ORIGEM
Era uma rua tranqüila com poucas casas. O povoado (não dava nem pra chamar de cidade, tal a pequena quantidade de pessoas que viviam na região, menos de quinhentas) e era chamada a rua dos sonhos, nome colocado por um dos primeiros moradores da região que dizia que todos os seus sonhos seriam realizados ali naquela cidade. Era Sebastião sonhador, como diziam na época. Mas pouco se sabe de sua história. Aliás, se diz muito, mas pouco se prova. A verdade é que ele viera para o local por uma obsessão da mãe, Mineira de voz rouca e forte que dizia haver ouro naquelas bandas. Coisa que nunca se provou. Sabe-se que ele passou a sua vida inteira cavando. Buscando o que seria o ouro do tolo, pois nunca encontrara. Mas, voltando à rua, suas casas até tinham números, mas era algo muito curioso, pois, nunca se vira um carteiro por lá. Cada um colocava o número que gostasse; então a rua começava no número setenta e sete, a próxima casa era número trezentos, a outra sete (e tinha dois zeros antes, como se o morador alguma vez tivesse ouvido falar do filme 007 de James Bond ou se soubesse o que era um cinema). Havia uma delas que o número era dois mil. O dono dizia que era uma homenagem ao dia que o mundo iria acabar e o tal ano passou como todos os outros. Só acabara para ele uns três anos depois quando fora pisoteado por um boi. “Um boi brabo”, como diziam.
Poucas casas eram acabadas e com pintura, só algumas tinham portão. A maioria parecia em construção. Além dos muitos barracos em madeira ou sobra de materiais diversos como plástico. Tinha uma que era de um ex-combatente (dizia ele que foi do grupo de Lampião, mas pela idade jamais teria conhecido nem mesmo um filho do próprio) que se apelidava de Lamparina. Saberemos mais dele logo mais, vamos falar de sua casa:
A casa inicialmente fora levantada em madeiras e como o material plástico era muito facilmente descartado e de graça (havia algumas empresas...
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Era uma rua tranqüila com poucas casas. O povoado (não dava nem pra chamar de cidade, tal a pequena quantidade de pessoas que viviam na região, menos de quinhentas) e era chamada a rua dos sonhos, nome colocado por um dos primeiros moradores da região que dizia que todos os seus sonhos seriam realizados ali naquela cidade. Era Sebastião sonhador, como diziam na época. Mas pouco se sabe de sua história. Aliás, se diz muito, mas pouco se prova. A verdade é que ele viera para o local por uma obsessão da mãe, Mineira de voz rouca e forte que dizia haver ouro naquelas bandas. Coisa que nunca se provou. Sabe-se que ele passou a sua vida inteira cavando. Buscando o que seria o ouro do tolo, pois nunca encontrara. Mas, voltando à rua, suas casas até tinham números, mas era algo muito curioso, pois, nunca se vira um carteiro por lá. Cada um colocava o número que gostasse; então a rua começava no número setenta e sete, a próxima casa era número trezentos, a outra sete (e tinha dois zeros antes, como se o morador alguma vez tivesse ouvido falar do filme 007 de James Bond ou se soubesse o que era um cinema). Havia uma delas que o número era dois mil. O dono dizia que era uma homenagem ao dia que o mundo iria acabar e o tal ano passou como todos os outros. Só acabara para ele uns três anos depois quando fora pisoteado por um boi. “Um boi brabo”, como diziam.
Poucas casas eram acabadas e com pintura, só algumas tinham portão. A maioria parecia em construção. Além dos muitos barracos em madeira ou sobra de materiais diversos como plástico. Tinha uma que era de um ex-combatente (dizia ele que foi do grupo de Lampião, mas pela idade jamais teria conhecido nem mesmo um filho do próprio) que se apelidava de Lamparina. Saberemos mais dele logo mais, vamos falar de sua casa:
A casa inicialmente fora levantada em madeiras e como o material plástico era muito facilmente descartado e de graça (havia algumas empresas que usavam um local próximo para descarregar caminhões de lixo e sucatas) ele cuidadosamente foi acumulando garrafas e plásticos em geral e fez toda a cobertura nova neste material. Era muito bem encaixado uma na outra, dando semelhança a telhas mesmo. E em várias camadas, fazendo assim uma proteção boa contra a chuva. Mas dentro é que era realmente surpreendente. Ele cavara um buraco enorme, portanto ela tinha dois andares, sendo um debaixo da terra. Havia uma saída de emergência levada por um túnel também cavado por ele, sozinho, que saia a mais de cem metros do local. Todos conheciam aquela rota de fuga, mas ele acreditava ser secreta.
A escada que levava ao cômodo subterrâneo era de madeira toda entalhada, tipo obra de arte, que o próprio Lamparina havia feito quando era mais moço. Na parede interna havia vários objetos como facas, tesouras, espadas (algumas feitas em madeira outras em plástico) e até duas armas de verdade! Mas há quem diga que nunca saiu um tiro de uma delas, de tão velhas. A mais bonita era uma garrucha estilo velho oeste, com dois canos e dois gatilhos, um menor outro maior. Ela comportava duas balas e para armá-la era necessário puxar o percussor (mais conhecido por cão – peça que é liberada pelo gatilho e ao tocar no fundo da bala faz com que esta solte sua parte interna, que sai pelo cano – a bala propriamente dita). Enfim uma relíquia que teria mais valor para um museu que para um louco.
Ao redor da casa toda havia uma vala com mais ou menos um metro e meio de profundidade. Ele dizia que era a trincheira, mas facilmente se percebia que se tratava de uma defesa contra águas de chuvas ou animais, pois a casa ficava em um nível abaixo das demais. E caso entrasse água a parte inferior viraria uma piscina.
Mas dentre as demais ela se destacava pela originalidade.
Pouco comércio se via. Apenas um mercadinho, pintado de azul (aqueles de cidade do interior) que tinha mais teias de aranhas que mercadorias. O seu Joaquim (não, ele não era português, vinha de uma cidade do nordeste, que segundo ele, nem dizia o nome porque ninguém conhecia. Falava apenas que era no Ceará, tal qual seu apelido) fazia um esforço tremendo para escrever numa caderneta velha e com poucas folhas, parecida com a boca falha de dentes da maioria do povo daquele lugar, os fiados que tinha.
Bar existia. Um, dois, três. Era o bar do pé (talvez seja pelo tamanho do inchaço que tinham os pés do dono). Conhecido por Nicão, não usava sapatos, pois além de não os ter, não havia nada que servisse. Vivia com os pés enrolados em faixas, daquelas de enfermaria mesmo. Às vezes viam-se metros delas estendidas no varal, secando após lavar. Não podia faltar uma cachaça ao seu lado. Nunca foi visto fora do bar ou de sua casa que era imediatamente atrás.
O bar do Sr. João era o mais ajeitado de todos. Tinha a inscrição na frente de “Bar das crianças” feita com uma sobra de tinta. Devia ser do mercado, pois o tom era exato em azul. Faltava o “s” no final, então se lia “Bar das criança”, mas como era dos poucos que sabia ler e escrever não fazia muita diferença. Não é que crianças freqüentavam o bar. Também não era proibido, porque dinheiro é dinheiro, dizia ele. Mas porque como era o morador da região que tinha mais filhos (seis, morando com ele, dois casados e três filhas – que sumiram no mundo, como o próprio pai enfatizava.) e a receita que conseguia no bar era pra sustentá-los – por isso o nome. Talvez ele tenha conseguido dar o que comer razoavelmente bem a uns três deles. Também pudera. Pagava pensão a duas ex-esposas que deixara em Sergipe, porque senão “os home prende” confessava. Achava que a moeda corrente do País ainda era o Cruzeiro e jamais acreditara que o homem foi à lua.
- Mas hómi, imagina que nóis leva muitas hora pra chegá na cidade, i pra i na lua intão? É tudo mentira desses americano fila duma égua!! Falava quase sempre que estava embriagado. E em tom de valente!
O outro era mais de jogatina, quase nunca se via muita gente. Apostavam suas misérias. Muitos saíam de casa rumo ao mercadinho pra comprar o pouco de comida que podiam e acabavam deixando lá no bar todo o seu dinheiro. Nenhuma pessoa naquele lugar saiu de casa com o dinheiro contado pra comprar remédio, apostou e voltou rico pra casa. Até porque nem havia farmácia na região.
Nem tudo era ruim por ali, não faltava água e nem luz. A água era racionada, dia tinha, dia não tinha, mas seca mesmo a maioria só viu no “Norte”. Tinha até um hospital! Pequeno, instalações precárias, Um médico que vinha a cada dois dias, de uma cidade vizinha e duas enfermeiras. O médico, dr. Oliver era formado há muitos anos. Estava com a vida vivida, tinha dois filhos casados morando fora do país e era viúvo. A esposa morrera nova, coisa de doze anos atrás. Acabou de criar os filhos, quitou a casa, comprou uma camionete que sonhara anos e como não tinha mais o que fazer passou a trabalhar no pobre hospital para matar o tempo. Ia lá mais para conversar que propriamente para consultar. Era quase um psicólogo de tantos conselhos que dava aos pacientes. Sabia da vida de todos, um a um. Aconselhava as esposas a colocarem remédio na comida dos maridos para pararem de beber. Ele nunca havia ingerido bebidas alcoólicas, nem sabia direito os nomes. Chamava de cana. Tudo para ele era cana, qualquer bebida. Mas não falhava em um parto sequer, coisa que fez muito bem a vida toda. Adorava ver crianças virem ao mundo. Nunca perdeu para a morte uma sequer. Fez, inclusive, o parto dos dois filhos, coisa muito criticada para a época, mas dizia ele:
- Ninguém melhor que o pai para saber o que é bom para seus filhos! Filho meu mando eu!
Seus amigos de profissão sempre ficaram atentos e de prontidão neste dia, caso ele esmorecesse na hora H. Mas que nada, era durão! Nunca se viu chorar. Nem no enterro da esposa. Também pudera, era ateu. E por não acreditar em Deus não acreditava em milagres. Dizem as más línguas que eles não tinham mais nem intimidade há muitos anos. Mas pelo que se sabe nem deveria fazer falta, pois nunca procurou uma nova mulher depois de viúvo. Morava só e não se sabe o que fazia nos dias em que não dava plantão no hospital. Talvez lesse. Muito. Talvez tivesse um cão. Talvez.
Maria e Helena eram as enfermeiras. Elas prestavam serviços comunitários e vieram de longe. Uns dizem que era lá das bandas da “Oropa” outros diziam que eram “Americanas”. O Ceará do mercadinho disse uma vez (negou anos depois) que elas vinham lá “daquelas bandas que só tem terrorista”. O que importava é que eram duas freiras, trazidas pelo único padre da região (a igreja ficava no centro, distante do vilarejo), um senhor bonachão e com jeito de arrogante, que fumava muito e bebia mais ainda, mas só vinho da igreja. Este era italiano, de sobrenome Giorgio. E era só a aparência que enganava, pois era um bom homem. Quase um homem de Deus. As freiras pouco saiam às ruas e moravam num cômodo bem pequeno no fundo do hospital mesmo. Elas lavavam, passavam e cuidavam dos doentes. Tinham uma santa plantação, diziam elas que Deus abençoava as mudas, que logo cresciam e se transformavam em remédios populares e caseiros, que por vezes elas até engarrafavam. Ah! E cultivavam uma horta também, pensaram até em fazer do vilarejo um local de plantação de cenouras, tal a facilidade do cultivo e da qualidade do legume. Mas o sonho ficou só no papel, os investimentos não vieram. Era longe demais para algum político se interessar. E a maioria nem votava. A maioria mesmo nem sabia o que era uma eleição nem tampouco quem era o presidente. Só o Nicão que jurava que o “Dr. Getúlio” estava vivo e voltaria a qualquer eleição.
Ônibus tinha, levava só ao centro, em mais ou menos três horas de viagem. O único problema é que passava apenas uma vez por dia. Um ia e outro voltava. Perdesse o da volta e dá-lhe de seis a sete horas a pé pra chegar até o local. E levantava aquela poeira... Nos ônibus havia um nome impresso, mas não se lia de tanta sujeira. Era apelidado pela população local de Poeirinha. E assim ficou conhecido por Viação Poeirinha. Dizia-se por ali que o dono da empresa era um homem muito rico e poderoso e que até seria prefeito da cidade, mas como ninguém sabia basicamente nem o que era votar, tornou-se mais um conto popular. Talvez até tenha sido realmente prefeito.
Dentre os moradores em sua maioria idosos, viam-se algumas crianças. Os de melhores condições possuíam cavalos. Tinha um que possuía três! Todos magros e um doente, mas eram três! Senhor rico aquele. Diz à lenda que quando morreu encontraram um colchão cheio de dinheiro na sua casa, mas que as notas eram todas antigas e tinham perdido o valor após tantos anos de poupança. Nunca foi casado ou teve filhos. Também nunca foi visto com mulheres.
