas histórias do comecinho, dessa abordagem com esses tartarugueiros, né? Teve algum personagem, alguma pessoa, enfim, algum desses pescadores pela reação que mais marcou, alguma lembrança que você tenha desse período de ter se sentido: “Puxa, conseguimos trazê-lo pro lado de cá”. Enfim, alguma história que tenha te marcado especialmente?
R - Teve, teve. Tinha um pescador na Praia do Forte que ficou muito “brabo” com toda essa novidade, era uma novidade. E ele dizia o seguinte: “O que Deus põe no mundo, o homem não tira.” E ele não acreditava, não conseguia entender que realmente continuasse tirando... Então, nós explicávamos como se fosse uma galinha: se comesse todo o ovo, se não deixasse nenhum, que de alguma forma seria muito mais barato, e mais fácil inclusive criar galinha [do] que a controlar, mas demorou um tempo, demorou um tempo. Esse pescador, especificamente, incomodou e foi meio complicado, mas no final tudo deu certo, né? (risos)
P/1 - Quer dizer, o projeto, então, ele surgiu desse trabalho que passou a se estabelecer na Praia do Forte?
R - As três primeiras bases do projeto foram: uma na Praia do Forte, uma em Regência, no Espírito Santo, Comboios e a outra em Santa Isabel, Pirambu, em Sergipe. As três bases aconteceram ao mesmo tempo. Porque no final desses dois anos, ficou claro [os] três lugares principais, não só por quantidade, número de desova, mas também pelas espécies predominantes. Cada lugar desses tem uma espécie comum e uma espécie que é secundária, que é diferente do outro. Então, dentro dessa estratégia, se criaram esses três pólos que foram se expandindo, e hoje são 22 bases, né?
P/1 - E em todos esses locais foram feitos esse trabalho, a comunidade foi trabalhada?
R - Todos os lugares do Tamar. A gente brinca sempre, fala isso: as pessoas sempre procuram uma receita de bolo, um modelo. Eu sou a primeira a dizer que eu não acredito em modelo, porque o Tamar, mesmo lá fora, as pessoas consideram um modelo, querem saber como faz. Eu digo o seguinte: mesmo no Brasil, num lugar restrito, num espaço de litoral onde poderia ser comum, as estratégias com as comunidades são completamente distintas. Então, como é que nós fizemos isso no início? Tentativa e erro, né? E só foram contratados biólogos, veterinários, pessoal da área de biologia, oceanólogos, que estivessem dispostos a morar no lugar. Porque eu acho que esse foi também o grande barato do Tamar a nível prático, foi fazer com que as pessoas morando no lugar tivessem os mesmos problemas que as comunidades locais, óbvio que um pouco distinto, mas estavam convivendo com a mesma infraestrutura, mesma dificuldade de acesso, não existência de médico, a mesma falha de escola, né? Então isso fez e deixou bem claro que cada lugar é um lugar. Nós até tivemos, em algumas situações, tentamos repetir uma iniciativa que foi desenvolvida em algum lugar e deu super certo. E quando transferimos pra outro lugar, não funcionou.
P/1 - Tem alguma história dessas que tenha marcado, especialmente dessa tentativa de usar um modelo? Ou imaginando que a comunidade ia recebê-los de uma forma e foi completamente diferente?
