P - Sonielson, por favor, o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento? R - Meu nome é Sonielson Jovino Silva, nasci em 01 de julho de 1961, aqui mesmo, na cidade de Monteiro, e logo em seguida, fui para Sumé, com uma semana de vida. É a cidade vizinha. P - Qual é o nome do ...Continuar leitura
P - Sonielson, por favor, o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento?
R - Meu nome é Sonielson Jovino Silva, nasci em 01 de julho de 1961, aqui mesmo, na cidade de Monteiro, e logo em seguida, fui para Sumé, com uma semana de vida. É a cidade vizinha.
P - Qual é o nome do seu pai e da sua mãe?
R - Meu pai é Sebastião Jovino da Silva, e a minha mãe é Maria de Lourdes da Silva.
P - Você conheceu os seus avós?
R - Sim
P - De ambas as partes?
R - Não, só da parte de mãe.
P - Você lembra o nome deles?
R - Lembro É Antônio Francisco da Silva, e Maria de Fátima da Silva.
P - E da outra parte?
R - Não, da outra parte eu não lembro.
P - Você tem irmãos?
R - Tenho uma irmã.
P - Como é o nome dela?
R - Sônia Maria da Silva.
P - Você tem idéia da origem da sua família? Seus pais sempre foram daqui ou seus avós vieram de outro lugar?
R - Os meus avós vieram do interior de Pernambuco. A referência mais distante que eu eu tenho é dos meus bisavós, que são da região de Caruaru. Certamente com alguma origem dos primeiros imigrantes que vieram, entraram no interior do nordeste, mas eu não tenho maiores infomações além do meu bisavô.
P - O seu pai se dedicava a quê?
R - Era comerciante, tinha uma mercearia na cidade de Sumé.
P - Sumé é perto de Monteiro?
R - Vizinha São 30 quilômetros.
P - E por que você nasceu em Monteiro?
R - É porque, na época, fazia pouco tempo que Sumé tinha se separado de Monteiro e ainda não tinha uma infra-estrutura de atendimento médico, suficinte para os casos mais complicados. Então esses casos vinham para Monteiro, onde tinha um hospital, uma maternidade com melhores condições.
P - E a venda do seu pai?
R - O meu pai tinha um comércio no centro da cidade e era o ponto de encontro de muitas pessoas que passavam para uma direção ou outra, e sempre passavam lá para conversar. Então era um local de muitas histórias e anedotas, e tem essa memória - apesar de já ter falecido - na cidade, da mercearia dele.
P - Como era o nome da mercearia?
R - Chamava mercearia do Seu Sebastião Juvino. Naquele tempo não tinha essa preocupação de colocar um nome fantasia, o nome do dono é que servia de referência.
P - E o que ela tinha para vender?
R - Eram mantimentos, cereais, doces, bebidas e, geralmente atendia o pessoal da zona rural, que vinha na segunda-feira fazer compras e levava mantimentos para durar toda a semana. Então era mais assim.
P - Você poderia descrever como era o ambiente, como era o local?
R - No início a mercearia era muito grande, tinha um balcão longo e era muito bem sortida, mas vieram secas. Vendia muito fiado e quando eu era pequeno já tinha diminuido muito o movimento de comércio. Mas aí, na parte que servia para outros tipos de comércio, como ambulantes e o pessoal que aguardava feiras, o movimento era intenso, mesmo que não fosse para comprar na mercearia. Tinha um salão com violeiros, que durante a segunda-feira vinham cantar na feira, e juntava muita gente, era um local bem animado.
P - Então era um ponto de encontro?
R - Exato, um ponto de encontro, sem dúvida
P - Tinha movimento na semana inteira?
R - Durante a semana o movimento era menor. A mercearia tinha cinco portas, mas durante a semana só abriam três, porque o movimento era pequeno. Geralmente o meu pai ficava na esquina e chegavam aquelas pessoas que também tinham tempo disponível e ficavam comentando fatos da cidade, dizendo piadas, e era realmente a referência dessas histórias.
P - Como era essa cidade da sua infância, como era Sumé?
R - Era uma cidade pequena, onde um ocorrido, um acontecimento, durava meses de comentários. Não havia essa poluição de informações que tem hoje. Por exemplo, teve uma vez que ocorreu um tufão num açude e isso foi motivo de conversas por dias, semanas inteiras. Outro dia o posto pegou fogo. Enfim, eram esses acontecimentos que serviam de alimentação nas conversas. O circo que chegava, as piadas do palhaço, que se demoravam. Depois que o circo ia embora ficavam as piadas, ficava aquela forma de falar, até chegar outro e trazer outras histórias. A gente brincava de bola no parque, na calçada do mercado, tinha os lugares proibidos que a polícia, quando vinha, tomava a bola e rasgava. Então tinha toda uma mística em torno disso, era muito bom.
P - Que locais proibidos eram esses?
R - Na calçada do mercado não podia, mas a gente teimava. Sempre que um policial passava e conseguia pegar a bola, quem via primeiro corria com a bola, mas tudo dentro de um clima de brincadeira. Não havia maiores rivalidades, nem intrigas.
P - Como foi a sua infância nessa cidade, quais eram as brincadeiras?
R - Tinha as brincadeiras de bola de gude. Nós apostávamos as próprias bolas e tinha aqueles que juntavam mais, às vezes vendia para os outros. Isso era uma brincadeira comum. Nós fazíamos aqueles campeonatos de time de botão, a exemplo dos campeonatos que chegavam através do rádio. A gente era muito ligado no futebol do Rio de Janeiro, todo mundo tinha um time do Rio. Então, eu era do Flamengo, mas eu era quase solitário, porque as grandes torcidas eram para o Botafogo e Fluminense, não sei porquê. Então, nós fazíamos os campeonatos de time de botão, botava os times, tinha os nossos ídolos, e acompanhava pelo rádio. Por exemplo, tinha um bar, o Bar de João Barros, que era o bar do futebol. Era completamente forrado de fotos de times que saíam nas revistas, o teto e as paredes. Tanto que ele tirava aquelas mais antigas e botava as novas. Era o local das discussões, então, tinha a resenha de oito e meia da noite, quando terminava a Voz do Brasil e também o programa do Mobral [Movimento Brasileiro de Alfabetização], que era das oito às oito e meia, e a gente ia para lá para discutir, ouvia aquela coisa toda, imaginava as jogadas. No rádio você tem aquela idéia, você idealiza aqueles lances todos, não tinha televisão, mas eram momentos muito bons.
P - Nessa sua infância você passou a sua infância no meio de um bioma muito interessante, que é a caatinga.
R - Isso
P - Como é que você descreve a caatinga, como ela se traduz na sua percepção?
R - A caatinga está muito ligada com resistência. Nós víamos a seca, na mercearia eu tive muito contato com isso. Eu trabalhava na mercearia e principalmente em dia de feira, o pessoal bebia cachaça, as mulheres e as crianças bebiam vinho, que era considerado uma bebida mais suave. Então, eles chegavam de manhã, animados e iam para a feira. Depois, traziam os sacos com aquelas mercadorias que só tinha na feira - farinha, rapadura - e deixavam guardados na mercearia. Muitos adquiriam produtos lá na mercearia também e ficava aquele clima de festa até o carro ir embora, o carro chamando. Eu percebia essa dificuldade, essa resistência, esse sofrimento com a seca, quando o ano era bom de inverno, quando o ano não era bom de inverno. Quando eu era muito criança eu não tinha a percepção exata, mas a gente sentia que alguma coisa ia mal, e que repercutia em toda a comunidade. Naquela época, não tinham esses programas governamentais, então, quando vinha um período de estiagem, era muito sofrimento, muitos iam embora, abandonavam as casas. Nos anos bons de inverno, era o contrário, era o pessoal comprando roupa para festa, havia aquela felicidade estampada no rosto do pessoal. Eu percebia esse diferencial na região que estamos.
P - E o ambiente propriamente dito, os locais, a vegetação, o clima, o solo, como é que isso fica na sua cabeça?
R - Quando a gente ia em alguma viagem a gente era o chão de poeira, o carro de boi, que era o transporte que levava muita gente de volta para casa, aquele lamento do carro de boi, gemendo, enfim, eram aquelas viagens longas. Essa é a característica da caatinga, que na época da seca, perde as folhas e fica cinza e você tem a impressão de que acabou tudo, que ali morreu para sempre. Nas primeiras chuvas, ela nasce de novo, como a Fênix,
nasce das cinzas mesmo. A folhagem verde reaparece, e é uma coisa muito marcante. É marcante essa morte e esse renascimento da vegetação todo ano. Isso reflete um pouco na própria experiência de vida das pessoas.
P - Quer dizer, na verdade, o ambiente influi na própria determinação da ação pessoal.
R - É, de esperar chover. E outra coisa, é a religiosidade. As pessoas tinham muita fé. Tem o marco do Dia de São José, 19 de março, que é o marco da chuva. Se não choveu até esse dia, então o pessoal começa a achar que realmente o ano vai ser ruim. Nós vimos em estudos que tem um fundamento científico, porque quando o El Niño está ativo, realmente, o máximo que poderia acontecer seria dia 19 de março, a partir daí, então, é sinal que não vem mais chuva. Então tinha a figura do experiente. O experiente era um senhor do sítio que tinha muita vivência e as pessoas tomavam conselho, então esses camaradas olhavam para o tempo, olhavam sinais na natureza, se tinha relâmpago para o norte, para o sul, se determinada árvore estava com folhagem, se os animais estavam se protegendo ou não. Tinha essas pessoas que serviram de meteorologistas para os demais. É muito interessante isso aí
P - Você conheceu algum desses sábios?