Tinha também aquele cômico bêbado que mal não faz a ninguém. Só para si mesmo. Nem se sabia o nome, mas era carinhosamente chamado de Bob. Bob, pois era só tomar algumas biritas que já enrolava a língua. Daí era Bob pra cá e Bob pra lá. As crianças se divertiam muito com ele, faziam piadinhas, corriam de um lado pro outro para enganá-lo. Chamavam seu apelido estando escondidas, só para o verem procurar. E ele encarnava bem o espírito de palhaço. Fingia não vê-las ou se fazia de bobo (mais), pois achava muito bom ver as crianças sorrindo, com a ingenuidade típica delas. Gostava de pescar. Uma vez caiu no lago tal era seu estado. Mas não perdeu o rebolado e como sabia nadar, voltou para a beira e rindo muito e disse que o peixe era tão grande que havia pescado ele. Neste dia, todos pescaram muitos peixes, menos ele. Mas aceitou levar dois para casa, doados por um dos companheiros, mesmo repetindo a velha frase de outras pescarias:
- Eu só levo o que eu pesco!
Mesmo bebendo além da conta foi ao enterro de muitos amigos que morreram mais novos que ele... Alguns até que nem bebiam. A vida é assim mesmo, repetia ele a cada velório. E com a língua enrolada.
Tipos que não se viam eram mendigos. Talvez pela pobreza do lugar não houvesse espaço para pedintes ou pessoas do tipo. Ou porque muitos beiravam a mendicância que parecia não haver ninguém tão inferior.
Voltemos ao Lamparina. Ele merece um destaque pelo seu jeito despojado e diferente. Era tido como uma inteligência rara. Tão rara que ninguém entendia. Os mais ignorantes o tiravam como louco e os mais cultos (se é que existia alguém com este título naquele lugar) o chamavam de visionário. Vestia-se sempre de verde ou com roupas camufladas. Não se sabe onde conseguia algumas jaquetas parecidas com as usadas no exército. Também usava coturnos amarrados até os joelhos. Sempre, fosse frio ou calor. Nunca se viu sua cabeça, pois usava uma boina, jogada meio de lado à La Che Guevara, que nunca lhe abandonou. Tinha pensamentos diferenciados, pregava a união para a força. Cruzava os dois dedos indicadores em “X” e falava em socialismo. Foice e martelo, união de camponês com trabalhador. Quem ouvia nem tinha idéia do que ele estava falando. Sabia ler e já devia ter lido pelo menos uns cem livros durante a vida. Dizia que era dele um texto que fora escrito em letras garrafais em um papel meio vegetal que mais parecia um mapa de tesouro antigo e lia vez por outra aos demais. Imitava uma corneta, fazia o sinal de continência e sacava do bolso o velho papel. Com a mão direita colada ao peito e a esquerda segurando o tal papel, proferia em tom de general:
“Eu tenho o direito de fazer comigo
Tudo o que vier na mente
Posso correr grande perigo
Mas a vida é minha, aceite
O que é bom para você
Pode ser péssimo para mim
Então me deixe à mercê
De mim mesmo, sim?
A liberdade é poder
Poder é sempre ter
Vontade de fazer ou não fazer
Sem ninguém se intrometer
Pago o preço deste ato, enfim
Pois acredito que estamos agora
Entre o começo e o fim
Tanto faz ficar ou ir embora”
Fora sempre um isolado dos demais, achava que só ele e Deus poderiam tudo. Quem sabe Deus, pois ele foi visto última vez, próximo ao lago. Hoje moram três pessoas na casa que morava e ela está em ruínas.
Destacava-se entre as demais uma pequena família, pai, mãe e um único filho que moravam numa casa verde. Eram os únicos negros da região. Não que os outros fossem brancos, já que todos tinham a pele muito judiada pelo sol. Vez por outra estava o pai em cima do telhado consertando uma ou outra telha. E tinham um cercadinho onde criavam galinhas (havia mais pintinhos que propriamente galinhas). Só comiam algumas quando estavam próximas de morrer ou meio doentes para não perder os ovos. Mas demorava, tinha galinha que quase atendia pelo nome.
Todas as tardes ouviam-se os gritos da mãe, pontualmente às dezessete e trinta:
- Venha tato! Hora de tomar banho e jantar! Já está escurecendo!
E serelepe vinha aquele mirrado menino, pernas meio tortas e finas, silhueta franzina, cabelos encaracolados e lindos olhos grandes e cor de mel, que não deixavam de ver nada que se movimentasse a quilômetros, respondendo:
- “Tô” indo!! “Tô” indo!! “Tô” indo!! Tanto gritava, tanto corria. Dava para reconhecê-lo de longe.
Meio sorriso no rosto, a mãe, dona Nena, conhecida lavadeira de roupas da região, fazia (ou tentava fazer) cara de brava:
- Seu pai já tá chegando, moleque! Corre pra se banhar!
E iam-se os dias, um após o outro. Mas, em um deles qualquer, já sentados à mesa e com aquela saborosa (e muito simples) comida servida, à espera do pai que havia parado no bar (apenas para tomar uma cerveja e tirar uma satisfação com sei lá quem que comentou no vilarejo dia anterior que quando ele saia de casa pra trabalhar outro chegava para ficar com sua esposa) e ouvem gritos de desespero. Assustados, mãe e filho correm para fora ver o que teria acontecido. O pior. O pai, esfaqueado, no chão agoniza. Na rua, em frente a sua casa. De número 65.
Tato, nascido José Aristides Gouveia Neto e sido registrado só um tempinho depois, arranca sua camisa e tenta conter o sangue que já escorre na terra batida, quase vermelha, da rua sem asfalto.
- Pai! Calma! Vamos te ajudar, por favor, não morre... Por favor, não morre! Angustiado e prevendo o inevitável, grita o menino de apenas 10 anos...
A única resposta que conseguiu ver nos olhos do pai foi meia lágrima, que insistia em ficar paralisada no canto esquerdo do também olho esquerdo. A boca entreaberta como quem queria dizer algo era mais muda que o silêncio da mãe que, ao lado do filho assistia toda aquela cena sem conseguir ter sequer uma reação, além da fraqueza nas pernas.
Era sexta feira. Datava sete do sete. O ano não faz lembrar, apenas que era um ano par. Aquele que sempre era o dia dos mais felizes para o garoto, pois sabia que o pai, que não trabalhava aos finais de semana, jogaria bola ou iria pescar com ele. Era o último dia de trabalho da semana. Nunca imaginou que seria o último dia da vida de seu pai. Maldito sete de julho que seria lembrado por toda a sua vida. A esta idade ele já escrevia aquele que seria o seu primeiro desabafo:
“Os números ímpares sempre me deixam feliz
Mas tem um sete que me apavora
Deixa-me triste, pensativo, por um triz
Daí eu fico só e choro. Ele vai embora
O sete que me faz ter receio
É um sete, duplo, quase insano
Vem com uma barra no meio
E aparece uma vez só por ano
Ele me prende dentro de um sentimento
Faz-me contar as horas, até no leito
Faz-me relembrar tudo até o momento
E arrepender-me do que eu não tenha feito”
Mas aquela sexta foi somente pra ficar na história. Como o avô que morrera de forma semelhante onze anos antes. Não conheceu o neto que levou o seu nome. Mas sabia, e bem, a pobreza em que viveriam.
Os motivos pouco interessavam ao menino, pois o principal ele já havia perdido. E não era o pai, era a fé. A fé que reconquistou anos depois quando a mãe voltou do hospital após o segundo infarto.
E a sexta feira tornou-se o dia mais indesejável de sua vida. Tudo bem que pai jogara bola com ele seis ou sete vezes, outro tanto destes levou-o consigo ao lago para pescar. Mas o que valia a pena era a expectativa que a qualquer momento aquilo poderia acontecer de novo. Mas agora não, nunca mais ia acontecer.
- Quando crescer eu quero ter só um filho também, mas todos os finais de semana nós nos divertiremos. Confabulava à mãe com tom normal. Sabia, porém, que a pobre senhora surrada pela vida e aparentando vinte anos a mais que realmente tinha, nada podia fazer. Nem que ela jogasse bola. Nem que ela pescasse. Mas poderia ouvir os seus desabafos e sonhos. E nunca iria desanimá-lo. Nunca.
Os meses foram se passando, dona Nena nem tinha mais que chamá-lo nos finais de tarde, pois quando o sol ia se pondo rapidamente Tato se recolhia para ficar junto à mãe. Era tudo o que restara!
Os pratos estavam a cada dia, mais desgastados e com algumas trincas, faltando pequenos pedaços ao redor. Mas o triste mesmo era que a fome aumentava inversamente proporcional a falta de comida.
- Meu filho. Tato de Deus, não to mais conseguindo lavar as roupas como antes... Não sei o que acontece, minha coluna não me deixa ficar de pé. Prometo que sábado teremos pelo menos um pedaço de carne para dividir. É dia de receber o mês da lavagem de roupa do time de futebol.
- Liga não, mãe. O importante é que estamos juntos. E eu nem estou com muita fome! Respondeu ele sem levantar os olhos. E pensou:
- Quando eu crescer vou ser médico. Vou salvar todas as pessoas que precisarem. Fazer o que não fizeram pelo meu pai. E darei uma vida muito boa a minha mãe.
Susto mesmo foi quando a mãe, lavando a pequena quantidade de louça do jantar (dois pratos, dois garfos, uma faca e uma panela meio amassada e sem cabo) murmurou segundos depois:
- Gostaria de te ver formado médico! Seu pai disse uma vez, no dia que estava saindo com você do hospital, que eu estava carregando nos braços o futuro médico daquele lugar. Brinquei até com ele se já tinha visto um médico negro e ele riu até chegar do outro lado da rua. E foi pulando feito um doido, coisa que era da personalidade dele, tão brincalhão... Não fosse a mala pesada que ele carregava, com as roupas doadas pelas enfermeiras, ele até teria te carregado um pouco.
E continuou no mesmo tom de voz, aparentando uma nostalgia e com um tímido sorriso:
- Pena que o hospital fechou logo depois. Mas existem muitos hospitais por ai, e muita gente precisando ser tratada.
Complementou olhando para o outro lado da rua pela janela sem vidros, mas com uma cortina de flores que chegava a encostar na pia molhada.
A meia lágrima que tempos antes havia secado no rosto do pai, à espera de socorro, desceu lentamente pelo rosto do menino. Ao redor, os pingos que caiam por entre as telhas mal colocadas da velha casa eram as testemunhas.
- Você vai ver mãe! Vou ser médico! Vou ser médico! Esbravejou ele com os olhos esbugalhados. E saiu pulando pela casa, imitando o pai em tom de muita descontração para alegrar a mãe, que parecia que ia chorar. E talvez tenha chorado, quieta, no seu canto.
- E vou cuidar de quem precisa de graça, não vou cobrar nada! Profetizou.
Algumas vezes Tato foi visto cometendo pequenos delitos, diziam os vizinhos. Mas a mãe jamais acreditou em nenhum destes boatos. Sabia que o filho trabalhava duro. Sabia que ganhava muito pouco, mas era um dinheiro honesto. Em três anos de trabalho ele até conseguiu uma vez fazer uma festa. Modesta, tudo bem, mas afinal era só o que ele podia. E era só ele, a mãe e alguns vizinhos.
A vida foi continuando, cada vez mais difícil e a mãe, cada vez, mais doente.
A vida foi continuando, cada vez mais difícil e a mãe muito mais doente.
A vida foi continuando, cada vez mais difícil e já sem a mãe.
Os anos que se sucederam não tiveram testemunhas. E Tato havia decidido, no dia do enterro da mãe, que não importaria o que ele tivesse de fazer, tudo seria justificado quando ele estivesse trabalhando como médico para realizar o sonho dela.
NO HOSPITAL
O som do desfibrilador automático trazia à sua memória o dia em que ouviu aquilo pela primeira vez. Na época não viu nada, pois as enfermeiras o barraram na entrada do quarto devido ao estado grave da mãe em seu terceiro infarto. Mas o som era imensamente terrível para seus ouvidos.
- Temos que salvar este homem! Corram com o medicamento, vejam a pressão! Gritava ele.
- Sim doutor! Respondeu prontamente uma enfermeira com os cabelos lisos, mas escondidos, deixando à mostra somente alguns fios louros.
Doze horas depois Tato, ou melhor, o Dr. Gouveia (ninguém sabia ao certo porque Dr. Gouveia e não Dr. José ou Dr. Aristídes, mas imaginava-se que era uma homenagem aos pais, pois além de sobrenome do pai e avô, o Gouveia lembrava a mãe que se chamava Gorete. Maria Gorete Silva Gouveia.) entra na sala de recuperação e encontra seu paciente sonolento, meio zonzo ainda.
- Você escapou hoje da morte por um fio! Agradeça a Deus, a minha mãe morreu num infarto mais fraco que este seu. Bom, era o terceiro dela, vamos falar a verdade. Mas ela nem fumava! E você pelo que me contaram seus filhos, fuma muito.
Falou ele em tom seco. E completou:
- Quer ver seus filhos crescerem? Se formarem? Então pare de fumar imediatamente. Antes que seja tarde demais. Cuide da alimentação e passe a se exercitar. Para se ter uma vida longa necessita-se que ela seja saudável. E nada de sedentarismo!