R - Por exemplo, nós criamos uma unidade de produção no Espírito Santo, no Comboios, que é uma fábrica de camisetas, né? Uma vez resolvida a questão com os pescadores na praia, mais ou menos resolvido, ficou uma outra fatia em aberto que seriam as mulheres da comunidade. Alguns lugares, como esse que é uma reserva biológica, não tinha outra alternativa de emprego, né, então foram compradas três máquinas de costura e se iniciou um trabalho pra ver se tinha aceitação ou não. Nossa, foi fantástico! Essa confecção que a gente chama hoje é que produz uma grande parte dos produtos Tamar, e iniciou sem qualificação. Isso também faz parte da nossa maneira de ver a problemática, então teve que chamar alguém pra capacitar, e já deu um curso, já... Enfim, hoje em dia essas camisetas tem competitividade de mercado, são super de boa qualidade, bonitas etc., e dão emprego pra muita gente. Logo que a gente começou com essa confecção, a gente resolveu replicar o modelo em Sergipe. No início foi difícil, não foi a mesma aceitação. Hoje até, essa confecção de Sergipe existe, ela tá bem, mas ela foi bem menos espontânea do que o Espírito Santo. Ao mesmo tempo, se criou lá uma alternativa de ostreicultura com algumas famílias de pescadores, de criação de ostras, e de imediato a resposta foi fantástica. Então, realmente. No Ceará, não tinha. O Ceará tem a maior fama de ter confecção, nós temos uma base nossa em Fortaleza e lá se chegou à conclusão que a melhor coisa a fazer era trabalhar com renda, né? Então o grupo, a unidade de produção lá, são as mulheres rendeiras, porque também tem uma coisa legal que é associar a produção ao resgate cultural. Essa comunidade tem um grupo de mulheres que fazem uma renda que não se fazia mais no Ceará, né, que até o governo do estado hoje tá estimulando, levou a Secretaria de Cultura de Turismo pra dar uma força e melhorar a colocação de venda. São situações distintas. Em Sergipe, tem as bordadeiras que é o forte deles a nível de atividade das mulheres, então tem várias coisas realizadas com bordados. Em Ubatuba, tem uma escolinha, uma oficina de papel reciclado, que é um modelo também que se faz em outros lugares, mas o grande lugar onde foi instintivamente aceito foi em Ubatuba. Então o Tamar também acaba sendo uma grande troca de experiência, porque alguns lugares têm perfil pra ecoturismo, outros são comunidades isoladas. E o todo do Tamar é que faz com que ele tenha uma operação redonda. E que, como o Tamar não é uma empresa que gera lucro, qualquer receita é reaplicada no programa de conservação. Isso que é legal, né?
P/1 - E qual é o seu envolvimento diretamente nessas iniciativas, nessas ações, Neca?
R - Pois é. Eu, hoje, trabalhei muito tempo. Os meus dez primeiro anos de vida profissional foi literalmente ralando em campo com as tartarugas e com uma experiência mais direta na comunidade da Praia do Forte, que era onde eu ficava mais tempo, onde eu morava, moro ainda, né? No período que eu fiz esse trabalho de campo, também, a maioria dos indicadores biológicos básicos sobre as tartarugas marinhas, os animais em si, não se tinha, então, foi um período de construção de conhecimento, né? Meu esforço era muito físico, tinha que estar muito presente na praia, até porque nesse início ainda tinha roubo de ovos, ainda as coisas escapavam um pouco, né? Tinha muita pouca estrutura. A partir desses dez primeiros anos, quando o trabalho de campo em si ficou praticamente... A metodologia já estava desenvolvida e dava pra ser implementada estando na maioria dos lugares de reprodução das tartarugas. Nós passamos a ter um olhar um pouco mais pra questão das tartarugas dentro d’água, né? O trabalho comunitário, ele agora está um pouquinho diferente mas, no começo do Tamar, ele acontecia quase que naturalmente. O trabalho inicial do Tamar, como as comunidades eram pequenas, era muito de dar um carona pra mulher que estava grávida, levar no médico, ajudar, levar alimento quando tinha cheia, enchente não sei onde, com o Jipe que era 4x4 que andava na areia. Enfim, era uma coisa absolutamente intuitiva e natural, né? Hoje já tem uma forma mais estabelecida, até porque o grupo está muito grande, muito distinto. A minha participação foi direta nesses dez primeiros anos, eu cheguei num lugar que praticamente não tinha luz elétrica, era uma pequena vila de pescadores. Eu era parte daquela vila de alguma forma, né? Hoje as coisas mudaram: já está grande, tá maior, muita gente de fora. E a minha atuação, hoje, maior é na parte de coordenação técnica como um todo, que é a parte que eu gosto mais, mas também a parte de organização de representação institucional, organizacional. Hoje, o Tamar tem mais de 1.200 pessoas trabalhando nessa operação toda, onde mais de 80% são pessoas das comunidades.
P/1 - E o que foi pra você, nesse período de ter mudado... Você saiu do Rio Grande do Sul, era uma jovem que foi morar na Bahia. O que você se lembra que mais te marcou nesse período?