R - Conheci, conheci Tinham muitos A coisa ia se difundindo. Por exemplo, se a lua em determinado dia estava com um círculo amarelo, tinha um significado. Então, eram esses sinais que as pessoas se apegavam para decidir os seus destinos. Se plantava hoje ou se deixava para plantar amanhã, se poderia perder a semente ou não.
P - Essas pessoas acertavam essas previsões?
R - Eu acredito que deviam acertar. Mas eu também acho que a fé era tanta que isso terminava sendo uma questão menor. A vontade de que o inverno fosse bom, a vontade de que desse tudo certo, eu acho que era maior do que qualquer outra dúvida. É como a música de Luiz Gonzaga; você só ia realmente na última circunstância mesmo. Um exemplo que me veio agora foi o de 1970, que houve uma grande estiagem, e houve tentativa de invasão do mercado. Então os agricultores se organizaram para invadir o mercado e aí houve um acordo com policiais. Realmente, os comerciantes doaram mantimentos de primeiros gêneros, de primeiras necessidades e conseguiu que não houvesse o ataque realmente, mas é outra coisa também marcante daquela época
P - Como é que você, então, com 11 anos, enxergava esses momentos de comoção social na cidade?
R - A cidade estava envolvida de qualquer forma, porque, naquela época, a população urbana era muito pequena em relação à rural, o inverso de hoje Então, as pessoas que viviam nessa atividade de prestação de serviço ou o comércio, dependiam muito da zona rural, dependiam que a agricultura, principalmente, desse certo. Tem a história do milho e feijão, que são as culturas de subsistência mais plantadas. Vinha a injustiça com o produtor, que quando o ano era bom no inverno, ele tinha uma colheita maior, e em consequência, havia uma oferta maior e o preço caía. Então ele ficava naquela situação, quando ele não tinha uma boa colheita, o preço estava lá em cima e ele não tinha como comprar, e quando era uma colheita boa, ele tinha que vender barato. Aí tinha aqueles atravessadores que compravam para vender na seca, no período do verão. Tem toda essa economia da seca.
P - E uma economia arraigada no seu próprio ambiente físico.
R - Isso Não havia muita comunicação com outros locais, com outros locais de comércio, então, a coisa era muito decidida localmente, por isso que gerava toda essa tenção, porque se houvesse maior possibilidade de trânsito de mercadorias, por exemplo, as mercadorias industrializadas vinham de Campina Grande. As pessoas que tinham caminhões iam comprar mercadoria e traziam para cidade. A cidade era ligada por estrada de barro, também, para Campina Grande, e era quase um dia de viagem. Então, o camarada trazia os mantimentos e repassava para o comércio. Aí tinham as festas. Nas festas é que vinham produtos de fora, novidades que o pessoal trazia, brinquedos como as varinhas, os brinquedos de bola de sopro, enfim, uma série de atrativos para as crianças.
P - E a sua primeira escola, Sonielson?
R - A minha primeira escola foi particular, como a gente chamava. Era a primeira alfabetização. Tinha uma senhora lá, a Sebalino [Sebastiana Lino], que tinha uma escola dela, e era conhecida por ser bastante severa, usava palmatória e tal. Mas foi muito bem, eu aprendi as primeiras letras. Depois eu fui para escola pública.
P - Em Sumé ainda?
R - Em Sumé
P - Você lembra o nome da escola?
R - É Grupo Escolar Desembargador Feitosa Ventura. Então, eu fiz até a quarta série e passei para o colégio que é lá mesmo. Em Sumé já tinha colégio do segundo grau, aliás, do ginásio, que era da quinta à oitava série. Eu fiz o ginásio lá e fui para Patos, porque eu tinha uma irmã que morava lá, e o marido dela, que trabalhava no Banco do Brasil, foi o primeiro e mais próximo contato que eu tive com o Banco.
P - Como é que foi essa mudança de cidade para um garoto que passou a vida inteira num lugar só?
R - Foi realmente uma descoberta Uma descoberta em dois sentidos: eu descobri que o mundo não terminava na serra de Sumé e, depois, eu descobri mundos totalmente diferentes. Então, eu não fui naquelas de me deslumbrar com o novo, eu encarei o novo como um diferente, fiquei, de uma certa forma, transitando em dois mundos naquele momento. Pelo menos só em dois mundos, mas eram dois mundo que eu tinha exata noção que eram totalmente distintos. Em Sumé a gente tinha discussões sobre a questão da política, da vida em si. Em Patos você tem uma vida mais de divertimentos. Então, eu tive essa sensação. Mas eu passei três anos lá. Foram três anos extraordinários, que foi justamente a descoberta do novo mundo, também. Eu já estava entrando na adolescência, novos olhares. Foi lá que eu terminei o segundo grau, passei no curso de Química Industrial em seguida e fui para a Universidade de Campina Grande, que já é um ambiente mais cosmopolita. É uma cidade que monopolizava toda a região, então, não tinha aquelas características nem de Sumé e nem de Patos, era um mundo, uma sopa de cultura, de gestos e de tudo mais, então, já foi um negócio mais misturado.
P - Explica um pouco melhor essa mistura que Campina Grande apresentava para você, o garoto, o adolescente?
R - Porque Campina é uma cidade que é uma espécie de metrópole para a região, tanto do Cariri como do sertão, em todas as áreas que você abordar. Por exemplo, na área médica: lá tem os hospitais, as ambulâncias; educação: eu estava indo para lá, como tantos outros; comércio: os próprios caminhões, os carros iam de Sumé para lá, e de Patos também. Então, chegando lá, tinha colônias de todas as cidades. Só que elas não estavam exatamente separadas por muros, é uma coisa mais misturada. Então você pode conviver com pessoas do estado inteiro. Foi nesse sentido de que você não tinha uma cultura campinense para você defender, (riso) porque lá era uma mistura. Então, foi isso aí, um novo olhar, mas um olhar que eu tive sobre a cidade, a cidade maior.
P - E você ficou na universidade até quando?
R - Eu fiquei até 84, 85, mais ou menos. Isso, na Universidade Reginal de Campina Grande. Eu fazia Química Industrial, porque nesse período eu comecei a fazer Engenharia e Química na outra universidade de Campina Grande, na federal. No final do curso, eu me apaixonei por História, e comecei a sair da Engenharia e Química e fui fazer História, que não terminei.
P - De onde é que veio essa sedução pela História?
R - É difícil datar, mas eu sempre gostei. Eu fiz o vestibular gostando de Química também. Quando vi Química pela primeira vez, eu achei que era muito legal, e eu gosto também. Aí, eu comecei a me interessar por política, aquela história do final do círculo militar e a esperança no Brasil de um novo tempo, de uma nova expectativa, e a gente na universidade terminando o curso, então, a universidade era um campo da esperança. Aí, eu comecei a ter leituras e comecei a me interessar por História, por ver que na História a gente não pode, conhecer um pouco mais ou desejar um pouco mais para adiante, sem ter um pouco de conhecimento pelo que passou. Então, foi mais nisso aí. Mas eu, até hoje, apesar de não ter terminado o curso, eu não larguei de estudar e de escrever. Eu escrevi crônicas para jornal e tudo mais.
P - E a sua primeira atividade profissional, qual foi?