O moço (tinha apenas quarenta e poucos anos) ficou um tanto embasbacado e confuso, pois acabara de ver a morte bem perto e tudo aquilo era muito para a sua cabeça. Mas pensou em câmera lenta:
- Vou seguir o conselho do médico, acho que escapei por pouco mesmo. Ele é médico e sabe o que está dizendo...
Era de se duvidar que alguém se atrevesse a não seguir o conselho do Dr. Gouveia visto pelo seu porte físico, seus dois metros e pouco e seu sapato tamanho quarenta e quatro! Um negro alto, de cabelos bem crespos e curtos, com uma pequena costeleta e barba feita como no exército. As moças que passavam pelo hospital seguiam-no com os olhos onde quer que ele fosse. E dizem que seu perfume era algo simplesmente irresistível e natural. Tinha especial atração pela cor azul, cor esta que sempre estaria usando uma peça, fosse a camisa, fosse a calça ou outro item qualquer.
- O senhor é casado? Tem filhos? Perguntou o paciente falando com certa dificuldade e um pouco baixo.
- Não. Pretendo me casar e ter um filho apenas, mas a profissão não me deu tempo ainda de cuidar da minha vida pessoal. Nem namorada eu tenho atualmente! Dedico quase vinte horas por dia nesta vida. Além deste hospital ainda dou plantão em mais um do outro lado da cidade. E atendo em minha clínica particular os pacientes que não tem condição de pagar. E sabe como é, não é? Tem fila todos os dias.
- Puxa. Murmurou o moribundo. Que bom coração. O senhor deve ter vindo de uma família nobre! Se formar em medicina hoje em dia só os ricos conseguem.
O Dr. ficou alguns segundos mudo, olhando para o paciente fixamente e respondeu como quem não deu muita atenção à pergunta:
- Sim, minha família era muito nobre! Éramos muito ricos, de saúde e amor.
O pobre homem mais prá lá que pra cá até tentou puxar mais algum assunto, mas sua condição física não permitia se esforçar, nem pra falar. E até porque, sem perceber o Dr. Já havia saído correndo para uma emergência que havia acabado de dar entrada no hospital.
Já se passavam mais de dois anos trabalhando como médico naquele mesmo hospital. As enfermeiras, as atendentes, as faxineiras e até os seguranças, todos gostavam dele. Despertava até certo ciúme (no bom sentido da palavra, pois era um homem bom) no diretor do hospital, o Dr. Moreira. Senhor muito educado, falava sempre em tom baixo e grave, nunca se excedia.
Nunca havia viajado para lugar nenhum, o hospital era seu vício. Não largava nem com reza. Lembrava algumas vezes, pensando no Dr. Gouveia, entre um charuto Cubano e outro:
- E pensar que estávamos a meses tentando contratar um médico aqui para o hospital e não achávamos ninguém ideal. E os que aceitavam saiam em menos de um mês. Quando me apareceu este homem, em meio à entrevista ele sai correndo e vai atender um senhor que entrou esfaqueado, praticamente morto. Não fosse ele o homem não estaria vivo hoje, com saúde e trabalhando aqui no hospital. Um dos meus melhores funcionários. Deve a vida ao Dr. Gouveia. Depois desta ação nem pedi seus documentos, só perguntei: Você começa quando? E ele com aquela cara de assustado, típica de quem está começando na profissão, me deu a mão, trêmula, dizendo que poderia ser naquele momento mesmo. Nem liguei de ter me abraçado com a camisa respingada de sangue, afinal, apesar de termos nos conhecido naquele momento parecia que éramos amigos de longa data. Não me lembro nem de ter visto onde ele se formou. Mas isso nem era importante. Eu realmente deveria conhecê-lo de algum lugar...
E acendeu mais um charuto, chamando a faxineira pelo telefone para novamente esvaziar o seu cinzeiro. Era a terceira vez naquela manhã. E sempre depois que tossia (e tossia muito) emendava com a frase: “O Fidel tá me matando!”
O Dr. Gouveia foi a pessoa que mais chorou no dia do enterro do Dr. Moreira, vítima também de um infarto fulminante enquanto dormia. Os infartos o perseguiam.
A CLÍNICA
A sua casa era praticamente a extensão de um quarto de hospital. A clínica era na frente. Poucas coisas tinham no hospital que não havia na casa ou na clínica dele. Até um quarto de hóspedes para os acompanhantes, bem mais lá no fundo que era um antigo quarto de empregada. Era uma casa alugada ainda, mas iria ser comprada assim que possível.
Dia crítico aquele. Bastante gente pra atender, como de costume. Mas se tinha uma coisa que o Dr. Gouveia não gostava era de ver criança doente. Fosse um resfriado, uma pneumonia ainda ia. Por várias vezes ele passou noites em claro ao lado de crianças enfermas, até em suas próprias casas. Uma vez hospedou por cinco dias o pai, mãe e um garoto de nove anos que estava em tratamento e não havia vaga no hospital. O garoto tratava de um câncer raro e ele sabia que não havia nenhuma chance dele sobreviver, mas disse para si mesmo:
- Enquanto este garoto viver eu farei de tudo para tentar salvá-lo. E para amenizar as suas dores.
O garoto sofreu pouco, morreu quinze dias após dar entrada no hospital. Aquilo deixou uma marca tão grande em sua cabeça, que todos os dias ele pensava no sofrimento da família, mesmo tendo feito tudo o que estava ao seu alcance. Mesmo sabendo que era impossível.
E chega uma mãe em desespero com uma criança nos braços que acabara de ser atropelada na rua ao lado. Mais que depressa o Dr. Gouveia ligou para o hospital solicitando que a equipe ficasse de prontidão que em breve ele chegaria lá com a vítima, logo após fazer os primeiros socorros.
E assim foi feito, as enfermeiras o esperavam de prontidão e o garoto teve que ser operado de imediato. Foram várias cirurgias devido à gravidade da situação. O Dr. Gouveia só saiu do hospital quando o quadro do garoto já era estável e o relógio marcava 06h45. Já havia amanhecido. Tudo correu bem e em alguns dias o garoto já recebera alta, algo inacreditável se comparado ao estado na entrada. Mas além de gostar e saber tratar de gente, o Dr. Gouveia tinha uma fé muito grande. Poucas foram às vezes que desanimou ou perdeu a fé. E isto o acompanhou sempre.
A dona Fernanda, enfermeira lá do hospital que o Dr. Gouveia trabalhava também dava expediente dia sim, dia não na clínica, como trabalho voluntário, seguindo o exemplo do próprio Dr. Gouveia. É certo que a proximidade se deu junto ao interesse pelo tal Dr., vindo de não sei onde, com um passado obscuro e um enorme coração. Isto causava interesse em muitas moças. Em quase todas do hospital, inclusive.
Mas a Fernanda era simplesmente a mais bela. Pelo seu uniforme dava pra ver (ou imaginar) suas curvas provocantes. Quando tirava seu avental branco e sacudia a cabeça como quem havia saído do banho, poucos eram os homens que não fitavam a sua beleza. E assim foi também com o Dr. Gouveia.
A simetria de seu corpo fazia pensar que fora feita por partes. Todas em tamanhos calculados e desenhadas com contornos arredondados. A sua pele lembrava um pêssego, fosse pelo tom rosado, fosse pela maciez. Mas poucos sentiram esta maciez.
Entre as sessões de consultas, idas e vindas do hospital sempre achavam um tempinho, pequeno que fosse, para tomar um café juntos. Tudo muito sério. O Dr. Gouveia era um homem muito respeitador e valorizava muito a palavra família. Jamais usou seu porte atlético ou sua beleza incomum para se aproveitar de qualquer garota. Talvez por isso tivesse namorado apenas uma vez.
Mas desta vez seria diferente. Sentia algo muito forte dentro do peito. Uma vontade enorme de estar ao lado dela, de ficar ao lado dela sempre. Era quase uma necessidade. Ele havia descoberto que duas coisas eram muito importantes na sua vida: Praticar a medicina e Fernanda. E começou a galantear a moça constantemente. Eram flores, presentes, bombons. E claro, rapidamente estavam juntos. Era assim que tinha que ser.
Não foram poucas noites que ele perdeu suas poucas duas ou três horas de sono para escrever poesias para a amada...
“Encantadora, autêntica mini flor
Usa o orvalho pra se maquiar
Desponta como sinônimo de amor
Nada é capaz de te ofuscar
Não te podo para que não cresça
Tua beleza pequena e imensa
Faz com que tudo aconteça
Do nascer do sol até a lua intensa
Teu perfume é encantador
Tuas cores vêm do arco íris
Nem teus espinhos me causam dor
Tão sublime, és uma atriz
Meus olhos não param de te seguir
Nem que tuas pétalas o vento leve
Pois muito em breve, há de surgir
Num toque de seda, tua nova pele
Tiras-me tudo, sem compaixão
Tiraste-me a falta de inspiração
Tiraste-me toda a inquietação
Tiraste-me toda a falta de emoção
Ainda que seja somente um botão...
...Enfeitiçou-me, fez-me perder a razão”
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“Incansável na suavidade
Encantadora na beleza
Suave na agilidade
Sedutora na leveza
O soar imperceptível
Aliado ao balançar ágil
Nos deixa visível
A delicadeza sutil
Azul para que eu possa adorar
A cor em toda sua plenitude
Sua beleza atrai meu olhar
E sua grandeza, minha atitude
Alio atitude a altitude
Que alcança com seu vôo
Por vezes vai tão longe, me ilude
Por outras foge ao meu olho
E ainda quando está
Em metamorfose perfeita
Pode me considerar
Admirador de sua receita
Acredito que me traz sorte
Ainda que seja superstição
Além de me brindar com seu porte
Ou serão os olhos do meu coração?”
E foram tantas e tantas outras que certa vez pensou até em publicar um livro em homenagem a sua amada. Tudo caminhou tranqüilo naquela que era a melhor fase de sua vida.
- Que felicidade, enfim! Chega de perdas! Chega de desgostos e desilusões. Chega de sofrimento!
E com mais garra ele tratava de seus pacientes, agora que já ganhava um bom salário nos hospitais, já havia comprado a casa, que servia também de clínica e planejava comprar uma maior. “já era tempo!” Dizia ele enfático.
O AMOR
Logo após o casamento (haviam completado quatro anos juntos, entre namoro e noivado), que foi dos mais belos já vistos, mas com a simplicidade típica dele, se depararam com uma situação muito estranha.
Fernanda fora demitida do hospital pelo diretor novo que assumiu por conta da morte do Dr. Moreira. Antes o cargo ficara interinamente com o próprio Dr. Gouveia, mas por sua vida corrida jamais conseguira dedicar um dia inteiro à função.
Este era o Dr. Waldomiro, que diferentemente aos anteriores, era advogado e não médico. Mas porque um advogado na diretoria de um hospital?
- Para alavancar os resultados! Para fazer isto dar lucro, nós não estamos nessa por amor! Estamos por dinheiro! Dizia ele.
O Dr. Gouveia nunca simpatizou com ele, mas como mal se encontravam pela falta de tempo e como o novo diretor considerava o Dr. Gouveia uma fonte de dinheiro, sem problemas aparentes.
- Me deixa no meu canto que te deixo no seu... Cada um com sua ideologia! Filosofava Gouveia.
Mas agora algo estava realmente errado. Algo não estava batendo. Porque Fernanda havia sido demitida? Era a melhor profissional que conhecera, brincava ele, às vezes, dizendo que nem médico mesmo ele não era. Que ela era mais médica que ele. Tão talentosa e tão profissional.
Mas ela insistia sempre em dizer não saber o motivo.
Mais ou menos uns trinta dias do ocorrido e Fernanda trabalhando em tempo integral somente na clínica, um carro branco pára em sua porta. Era da Floricultura “Vejo flores em você!” uma das mais tradicionais da cidade. Diziam que as flores de lá eram de ouro, tal seu preço. E o entregador todo bem vestido com um uniforme impecável, chama, em tom de voz muito afinado:
- Sra. Fernanda?
- Sim, sou eu! Respondeu ela timidamente.
- São para a senhora! Posso entrar?
- Sim disse ela!
Ela fez cara de curiosa, mas, com a certeza que era mais uma das vezes que seu marido, um eterno apaixonado por flores, havia lhe mandado.
- Este Gouveia! Não tem mais onde colocar flores aqui em casa! Precisamos de uma casa maior!
- E o entregador deixa um cartão, meio em tom acinzentado e escrito com uma letra muito bonita. Diferente da letra do marido, que ela por vezes tentou ler, sem sequer entender os garranchos dele.
“As flores em ti estão
Estou nelas, sou girassol
Meus olhos te seguirão
Como o girassol ao sol”
Estranheza pairou no ar. Se não era do Gouveia de quem haveria de ser?
Sem pestanejar, guardou o bilhete e as flores, pois não saberia o que dizer ao marido. Mas a situação foi se complicando com a chegada das outras oito entregas. E no último bilhete então veio a assinatura do cidadão:
“Preciso muito falar contigo. Temos algo a finalizar. Aguardo seu retorno ainda hoje, sem falta.
Waldomiro.”
Bom, é claro que o motivo da demissão ela havia escondido do marido com medo da reação dele. Eram as constantes investidas do diretor para com a funcionária. Uma vez até tomaram uma bebida juntos, quando ainda era noiva, mas não passou muito disto.