R - É, então. A primeira descoberta minha é que o Brasil não tem dialeto, mas as pessoas não se compreendem. (risos) Então, o meu primeiro ano, ou mais de um ano, morando na Bahia, quando eu tive que entrar na rotina, trabalhar, me comunicar, eu compreendi que o meu português não era compreensível. Isso me desesperava muito porque eu... Inclusive, tinham palavras, eram as mesmas palavras, mas significavam coisas completamente distintas e, eventualmente, me colocavam em situações bem difíceis, né? Demorou um tempo, eu me sentia uma “gringa” exilada. Também, o trabalho que eu fazia, naquela época, não ajudava muito: eu passava as madrugadas andando na praia, às vezes, à cavalo com o fiscal do coco salvando o ovo de tartaruga numa comunidade que tinham 400 pessoas, que eu acho, que eu morando, fui a primeira pessoa de olho claro, né? Então, era tudo muito diferente. Mulher... Foi difícil no início, foi bem difícil. Mas com o tempo, obviamente, as coisas vão se acomodando, você vai se acostumando, as pessoas vão acostumando com você, que eu acho que é a principal linguagem, não é só a verbal, mas é confiar em você e saber porque você estava... Eu me lembro da primeira vez que consegui fazer nascer mais de 500 filhotinhos de tartaruga, que ninguém mais tinha registro que um ovo gerava um bebê de tartaruga, porque já tava tão arraigada a cultura de comer os ovos que as pessoas praticamente não viam o nascimento, né? Então, quando eu passei na vila, que era uma ruazinha, com aquele lugar numa caixa cheia de filhotinhos de tartaruga e convidei as pessoas pra soltar, todo mundo ficou impressionado, né? Nem na cabeça deles mais eles achavam que um ovo podia gerar um filhote. Isso tudo foi uma construção muito legal.
P/1 - Quer dizer, eles não tinham registro. Nenhuma geração, talvez os mais antigos? Mas ninguém se lembrava de um filhotinho de tartaruga?
R - Não. Eu costumo brincar e dizer que isso, exageradamente, deve acontecer com uma criança em Nova Iorque que come um ovo de galinha... Não tanto, porque o nível de informação é melhor, mas é mais ou menos por aí. As pessoas vão perdendo o registro do que é o que, e se não houver um esforço pra retomar os conceitos e tentar reentender o que é mais natural, acaba se perdendo. Mesmo numa vila de pescadores.
P/1 - Você chegou a sentir alguma dificuldade pelo fato de você ser mulher, de estar entrando naquela comunidade? Teve alguma história que tenha te marcado nesse sentido?
R - É, tinha. No começo tinha muito preconceito. As próprias mulheres dos pescadores tinham bastante preconceito comigo no começo, porque eu fazia um trabalho de homem, né? E como muitas vezes eu tinha que percorrer a praia à noite sozinha, me emprestaram o fiscal do coco pra me acompanhar, porque a Praia do Forte é uma fazenda de coco, de coqueiros. Na verdade, então, eu era uma mulher num lugar onde as mulheres não exerciam esse tipo de trabalho e eu saía com um homem me acompanhando de madrugada pra fazer uma coisa totalmente inusitada pra eles, né? (risos) Então, bem no início, eu tive problemas assim, mas também não foram problemas, nunca foram coisas que tivessem me feito desistir. Imagino que se fossem coisas muito sérias, [mas] eu nunca me senti agredida a ponto de achar que deveria ter saído de lá. Foi o choque cultural, totalmente aceitável, totalmente compreensível.
P/1 - E nessas suas saídas à noite, o que você fazia, propriamente dito, com as tartarugas?