R - Eu terminei o curso de Engenharia e Química e estava fazendo de Química Industrial e estava fazendo o curso de Engenharia Química. Então, apareceu uma oportunidade no estado, no governo do estado, numa secretaria de recursos minerais. Aí eu entrei, apesar do salário ser baixo. Era um salário mínimo, praticamente, mas eu quis, porque eu estaria na minha atividade. Então, quando eu estava no Centro de Desenvolvimento de Recursos Minerais do Estado, era muito parado, porque tinha lá os minérios locais, mas não tinha uma atividade constante. E era o contrário da Companhia de Água e Esgotos da Paraíba. Então, a Cagepa estava precisando de técnicos e me perguntaram se eu queria ir para lá e eu fui. Na Cagepa eu comecei com tratamento de água e depois me mandaram para as lagoas de tratamento de esgotos. Lá, realmente, tinha um convênio com a universidade federal, e lá o pessoal se dava muito. Tinha convênio com a Universidade de Leeds, na Inglaterra, e tinham aqueles trabalhos de lagoas, de estabilização. O chefe lá era Doutor, fazia pesquisa, tinha o pessoal, ia muito para a Inglaterra e voltava. Para a África do Sul também. Então, eu entrei naquele clima. O primeiro passo foi fazer a especialização. Nessa época, eu comecei a namorar com a Fábia [Soares de Oliveira], que é a minha esposa, de Sumé também, ela estava terminando Engenharia Civil. O curso de Engenharia Sanitária e Ambiental era aberto tanto para a Engenharia Civil como para a Química, tinha essas duas áreas de conhecimento. Então, a gente decidiu entrar, entramos, e fizémos um ano de estudo. Pagamos as disciplinas, e eu ainda prestando serviço na Cagepa. Foi aí que apareceu o Banco do Brasil na história. Quer dizer, para mim. Porque em Patos, como eu falei, eu morei na casa da minha irmã, e o meu cunhado trabalhava no Banco do Brasil. O curioso é que de início, o Banco do Brasil me assustava um pouco, porque eu via o meu cunhado tão agoniado lá. Quando dava diferença ele demorava a chegar em casa. O dia 31 de dezembro é sempre aquela tensão, porque tinha que fechar o balanço para poder ir para casa, e eu dizia: “Rapaz, eu jamais vou trabalhar nesse negócio”. (riso) Mas aí aconteceu que a gente teve alguns aborrecimentos lá na universidade. Eu achei até natural que ajam aquelas pressões, mas a gente estava, no momento, meio insatisfeitos, e apareceu o concurso local, em Sumé. O que seria concurso local? Foi um concurso feito para preencher vagas em agências que tinham deficiências crônicas de pessoal. Então, esse concurso foi feito somente nessas cidades e foi aberto só um dia, que o objetivo era, justamente, atender só pessoas daquela cidade, para depois a pessoa não entrar e sair. Então, os nossos familiares ligaram, ligaram para a Fábia e disseram: “Olha, tem um concurso aqui do Banco do Brasil, vem ou não vem?”. Isso eram 11 horas da manhã, aí, nós tínhamos prova à noite em Campinas, e o ônibus demorava umas três horas para chegar aqui. A gente ficou naquela dúvida: “Vem, não? Vem Vem, não? Vem“ “Então, vamos tomar o ônibus. Se acontecer algum problema no ônibus está decidido”. Então, chegamos Nós fomos os últimos a nos inscrever, não fomos nem em casa, descemos no ponto, fomos para o banco, entramos e fizemos a inscrição, voltamos para o ponto do ônibus, pegamos outro ônibus, fomos para Campinas, e chegamos a tempo de fazer a prova. (riso) Aí, aquela coisa: “Já que fizémos a inscrição, para depois não fazer feio, vamos dar uma olhadinha na matéria”. Eu acredito que por conta daquele embalo que nós vínhamos de mestrado, de curso, nós dois passamos Isso no final de 87. Aí, em janeiro de 88 nós tomamos posse. Em Sumé eu passei nove anos, que realmente foi o tempo que eu mais demorei no Banco.
P - Como foi o seu primeiro dia de banco?
R - Quando eu cheguei lá sem saber, um caos. Já tinham ligado desesperados para nós, para que nós fossemos o mais rápido possível, porque estavam precisando de muitos funcionários. Então, quando nós chegamos, o pessoal soube logo, já sabiam que nós éramos namorados, eu e Fabia, e por isso, naquele tempo não podia trabalhar no mesmo setor. Então, ela foi para o atendimento, talvez por ser mulher. Eu fui para o suporte, que era o setor de operações. Então, no primeiro dia eu cheguei lá, me mandaram arquivar pastas, aquele negócio todo meio devagar e você fica naquela ansiedade. Mas aí, depois de pouco tempo, a própria urgência do dia-a-dia faz com que você se envolva rapidamente.
P - O que te pareceu trabalhar no Banco do Brasil? O fato de estar no Banco do Brasil, numa cidade como Sumé, significava alguma coisa para você?
R - Significava demais Na minha cidade A gente já tinha um conhecimento praticamente de toda a população, então era uma forma da gente perceber que a cidade estava tendo condição de atrair e nos manter lá. Eu tinha essa sensação. Foi muito bom Tinha aqueles inconvenientes ali, que, às vezes, o cliente confundia a nossa relação anterior com a profissional. Mas isso aí, a gente foi mudando aos poucos. Uma coisa interessante é que eu fui trabalhar no setor de operações, trabalhando com o pessoal da zona rural. A gente fazia operações de crédito naquele tempo, na época do plantio de milho e feijão, e ainda algodão, e, depois, tomate. Formava fila de agricultores, nós tínhamos que trabalhar, às vezes, até de noite para preparar as cédulas. As cédulas eram preparadas uma por uma, não tinha computador Eu e meu colega, a gente se revezava, e eu sabia as cláusulas decoradas das cédulas, eu sabia das pares e as das ímpares. Então eram em duas máquinas, eu batia uma e ele batia a outra, e a gente: “Vamos bater em tempos iguais?”. Depois, a gente trocava de máquina para não tirar o papel, então, a gente ia, porque eu só precisaria decorar uma metade da cédula e ele a outra metade, era uma forma de agilizar. Esse contato com o agricultor, com as operações rurais foi uma coisa que eu trouxe até hoje, é uma coisa interessante.
P - E como era essa operação mecanizada? Era uma papelada e tudo mais?
R - A gente tinha o supervisor que ficava na nossa cola e dizia que a gente não poderia errar. Se a gente errasse uma letra, tinha que bater de novo. Às vezes, a gente dava um jeitinho com a borracha, ninguém percebia e não feria em nada o documento. Havia aquela preocupação de que se o documento tivesse rasuras, no caso de ser questionado, pudesse ser invalidado, então tinha que ser uma coisa com muita qualidade. Tinha o período do plantio e tinha o período da colheita, que eles vinham pagar. Aí tinha um fiscal do SETOP [Setor de Operações], o comissionado do cadastro, como a gente chamava. Ele tinha um conhecimento profundo das pessoas. (riso) Ele era o arquivo vivo, botava num papel, mas na verdade era para os outros, porque ele sabia, ele botava apelido no camarada, botava tudo. Então era uma atividade que eu gostava, além de que eu tive contato com o sistema de processamento. O único sistema automatizado que o Banco tinha era o de controlar as operações, que era chamado ESCAI. Esse centro existe até hoje, o banco já fez outro, mas ele ainda não ficou totalmente abandonado. Ele era um sistema informatizado que acompanhava a operação rural. Você dava o comando de quanto tinha sido o valor da operação, os encargos, o valor de aditivos de cédula e tal. Então, mensalmente o próprio sistema ia calculando, ia ficando lá um extrato daquela operação. Esse era o extrato da operação. Tinha as operações que o sistema não fazia, a gente tinha que fazer e dar o comando para o sistema, mas toda essa ligação com o sistema de informática, apesar de rudimentar para os dias de hoje, também me atraía muito. E tinha as diferenças, o sistema não batia com a realidade, então, tinha um relatório que trazia as duas realidades, porque nesse período, você poderia dar um comando só para um lado e não dar para o outro, então gerava uma inconsistência que a gente tinha que resolver. E aí, a gente tinha orgulho que o nosso Deb [Débito] sempre batia. Deb era o relatório que trazia essa conciliação dos dois lados. Diziam que tinha agência que passava anos sem bater, então a gente tinha essa preocupação de estar tudo certinho.
P - Esses dois lados, só para gente entender melhor, é o controle da operação de um lado, e a outra, era a fiscalização e o relatório que se trouxe dessa fiscalização, é isso?
R - É a operação em si, o montante de valores que você tem real e o controle paralelo - esse tinha que estar batendo -, a realidade com o controle contábil, o controle do sistema. Então se estivesse com inconsistência, um lado ou outro estava errado, quer dizer, quem estava errado era o sistema, porque o real era aquele mesmo.
P - E esse seu contato com os agricultores, o que você aprendeu, o que você viveu, o que você lembra e trouxe desse período?
R - Eu trazia um pouco esse contarto da mercearia. Para mim não foi nada diferente, mas o interessante é que eles são muito humildes, pessoas muito simples, e chegavam lá pedindo a nossa ajuda, tratavam a gente de uma forma respeitosa, e a gente tentava quebrar o clima, tentava ajudar. Assim, fica essa relação com aquelas pessoas humildes que dependiam da gente.
P - Tem algum caso em particular que você se recorde dessa relação com os agricultores?
R - Tum um caso cômico. Um camarada queria plantar qualquer coisa, queria dinheiro do banco. E o gerente, brincalhão, disse: “Olha, eu só tenho aqui recurso para flores e uva”. Ele disse: “Quero, pode botar aí”. Então, tinha casos engraçados às vezes.
P - E o papel do banco nesse processo de incentivo à produção, como é que você avalia isso, essa capilaridade, essa presença dele nos lugares mais remotos?
R - O banco realmente era visto naquela época como um instrumento do governo, de apoio, sem dúvida nenhuma. Ele era o governo na cidade. Tanto é que alguns achavam que tinha parte. Esses recursos eram uma coisa natural, todo ano tinham os produtores que iam atrás da safra. Até que, com o passar dos anos, houve um desestímulo. A própria agricultura ficou muito difícil, por conta das estiagens e tudo mais. O banco foi tomando outros rumos e foi realmente deixando um pouco esse lado do agricultor.
P - Como é essa visão da imagem do Banco do Brasil nessas cidades e para essas atividades em que ele se envolvia junto com os agricultores?
R - O banco era visto como o governo na cidade. Então, todos os programas de apoio à agricultura, à pecuária eram através do Banco do Brasil, e as pessoas contavam todo ano com isso. Vinha o período da safra, então, tinha um período. Nós tínhamos o calendário agrícola, que tinham estudos sobre chuva e tudo mais. O pessoal recomendava: “Olha, de tanto a tanto, já pode pegar propostas”. Então, era uma coisa natural. As estiagens foram sucessivas, a própria agricultura caiu, e o banco, também, a partir da década de 80, 90 começou a se afastar desses setores da agricultura.