Mas ele insistia cada vez mais e mais. E ela se esquivava como podia. Até ser demitida. Preferiu assim. Era o melhor para todos. Passou, lentamente, pela sua cabeça a vida que poderia ter casando-se com o Dr. Waldomiro, pois ele era um homem muito rico e poderoso.
Só no hospital ele ganhava sete vezes mais que o salário do seu marido. Fora os dois escritórios de advocacia que comandava e só trabalhavam para gente importante e influente. Tinha até uns casos de políticos que recorriam a ele.
Morava numa mansão que para percorrer toda só se fosse de carro. Tinha três motoristas, um só para isto e aquilo, outro só para acompanhá-lo e um praticamente de reserva. Era muito dinheiro.
Separado por três vezes, tinha um filho de cada casamento, mas todos moravam e estudavam fora. As ex-mulheres eram chiques e abusavam dos gastos na conta do porco gordo. E mesmo assim não lhe faltavam mulheres! Mas ele queria Fernanda. Era quase uma alucinação.
E o marido, coitado. Tinha uma vida estável, mas gastava muito com o projeto da clínica gratuita para os carentes. Às vezes dava um pouco de raiva. Como aquela vez em que cancelaram uma viagem ao exterior para usar o dinheiro com remédios contra câncer. E a pessoa nem resistiu. Mas tinha que ser assim. “Seu marido dizia que o pouco com Deus era muito e o muito sem Deus era nada”.
E ela sempre o advertia: “O bom é o muito com Deus!”
Até por curiosidade ela ligou e marcaram de se encontrar. Ela e Dr. Waldomiro. Tudo as escondidas do marido, pois este jamais aceitaria qualquer contato dela com o porco gordo.
Os assuntos que trataram não serão aqui colocados, pois são contra a ética e a família, mas fizeram com que ela passasse a se encontrar mais vezes com ele, sempre às escondidas. Não se sabe também se aconteceu algo entre eles durante os três meses em que se viam mais de uma vez por semana. Ela estava fascinada com aquele tipo de vida.
IRONIA
As coisas não estavam indo bem na clínica. Dr. Gouveia não dava mais conta da quantidade de atendimentos e quase não dormia. Perdera a ajuda da esposa. Com tanto trabalho acabou nem se dando conta que a esposa estava ficando cada vez mais distante.
Ele perdia cada vez mais contra a morte. E era assim que deveria ser, pois ele não era Deus.
Arrasado, com mais a perda de duas pessoas na semana anterior, que ele julgava fácil de tratar, veio a primeira crise de depressão de verdade em sua vida. Normalmente ele escrevia pouco devido a falta de tempo, mas era só por a mão na cabeça, um papel e uma caneta e lá saia uma poesia. Geralmente linda. Geralmente para a sua linda. Mas notou que a sua caneta o traia. Escrevia palavras ásperas com mais facilidade que escrevia palavras bonitas. Só se deu conta de verdade quando leu e releu várias vezes o seu último texto (nesta altura do campeonato ele não citava mais nenhum escrito seu como sendo poesia. Poesia era coisa boa, dizia ele.):
“O relógio não pára
Olha para mim palpita, pinta e borda
Desperta, mas só as vezes
E fica quieto sempre que não dou corda
De vez em quando me ignora
Finjo não ouvir seu barulho
Mas o silêncio me apavora
Prefiro ouvir seu tic tac no escuro
Quando quer ele brilha a noite
Quando eu quero desperta para mim
Mas nós dois não queremos hoje
Que ele ande tão rápido assim”
Fernanda que estava meio ausente revela ao marido a decisão de desistir da carreira de enfermeira, abandonando a clínica definitivamente, o que ela já vinha fazendo em doses homeopáticas. E parece que isto a trouxe sorte!
Conseguiu um emprego alguns dias depois, num escritório de advocacia famoso.
Iria trabalhar poucas horas, faria toda a coordenação do escritório e veja só que sorte imensa! Ganharia mais que o dobro do trabalho anterior!
E por força da situação ela almoçava todos os dias com o porco gordo. E olhe que ele não é tão mal quanto pintam por ai! Tem muita gente que tem inveja dele! Por isso falam mal. Defende ela.
O Dr. Gouveia começa ouvir, dia após dia sobre a vida do porco gordo. Aliás, do Dr. Waldomiro, chamá-lo de porco gordo era um absurdo, segundo Fernanda.
- Você sabia que o Dr. Waldomiro custeou o estudo dos três filhos na Europa? E que todos falam quatro línguas? E que sua ex-esposa que ganha menos recebe o dobro do seu salário só de pensão?
- V-I-T-A-L-Í-C-I-A!!! Complementou em alto e bom som.
- Não! Nossa, deve ser muito caro... Bom, dinheiro o porco g... o Dr. Waldomiro tem. E muito!
- Lá vem você de novo agredindo uma pessoa que nunca te fez nada! Te manteve no hospital, nunca te negou nenhum pedido para os pacientes. Até doou vários remédios para a clínica, lembra?
- Lembro. Aqueles que estavam próximos de vencer a uma semana da auditoria federal. Joguei-os fora. Acha que daria a algum paciente?
- Você é louco!! Por isso não cresce na vida. Pobre vive comendo merda, pobre não tem direito. Tem que receber o que derem e pronto. Ou que morram. Por mim podiam tirar a pele deles pra fazer bolsa.
Neste momento foi que a realidade realmente se fez notar para o Dr. Gouveia. Quem era aquela pessoa que estava a sua frente? Aquela que o ajudou desde o início com o projeto da clínica? Aquela que passou noites sem dormir pintando as paredes da casa que iam morar?
- Meu Deus. O que aconteceu com você? Onde está a enfermeira tímida e simpática, de bom coração e honesta que eu conheci há cinco anos atrás?
- Morreu. Morreu e está bem enterrada. Junto com todos os pacientes que você não conseguiu salvar. Eu não vou suportar ver todas as minhas amigas viajando para fazer compras no exterior, usando a última moda, freqüentando as melhores academias e restaurantes e ficar vendo doentes e gente feia na minha frente. Cansei.
- E tem mais. Estou sim trabalhando na empresa do Dr. Waldomiro e isto não tem nada a ver. É a minha carreira e você não tem nada com isso. Nós não temos nada, antes que você pergunte. Só aprendi a admirar o bom profissional e empreendedor que o Waldomiro é. Você reparou na reforma do hospital? Sabe que aquele piso por onde andamos é Italiano? Pois é, nem deve ter reparado. Aposto que nem percebeu como as macas que empurram correm livremente pelo piso agora. Coisa boa. É disto que estou falando. É disto que estou precisando.
O Dr. Gouveia apenas levantou a sobrancelha, coisa que ele fazia até meio engraçado, pois subia uma de cada vez, como se tivesse algo a perguntar. E tinha, muito a perguntar. Só que naquele instante ficou com medo do que poderia ouvir, tal a crueldade que fora tratado. Foi inevitável tentar não comparar a punhalada que acabara de levar à punhalada que levou o pai naquela sexta feira. Sete do sete.
E como se nada tivesse acontecido, pediu para irem embora, pois estava deveras cansado.
Os dois mal se falaram nas semanas seguintes e Gouveia voltou a escrever. E leu em voz baixa logo após terminar, com certa surpresa do que havia escrito:
“Difícil é pensar em você e você pensar em outro
Não fazer amor com você e ter que dar o troco
Ter as sobras que me deixam de você
E ainda ter fé que vai mudar, para que?
As coisas do mundo são inteiros
Você já viu meio homem, meio dinheiro?
Se não tenho cem por cento é porque não mereço
Mas o que fazer, se outro vem, faz e eu não aconteço?
Estarei pensando em você e dividindo com alguém
Sei que ele também deve pensar, às vezes até além
Então fico no meu canto, torcendo para ter um espaço
E este dia chegará finalmente, eu acho
Aí todas as portas se abrirão
Tornaremo-nos um ser só então
Eu saberei tudo da sua vida sempre
E você só saberá o que já sabe, pois sou transparente
Teremos um lar, uma mesa de jantar
Poderemos almoçar, deitar para descansar
Ter o sono dos triunfantes
E viver a vida como dois amado-amantes”
Ele lia e relia aquilo. Parecia que outra pessoa havia criado aquilo. E entregue a ele.
DEPRESSÃO
Seu quadro psicológico só faz piorar. Tem mais sono e atende só dois dias por semana na clínica. Perde seu tempo livre perambulando ver se encontra a mulher com alguém. E parece que torce para que isto aconteça. Mas nunca conseguiu ver nem provar nada. A única certeza das traições está na sua cabeça. Ele já sabe de cor as placas dos seis carros do Dr. Waldomiro, conhece os três motoristas, tem um que é até um pouco amigo dele. Manter os inimigos por perto pode ser interessante. Engordou vinte quilos em dez meses. E parecia que não pararia mais de engordar...
Seus uniformes brancos ficaram engraçados! Não fechavam na frente, apertavam nas costas...
Nem se faz menções daquele médico todo esguio e alinhado, com roupas simples, mas de bom gosto e sempre limpas e perfumadas. Nunca se viu o Dr. Gouveia usar uma camisa que não parecesse engomada. Nunca se viu usar uma camisa com um amassado.
Os seus aventais eram lavados a mão, por Fernanda. Não sei se era o carinho que ela depositava nas roupas ou o cheiro das flores que recebia que perfumava tudo que ela tocasse. Isto era passado.
Um dia qualquer chegou a ser confundido com um paciente, tal o mal estado que se encontrava. Barba por fazer. Ninguém havia visto tal cena, jamais.
Quanto mais escrevia, mais se achava. Quanto mais se achava, mais se perdia.
Fora demitido do outro hospital, mas como era tão longe mesmo, sem problemas. Agora que a clínica estava desativada poderia descansar mais com um emprego só. E o dinheiro que ganhava ainda dava para manter a casa, sossegado. Afinal a esposa já estava ganhando bem mais que ele naquele momento, então ele havia de se preocupar apenas com ele e com a casa. Ela se virava de boa. Aliás, muito de boa. Uma noite ele achou uma nota fiscal num canto da sala em que o preço pago por um sapato era metade do salário dele, mas imaginou:
- Deve ser de alguém que a Fernanda pegou sem querer... Ela não compraria algo tão caro. Por curiosidade, mas com a certeza de que estava enganado, foi até o closet (sim, parte da clínica havia dado espaço a um closet, muito mais útil na casa) percebendo que jamais saberia qual era o sapato no meio de mais de cento e vinte pares. Ficou muito chocado. Foi o dia da primeira grande discussão sob efeito do álcool.
Álcool que passou a consumir religiosamente, pois teve a certeza que realmente não fazia mal, apenas o deixava mais calmo. E como ele vivia nervoso! Cada vez mais nervoso e cada vez mais álcool.
Não fumava todos os dias, só quando bebia. Mas bebia todos os dias.
Não chegou a perder muitos dias de trabalho por causa da bebida, mas foi impedido de realizar diversas cirurgias, por cautela.
Coincidiram as suas férias (forçadas pelo diretor, Dr. Waldomiro) com a primeira viagem a trabalho de sua exposa. O X vai ser usado a partir deste momento na palavra esposa propositalmente, porque a partir desta viagem (misteriosamente o Dr. Waldomiro teve que se afastar do hospital para resolver problemas particulares no mesmo período) a separação será apenas uma condição de jogada de interesses e tempo.
Gouveia aproveitou os dias em que ficou sozinho para tentar a primeira desintoxicação do álcool, como uma forma de retomar tudo que estava prestes a perder (ele não sabia que já havia perdido a exposa quando completou sete meses de casamento). Pensou até em pegar a exposa e ir morar no exterior, apesar dele não falar inglês, ela dominava a língua desde os tempos de adolescente.
A viagem coincidiu com a data de aniversário de casamento deles. Dois anos. Mas foi normal ela ter esquecido, com esta correria da viagem, muito trabalho... Um vinho pra comemorar, já que Gouveia havia conseguido se livrar do álcool por três dias! Nem precisaria mais de ajuda, tinha o domínio sobre a coisa.
Bebeu um pouco a mais (quatro garrafas de vinho, que fazia bem ao coração) no dia em que a exposa chegou de viagem com uma mala de compras maior que ela e quem a trouxe para casa foi Moura, aquele motorista meio reserva do P... Dr. Waldomiro. Mas naquela mala havia um presente para ele!
Uma camiseta branca. Não tinha nada escrito, mas ele preferia assim! Já imaginou uma frase em inglês “eu sou idiota”? Falou ele para ele mesmo. E a depressão deu uma trégua. Momentaneamente. Estava percebendo que poderia dominar a situação depressiva, só não sabia quanto tempo iria demorar a conseguir isso. E se iria dar tempo.
E dela vieram mais mentiras, mentiras e mentiras desde então. Mas Gouveia acreditava em tudo que a exposa falasse. Afinal, ele nunca conseguira provas reais de nada contrário. E se mantinha conectado ao álcool.