R - Então, como não se sabia nada, não tinha, no Brasil não tinha registro. Primeiro das espécies que ocorriam, depois não se sabia qual era o período que as tartarugas vinham para o continente pra se reproduzir. Não se sabia intervalo de tempo, não se sabia quantos ovos, não se sabia aonde, não se sabia absolutamente nada. Então, essa busca de praia era uma busca de informações. Que eu fazia? Eu tentava cobrir a praia das sete às cinco da manhã, que era o período escuro, que provavelmente era onde a chance de uma tartaruga fêmea sair era maior, e fazia esse levantamento. Marcava as fêmeas que eu encontrasse na praia com uma plaquinha de aço inoxidável, como se fosse uma carteira de identidade. Isso foi super valioso e é ainda, porque é o que nos dá a maioria das informações de comportamento das tartarugas. E também nesse período os ovos não podiam ser deixados na praia, isso é outra coisa... Porque ainda não se tinha controle, então, se deixasse na praia e saísse um pescador depois que eu saísse, automaticamente os ovos poderiam ser coletados, né? E nesse período nós transferíamos todas as desovas pra um cercado aberto a chuva, exposto ao tempo, mas num lugar onde nós tivéssemos controle, tentando imitar a condição da praia. Então, o meu trabalho era esse: era, praticamente, fiscalizar e coletar dado e tentar manter presença na praia.
P/1 - E você podia se aproximar de uma tartaruga, que ela não... Quer dizer, sair correndo é engraçado porque ela não saía...
R - Não, não. As tartarugas fêmeas, normalmente, se você tiver um pouco de cuidado, não atacá-la antes dela começar a desovar, ela não se assusta tão fácil assim.
P/1 - Em que momento, você se lembra se teve alguma experiência específica onde você constatou que a comunidade passou a te aceitar, passou a entender o seu trabalho? Porque até então era uma coisa meio esquisita.
R - O meu depoimento é mais da Bahia, que é o lugar que eu tive mais experiência prática. Eu acho que a Bahia por si só ela acolhe muito, é incrível isso. Depois de um tempo, eu comecei ver as pessoas já empolgadas participando. Tinha um, dois pescadores mais velhos que faziam cara feia, mas aquilo começou a virar uma coisa da rotina, começou a virar uma coisa... Eu comecei a convidá-los à ir pra praia, eu, por um acaso, fiquei na casa de uma senhora que é uma líder comunitária nata, que era o único lugar que tinha pra ficar na Praia do Forte, e ela estava organizando uma festa de Natal pras crianças e eu participei dessa primeira festa de Natal. Essa festa de Natal se repete há 25 anos, está cada vez mais sofisticada, entre aspas. Aquele primeiro ano foi [em] uma construção de fundo de quintal, pra dar uma lembrancinha pra cada criança, fazer um coralzinho, fazer algum registro, algum ritual de passagem no Natal. Então, aos poucos, eu fui entrando ali no dia a dia e a coisa foi acontecendo.
P/1 - E esses jovens que vocês trabalharam, esses jovens que receberam essa educação ambiental há 25 anos atrás, como é que eles estão hoje? Eles estão inseridos no projeto? Como eles entendem hoje o projeto?
R - É, então, tem várias situações no Brasil. Agora já falo assim como geral. Tem meninos, como em Ubatuba, que eram guardadores de carros que foram tirados, de alguma forma da rua, seduzidos pra ir pra oficina de papel reciclado. Dali passaram a ajudar na parte de tratamento dos animais que ficam em cativeiro, dali se interessaram por biologia e, alguns em Sergipe também, na Bahia também, acabaram, inclusive, fazendo vestibular pra biologia, né? Nós temos dois casos hoje de biólogos formados que vieram dessa formação Tamar, que são pessoas da comunidade. Então, isso também, de alguma forma, em todas as bases do Tamar tem espaço pra meninada explorar, tem trabalhos específicos com crianças, principalmente voltados pra área marinha, que é o nosso mote. O que nós entendemos também é que, historicamente, a parte de conservação, até por uma questão de custo no Brasil e no mundo, sempre foi mais voltada pra área terrestre. E a tartaruga aqui no Brasil, hoje é uma espécie bandeira [espécie escolhida para representar uma causa, como, as tartarugas do Tamar ou os pandas da WWF], ela é emblemática e ela carrega muito dessa questão da conservação marinha, inclusive e principalmente nas comunidades.
P/1 - Por que exatamente ela virou um emblema, virou um signo importante?