P - Esses estudos eram produzidos pelo próprio banco, estudos meteorológicos, de solo etc?
R - É, era. Não, tinha uma equipe, , de Campina Grande, de técnicos que recebiam estudos, faziam o calendário e mandavam paras agências, tá? E a gente também fazia análises e processava.
P - Ao financiar uma cultura de algodão e milho, você também estava obrigado a conhecer sobre essa cultura, sobre o processo de produção?
R - Com certeza A gente tinha os documentos que regiam não só a cultura, mas o período até quando poderia ser uma proposta para o plantio, até quando poderiam ser os tratos culturais, e a partir de quando a colheita e como é que poderia receber. Aí tinha o estudo de preço de mercado, preço mínimo e tudo mais.
P - E como você aferia os resultados dessas operações?
R - Vinha um fiscal e dava os laudos. Eram técnicos que eram formados, visitavam as fazendas e davam os laudos para a gente. Aí, se houvesse a necessidade de prorrogação, nós chamávamos o pessoal, senão mandava um aviso para eles virem pagar e fazia esse acompanhamento. O banco mandava as cartas, mas o foco era o pessoal. No dia de feira, muitas vezes, o menino do cadastro já preparava antecipadamente, saía com um monte de correspondência debaixo do braço e ia para o mercado para encontrar com o pessoal. Então, era uma coisa direta, funcionava assim. A gente via a preocupação, o produtor tinha muita preocupação em quitar as suas dívidas, porque ele não queria ficar em débito com o Banco do Brasil, que para ele era o governo. Então não havia má vontade da maioria, o que havia era dificuldade mesmo.
P - Como a agência de Sumé era avaliada na região pela superintendência?
R - A cidade via a agência como um benefício. O banco era visto como um benefício, não como uma instituição que estaria ali para auferir lucro ou retirar riqueza da cidade. Era o contrário, era visto como uma oportunidade de trazer recursos e benefícios para a comunidade. A agência era pequena, primeiro foi um posto da agência de Monteiro e depois ganhou autonomia. Quando nós chegamos, ela estava prevista para ter 28 funcionários, só tinham 12. Então, entraram cinco de uma vez só, foi para 17, mas logo depois houve redução do quadro por conta da informática e foram surgindo os computadores. Realmente foi diminuindo a necessidade de funcionários, mas era muita gente, e funcionava como uma repartição.
P - Como se deu a sua transferência para Monteiro?
R - É uma longa história. Primeiro, eu lembrei de um caso que não está ligado diretamente à agricultura, mas ao Banco em Sumé. Como foi um concurso regional, praticamente todas as pessoas eram da cidade, então eram conhecidas, como eu falei. Uma vez surgiu um objetivo nosso, que era captar depósito a prazo, e foi passada a posição para os caixas, que deveriam propor aos clientes que iam fazer grandes retiradas, que fizessem uma aplicação, ou aqueles que tivessem dinheiro, porque o Banco estava captando. O banco estava entrando no mercado com maior agressividade no começo dos anos 90. Aí, um colega no caixa foi pagar uma ordem a um senhor que estava recebendo dinheiro do sul do país, uma quantia significativa, algo em torno de uns 40, 50 mil. O colega fez o que pediram, foi falar: “Senhor, vai tirar esse dinheiro, por que não faz uma aplicação?”. E o senhor muito educado disse: “Não”. Que aquele dinheiro foi um filho que mandou para ele comprar uma casa. “O negócio já está realizado, só falta o pagamento.” Enfim, bem educadamente. Quando o meu colega deu as costas para ele, para ir lá pegar a autorização do supervisor, o cara comentou com um outro: “Esse filho de fulana - ele conhecia o cara - não era nada na vida, agora é do Banco do Brasil e quer mandar no meu dinheiro”. Então, você tinha essa relação com a cidade, tinha esses transtornos. Essas coisas são engraçadas. Aí, o outro colega ouviu, e quando ele voltou, contou para nós. Eu passei nove anos em Sumé, eu era caixa, e a minha esposa também. Então, nós estávamos satisfeitos com a condição, os meus pais de lá e os pais dela também. Mas aí, começou a reduzir o quadro de funcionários e nós ficamos, a princípio, porque nós éramos dois. Então eu comeceia me interessar. Eu já tinha um envolvimento grande com a agência, porque fazia nove anos que eu estava lá, muita gente saía e você vai ficando. Os mais antigos vão ficando como uma espécie de memória da agência. E teve um período que a agência estava deficitária, o gerente se aposentou e eu juntei o pessoal lá, nós fizemos um plano para recuperação da agência. Nem existiam esses planejamentos, nós fizemos, e quando o superintendente foi lá, nós apresentamos o plano e pedimos que ele não nomeasse o gerente por um prazo de dois meses, 60 dias, que era o período para a gente verificar se os ajustes tinham dado certo. Ele gostava de desafios e concordou. E de fato, ocorreu Dois meses a agência deu lucro, melhorou e tal. Então, com uns três meses foi nomeado outro gerente, mas eu acho que eu fiquei, de uma certa forma, lembrado. Então surgiu uma oportunidade de gerência média. Foi necessária uma pessoa, porque Coremas é uma cidade pequena, era um posto que só tinham três funcionários. Um estava de férias, e a gerente tinha que fazer um MBA [Master in Business Administration], então só tinha ficado um. Aí o superintendente ligou para mim e perguntou se eu e a minha esposa poderíamos passar uns tempos lá enquanto o outro voltava de férias, porque Sumé estava numa situação comparativamente confortável. O gerente concordou e eu, meio a contragosto, fui. Eu nunca tinha saído, estava praticamente parado em Sumé, então, fui. Mas aí eu gostei.
P - Vocês ficaram quanto tempo em Coremas?
R - Eu passei dois meses e minha esposa passou só um, porque quando o outro colega voltou, a gente tinha uma menina, a minha primeira filha, que era pequena, recém-nescida. Então voltamos para Sumé e logo depois surgiu uma oportunidade de gerência média em Campina Grande. O superintendente lembrou de mim, perguntou se eu topava e eu fui. Eu fui para a agência nível um, é uma agência que tinha passado por reformas, transformações de reduções de quadro, e uma agência com uma complexidade muito grande. Esse nível um é justamente, porque era uma agência que mexia com praticamente todas as operações de câmbio, operações com empresas, indústrias, operações grandes. Eu fui assim mesmo, com a cara e a coragem. No início, eu tomava conta de várias equipes, foi um desafio e tanto Cheguei meio desacreditado, as pessoas desconfiadas, um camarada do interior e tal, um certo preconceito, mas aos poucos eu fui conquistando o pessoal, e fui aprendendo com eles, porque eu tinha que aprender com eles. E nós conseguimos reverter, foi a agência que eu fiz grandes amizades. Até hoje é uma agência que eu chego sinto que sou de lá, é como se eu tivesse saído no dia anterior. Aí, em Campina Grande eu fiquei quatro anos e meio, lembrando que quando eu saí de Sumé, já não existia crédito rural, agrícola. Em Campina Grande muito menos, porque é como eu falei, uma agência com outro perfil, então não tinha crédito rural. Em Campina eu continuei a estudar, voltei ao curso de História. Aí surgiu um programa de novos gestores, que o banco criou um concurso. Eu passei e fiz o treinamento em Brasília. Então eu fiquei na bolsa de novos gestores. Em Sumé surgiu o Qualidade Total, cinco “s” e tal. Eu inseri, entrei de cabeça - eu gosto muito dessas novidades. Então, quando eu cheguei em Campinas surgiu o Plano de Excelência e Competitividade, o PEC. Foi uma espécie de uma gincana entre as agências, cada uma escolhia um processo que queria melhorar. Tinha um pé na Qualidade Total, então eu entrei também. A nossa equipe ganhou na região, fomos para João Pessoa, disputamos e ficamos em segundo lugar no estado. Enfim, eu fui posteriormente, porque estava na bolsa de gerente e fui nomeado para São João do Rio do Peixe.
P - Do Rio do Peixe?
R - É, São João do Rio do Peixe. É uma cidade no extremo da Paraíba, quase divisa com o Ceará e Rio Grande do Norte. Então, foi a minha primeira administração.
P - E como era essa agência?
R - Quando eu cheguei lá eu me surpreendi, porque era uma agência no alto sertão e, para as pessoas, eu era da Paraíba, e eu não sabia, mas o sertão é muito melhor do que o Cariri em termos de clima. Lá é mais quente, mas chove mais. E São João do Rio do Peixe, particularmente faz parte de uma bacia do Rio do Peixe, que é um rio lá, que é quase como um oásis. Basta dizer que tem um açude no município vizinho, que é Lagoa do Arroz, eles plantam arroz, então, realmente, a água é uma coisa que até assusta. Naquele local o crédito rural era intenso, então nunca deixou de haver operações rurais. O PRONAF [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar] já existia e eu fiquei estarrecido: “Como é que ainda se faz crédito rural aqui?”. Porque no resto da Paraíba só duas agências tinham crédito rural e mesmo assim a outra em menor quantidade. Em São João do Rio do Peixe era o forte. Eu disse: “Rapaz, o negócio aqui está fora do passo”. Aí eu falei para o pessoal: “Como a gente vai fazer?”. Porque o crédito rural demanda uma mão-de-obra muito grande e nós estávamos sendo cobrados por outras demandas. Então, na verdade, o crédito rural estava competindo: primeiro, conosco mesmo, porque nós não estávamos sendo vistos, e tinha as prorrogações, tinha cobrança, gente além da conta na agência - a agência era pequena para outros serviços. Eu disse: “Está ruim”. Combinamos lá: “Rapaz, vamos desestimular?” “Vamos”. Foi uma idéia infeliz, que o pessoal tinha uma cultura forte e quando eles perceberam que o gerente não estava falando a língua deles, vieram com toda a carga: “Se não tiver aí, a gente vai fechar a agência, vai botar boi, vaca, trator” “Homem, não faça isso”.