Ele foi convidado para uma reunião com o Dr. Waldomiro que avisou estranhar não vê-lo mais circular pelo hospital correndo, como de costume. Ele corria todos os dias, mas era apenas para entrar, devido ao constante atraso pela manhã. E aquele dia foi diferente. A passos curtos, como quem caminha à própria forca, ele adentrou a sala. Sem muitos rodeios E nem conversa fiada, ele foi demitido. Mas houve uma coisa de ótima nisso. Ele percebeu que a sexta feira não era mais o pior dia da sua vida, uma segunda feira também poderia ser. Aliás, todos os dias poderiam ser piores que o anterior. E seriam.
EXPOSA
Como já era previsível, a exposa chamou-o para conversar, mais ou menos como fizera um mês antes o ex-patrão. E como boa aluna que foi do Dr. Waldomiro, sem rodeios nem conversa fiada, entrou direto no assunto:
- Quero me separar. Não dá mais.
Falou ela em tom baixo e com ar de coitada, olhando fixamente para uma pétala de rosa que caíra na noite anterior sobre a mesa.
- Tudo bem.
Respondeu ele com o olhar fixo no mesmo ponto. Talvez aquele ponto tenha sido o único que partilharam nos últimos dois anos. E era uma pétala. Que estava morta. Definhando sobre a mesa.
- Você só diz tudo bem?
Não se conformou ela imediatamente.
- Sim, aliás, tudo ótimo. A gente tem que agradecer a Deus quando coisas ruins acontecem na nossa vida.
- Como assim? Agradecer pelas coisas ruins?
- Sim. No lugar de coisas ruins poderiam ser coisas muito ruins. Piores ainda. E sempre pode piorar.
- Bom, então como fazemos? Você sai quando?
- Eu sair? Para onde? E esta casa que sonhei anos até conseguir comprar? Não vou sair! Isto é minha vida inteira!
Ainda sem levantar os olhos ela saiu da sala deixando-o sentado no canto esquerdo da mesa, bem ao lado do vaso com as flores murchas. Caiu mais uma pétala.
Ele nem mesmo chegou a questionar, mas ela passara esta noite fora. E a seguinte, voltando somente na terceira noite.
- Boa noite, disse ela.
- Boa. Sussurrou ele tentando conter com os dedos uma pulsação interminável no canto superior do seu olho direito.
Na mesa havia alguns papéis manuscritos, rabiscados e desenhados. Em um deles, com a ponta toda enrolada feito um papiro, lia-se:
“Nenhum sonho é impossível, mas todos podem ser destruídos.”
Com a cara de sempre ela se retirou da sala. E da casa. E da vida de Gouveia.
DECADÊNCIA
Sem ao menos perceber ele havia engordado monstruosamente. Passava dos cem quilos, fácil. Mas jamais iria se pesar. A perda ligeira e repentina de memória o levou a escrever cada vez mais. Chegava a ser cômico quando escrevia várias páginas e no dia seguinte as lia como se fosse de autoria alheia. Ele ria. Triste mas ria. E por muitos outros dias ele leu repetidamente muitas coisas que havia escrito, sempre com desconfiança de si mesmo e se realmente ele era o autor daquelas coisas estranhas. Coisas do tipo:
“Quem sabe seja hora de ir
Quem sabe valha a pena ceder
Largar tudo e partir?
Esperar o que não vai acontecer?
Estou consumido pela ingratidão
Minha essência se dilui, em vão
Não existe a palavra perdão
Só desperdício e incompreensão
Não consigo escrever direito
Invade-me a solidão
Eu, que quase tudo tenho
Morro por mera ambição
As facas que apunhalam meu ser
Vem da minha própria aquisição
Tomam o meu corpo e meu prazer
E vibram a cada manipulação e traição
“Daí a Cesar o que é de César”
Pensava constantemente no pai. Pensava incessantemente na mãe. Todos os dias, todas as horas. Escreveu assim, como se pedisse socorro a ela:
“Você que me carregou
Além dos nove meses, por muito tempo
Deu-me carinho e me ensinou
A trilhar meu caminho sem sofrimento
Agora depois de anos
Volto a pedir seu colo
Minha cabeça está confusa, estou insano
Não sei mais nada, sou um tolo
Tenho saudades daqueles dias
Em que jantávamos todos à mesa
A felicidade se via, sentia
E eu sonhava, quando crescer assim seja
Mas o mundo mudou de repente
O que era certo virou aparente
O que não prestava está na cara da gente
E nós que éramos bons, viramos indigentes
A magia acabou, viramos pobres mortais
O que era belo, não é mais
O que era singelo, confuso se faz
E a nós? Aqui jaz...”
A casa estava intransitável. Era roupa pra todo canto, uma sujeira só. As panelas que outrora foram tão brilhantes que se espelhava estavam encardidas e queimadas. Ele as usava dia após dia, colocando diferentes coisas pra cozinhar, sem lavar. E comia nas próprias panelas para não sujar os pratos. Sonhou, dias atrás, que estava sentado à mesa com o filho que nunca chegara a ter e Fernanda, seu eterno amor, que era a mãe. A mesa era limpa e farta. A casa nem parecia aquela que habitava. Mas era sonho. E até pra se sonhar com coisas boas tem que ter sorte. Só acontece às vezes...
Escreveu profunda e diretamente na mesa de madeira, com uma faca enferrujada:
“Não adianta promessas se você não acredita em milagres”
Já faltava comida, a água fora cortada semana antes e a energia ele nem lembrava quando “apagou de repente”. Devia ser um fusível, pensou na época.
Mas o que eram aquelas pancadas secas na porta? Seria algum pedinte? Chegou a rir baixinho. E foi atender.
- Pois não!
- Boa tarde. O senhor é José Aristides Gouveia Neto?
- Sim, sou eu. Bom, acho que sim...
- Ok, sou Alec, delegado de polícia. Vim para buscá-lo.
- Como assim? Para onde eu vou? Seja o que for eu não fiz nada! O que tenho que fazer?
- Calma, calma. O Sr. Só tem que me acompanhar. Temos uma denúncia por parte do Dr. Waldomiro e da esposa dele, D. Fernanda que o diploma de médico que o senhor usou por anos é de outra pessoa, que inclusive já havia falecido. E você está sendo responsabilizado pela morte de pelo menos vinte e sete pessoas no hospital, de exercício ilegal da profissão e falsidade ideológica. Podem surgir mais alguns processos novos de outras pessoas que se sentirem lesadas pelo senhor. Tem alguma coisa a dizer?
- Sim... Você disse esposa dele, D. Fernanda?
CADEIA
Nos primeiros dias preso, o Tato, como pediu a todos para chamá-lo, não dormiu. Passou acordado pensando, pensando e pensando. Não disse uma só palavra. Não comeu. Fumou alguns cigarros que um carcereiro trazia, sem muita periodicidade, já que o havia reconhecido (ele tratara de sua mãe gratuitamente até a sua morte, nos tempos da clínica). Seu nome era Galhardo.
Passaram a se falar um pouco, algumas vezes ao dia. E com o passar do tempo se tornaram amigos. Toda a transação da venda da casa, do carro, da separação e divórcio de Fernanda, do pagamento de um advogado e outras coisas de fora da prisão, foram feitas sempre por Galhardo.
Na cadeia escreveu vários textos, todos muito ácidos, mas apenas um ficou na memória, pois o fez na parede certa vez que perguntaram se ele não tinha medo de estar naquele lugar:
“Eu tenho medo
Que não me queira
Que não me deixe
Que não seja besteira
Que não se queixe
Que não tenha coragem
Que não me aceite
Que não siga viagem
Que não se deite
Que não veja o mal
Que não sinta o bem
Que não tenha o sal
Que não seja ninguém
Que não consiga ser feliz
Que não tenha sonho
Que não faça o que fiz
Que não seja risonho
Que não esteja no caminho
Que não tenha a última chance
Que não ande sozinho
Que não cante e dance
Que não tenhas medo”
O álcool sé fez falta nos primeiros meses. Agora, o cigarro não podia faltar. Misteriosamente voltou ao seu peso normal, beirando os sessenta e poucos quilos. Algo natural para a sua altura. A sua barba estava enorme. E um pouco branca. Mas mantinha seus cabelos sempre bem curtos. Estranhamente aparentava mais idade do que realmente tinha, como a mãe.
Ele não sabe ao certo se passou preso cinco ou seis anos e nem direito como é que se deu a sua saída. Também não sabe se vai voltar um dia, pois eram tantos processos que se perdeu. E nunca disse uma palavra em nenhum julgamento, por mais que orientasse o seu advogado, ele sempre resmungava:
- Que seja feita a vontade de Deus. Eu não vou mudar nada. Estou apenas pagando o que eu fiz e se errei, devo pagar. É assim que tem que ser.
RUA
Ele foi para o lugar mais lógico em que um ex preso vai normalmente. Não, não foi à casa de parentes. Ele não tinha parentes. Talvez alguns no nordeste, mas a pobreza em que viveu era tanta que jamais foram à terra natal dos pais. Ouviu certa vez que o pai tinha sete irmãos, mas não tinha idéia nem do nome de nenhum deles. Aliás, mal se lembrava o nome completo do pai, mas tinha uma certeza: parecia com o seu!
Nos três primeiros dias que passou nas ruas se sentiu constrangido em pedir esmolas e roubar foi uma coisa que jamais passou pela sua cabeça. No entanto, sua maior dificuldade foi acostumar a não tomar banho. Sentia muita falta. Mesmo quando já não tinha energia na casa que morou, tomava banhos gelados, com certa freqüência. E por ali não havia como mesmo.
Voltou a beber, pois a bebida lhe tirava a fome. Mas, nunca mais voltou a ser um alcoólatra. Bebia, tão somente bebia. Nem chegava ficar demasiadamente embriagado. E nunca caiu. Orgulhava disto. Orgulha-se também de ter parado de fumar. Não dava mesmo pra fumar e beber.
Teve algumas dificuldades em lidar com outros moradores de rua e de se enturmar, devido ao seu jeito um pouco mais culto. Mas ainda assim fez alguns amigos logo de cara. O amigo mais inseparável foi Magrão. Um negro, muito bem apessoado, cabelos longos em estilo rastafári e dono de um poder de persuasão incrível. Fora músico no passado. Um passado não muito distante. E ainda o era, uma vez músico, sempre músico. Estava apenas dando um tempo na música.
Rapidamente o ensinou a tomar conta de carros, sempre instruindo que deveria escolher os que tivessem mulheres como motoristas (deveria correr e abrir a porta para elas, chamá-las de princesas e por ai em diante) e também homens de mais idade, que eram os mais generosos. Falava sempre:
- Corre de carros com muita gente e se tiver só jovens... Acabam te tomando um dinheiro, são uns duros!
Ele aprendeu com certa timidez, mas nunca se ouviu chamar uma mulher de um adjetivo qualquer que não fosse senhora. Não se sabe se por sua conduta de respeitador ou se os demais adjetivos bons só tivessem sido criados para serem usados com Fernanda.
Um dia ao abordar um carro destes de luxo e ver sair dele uma linda mulher com um garoto de mais ou menos uns quatorze anos ele chorou. Magrão imediatamente correu em direção do amigo (sorte que não ventava, Magrão estava cada vez mais magro!) tentando ajudar, pensara que Tato havia apanhado da moça. Mas como tinha uma sensibilidade aguçada, logo percebeu a situação e se afastou.
Nesta mesma noite (o dia havia sido muito bom financeiramente) Magrão chamou o amigo e disse:
- Irmão! Vamos tomar uma cerveja, sentados numa mesa decente e comer um lanche? Nós também somos gente! E agora com os banhos lá no abrigo, estamos lindos e cheirosos!
Hahahahahaha!
Gargalhou copiosamente ele.
- Vamos! Tem alguns anos que não me sinto gente, será que ainda é bom?
Gargalhou Tato em seguida, imitando perfeitamente a risada de Magrão. E saíram abraçados como duas crianças. Duas crianças felizes.
Os dois pararam em uma lanchonete que tinha uma boa aparência e não parecia muito caro. Mas aquele dia eles tinham dinheiro, mesmo que fosse caro. Então, como sempre dizia o Magrão, vamos tocar o foda-se!
Sentaram em numa mesa na calçada, Magrão esticou as pernas longas e finas, forçou a coluna para trás, empurrando o encosto da cadeira e fazendo-a levantar os pés da frente. Fez umas três vezes o movimento de uma cadeira de balanço e levantou o braço, olhando para o garçom com os olhos meio serrados:
- Parceiro! Atende a gente aqui! Pra começar traz a cerveja mais gelada que tiver ai. A mais gelada!
E Tato olhando pro amigo, disse em voz normal:
- O que vamos comer?
- Qualquer coisa, menos frango. Respondeu Magrão, sorrindo.
Tato sorriu também, mas a piada só seria entendida por eles, pois Tato sabia de longo desse ano que passaram juntos na rua que Magrão não gostava de frango. Duas moças da mesa ao lado também riram, mas nem entenderam a piada.
Pediram uma porção generosa de carne acebolada, com direito a pães cortados e mandioca. E mais uma cerveja.
O real motivo de Magrão ter levado Tato para aquele lugar era para que ele se abrisse e contasse mais alguma coisa sobre sua vida, que Magrão, esperto que era, já havia sacado que Tato não era um indigente qualquer. E falar um pouco da sua vida também.