R - Primeiro porque eu acho que as tartarugas tem sorte de estarem uma parte do ciclo em lugares lindos, que só na costa brasileira, na área mais tropical, elas tem essa também possibilidade [de] se mostrar na terra, porque a dificuldade da área marinha é as pessoas conseguirem se aproximar dos animais. A tartaruga bota ovo na praia, as pessoas veem os filhotinhos e isso é uma super maneira de fazer com que se envolvam. E ela leva com ela... Ela é um animal migratório: passa um ciclo aqui, o outro pode ser na África. Ela é como se fosse uma embaixadora do mar, leva com ela toda uma mensagem de complexidade e ao mesmo tempo de simplicidade do quanto ela precisa do ambiente marinho de alguma forma, limpo, em condição boa, como [também] ela precisa de praias que precisam ter uma ocupação ordenada com regulamentação. Então eu acho que ela é uma boa forma de se levar um pouco de conservação marinha.
P/1 - E Neca, você acha que esse modelo do Projeto Tamar, ele pode ser replicado pra outras espécies, inclusive?
R - É, de novo: eu comecei dizendo aqui que eu não acredito muito em modelo, particularmente. Eu acho que a ideia, a essência filosófica de conteúdo sim. E o que eu acho que é importante aí? Primeiro, essa questão da comunidade, inclusão social, tentar integrar a comunidade, seja da forma que for, pode ser de outra forma, não precisa ser gerando emprego, mas que tem que ter esse componente pra qualquer projeto de conservação. Eu acredito que não se tem discussão em relação a isso. A outra questão, é haver uma possibilidade de interação entre o governo e uma não-governamental, porque é importantíssimo o governo pelo lado das políticas públicas, da regulamentação, da parte de licenciamento e fiscalização, e uma organização não-governamental possibilita flexibilizar e ampliar ações que muitas vezes o governo por si só não é capaz de realizar. Isso é outro fator que eu acho indispensável pra que se consiga uma grande operação, uma operação completa de conservação. E a terceira questão é óbvia: a dedicação de muita gente. Eu sinto hoje que o Tamar não seria o Tamar se não fosse um exército de pessoas de lugares distintos, de várias classes sociais, de vários interesses auxiliando, amparando e fazendo com que ele consiga dar conta do recado.
P/1 - No período, voltando um pouquinho atrás, no período que você dizia que era fundamental que biólogos, veterinários, morassem num local pra ter envolvimento com a comunidade. Foi muito difícil conseguir encontrar esses profissionais que se fixassem nesses locais bastante afastados dos centros urbanos? Como foi isso?
R - Foi relativamente difícil, né? No começo até nos perguntavam por que no Tamar, era uma estrutura bem menor, só tinha o pessoal que tinha estudado no Rio Grande, na Faculdade de Oceanografia de Rio Grande. E a minha resposta era muito simples: quem conseguiu conviver com o Rio Grande durante cinco anos, com a diversidade de clima, sozinho, isso era uma condição importante, todo mundo que passou por lá saiu de casa aos 18 anos, aprendeu o básico que parece que não tem importância, mas tem importância, sabia fazer supermercado, sabia gerenciar sua própria vida, tinha independência, e, portanto, iniciativa. Então, o comecinho do Tamar, o embrião foi bem focado nas pessoas que tinham condição e maturidade pra ficar num lugar isolado. Isso foi bem importante pra nossa construção. Hoje já é diferente, já tem mais estrutura, já é mais fácil a adaptação. Mesmo assim, eu continuo achando que as pessoas, via de regra, tendem a gostar muito de fazer um trabalho num lugar isolado por um tempo determinado. Pouquíssimas pessoas que eu conheço fizeram uma opção de vida de morar fora de um centro urbano. Todo mundo adora passar férias nesses lugares [afastados], mas, realmente, morar é complicado.
P/1 - E, hoje em dia, você conhece algum projeto, alguma iniciativa de jovens, como vocês tiveram, que possa ser parecida com a sua, com a experiência que vocês tiveram no início do Tamar?
R - Eu não sei se parecida mas, tem vários grupos. Tem o NEMA, que é o Núcleo de Educação de Meio Ambiente em Rio Grande, que é uma organização pequena, ela já é bem antiga, tem 20 anos, mas ela se recicla e são pessoas bem mais jovens que nós. Tem o Projeto Baleia Jubarte, que não é tão jovem, mas é uma iniciativa que me lembra mais o Tamar antigo. Tem várias iniciativas, eu acho que agora, assim, de cabeça, eu não...