P - Você mexeu num vespeiro?
R - É, eu disse: “Meu amigo, não dá não Vamos por outro lado. (riso) Vamos trabalhar aqui o que for e tal, mas não dá para tirar isso aí, não É uma questão cultural”. A gente deu uma educada, deu uma enxugada, dissemos: “Vamos fazer a coisa com mais cautela, com mais responsabilidade para o produtor, porque a gente tem sempre que ter uma visão de que se a gente emprestar de forma errada, o primeiro mal que nós estamos fazendo é para o produtor, que ele não vai ter condição de pagar, vai ficar inadimplente, não vai poder fazer outras operações”. Então, a gente tinha essa visão, orientava o pessoal, visitava. Então eu voltei ao crédito rural, que era o meu início do banco, antes que o banco como um todo voltasse por uma decisão da comunidade. São João é uma cidade que, como todo sertão, o pessoal é muito receptivo. Lá a gente tem um relacionamento muito bom, excelente. As pessoas são exigentes quando têm que ser exigentes, são conciliatórias quando a gente se depara com dificuldades, são compreensivos. Foi por ser a minha primeira, e os colegas deram todo o apoio. A gente sempre passa por lá, pára na casa deles, almoça, e quando eu vou na cidade, a cidade me recebe de braços abertos. Lá nós ajudamos a fundar o Clube dos Diretores e Lojistas, porque a cidade tem uma particularidade: ela fica a 18 quilômetros de Cajazeiras, que é uma cidade grande - 70 mil habitantes ou mais - que tem um comércio intenso. O comércio de Cajazeiras, ele é regional também, vem gente do Ceará e de todo canto. Então, já existe um know-how do comércio de Cajazeiras muito grande, de promoções, de festas do ano, Semana Santa. Então, isso faz com que muitas pessoas de São João vão resolver suas coisas em Cajazeiras, pela proximidade, inclusive lá se desenvolveu o comércio de taxistas. Na minha época, tinha em torno de 40 taxistas cadastrados para levar as pessoas de São João para Cajazeiras, cobravam uma passagem barata e o pessoal ia. Então o pessoal ficava angustiado - principalmente os comerciantes - e procuravam culpar alguém, então, quando o banco tinha algum problema nas máquinas e o dinheiro não saía, a culpa era do banco, porque o banco não tinha dinheiro e as pessoas iam fazer as compras em Cajazeiras, iam tirar o dinheiro em Cajazeiras. Eu vi que o problema era geográfico, e de marketing. Aí, eu reuni o pessoal na Câmara de Vereadores. Alguns vereadores até nos acusavam, a gente ia para o rádio e tudo, e eu fui para Câmara dos Vereadores e disse: “Pessoal, o problema é nosso, não é meu e nem de vocês, é nosso. Eu vou sair daqui e o problema vai ficar, então a gente tem que resolver isso”. Então, eu fiz as minhas ponderações dentro da minha visão, que eu estava chegando de fora: “O problema é geográfico, o problema é do marketing do comércio de Cajazeiras”. Eu digo: ”Vocês têm promoção? Vocês dão brinde nesses eventos, como Natal? Vocês sorteiam bicicleta? Quanto é que está custando o bacalhau aí?”. Então, o pessoal percebeu e surgiu a idéia de ir mais além, criar um Clube de Diretores e Lojistas. Eu participei da reunião, disse que o banco ia participar, porque estava no comércio, mas que era importante que eles levassem a diante. Isso aí foi feito na minha gestão, foi uma coisa marcante. Lá nós fizemos operações para muitas outras coisas: apicultura, granjas de galinhas. A atividade agrícola e pecuária é muito mais intensa do que aqui no Cariri.
P - Quer dizer, mais uma vez, é um exemplo de inserção comunitária, essa presença do banco no dia-a-dia da comunidade, interferindo e contribuindo para a resolução dos problemas que vão acontecendo durante o processo, não é isso?
R - Exatamente E também, essa história da visão ampla, você não pode chegar de cabeça baixa na agência, ficar preocupado com aquelas rotinas do dia-a-dia, aqueles problemas que existem e que você tem que resolver. Obviamente aqueles produtos que você tem que vender também, porque atendem a uma estratégia maior do banco, mas você não pode abaixar a cabeça e não ver ao seu redor.
P - De São João do Rio do Peixe nós estamos caminhando para Monteiro?
R - A minha situação em São João do Rio do Peixe é simples, ficou com uma boa visibilidade na superintendência. Eu fui visitar vários superintendentes e fiz a opção por Monteiro, porque ficava vizinho a Sumé, a cidade dos meus pais, dos pais da minha esposa, a minha mãe já está com mais de 80 anos. Monteiro é uma cidade de porte maior, com desafios maiores e é importante porque você, que já superou aqueles níveis de dificuldades, fica com vontade ter um nível de dificuldade maior, então Monteiro é a cidade ideal. Enquanto muitos colegas pleiteavam Campinas, João Pessoa, os centros grandes ou então cidades no entorno, que possibilitassem que eles até morassem em Campina Grande ou que os filhos estudassem. As minhas filhas ainda eram pequenas e eu disse: “Não, eu vou para Monteiro. É um passo de cada vez”. Então, eu vim para Monteiro e chegando aqui, eu cheguei praticamente junto com essa metodologia do DRS [Desenvolvimento Regional Sustentável].
P - Como é que foi esse encontro?
R - Para ter uma idéia, o DRS foi estruturado em 2003 para algumas agências dos estados com menor IDH [Índice de Desenvolvimento Humano], onde a Paraíba estava inserida. Tiveram vários critérios, como de influência na região e de IDH. Monteiro foi escolhida e eu estava em São João do Rio do Peixe. Então, a primeira coisa que tinha que ser feita era que o administrador fizesse o curso do DRS. O administrador daqui, na época, foi e fez. Quando eu cheguei aqui, disseram: “Rapaz, o administrador novo não tem o curso do DRS”. Aí eu falei: “Então faz, urgente”. Aí só tinha na região norte e eu fui para uma turma em Santarém. O primeiro contato com o DRS foi me mandar para Santarém e eu não conhecia a região norte ainda. Chegando na região norte, primeiro você se assusta, porque o mar é a terra, e a terra é o mar, eu nunca tinha visto tanta água na vida, realmente é um choque. Água doce Mas foi um curso muito bom, a minha instrutora foi a Eliane Mattioli, que depois assumiu vários direcionamentos do DRS. Eu voltei para Monteiro bem disposto a executar a coisa.
P - O que mais te marcou nesse aprendizado, nesse curso em Santarém, o que o DRS abriu na sua cabeça que tenha marcado mais?
R - O choque da região, você não tem idéia Eu acho que todo brasileiro deveria ir à região norte, a gente não tem idéia do que é, e das imensidões, a extensão. Nós fizemos o curso em Santarém com toda essa característica e esse peso de visual da região norte, mas tinha gente de Goiás, Paraíba, Pernambuco, Amapá, Pará, de vários estados do Brasil com experiências diferentes. A gente viu ali a troca de experiências, e a gente viu que o DRS só poderia seguir um caminho: pelo respeito às diferenças. É o entendimento de que o diferente existe, sair do maniqueísmo, entra o olhar do diferente. Isso foi o que marcou. A teoria em si é uma coisa muito bonita, é voltada não só para a economia, mas para o social, para o ambiental, que era uma coisa que, apesar de eu ter tido um pouco de visão na especialização, era uma coisa que estava chegando. O cultural, que permeia tudo. Essa preocupação ambiental apareceu de uma forma nítida pela primeira vez, porque a economia social, de uma certa forma, estava entrelaçada nesses programas e tudo mais que a gente via, vivenciava na nossa carreira. Mas aí surgiu o ambiental e esse respeito ao cultural, então, isso era o novo discurso. Aqui em Monteiro, a gente não teve dúvida de que a cadeia da caprinocultura era a mais organizada.
P - Como isso foi identificado, como você embarcou nesse projeto?