E começou:
- Cara, eu já toquei em casas chiques na noite. Fui de uma banda famosa, com muitas músicas próprias, mas que por falta de incentivo financeiro não chegou a decolar na época.
Ainda assim tocamos juntos vez por outra e continuamos muito amigos. Nos encontramos, quando dá. Quando a vida quer.
E embalou o papo contando que era baterista, tecladista, tocava guitarra e baixo e ainda arriscava umas notas em flauta. Sem contar, dizia ele, que fingia bem ser cantor. Mas tudo aquilo era pouco. Magrão era mesmo compositor. Todas as outras coisas eram pequenas perto do grande compositor que ele era. Tinha um gordinho que passava lá de vez em quando e quando podia dava uma ajuda a Magrão, pois o conhecera em seus tempos áureos, que sempre dizia assim:
- O Magrão? Ele é o homem melodia. Você fala uma frase e ele faz uma música. Fácil assim, como respirar.
Tato não o conhecia, apenas sabia que ele morava por perto e que passava por ali sempre. Ele tinha uma moto e participava de um grupo que viajavam muito. E Magrão tinha colocado uma música na letra que o gordinho tinha feito. Era assim:
“Sou franco e falo muito, às vezes bebo demais
Eu também quebrei o muro, nasci há um minuto atrás
E já vou em frente, cantando
O meu Exagerado Blues
Pensar grande é minha paz, mente aberta e cada vez mais
O exagero me seduz, qualquer estrada me conduz
E ando em frente, cantando
O meu Exagerado Blues
Eu extrapolo o extrapolado, não sigo desacompanhado.
Se um é pouco, somos dois, o resto deixo pra depois
E sigo em frente, cantando
O meu Exagerado Blues
Eu sou mesmo arrojado, sei sou muito exagerado
Vou vivendo esta canção, eu deixo tudo mais de lado
E vou sempre, cantando
O meu Exagerado Blues”
E Magrão continuou:
- E você? Sei que escreve muitas coisas, sempre te vejo num canto ou em outro escrevendo e enfiando os papéis no bolso...
E complementou em seguida, sem deixar o amigo falar:
- De onde você é? O que fazia? Como veio parar aqui?
- É uma história muito longa... E pra te dizer a verdade nem lembro de muita coisa. Mas vamos simplificar:
- Nasci num lugar muito pobre. Perdi meu pai assassinado aos dez anos. Minha mãe morreu de infarto quando eu tinha dezessete. Fui para uma cidade vizinha e fui muito ajudado por umas freiras, que já estavam bem velhinhas e ainda trabalhavam num hospital, onde trabalhei por cinco anos. Lá conheci um rapaz, recém-formado em medicina e passei a auxiliá-lo sempre. Como eu não havia nem concluído o ensino fundamental não podia estudar medicina, que era meu sonho. Nem enfermaria. Nem nada. Morei na casa deste médico com seus pais durante algum tempo, eram dois velhinhos muito bons. O filho, único, morreu em um acidente de carro. Cuidei dos pais dele por mais ou menos um ano e a conselho deles peguei todos os documentos do filho, Carlos Alberto Gouveia, inclusive os de médico e vim pra São Paulo. Rapidamente arrumei um emprego como médico e assim a vida continuou. Casei, não tive filhos. Fiquei bem de vida. E aí veio o precipício. Perdi minha mulher, perdi meu emprego, fui desmascarado perdendo a minha dignidade. Perdi minha liberdade. E só foram perdas. As últimas coisas que me lembro de ter perdido foram: A memória, a expressão, a vontade de viver.
- Ultimamente só tenho perdido peso e isto me deixa feliz! Ah, e voltei a ganhar: ganhei uma nova chance, um amigo (olhando com gratidão nos olhos de Magrão), minha liberdade e a coragem! Eu vou voltar a escrever, e serão coisas boas! A vida está voltando a ser tão boa...
E terminaram a noite num longo abraço. E um pouco bêbados...
O RETORNO
Esperto, facilidade de aprendizado (em alguns anos no hospital aprendeu tanto que conseguiu se passar por médico!) e agora com muita vontade de viver, Tato já não mais cuidava de carros. Havia arrumado um emprego numa lanchonete e logo assumira a chapa de lanches. É verdade que inicialmente havia desejado estar muito perto da comida e tê-la em abundância, mas logo percebeu que o Afif, dono do negócio, era um senhor muito generoso. Até brigava com ele caso não jantasse. E ele fazia lanches maravilhosos!
A lanchonete que antes fechava cedo porque se trabalhava mais no almoço, agora estava fechando cada vez mais tarde. Era carro de todo o lado que aparecia lá no “fim de noite” como chamavam. E só queriam os lanches do Tato.
- Tatãooo!!! Sai um daqueles lanches monstros que to morrendo de fome!
Já gritava um cliente antes de estacionar o carro. E Magrão é quem estava ali para cuidar. Tato, logo que arrumou este emprego, levou o amigo pra perto de si fornecendo o que podia de comida e refrigerantes. No começo era escondido, com medo de perder o emprego. Agora não. Magrão trabalhava como manobrista e segurança da casa. E dava umas canjas de cantor.
O dono, Afif, já estava muito velho e cansado, então chegava tarde (sempre depois das 10h00) e saia cedo, (normalmente antes das 19h00 para não perder a novela). Mas morava em cima do comércio, portanto estava sempre à disposição caso precisassem.
Magrão e Tato passaram a morar numa pequena edícula que havia atrás da lanchonete. Era uma cozinha, um quarto e um banheiro, que foram transformados em dois quartos e um banheiro. O de Tato era decorado com um quadro de uma harley Davidson e o de Magrão tinha dois, um do Bob Marley e outro do Elvis, este bem grande, de corpo inteiro. Mas não cabia a bateria do Magrão montada lá dentro.
O imóvel da lanchonete era bem grande e ficava numa esquina movimentada de uma grande avenida, além de ir de uma rua à outra. E Afif acabara de comprar um terreno enorme (muito maior que a lanchonete) que ficava ao lado.
O terreno vai se transformar em um estúdio para que Magrão possa fazer trabalhos musicais e dar aulas de bateria e violão.
A vida vai de vento em poupa. Muito trabalho, mas muito retorno também. Em menos de dois meses já estavam inaugurando a escola/estúdio. E, como não haveria deixar de ser, o primeiro aluno era Tato. Magrão sempre insistiu que Tato aprendesse pelo menos violão, mas Tato dizia que preferia escrever e ele que fizesse a música. Fizeram algumas músicas juntos.
Afif, que morava sozinho e completaria setenta anos, decidiu:
- Vou sair pro mundo, de moto e sem destino.
Chamou os dois parceiros, já com os papéis na mão, feitos por uma advogada amiga, a Alexia e já impôs com seu jeitão durão:
- Assinem aqui. Aqui, ó!!
- O que é isso?
Perguntaram os dois parecendo que ensaiado.
- É um documento! Não tão vendo? To de saco cheio de ver a cara de vocês dois! É para eu me livrar de vocês!
E o documento dizia que o imóvel seria deles a partir daquela data, mas duas cláusulas colocadas por Alexia asseguravam que não poderia ser vendido enquanto o Afif permanecesse vivo e que do negócio tirariam um percentual que seria depositado a ele mensalmente para que fizesse as suas viagens e garantisse o final de sua vida. E assim foi feito.
Eles sentiriam muitas saudades do Afif, que daquela data só veriam anos por fotos. Em cada cidade que Afif passava mandava um postal a eles, no endereço da lanchonete. Foi em vão que começaram a decorar as paredes com os tais cartões, pois após um ano já não havia mais espaço para nenhum...
E olhe que era só no Brasil ainda, mas Afif acabara de adentrar na Argentina. E os planos eram audaciosos. Toda a América, só para começar. E depois partiria pra Europa...
CINQÜENTA
Chegara a data tão esperada. Tato completaria 50 anos. E claro, tudo foi planejado alguns anos antes para nada dar errado. Era a festa da revanche como eles chamavam. A festa que comemoraria a volta por cima.
O local escolhido era uma casa de shows, comprada há dois anos e que se chamaria “COMPLEXO MUSIC”, nome este que seria revelado apenas no momento da inauguração, sendo um projeto desenvolvido por eles, pois a escola/estúdio já tinha três filiais e aproximadamente 40 professores.
As obras estavam todas finalizadas e a inauguração coincidiria com a festa de aniversário de Tato. Este, por ironia e até como uma amostra da volta por cima, escolheu o dia 07/07. Sim, aquele fatídico e que cairia numa sexta feira este ano. Não era propriamente a data exata de seu aniversário, pois ele havia feito 50 anos uns meses antes. Mas como havia aquele negócio de ser registrado em data diferente do real nascimento, tanto faria um mês a mais ou a menos.
Tudo pronto. Chegaram quase todos os convidados para a inauguração e era só gente boa...
E muitos artistas e músicos famosos estavam no local, alguns nem iam tocar, só foram para prestigiar.
Foram vistos por lá cantores de diversos ritmos, desde sertanejo até ao rock nacional. Internacional mesmo só vieram três, de bandas de rock dos anos 70, que conheceram o trabalho de Magrão numa apresentação na Inglaterra e tornaram se amigos.
O último músico a entrar no palco seria um ícone do mundo musical com quem Magrão tocara no inicio da carreira. E ele estava com os cabelos totalmente brancos! Mas parecia um adolescente tocando, era incrível como com o passar dos anos ele se aperfeiçoava mais e mais.
Tudo correu na mais perfeita harmonia e ao final, abraçados Magrão e Tato no palco daquela que seria a maior e melhor casa de shows do Brasil, foram intensamente aplaudidos de pé pelos convidados.
E para a emoção dos dois uma surpresa foi preparada por algum amigo que não quis se revelar. A visita de Afif, que não viam a mais de cinco anos. E a chegada foi triunfal!
Entrou no salão com um triciclo enorme de uma fábrica estadunidense feito sob encomenda exclusiva e exemplar único. Certo que com 75 anos Afif já não tinha aquela habilidade em ficar em cima da moto sem cair para um dos lados... O triciclo seria o ideal.
Desceu com uma jaqueta vermelha em couro, estilo Elvis, Gola pra cima e estava com os cabelos totalmente brancos e compridos. Sua barba chegava no peito e perdera os quilos a mais que tinha quando morava no Brasil. Estava morando no Texas, num vilarejo que mais lembrava o interior caipira do Nordeste. Nos Estados Unidos a vida era mais regada e com menos abusos. Um burburinho se formou imediatamente quando a loira de um metro e noventa desceu da garupa do seu triciclo, com um decote que deixou vários amigos alguns minutos sem expressão e uma minissaia que mais parecia um cinto pelo tamanho. Muitos lamentavam que ela só falasse inglês e francês e nem puderam conversar, mas o que tiraram de fotos ao lado dela só vendo mesmo...
Foram horas de papo e assuntos é que não faltavam... Afif tinha uma memória brilhante, lembrava-se de cada detalhe, de cada viagem, de cada lugar. Falava em português, meio arrastado, mas imediatamente traduzia para o inglês para que a moça não ficasse fora da conversa.
- Let’s GO, baby!
Disse Afif olhando para os invejáveis olhos azuis da moça.
Ok, Darling! I need you tonight!!!
Sussurrou ela com voz rouca.
- Again? Oh my God! Replicou ele com cara de cansado.
E olhando pros dois amigos complementou:
- É todo dia assim... Acho que quando ela passar dos 25 anos deve sossegar. E riu, como nos velhos tempos.
Despediram-se e marcaram de se encontrar no ano seguinte novamente, mas nunca mais se viram ao vivo de novo.
Os anos seguintes foram passando, um a um muito mais rápido que eles gostariam, mas com paz, alegria e tranquilidade.
PERDA
O abuso cometido nos anos de rua e outros excessos estavam dando os primeiros sinais em Magrão. Preocupado, Tato acompanhava bem de perto o amigo com quem, se orgulhava em dizer, nunca havia tido uma briga sequer.
Agora eles tinham dinheiro, agora eles tinham amigos, agora eles tinham um ao outro. O que poderia faltar? Saúde.
A pressão alta preocupava até mesmo Magrão que nunca ligara pra estas coisas. A diabetes até que conseguira controlar, mas os problemas no fígado e rins estavam cada vez mais constantes. O tratamento era seguido à risca (salvo nos dias em que Magrão acordava injuriado e dizia que aquele dia faria tudo o que não podia. E era assim mesmo, culminando numa nova internação), mas não apresentava grandes resultados.
Magrão não falava em outra coisa a não ser em procurar uma filha que teve numa das cidades que passou, porém nunca a encontrou. E os dias intermináveis de internação eram constantes.
Da última vez passou oito dias sedado. O médico dizia que tudo que podia fazer já tinha feito. O que ele não poderia jamais era beber e nem comer doces. E Magrão retrucava que era melhor morrer então.