P/1 - Você colocou como um dos, quando eu te perguntei de modelo de ser possivelmente replicado, que você colocou que uma das premissas que é muito importante é ter essa relação com o poder público, né? E eu queria saber, assim, de você, pessoalmente, qual que é essa relação entre política e meio ambiente, pra você?
R - Eu costumo dizer que a minha política vai até o limite... A minha atuação política vai ao limite do que eu preciso pra o que eu entendo que é conservar as tartarugas marinha, isso é o que eu faço no meu dia a dia. Eu não tenho nenhuma ambição da política pela política, né? Acho exatamente o que eu falo dessa obrigatoriedade é porque muitas vezes os grupos não-governamentais ficam isolados de um lado e não conseguem passar a experiência do que precisam, na realidade, pra que haja uma construção melhor, até uma pressão, de que o governo possa responder, se não for nesse ano é no outro, ou no outro, mas que alguma coisa feita fique organizada a nível de futuro em cima de uma linguagem prática e real. Às vezes, conforme eu mencionei, você tem legislação, tem todo o amparo e o instrumento legal e, ao mesmo tempo, não tem quem olhe por ela ou ao mesmo tempo não tem quem possa dar uma dica do que ali não funcionaria, porque, na prática, é diferente. Eu acho que essa associação genérica do que é feito como teoria e marco teórico, e o que é e acontece na prática de quem executa, é super importante.
P/1 - Dentro desse conhecimento, ao longo desses anos, esse conhecimento que foi gerado pelas experiências que vocês tiveram, tem muitos artigos científicos. E tem algum que você identifique que possa dar caminhos e diretrizes dentro dessa questão ambiental dentro da política ou são mais científicos mesmo?
R - Não, esse científico, ele varia, né? Nós temos desde artigos científicos que abordam só a parte da biologia das tartarugas marinhas, como nós acabamos de escrever um artigo, um capítulo pra um livro, pra uma revista holandesa que descreve o “modus operandis” do Tamar. Ele acabou de ser publicado e está dentro da área de ciências marinhas, mas aborda exatamente como se chegou a essa associação, como que é feita a operação Tamar, de que forma se interage governo e não-governamental, quem faz que papel, como são os programas de inclusão social e, inclusive, como se trabalha com a questão de orçamento, financeira, enfim, eu acho que é o trabalho mais completo e objetivo, que nós conseguimos resumir o que nós fazemos.
P/1 - Bom, você tem recebido vários prêmios durante a sua trajetória profissional, inclusive um pela revista “Times”, que é o “Heroes of the Planet” em 1998. Eu queria que você dissesse qual foi a sensação de receber um prêmio dessa envergadura? O que significa pra você em termos de realização pessoal e profissional?
R - Claro, receber um prêmio é sempre um reconhecimento. Além do reconhecimento, eu acho que tem um outro desafio aí, que foi esse início meio tortuoso quase, onde as pessoas de alguma forma... Durante anos nós fomos considerados os malucos que viviam na praia, que não andavam de terno e gravata, que tinham uma maneira e uma abordagem diferente de se colocar profissionalmente. Como praia sempre está associada a situação de prazer, lazer e férias, uma dificuldade que nós enfrentamos, bem maior no início, era provar que nós estávamos trabalhando na praia de bermuda, muitas vezes sem ter tempo pra maquiagem, penteado e todas essas formalidades que as pessoas associam com seriedade. Então, os prêmios depois de anos são, de alguma forma, importantes como reconhecimento, não só ao Tamar, mas a uma situação de trabalho distinta do que a sociedade até um pouco de tempo atrás valorizava e considerava um indicador de um programa sério, de sucesso etc.
P/1 - E voltando um pouquinho a esses “malucos”, uma pergunta que passou que eu gostaria de retomar. Como que a sua família via isso? Era aceito, o que seus pais diziam disso?