R - Começou essa movimentação antes do DRS, então a prefeitura e o SEBRAE [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas], entre outros órgãos, viram que a caprinocultura era uma atividade que vinha se mantendo. Sobre todas as dificuldades, tudo acabava, menos a caprinocultura. Existe um ditado aqui que diz que quando a cabra ou o bode morre de fome, é porque os donos já morreram. É um animal que se vira sozinho, então as pessoas usavam a cabra como uma espécie de poupança, um investimentozinho que ele tinha ali para quando necessitasse. Ele pegava uma cabra, ia no mato, tangia, vendia e tinha aquele dinheiro certo. Aquilo não dava muita manutenção, porque ele soltava no mato. A cabra também não era usada para leite, o leite de cabra não tinha valor comercial, só quem tomava leite de cabra eram aquelas pessoas que não podiam tomar o leite de vaca por conta de questões de alergia ou alguma dificuldade orgânica. Como essa pessoa fazia? Ou ela comprava uma cabra ou então encomendava o leite e era dado. Então o leite servia somente para as crias do rebanho e era muito pouco, por que houve uma erosão genética na cabra para ela se adaptar a esse clima seco. Essa cabra do chão só dá em torno de meio litro por dia, então, a escala é praticamente inexistente. Mas aí, o SEBRAE e a prefeitura se reuniram. Isso aqui era uma fazenda da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], esse local, que vivia abandonado. A Embrapa fechou e ficou abandonado. Então fizeram um acordo, a prefeitura adquiriu e fundou a associação, a Emater [Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural] abriu aqui e foi se organizando.
P - Isso foi quando?
R - Em 2000, 2001. Então, conseguiram recursos do Projeto Cooperar, para fazer a usina do leite. Quando a usina foi finalmente instalada, não houve condição de recolher leite de cabra para testar o equipamento, porque não tinha, a quantidade era insuficiente, precisou testar com leite de vaca. Então, a partir daí, as dificuldades estavam imensas. Então, quando nós entramos, o DRS começou, tinha essa organização, mas tinham enormes obstáculos. Então, nós financiamos cabras de raça. Para você ter uma idéia, a cabra normal valia entre 50 e 70 reais e a cabra de raça valia em torno de 300 reais. Nós selecionamos, têm técnicos e tudo mais, e esse foi um ponto do banco que entrou. Mas através da Fundação Banco do Brasil, nós removemos outros obstáculos como um caminhão isotérmico para o transporte do leite, que antes era numa caminhonete com gelo em cima, então o alcance da distribuição era muito limitado. Então, esse caminhão isotérmico deu essa capacidade de atingir locais mais distantes. Os programas governamentais, tanto o Fome Zero do Governo Federal, como o Programa Leite da Paraíba do Governo Estadual, se uniram, possibilitaram o início e a permanência desse trabalho até que fosse inserido no mercado privado.
P - Como se deu esse aprimoramento genético dos animais, essa importação de matrizes e de cabras de boa qualidade? Foi inseminação? Como se deu isso e quem pôde contratar esse tipo de operação?
R - Esse programa é voltado para a agricultura familiar, para o pequeno produtor, porque ele só é viável se você não tiver grandes despesas. Então, você com a família, se você próprio reservar algumas horas para cuidar das cabras e tirar o leite, você ganha dinheiro, mas se você for contratar pessoas, não dá Então, foi por isso que muita gente com dinheiro tentou entrar e depois saiu, só ficaram os pequenos produtores. Aproveitando para não esquecer uma coisa curiosa: a participação das mulheres nesse processo. Como a cabra é um animal de porte pequeno e relativamente dócil, ao contrário da vaca - do gado, que é uma atividade aonde há um predomínio masculino -, as mulheres puderam ter uma participação ativa no processo. Eu arrisco dizer que quase todos os processos têm a mão de mulher, mas começou com 50 e poucos produtores, passou para 100, 140, e já têm 190. Desses, 15% dos associados são mulheres, então isso foi uma melhora na partcipação do gênero feminino na atividade produtiva. A aquisição de matrizes de qualidade, mas não fica só nisso, teria que reproduzir, então foram adquiridos bodes e esse bode atua em rodízio, passa um tempo como produtor, depois com o outro e tal. Isso aí não funcionava bem, então a gente idealizou um bode móvel, que seria um equipamento de inseminação artificial. Eles botaram esse apelido de bode móvel, que seriam dois carros: um com equipamento e o outro com o pessoal que vai nas fazendas e fazem inseminação. Eles fazem a seleção de sêmen, diversifica, porque o problema do bode é que se ele cruzar, se for só um bode, daqui a pouco tem problema genético, então tem que trocar o bode. Não tem esse problema com o controle de uma inseminação artificial. Então, foi também conseguido com a Fundação Banco do Brasil e a Emepa [Empresa Estadual de Pesquisa Agropecuária da Paraíba] é quem controla essa parte. É um órgão do estado.
P - Qual foi o resultado, do ponto de vista da escala de produção, depois de toda essa intervenção? O que é aquele meio litro por animal, o que isso significou depois?
R - Hoje, os animais que nós adquirimos têm que estar num patamar de um litro e meio a dois litros o dia. A produção do município hoje gira em torno de dois mil litros dia ou mais. Geralmente mais, porque depende também da época do ano. Então, uma época tem mais pasto e eles comem mais e produzem mais, mas a média é de dois mil litros dia, é uma produção diária.
P - Quer dizer, já dá trabalho para a usina?
R - É, ela já se mantém bem. É lógico que a capacidade dela é bem maior, mas ela se mantém bem.
P - E o que esse renascimento da ovinocaprinocultura significou aqui para Monteiro?
R - Essas cidades pequenas do interior do nordeste se baseiam na aposentadoria dos beneficiários do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] e do funcionalismo público, porque, como eu já disse, a agricultura praticamente deixou de existir como atividade realmente econômica nos padrões de escala. O comércio girava em torno disso: aposentados do INSS e funcionários públicos. Então essa estratégia fez com que fosse dado um novo horizonte. Os próprios associados podem falar melhor, mas a associação tem computadores, então todos os associados recebem através de contas, têm cartão de crédito. Não tem aquela história de ficar esperando o dinheiro da associação, da cooperativa.
P - Qual é o nome da associação?
R - É AOCOOP, Associação de Ovinocaprinocultores do Cariri Ocidental da Paraíba. Então eles ganharam crédito no comércio, passaram a ser disputados pelos comerciantes, passaram a ter auto-estima. Nas visitas que a gente tem, a gente vê que eles compraram moto para transportar o leite, antenas parabólicas. Houve uma época que uma das exigências do programa do leite foi que tivesse sala de ordenha, que é o correto. Muitos não tinham, então veio aquela coisa: “Tem que fazer e tal”. Então, nós desenvolvemos uma sala de ordenha barata, que a cabra entra, ficam poucas lá dentro, e já saem, mas tudo dentro dos padrões de higiene e tal. E quando nós fomos visitar um produtor, ele dizia com orgulho que tinha feito aquela sala de ordenha com recursos dele, que o que ele produziu deu para construir aquela ordenha, ou seja, não foi ninguém que deu a ele, foi o produto, o trabalho dele que conquistou. Então, a gente vê essa auto-estima nas pessoas. Fora que muitos desistiram de ir para outros centros como São Paulo e Rio de Janeiro. Alguns filhos de agricultores que tinham ido para lá, voltaram, porque aqui estava tendo essas condições. A gente vê que para o pequeno produtor, para essa mão-de-obra familiar, são 300, 400 reais a mais no final do mês, é um reforço no orçamento que é bastante bem vindo.
P - Eu vou de fazer uma pergunta óbvia, mas eu queria que você refletisse um pouco sobre ela, porque tem tudo a ver com isso que você está nos contando. Como é que você avalia o papel que o Banco do Brasil desempenha nessas comunidades locais com esse tipo de intervenção?
R - Significa que o Banco não pode estar como um estranho na comunidade, ele tem que estar ali fazendo parte dela e vivendo as coisas boas e as dificuldades também, procurando soluções conjuntas dentro daquela óptica do respeito ao diferente. Então, uma das coisas que eu achei interessante no DRS foi a quebra daquela tradição de trazer a coisa pronta dos sábios lá de cima, de baixar os milagres dos santos. O cara descobre que um produto, como nós tivemos dezenas de exemplos. Nós tivemos o caso da algaroba, que a algaroba foi trazida para o nordeste como sendo a salvação, porque era rica em proteínas, porque era bom, e porque realmente se adapta bem à seca, porque ela é da África. Só que é uma cultura predadora. Quando ela chega acaba com as outras e hoje está se tirando a algaroba. Então essas coisas trazidas de fora sem você saber o que vai dar, e querer que as pessoas comprem aquela idéia na marra. O DRS procura ir ao encontro das pessoas para ouvir: “O que você acha? O que você tem? Como é? O que eu posso ajudar nisso?”. Então, essa mudança de foco, eu acho que foi o diferencial do DRS, que me comprou.
P - Você estava relatando os resultados do ponto de vista do desenvolvimento econômico, da criação de renda para os produtores, mas como é que isso reflete na cidade, no comércio da cidade, na vida da cidade?
R - Houve o chamado círculo virtuoso, que à medida que os produtores tiveram mais recursos, eles passaram a consumir nas comunidades que são deles, eles não vão consumir em outra cidade. Então, houve o desenvolvimento de casas de materiais para agricultura, de produtos agrícolas, pecuários, farmácias veterinárias e outros também, farmácias comuns, supermercados, postos de gasolina. Então, tudo isso recebeu o impacto disso, o próprio banco se beneficiou com isso. O banco teve um aumento de contas, teve aumento de operações do PRONAF, operações com os próprios produtores e esses ganhos indiretos. Então, é esse círculo virtuoso que faz com que a comunidade se retro-alimente e supere os seus desafios.
P - Qual é o futuro da ovinocaprinocultura aqui em Monteiro?