A luta contra o tempo para achar sua filha não parava. Tato fazia anúncios, recorria a conhecidos, buscava pistas, mas tudo em vão. Certa vez, nos tempos da rua quando soube desta história revelada pelo próprio Magrão, Tato escreveu assim em homenagem ao amigo:
“O seu nome eu mal sei escrever
O seu rosto tento me lembrar
Onde quer que eu ande não vou te esquecer
Eu estou no seu sangue e vou ficar
Pelo Brasil todo eu já andei
Em cada rosto eu te desenhei
Em muitos lugares como aqui eu parei
E fiquei a sonhar com seu olhar
Sem te conhecer dedico estas menções
Que se souber juntar formará o meu ser
Faço melodias e escrevo canções
Mas um dia, um dia irei te ver
Contemplar o seu sorriso
Certificar o que a mim foi dito
Que sua beleza exterior
É só menor que a interior
E do tamanho do meu amor
Nunca estivemos juntos
E ninguém é capaz de separar
Somos dois conjuntos
Unidos, sem se falar. Só amar.”
Ironia do destino ou não a última música composta por Magrão, há dois anos, estava em primeiro lugar de sucesso na voz de um famoso cantor. Aquilo era motivo de muito orgulho pra ele, que viu sua carreira iniciar e quase acabar em poucos anos, e depois voltar meteoricamente. Mas não ajudava nada a sua saúde.
Mas poderia ajudar a encontrar a sua filha! Pensou então Tato. Apesar do Magrão não ser tão conhecido como cantor, como compositor ele era um dos mais requisitados. Então articulou com músicos e produtoras de todo o Brasil. Também algumas do exterior:
“EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO” chamava-se a campanha. Ela tinha uma foto do ídolo deitado na cama de um hospital e trazia informações aproximadas da localidade época e circunstâncias em que a filha nasceu. Coisas que ele só revelou a pouquíssimo tempo.
Não se sabe se é coisa de Deus ou se é coisa do homem. Só se sabe que no dia em que ela fez o primeiro contato com uma das produtoras encarregadas da missão, todos estavam assistindo a cerimônia de cremação do amigo Magrão.
Não havia mais tempo. Não havia mais nada. Apenas as cinzas que Tato estava encarregado de jogar em um lugar especial, mais um dos segredos entre eles.
Neste dia então Tato sentou e escreveu, angustiado:
“Não sei onde está agora
Mas estivemos juntos ontem
Relembramos outrora
As memórias não fogem
Tínhamos mais a falar
Muito mais a fazer
Mas por que calar
E acabar com este prazer?
Não devia fazer o que quer
E ir embora sem despedir
Deixar-me sem sequer
Nossas promessas cumprir
Estarás sempre na minha mente
Serás meu amigo para sempre
Quem sabe um dia a gente
Possa se encontrar novamente”
E o luto pela perda do amigo durou todo o resto da sua vida. Nenhum dia sequer após aquele Tato deixou de pensar no amigo. Nenhum.
ENVELHECIMENTO
Tato seguiu seu caminho. Os negócios iam todos muito bem, mas estava sem vontade de tocá-los.
Pensava que deveria fazer como recebera, mas naquela altura do campeonato não havia ninguém que pudesse retribuir a boa ação de Afif anos antes. E seguia com certa angústia.
Colocou gerentes em cada unidade do negócio, ficando assim somente controlando de fora e visitando periodicamente cada um deles. Fora homenageado muitas vezes em todas elas, principalmente na casa de shows “Complexo Music”. Não lhe faltavam alegrias. Faltavam verdadeiros amigos. Faltava-lhe o pai, a mãe. Mas sabia que onde estivessem sentiriam orgulho dele.
A sua saúde não era mais a mesma também. Em um dos seus check ups anuais foram detectados vários problemas. Comum para a vida que levara e seus 63 anos. Enterrara muitos amigos...
Já não saia muito de casa, pois a visão estava muito prejudicada. Ler era quase impossível. A doença consumia sua visão rapidamente. Mas a sua mente continuaria intacta e sempre pensante.
Uma senhora doce e simpática que cuidava da limpeza de sua casa e de suas roupas há muitos anos passou a cuidar também dele. Ela se chamava dona Nisa. No início ele não gostava muito, mas com o passar do tempo e perante a necessidade acabou aceitando.
Ela fazia comidas maravilhosas, mas sal nem pensar.
- Esta comida parece de hospital! Dizia ele tentando um pouco de compaixão por parte dela.
- É isso que tem que comer e pronto.
Retrucava ela em tom de mãe.
E começou a ficar constrangido quando perdeu praticamente 80% da visão. Precisaria de alguém que o levasse a todos os lugares, enfim, quase tudo.
Pensou várias vezes em ir para um asilo onde teria um tratamento adequado e vários profissionais ao seu dispor. Mas achava aquela idéia horrível, como se estivesse se entregando para a morte. Então desistia.
Decidiu então, a contragosto de dona Nisa, contratar uma enfermeira. Uma pessoa que cuidaria da sua intimidade, que o levasse para caminhar, inclusive que dirigisse para que ele pudesse ir aos lugares onde tivera passado durante a vida. Apesar de não enxergar bem, sentiria o local. E assim terminaria a sua vida. Passeando e relembrando.
Colocou o anúncio no jornal e várias enfermeiras se interessaram, talvez pelo salário que era muito tentador. E começaram as entrevistas, mas dona Nisa sempre arrumava uma desculpa qualquer e dizia que aquela não serviria. Que não havia gostado dela.
Entrevistaram mais de quarenta pessoas! E certo dia, num cair de tarde de uma sexta feira parou um carro de luxo na porta. Desceu uma bela jovem senhora do carro e tocou a campainha. Disse ter se interessado pela vaga.
Conversou com dona Nisa por mais de duas horas, e esta nem perguntou a opinião do Tato, dizendo a ele ter achado a pessoa ideal.
- Tato, ela é a pessoa certa. Tem muito amor a profissão e tem jeito pra tratar com gente. Dirige, é independente, viúva e tem apenas um filho que é médico. Uma senhora muito bonita também. Acho que deve tentar, pelo menos...
- Tá bom. E é bonita? Agora que não enxergo mais, que diferença faz?
Debochou ele.
DESTINO
A senhora então começou, no dia seguinte. Tato queria que ela morasse no local, mas ela disse que o faria mais pra frente, primeiro veriam se daria tudo certo, que se gostaria do trabalho dela. E assim foi feito.
Ela disse se chamar Andréa, mas que a chamavam de Déia. Com o tempo dona Nisa arrumou um novo apelido pra ela: Flor.
Dizia que a casa havia ficado mais bonita a partir da chegada dela, que tinha até medo de perder seu emprego! Coisa que jamais passaria pela cabeça de Tato, tanto por sua confortável vida financeira como por sua ligação afetiva com dona Nisa, que era praticamente a única parente que ele tinha, apesar de não o ser.
Flor, como acostumou ser chamada por dona Nisa e agora por Tato, que outrora tinha como tema de suas fotografias e textos sempre flores, fora se familiarizando na casa. Já dormia alguns dias lá. E quando ia embora Tato brincava:
- Vai namorar que a vida é bela! Aproveite, pois quando ficar velha e doente como eu não tem mais volta...
- Ela sempre sorria, mas dizia que ia visitar o filho, apenas. E que um dia o filho viria conhecê-los.
Era impressionante a falta que ela fazia já meia hora após ir embora. Dona Nisa chegava a ficar com ciúmes.
Mas concordava que a casa não era mais a mesma sem ela. Que pessoa alegre e feliz! Ela transborda alegria, é contagiante.
Ela e Tato acabaram por se tornar íntimos, tal a necessidade dele. E ela o fazia sem constrangimento. Parecia que até gostava. E gostava muito.
Sua cegueira atingiu o maior nível, 90%. Praticamente cego, enxergava apenas vultos. E para a sua tristeza o médico dizia que aquilo era irreversível. Dizia que nunca mais enxergaria novamente.
Por outro lado era coberto pelo afeto da enfermeira, que já não deixava que dona Nisa cuidasse de nada que fosse pessoal de Tato, apenas da casa.
Apesar da falta de visão, a saúde de Tato estava boa. Com o bom tratamento que tivera, remédios em seus horários (dona Nisa até que se esforçava, mas era um tal de trocar horário de remédio que era uma coisa!), caminhadas, controle de peso e pressão arterial, ele estava se sentindo muito bem.
Começaram os passeios mais longe. Iam aos mais diversos lugares, onde Tato sempre dizia a mesma frase:
- Aqui tinha isto e aquilo, como está agora?
Algum tempo depois, havia pelo menos 03 meses que Déia estava cuidando de Tato, ele decidiu contar sobre sua vida, sobre as coisas que passou, enfim abrir seu coração já que com a falta de Magrão ele se fechou e nunca mais teve com que dividir nada. E ela ouvia atentamente cada história, cada queda e cada nova vitória que ele contava. E se entusiasmava com quase todas. Até com algumas que ouvia pela terceira ou quarta vez. Mas sempre existiam histórias novas.
Já sabia quase tudo do seu passado, quando um dia inesperado ele pediu que o levasse na casa onde morou e teve a clínica. Era em outra cidade, ela disse que deveriam marcar direito pra ir, contatar um hotel, tudo enfim. Mas ela enrolava muito para cumprir a vontade dele.
Ele passou a cobrar mais vezes sobre ir até lá e ela acabou se convencendo que era a hora certa. Já havia planejado tudo, programado muito bem, pois havia ido ao local algumas vezes para isso.
E marcaram um dia na semana seguinte, o qual Tato aguardou ansiosamente. E olhe que ele não era mais ansioso para nada, a vida lhe ensinou que na hora certa as coisas aconteciam. Nem antes, nem depois.
Foram. Era um lindo dia de sol, na primavera.
Ao sentir o carro parar imediatamente ele perguntou?
- Chegamos?
- Sim, respondeu ela.
- E ai, como está? Ainda existe a casa? Ainda é verde? Tem uma árvore na frente?
- Sim, existe! É verde sim... E a árvore é enorme! Chega quase ao meio da rua e se entrelaça com os fios de energia...
- Energia. Não tinha energia quando saí.
Comentou ele com muita tristeza.
E continuou ela:
- Vamos lá! Preparei tudo, você vai visitar a casa.
- O que? Eu vou entrar lá? Será que vão me permitir?
- Claro que sim! Depois que você vendeu a pessoa que morou aqui por alguns anos deixou a casa em ruínas. E colocou a venda. O jovem que comprou reformou toda ela, mantendo o aspecto original, em todos os detalhes. Inclusive a cor.
- Puxa, que fantástico! Estou ansioso por entrar. Nunca imaginei que passaria por aqui de novo.
- E ao entrar, sentidos aguçados que tinha agora devido à falta da visão, teve um enorme susto:
- Isto aqui é um hospital??? Que brincadeira é esta? Você me trouxe ao lugar que pedi??
- Sim. Aqui voltou a ser uma clínica. E está em operação, cuidando de pessoas carentes. O médico que a comprou não está agora, mas vai gostar de conhecê-lo. Soube da sua história e logo após comprar a casa e restaurá-la, imediatamente colocou o nome de Clínica Dr. Gouveia. Hoje ela recebe incentivos do governo, é amparada por uma ONG e atende mais de mil pessoas por dia, gratuitamente! É praticamente uma triagem para os hospitais da região. E se tornou uma referência devido ao trabalho espetacular do médico.
- Meu Deus. Como eu. Como eu sonhei.
E adentrando na casa, tocava tudo o que podia, sendo que muitas coisas identificava e sabia que tinham sido suas.
Sua prova definitiva se deu quando tocou a mesa e não pode conter o choro. Com a ponta dos dedos ele sentia e repetia, palavra por palavra:
“Não adianta promessas se você não acredita em milagres”
- Eu talhei isto com uma faca. Parece que foi ontem.
Disse ele em voz meio baixa.
E sem perceber ou ter alguma intenção ele encostou sua cabeça no peito de Déia, cabisbaixo.
- Aqui eu perdi o amor da minha vida. Aqui eu viveria até minha morte ao lado dela. Aqui os sonhos viraram pesadelo. E nunca mais amei ninguém depois deste dia. O amor é um só. Foi e sempre será dela, uma pessoa que nunca mais saiu do meu coração. O amor é algo tão forte que nenhum mal que ela causou a mim conseguiu afetar o que senti e sinto por ela.
E sem perceber estava rosto colado com Déia, num compasso perfeito.
Sem palavras, ela o beijou. Profundamente.
Ele pediu para que ela o conduzisse até uma cadeira. Precisava sentar. Ninguém beijava daquela forma. Ele jamais esquecera o sabor de um beijo de Fernanda.
E começou a perguntar, sem respirar:
- Fernanda... O que aconteceu durante estes anos todos? Porque está aqui? Aonde você quer chegar?
- Eu voltei porque que te amo. Sempre te amei. Perdi-me no caminho, eu sei. Mas sempre te amei.
- Fernanda, eu teria te reconhecido imediatamente se tivesse tocado em seu rosto apenas.
- Eu sei. Mas tinha medo. Aproximei-me muitas vezes de você, tentando reparar o erro que eu havia cometido.
- Como assim? Indagou ele.
- Quem você acha que comprou aquele prédio da lanchonete? O Afif pagava aluguel lá, mal dava pra sobreviver do negócio. Mas como soube que estava trabalhando lá, decidi fazer um investimento bom lá. E com sua capacidade o negócio deslanchou. O Afif que se deu bem, paguei uma mesada durante 10 anos pra ele e bem boa... Para que nunca revelasse a você sobre mim. Era uma forma de reparar o mal que causei.