R - Olha, a aceitação dos meus pais desde quando eu saí de Porto Alegre, que era um centro maior pra ir pra ir pra uma cidade do interior, pra fazer uma faculdade que ninguém sabia exatamente o que era, foi bem, foram... Meus pais não gostaram da ideia, acharam uma loucura, demorou muito tempo. Meu pai morreu nesse meio tempo, mas a minha mãe, que viveu mais tempo, até quando eu me mudei pra Bahia, continuou achando que eu estava saindo de uma estrutura mais confortável, mais organizada, com mais condição, pra me meter numa coisa que ela não tinha, assim, não conseguia enxergar um futuro ali, né? Felizmente, ela morreu depois de a gente já ter dado essa volta e estava sendo um pouco reconhecido, pelo menos pra ela ficar tranquila e ver que nem tudo foi maluquice. (risos)
P/1 - E se hoje, acredito que você vá às faculdades, enfim, falar sobre isso. O que você diz aos jovens nesse sentido de ter uma ideia, você diz alguma coisa específica sobre isso?
R - Pelo menos, nessa área aí, as coisas mudaram muito. Hoje, você tem nove cursos de oceanografia no Brasil e, na verdade, o que eu acho hoje é que os espaços já estão ocupados também, que é até difícil pras pessoas mais jovens terem um pioneirismo em alguma coisa, né? Eu vejo isso, eu tenho uma filha de 20 anos. Acho que isso é uma outra, é um outro mundo, em pouco tempo de diferença que está se vivendo agora. Mas a princípio, se eu tiver que dar algum palpite, eu sempre digo que o ideal é você fazer o que você gosta, independente da dificuldade, independente do retorno econômico. Eu acho que quem consegue exercer o que gosta tende a ter um resultado mais positivo do que fazer alguma coisa obrigado ou que vá dar dinheiro, ou, enfim, e que seja obrigado, porque a nossa vida, uma grande parte do nosso tempo é nossa vida profissional, se você escolher uma coisa que não gosta.
P/1 - E a sua filha, o que ela faz?
R - A minha filha faz jornalismo.
P/1 - Tá. Você é casada?
R - Eu sou casada, o meu marido é o coordenador do Tamar pela parte do IBAMA e nós estamos juntos desde a época da faculdade. Na realidade, ele começou o Tamar, até porque ele é um pouco mais velho, começamos juntos, mas por mérito, lógica e cronologia, né? (risos)
P/1 - Ele era da Caravana também?
R - Ele era da Caranava.
P/1 - Tá. Bom... Neca, a gente está terminando. Eu gostaria de saber, enfim, pra você numa síntese: quais foram as principais lições que você tirou da sua carreira, da sua trajetória profissional.
R - Olha, eu acho que a primeira, a primeira mesmo é perseverança. Eu entendo que a gente vive num país que tem muita dificuldade ainda e se não houver muita vontade de se fazer alguma coisa e tentar mudar automaticamente, não acontece. Então, eu continuo mesmo o Tamar maior, mesmo já tendo realizado uma boa parte do que eu gostaria, cada dia é um dia de batalha, de luta e continua tendo milhões de dificuldades, milhões de coisas boas, mas que a gente não pode parar de lutar, né? A outra coisa é essa questão de horizonte. Eu acho que o Tamar me deu uma super possibilidade de conviver com diferentes culturas, com diferentes cabeças, desde o pescador até o ministro, desde um brasileiro até um africano, um tailandês e isso é muito legal porque também, via de regra, as pessoas que ficam muito centradas num mesmo lugar, numa mesma realidade, esquecem um pouquinho que o universo é enorme, as cabeças das pessoas são distintas e a gente precisa de ter muita flexibilidade pra sobreviver.
P/1 - Cesar, alguma pergunta que você queira complementar?
P/2 - É o que ela achou de ter participado desse projeto, o depoimento mesmo, enfim.
P/1 - O que você achou de ter participado aqui desse projeto Memória da Diversidade Biológica, que, enfim, a gente vai estar tratando exatamente dessa Convenção, da Convenção da Diversidade Biológica. O que significou? Quer dizer, agora você faz parte da história também. O que significou isso pra você?
R - É, então, eu acho que essas iniciativas são super valiosas exatamente não pelo modelo, mas pela descoberta e troca de informação. Então eu achei super interessante, porque eu acho que quanto mais se multiplicarem ideias e o quanto mais as pessoas poderem aproveitar o melhor de cada experiência, é uma chance pra outras pessoas acabarem fazendo outras coisas.
P/1 - Obrigada, muito obrigada pelo seu depoimento. E por hora é só.
[Fim do depoimento]
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