R - Nós estamos chegando ao final da cadeia, que tem o curtume agora. Quando tiver o elo do couro inserido, que hoje ainda é vendida a atravessadores, se desenvolverá artesanato. Mesmo a cultura do couro melhor trabalhado ou com algum valor agregado fecharia o ciclo. O importante é que ele seja incorporado definitivamente ao mercado privado para que dependa menos de programas governamentais, e ande com as suas próprias pernas.
P - Existe uma chance objetiva para que isso ocorra?
R - Existe. Hoje tem uma incubadora de negócios que o SEBRAE organiza. Ele trabalha em duas frentes, tanto procurando tecnologias novas como desenvolvendo os novos produtos. Hoje é comum o leite in natura, o iogurte, o achocolatado, queijo, licor. Mas a busca de outros produtos, trabalhar marcas, embalagens, coisas que quando a gente está aqui no local a gente não têm muita necessidade, mas quando a gente vai se inserir no mercado, vê que é preciso ter uma série de cuidados nesse aspecto. Então isso já está bem adiantado e, como eu disse, temos produtos vendidos em Campina Grande, João Pessoa, Recife. É entrar para depois ampliar os horizontes.
P - Esse cenário, aqui, que você está descrevendo, especificamente, em Monteiro, é uma coisa comum na região, nesse canto da Paraíba, outras cidades, outras praças têm esse tipo de vocação para ovinocaprinocultura?
R - Na verdade, nessa região, a atividade econômica era a bovinocultura. Nós temos uma bacia de leite de vaca muito grande, não só de Monteiro, mas de Sumé, da região, dos municípios ao redor. A caprinocultura era uma atividade acessória. O morador do sítio - eu não digo nem o fazendeiro - só contava as vacas. Ele dizia sem nenhum embaraço que tinha quatro vaquinhas, mas não tinha coragem de dizer que tinha 50 cabeças de cabra, porque a cabra era uma atividade mal vista, era uma coisa que não dava resultado, era só para preguiçoso. Então tem até um apelido, que era o vaqueiro de cabra, que era um camarada que não queria nada. Então, a cabra era aquela coisa da resistência. É por isso que eu acho que a cabra é o maior exemplo da resistência, porque ela foi colocada num país estranho, numa região estranha, com um clima altamente desfavorável, o povo com raiva dela, e ela se manteve Então ela é realmente a resistência em pessoa. Isso favoreceu com o quê? Tinha essa tradição do bovino e tinha a atração da cabra, então, faltava juntar isso numa atividade que fosse viável sobre todos aqueles aspectos. Sobre o aspecto social, que desse auto-estima, que motivasse as pessoas a fazer aquilo - porque ela estava tendo o retorno - e que também respeitasse o ambiente. A cabra não causa maiores danos ao ambiente. A cabra solta ainda pode causar, porque ela, na busca de alimento, está se virando para comer, come casca de árvore. Então, se ela começar a comer muito o pé da árvore, a árvore morre. Essa do leite não tem esse problema, porque tem que ter um cuidado, tem um cativeiro, uma alimentação, no tempo certo, balanceada. Se a atividade não for econômica, ficava naqueles velhos programas que via muito o lado social, mas não chegava à questão econômica, então, quando cessava a ajuda, o programa morria. Essa caprinocultura, na verdade, está aqui, o DRS está aqui em Monteiro, mas existe DRS de caprinocultura em Sumé e em outras cidades da vizinhança. A própria dimensão estrapolou os limites do município. Por exemplo, hoje existe envio de leite para Campina Grande, para outra região, e tem que juntar aqui leite de outras cidades: São Sebastião do Umbuzeiro, São João do Tigre. Quando a coisa anda bem, termina atraindo. Tem o detalhe da atração, que no início, poucos produtores quiseram entrar, e mesmo assim, muitos quiseram sair depois. Aqueles produtores que entraram, todo final de mês, estavam recebendo o seu dinheirinho, então eles começaram a procurar a associação. Lá no banco nós desenvolvemos junto com eles em assembléia um fundo para pagar as operações, um fundo em leite. A gente criou aqui a moeda leite, leite de cabra, ou seja, o produtor, se entregasse 10 litros, – eu estou chutando – ficaria um litro para pagar a operação do banco. Então, o camarada fazia a planilha: “Ele entregou 10 litros, então, um vai para a operação”. Pagava os nove para ele e um deixava numa poupança no Banco do Brasil, prestava conta e tal. Então, quando chegava o vencimento, o produtor não precisava mais desembolsar recursos, já tinha lá na poupança da associação. Isso foi uma coisa que a gente conseguiu conversando com eles e deu certo, sem problemas.
P - Quer dizer, criou-se um vínculo de confiança na relação entre os atores desse processo?
R - Exatamente No início, o pessoal tinha muita desconfiança, porque eles não estavam, não tinham intimidade com essas tecnologias novas e tal. Teve a figura do ADR, que é o Agente de Desenvolvimento Rural, esse foi fundamental, que é um técnico formado, uma pessoa da comunidade da zona rural, que mora próximo aos produtores. Cada ADR fica responsável por, no máximo, 20 produtores. Ele tem uma moto, recebe a instrução e é um camarada que vai verificar se os bichos estão com problema, se o manuseio está correto, enfim, ele tem as visitas normais e tem as visitas extraordinárias. Existe um controle de qualidade quando o leite chega nas usinas, se a densidade está correta, se tem microorganismos, patologia, se tem problemas químicos, todos os testes são feitos antes de misturar no tambor. Aqueles que são recusados, por qualquer motivo, o ADR tem que ir lá e ver qual é o motivo, pode ser problema de saúde do animal. Se for coisa simples, ele mesmo orienta, trata, se for um caso mais complexo, ele manda para o veterinário. Então, ele funciona, na prática, como um médico de saúde da família do animal. Foi uma coisa que também foi idealizada aqui. Hoje já se expandiu para o Brasil todo. Então, a Fundação Banco do Brasil é quem paga os salários, e o SEBRAE [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] é quem controla, administra. Ele ganha um salário mínimo, mas na época eram 100 reais para o custeio do combustível da moto. Então, foi uma ação realmente imprescindível.
P - E esse ADR é sempre alguém da comunidade?
R - Alguém da comunidade. Ele é treinado, quando um não está podendo, sai A gente treina outro, mas sempre alguém da comunidade, que esteja próximo para diminuir a distância do atendimento.
P - Como é escolhido esse ADR?
R - Tem o treinamento, então aquelas pessoas que têm uma aptidão maior, a gente vê aquele camarada, geralmente pessoas mais jovens, entre 20 e 30 anos que dispõem de tempo. Vários itens são abordados, como tempo, pré-disposição, capacidade de aprendizagem, vários fatores. A gente escolhe entre os filhos dos produtores.
P - Com um quadro tão fascinante, interessante de trabalho, por que você saiu de Monteiro?
R - Eu vou citar até Paulo Coelho aqui, e dizer que tudo acaba, até as coisas boas. No Banco do Brasil a gente tem o rodízio de gerência, então eu estava há três anos em Monteiro e já era velho. Três anos já é gerente velho, então eu sabia que ia sair, isso seria uma questão de tempo. Aí surgiu uma oportunidade na auditoria em Recife, que eu fiz uma seleção. Era uma coisa que eu também tenho um certo fascínio, pela questão dos controles, um aprendizado em outra área do Banco. Então surgiu uma oportunidade, eu fiz a seleção, foi muito difícil, passei um dia inteiro de entrevista, o pessoal me revirou pelo avesso e eu fui aprovado. Eu quis ter essa experiência nova. A questão de que eu tinha dado essa contribuição ao Banco durante 19 anos, eu estou com 20 anos de banco, passei 19 no interior e minhas filhas cresceram, estavam precisando de um apoio educacional. Eu fiz a análise e realmente me decidi por ir para Recife, mas certo, sem nenhum sentimento de culpa, eu já ia sair de Monteiro mesmo. A coisa estava andando com os seus próprios pés. Eu não achava, nem acho, que eu tenha sido o responsável por isso aqui. Se eu fiz muito foi entusiasmar as pessoas a produzir bons encontros, provocar bons encontros entre os parceiros. Às vezes um parceiro estava mais exaltado, eu tentava acalmar e a minha forma de reagir era conciliatória. Eu acho que isso é uma característica possoal. Tudo bem, cada um tem um jeito, pode ser que eu tenha contribuído mais pelo meu jeito de ser. O resto não fui eu, foi o SEBRAE, foi a Emater, a prefeitura, o Cendov [Centro de Desenvolvimento da Ovinocaprinocultura], - que é uma autarquia da prefeitura -
todos juntos, e o Banco do Brasil também.
P - Qual é a sua rotina de trabalho hoje?
R - A minha rotina é o seguinte: a auditoria hoje, está muito focada nos processos e nos riscos. Nos riscos que os processos podem causar não está focada mais nessa ou naquela agência, ela vê o processo como um todo. Ela vê desde a agência, desde o cara que faz a norma lá em Brasília, passa pela agência, vai para a superintendência, aí a gente: “Essa norma é adequada, é legal? Tem algum problema que precisa de ajuste? Tem algum passo que era para se dar e não está sendo?”. A nossa atuação é muito preventiva, atendendo questões do Banco Central. É um trabalho empolgante, porque você faz um trabalho propondo melhorias para as pessoas, melhorias de trabalho. Quando a gente chega num ambiente, seja agência ou seja onde for, a gente está ali procurando identificar pontos que possam ser melhorados. Muitos deles não dependem da agência, dependem de outros fatores. É um momento também de trocar experiências com colegas, de ouví-los. Muitas vezes, o colega está lá no dia-a-dia com tanto sufoco que ele não tem a quem recorrer, tem que escutar que não dá tempo, então nós temos essa função meio padre, meio psicólogo, de escutar o colega, as angústias dele e ver: “Será que eu posso ajudar em alguma coisa?”. Então é uma coisa que me empolga também.