- Que coisa! O Afif era muito esperto mesmo... Além de ser nosso amigo! Viveu bem com o seu dinheiro e o nosso... Ele até casou com uma mocinha nos EUA, mas nunca mais tivemos contato. Temo que nem esteja vivo. Mas porque nunca veio falar comigo?
- Medo de rejeição. Eu casei com o Dr. Waldomiro por ganância. A sede pelo poder e pelo dinheiro tomou conta de mim. Mas percebi que tinha feito tudo errado. O dinheiro jamais me trouxe a felicidade. E ele faleceu dois anos depois, mas me deixou muitos bens e uma das empresas, que administrei até pouco tempo, mas decidi vender e correr atrás do que eu havia perdido e que realmente tinha valor. Você.
- E sempre estive ao seu lado. Invisível. Transparente.
- O abrigo, as gordas gorjetas, enfim tudo o que eu conseguia. O Magrão me conhecia, mas não imaginava da nossa história. Só sabia que eu estava sempre nos bastidores ajudando. Se quer saber até no seu aniversário de 50 anos eu fui. Disfarçada mas fui.
Falava continuamente e Tato apenas ouvia, atentamente.
- E decidi que deveríamos passar os últimos dias, seus ou meus, juntos. Já era hora. O medo terminou quando descobri que havia perdido a visão. Desde então pude estar ao seu lado e fazer tudo o que gostaria de ter feito a vida toda...
- E eu nem percebi nada. Também cego, no fim da vida. E olhe que por diversas vezes notei semelhança no tratamento que me dava, no toque em minhas roupas, mas achava que eram coisas da minha cabeça. E dona Nisa, coitada! Se soubesse quem você era jamais teria deixado você se aproximar...
- Então, tive que reconquistar o meu espaço. E o fiz. Agora é com você. Quero viver todos os dias que restarem da minha vida ao seu lado. Confabulou ela.
- Eu nunca deixei de te amar. Só lamento por termos perdido um ao outro por tantos anos. Eu pensei muitas vezes em te procurar. Mas desistia em seguida. Disse ele.
E, sem que percebessem, passaram-se muitas horas. Aquela que fora a cena da tragédia anterior seria agora a do reencontro. E da reconciliação.
Ele, sem pestanejar, citou um texto que guardara anos no início, pensando que ela voltaria para casa:
“Ah o amor...
Às vezes ele anda meio sumido
Noutras nos traz dor!
Mas quando vem sem aviso...
Causa um imenso furor
É como ver um antigo amigo
Conhecer um novo sabor
Viajar sem destino certo
Voar sem sair do chão
Querer ficar bem perto
Ver estrelas na escuridão
Acreditar que está tudo certo
E que a vida nunca é em vão
Sempre há esperança
A solidão perdeu e sumiu
E como o olhar de criança
Que acredita em tudo que viu
Ah o amor... Ah o amor!”
Deram um longo e afetuoso abraço. E se seguiram alguns beijos. Enxergavam-se como antes, novos e lindos. Se bem que não perderam a beleza, apesar da idade. Apenas tempo.
Para surpresa de ambos, foram interrompidos por uma pessoa que adentrou a sala sem sequer bater, tal a pressa.
Era o médico, filho de Fernanda que observou aquela cena extasiado:
- Mãe?
Indagou ele sem mais palavras para compor a frase.
- Oi meu filho. Tudo bem? Precisamos conversar.
- Tudo bem, estou com uma emergência agora, em seguida falaremos. Não posso acreditar no que estou vendo...
E Tato apenas ouviu todo aquele assunto, mas não falou uma só palavra. Passou pela sua cabeça apenas que o pai dele deveria ser o porco gordo. Mas jamais falaria isso.
Eles continuaram todos os assuntos que tinham para por em dia, sem dar maior atenção ao ocorrido. E eram muitas coisas, afinal Fernanda havia acompanhado a vida do seu amado pelos bastidores, mas ele não. Para ele o último contato que teriam tido fora no dia em que ela foi embora. Apenas a manteve viva em sua mente e seu coração, só isso. Sem ódio nem rancor.
Era como se tivessem longe, apenas. Era como se ela tivesse viajado a trabalho e voltado vinte e seis anos depois.
A sua vida enfim poderia terminar. Conseguira cair e levantar algumas vezes. Tivera sucesso nos empreendimentos e na carreira. Ganhara dinheiro suficiente para levar uma boa vida, até sua morte. Ainda deixaria muitos bens, vários dos quais já estavam em nome de dona Nisa por não ter parentes ou filhos. A metade havia sido entregue para a filha do amigo Magrão que teve pouco interesse em conhecê-lo melhor.
Apenas buscou via justiça tudo que fora do pai. Achava que como o pai nunca havia lhe procurado em vida, não queria saber dela. E era totalmente o contrário, mas nem tiveram tempo de conversar. Ela está vivendo bem na França e seguiu a carreira do pai, mas esta sim era uma excelente cantora. Aparecia algumas vezes na TV, em abertura de shows de bandas famosas. Mas para ele estava tudo bem.
E agora, reencontrando a sua amada, que mais gostaria de ter ele? Seria demais pedir a Deus a recuperação de sua visão. E relembrava a frase que sempre levou consigo:
- Que seja feita a vontade de Deus. Eu não vou mudar nada. Estou apenas pagando o que eu fiz e se errei, devo pagar. É assim que tem que ser.
JANTAR
A noite chega e estão reunidos ao redor da mesa, Tato, Fernanda e Gabriel – o médico, filho de Fernanda.
Tato, meio sem jeito, começa a falar da profissão de médico e de seu problema na vista. Dizia:
- Pois é rapaz, você é um médico bom, continuou o que eu, mesmo sem o direito de fazer por não ser médico, dei início. E não me arrependo. Toda essa gente que precisa fica abandonada. Crime mesmo é o povo não ter direito a atendimento. Aos remédios e outras coisas.
- É, Dr. Gouveia, eu sei bem como é isto. O senhor fez muito por esta gente. Quando soube da sua história, imediatamente pensei: Vou ser médico! Quero ajudar toda essa gente que precisa! E de graça!
Muito assustado, Tato pensara que Dr. Gouveia havia sido morto e enterrado. Na prisão. Mas lhe veio na mente o pensamento que teve muitos anos antes e a promessa para a mãe que um dia iria fazê-lo. Infelizmente não conseguiu estudar. Mas não deixou de cumprir a sua promessa. A mãe estivesse onde fosse, haveria de tê-lo perdoado. E completou:
- Você é um homem bom. Gostaria de ter tido um filho assim. Era um dos meus sonhos, lembra Fernanda?
- Claro que eu lembro! E é sobre isso que temos que falar. Quando nos separamos eu estava grávida. Este que você não vê direito, mas ouve, é seu filho. Ele já me perdoou pelos anos em que disse que você havia morrido. Eu errei, errei muito, mas agora quero reparar o meu erro. Preparamos-nos para este momento há algum tempo.
E sem palavras, Gabriel que já estava com lágrimas nos olhos deu um fraterno abraço no pai. O pai, Dr. Gouveia, ou Tato – Tinha servido de espelho para o filho, apesar de não se conhecerem, só por fotos. E o filho vingou tudo o que fora um dia sonho da avó e do pai. E com muito sucesso.
Todos estavam abraçados neste momento e sentados à mesa jantaram juntos. Justamente como havia sonhado Tato um dia, naquele mesmo lugar.
E tinham que tocar a vida, juntos agora. Se conhecer melhor, contar pelo que cada um passou. Enfim, haveria de ser logo, pois era muito tempo perdido.
Como tempo era uma coisa que não tinham de sobra, haveriam de aproveitar tudo o que fosse possível dali pra frente. Não havia tempo para remorsos. E assim foi.
OPERAÇÃO
Tato estava muito nervoso e trêmulo na mesa de cirurgia, onde faria uma tentativa de melhorar a visão com um oftalmologista nos EUA. Ele, Fernanda e Gabriel haviam chegado ao País um dia antes por conta da agenda de Gabriel. Mas ficariam por lá pelo menos uns quinze dias, sendo que destes seis ou sete seriam para a recuperação da cirurgia.
Mas Tato estava um tanto quanto descrente no resultado, pois ouvira tempos atrás que seu caso era irreversível. Mas tentar não lhe custaria nada.
Aquele ambiente o remetia ao passado, junto ao amigo Magrão, que tantas vezes fora internado e ele passara noites e noites ao lado, apenas para ter a certeza que o amigo amanheceria vivo.
Mas estava ali, com quem amou e com seu “novo” filho, então o que temer? Tinha muita fé em Deus, portanto o que tinha a fazer era apenas rezar e esperar. Só isso.
No dia seguinte, ao acordar, dá um gemido e sussurra:
- Ei! Tem alguém aqui comigo?
- Sim, responderam Fernanda e Gabriel em coro.
- Estamos ao seu lado desde ontem. Acompanhei toda cirurgia, foi um sucesso. Completou Gabriel.
- É... Como imaginei, sem resultados. Lamentou Tato.
- Não estou vendo nada, ainda estou com o rosto formigando e meio dolorido. Os olhos estão pesados. Nem o que eu enxergava, estou vendo agora. Lamentou longa e tristemente.
Uma pequena risada foi ouvida, não se sabia se era de Fernanda ou de Gabriel. Provavelmente dos dois. Ele nem sabia se havia mais gente no quarto naquele momento.
- Você está com tampões nos olhos! Por isso não esta vendo nada. O Dr. disse que a luz o incomodaria muito, portanto é uma prevenção. Logo mais a noite vai ser tirada. Disse, com ar de graça, Fernanda.
- Pai, vai dar tudo certo, acredite. O Dr. disse que a cirurgia ocorreu melhor do que ele esperava. Vamos aguardar o resultado.
Tato não disse, mas mal podia esperar chegar a tal hora. Apesar de continuar descrente no resultado.
E chegou a hora. Foram tiradas as vendas dos olhos e a primeira reação que teve era que não via nada. Lentamente e com os olhos cerrados, percebeu que via alguns vultos.
- Pelo menos não piorou! Comentou ele.
- Mas não estou enxergando nada ainda, só imagens distorcidas.
- Calma pai, isto leva um pouco de tempo para adaptação.
E já no dia seguinte, apesar de ter acordado com os olhos colados, não ter conseguido abri-los e entrado em pânico, foi tratado pela enfermeira mais linda do mundo e só aquilo já valia.
Sem perceber, olhando para o relógio na parede, comentou:
- Nossa, 10h00! Dormi muito esta noite!
- E Fernanda que não pôde conter as lágrimas, em meio a um sorriso, completou:
- Olhe para mim... Estou muito mais velha, mas ainda te amo muito...
Ele olhou lentamente para o lado e enxergou tudo ao seu redor, depois de vários anos sem poder fazê-lo.
- É um milagre! Comemorou.
E olhando para Fernanda, disse:
- Meu amor, você está linda como sempre...
Claro que recuperara apenas uns 60% da visão, mas para quem estava praticamente cego aquilo era uma dádiva.
- O meu filho! Quero vê-lo!
Disse Tato, sem perceber que o seu filho estava sentado logo atrás dele, num banquinho junto à cabeceira da cama. Todos ficaram muito emocionados.
Olharam, por vários minutos em silêncio, apenas virando os olhos um para a direção um do outro, sucessivamente...
Tato pensou estar olhando a um espelho do tempo, que projetava a sua imagem, mais novo. Como era bonito seu filho. E o principal, um homem de bem. Tudo estava perfeito.
STATUS QUO
Foram muitas pescarias juntos, pai mãe e filho. Na última que fizeram no Mato Grosso até de para quedas os dois pularam, era só emoção. Fernanda teve medo.
As reuniões de família eram vezes na casa do filho, já que vieram as netas gêmeas, ora no sítio que tinham adquirido juntos para contemplar as flores e a natureza, vezes em estados e países diferentes, em suas inúmeras viagens.
Tato novamente voltou a escrever, mas guardava tudo para um dia o filho publicar em sua memória. Estava agora mais moço que nunca, apesar da idade.
Fernanda arriscava umas voltas na moto, coisa que não tinha muita prática ainda. Mas dirigia o trailer do casal pelo Brasil inteiro. Quando gostavam de um lugar, paravam e ficavam por ali alguns dias. Tinham mais de 30 mil fotos.
Pelo computador conversavam religiosamente todas as noites com o filho, a nora e os netos, que achavam o maior barato terem avós nômades e meio hippies.
Duas ou três vezes por ano aportavam na casa de Gabriel, sempre de surpresa. Era uma festa ver aquele enorme veículo casa, com uma moto pendurada atrás e com tudo que se precisa, desde computador, ar condicionado, móveis. Tinha até alguns instrumentos cirúrgicos e remédios, caso necessitassem. E com a frase escrita nas duas laterais:
“Nenhum sonho é impossível, todos podem se tornar realidade. Nós somos testemunhas disto. Família Gouveia”
E assim a família Gouveia seguiu seu caminho, ou melhor, seus caminhos, sempre acreditando que nada era impossível.
FIM.
QUER DIZER, ATÉ. O FIM NÃO EXISTE!
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