P - Como você avalia, no sentido geral, esse papel que o banco desempenha no desenvolvimento do país, a presença que ele vem marcando, o que ele vem estimulando? Como você avalia com esses seus anos todos de Banco em que você já viu bastante coisa?
R - Eu fiz o Cordel sobre os 200 anos do Banco do Brasil, tive que me debruçar numa literatura um pouco vasta e vi as
várias etapas que o Banco passou. Então, desde um órgão meramente do Império, as crises terríveis, depois, meramente mercantilista, depois novamente o governo, depois é associado com o Banco da República, se juntou novamente na guerra. A participação do banco na guerra é como agente de desenvolvimento, naquela idéia do desenvolvimentismo na metade do século XX. Então o banco é aquele instrumento de apoio ao país, eu vejo assim. Não se pode falar do Brasil sem falar do Banco do Brasil, em termos de apoio, de implementação de idéias que tentaram e conseguiram muitas coisas, que o Brasil conseguisse chegar a esse nível de desenvolvimento, que bem ou mal, é um fato. Então o Banco do Brasil nunca esteve ausente. Eu vejo mais uma vez isso, como o Banco do Brasil vai se fazendo presente na rotina e nas dificuldades, que é do jeito que eu falei, que a agência tem que estar presente nas coisas boas e nas dificuldades de onde está localizado. A gente tem que estar em sintonia com essas questões e o DRS veio preencher, de certa forma, essa lacuna que o Banco tinha, mas por um tempo, por sua restruturação, por novas exigências e por novos cenários que aconteceram no mundo todo, teve que se reposicionar. Mas aí o Banco disse: “Tem que ter esse olhar social, não tem como pensar o Banco do Brasil sem esse olhar social”. Eu acho que o DRS cumpre esse papel.
P - O Banco tem mais capacidade de dar respostas efetivas às demandas, que não são necessariamente aquelas demandas de negócio apenas, são de desenvolvimento mesmo, não é?
R - Inclusive com o olhar do negócio. Porque se uma coisa é boa mas não gera retorno primeiramente para o produtor, então não é uma coisa boa. É como a música de Luiz Gonzaga: esmola vicia o cidadão, ou mata de vergonha ou vicia o cidadão Então, a esmola a gente já deu bastante e não surtiu efeito. É a velha situação bíblica de ensinar a pegar o peixe, a pescar. Eu acredito que o DRS passa por isso, que é o foco na questão social, na ambiental, que é imprescindível hoje. Não se faz nada hoje sem pensar no ambiente, não se vai financiar uma coisa que vá acabar com o ambiente, mas pensando no lado econômico, no retorno que vai ter para que aquela coisa vá adiante, que não seja um dinheiro jogado fora que quando acabar aquele apoio a atividade também se acabe. A sustentabilidade, eu acho que é a palavra mais cara das três, porque o desenvolvimento é uma coisa desejada, é uma coisa que pela própria origem do termo supõe-se uma coisa que esteja envolvida e a gente ajude a tirar o envolvimento, então pressupõe uma coisa já existente. Isso quebra aquela idéia errada do desenvolvimento como trazer uma fábrica, que ali a comunidade não está envolvida com aquela idéia. Então tem que ser uma coisa que esteja envolvida com a comunidade, e a gente desenvolva, traga às claras e ajude a funcionar. Já a regional puxa aquela coisa da cultura, do respeito, da diversidade, mas a sustentabilidade é fundamental, que seja utilizada não somente por nós, por nossa geração, mas pelas gerações futuras.
P - De onde vem esse seu fascínio pela Literatura de Cordel, e como nasceu essa vocação de escrever Cordel?
R - Quando eu era adolescente eu comecei a cometer minhas poesias de escola, aquelas coisas qua a gente mostra para um colega, para o outro, mas sem nenhuma pretensão. O cordel tem muita música, é aquela coisa pontuada, porque o repentista tem aquela pontuação de cifras, de notas. O meu pai tinha a mercearia, que quando eu era pequeno tinha os repentistas que iam para lá pedir emprestado o salão e tocavam lá, enchia de feirantes, e ficavam dando dinheiro, estirando aqueles versos. Desde pequeno eu ficava escutando. Eu desconfio que isso talvez tenha tido alguma interferência, eu não tenho certeza, mas essa questão da métrica na hora que eu estou fazendo, eu acho que pode ter vindo daí. Eu não fazia muita poesia, com essa preocupação, eram mais umas poesias de adolescente, de paquera, essas coisas todas. Mas sem muita preocupação em levar adiante a coisa. Já a crônica, não. Os meus professores elogiavam redações, diziam que eu tinha jeito e eu comecei a escrever para o jornal de Campina Grande, fazia sobre tudo, sobre cinema, sobre um livro que eu lia, o que eu quisesse, era tema livre. Monteiro é um celeiro de poetas, tem cantadores, tem o Pinto [de Monteiro], que em Monteiro foi um dos maiores repentistas da região, e muitos músicos, tem Flávio José, que é um ex-colega do Banco do Brasil, cantor de renome no Forró. A Banda Magníficos, daqui de Monteiro,
também teve grande repercussão. No sábado à tarde, você sai, as garagens são cheias de gente se aventurando com órgão e cantando. Você vai assistir uma missa, o coro, o pessoal que canta lá, é de você sentir vergonha e dizer: “Meu Deus do céu, onde é que eu estou metido?”. Esse pessoal é bom Como a oferta é grande, o pessoal tem como escolher. Você vai para o colégio e a menina que canta é um negócio fantástico Então, tem todo um ar artístico aqui em Monteiro. Aconteceu uma coisa curiosa: quando eu cheguei aqui em Monteiro, eu vim para a cidade que está na minha carteira de identidade, mas que eu não conhecia, porque sou de Sumé, da cidade vizinha. Toda a minha história, toda a minha relação é com Sumé. Eu me preocupei em conhecer a cidade, até fiz uma brincadeira no cordel, botei que eu me encontrei em Monteiro como se fosse a Esfinge no deserto que estivesse dizendo para mim: “Decifra-me ou devoro-te”. Então eu fiquei preocupado em conhecer um pouco a cidade, o passado que eu não tinha vivido. Eu fui para a biblioteca, aqui tem uma biblioteca boa, peguei os livros de autores de Monteiro e fui dando uma olhada, aí me surgiu a idéia: “Eu poderia fazer um cordel sobre esse meu olhar de chegada, como eu vi a cidade”. Tem uma história interessante aqui, que em 1911 teve um juiz de direito que se rebelou contra o governador do estado e decretou estado de sítio, prendeu o delegado, foi uma confusão Terminou figindo para o Juazeiro de Padre Cícero, que o Padre Cícero deu guarita a ele lá. Essa história é muito interessante. Mas aí eu comecei esse cordel, porque um cordel normalmente tem umas 30 e poucas estrofes. Eu fiz umas 30 e poucas estrofes, levei para um autor de livros daqueles que eu li, que estava aqui em visita e disse: “Eu vou levar e vou pedir para ele fazer a introdução, porque é uma pessoa daqui e tal, eu vou conversar com ele”. Nessas 36 estrofes eu já tinha suado Eu me considero, como o Bráulio Tavares diz, um repetista. Eu fico repetindo aquelas rimas para dar certo, diferente dos repentistas, que é na hora. O camarada quando leu, devolveu para mim e disse: “A rima está boa, mas a história está ruim. Em Monteiro tem muito mais do que isso”. Foi uma facada, porque eu já estava achando que já tinha me livrado daquele encargo e ele disse: “Não, pode fazer mais Pode fazer mais, isso aí está pouco”. E, realmente, ele tinha razão. Eu estava muito em cima da história do juiz, então eu procurei ler mais e ampliei, ficou com 70 estrofes, que para mim era um marco que eu jamais iria bater. Fui mostrar para ele, ele gostou e fez a introdução. Ótimo, a gente divulgou aqui na exposição, teve uma repercussão boa, interessante
P - Sim, mas você fez um de 200 estrofes
R - Eu comecei a escrever sobre a mercearia do meu pai, que eu tinha esse projeto. Na verdade, eu tinha um projeto de escrever um livro sobre alguns personagens de Sumé, aquilo que eles conversam lá em mesa, que o pessoal comenta em mesa de bar, que diz uma história, outra história, e o pessoal me cobrava: “Rapaz, e o seu pai, tu não vai falar, não? Seu pai tem tantas histórias”. Eu fiz em prosa, tanto o do meu pai como o de alguns outros. Tinha aquela história de um camarada que contava muito que foi pagar uma conta de um falecido, que o meu pai não conhecia o forasteiro, contava muito essa história. Eu achei que aquilo ali tinha muito a ver com a Literatura de Cordel. Tem um autor paraibano de 1800 e alguma coisa, Leandro de Barros, que é considerado um dos primeiros cordelistas a publicar Ele fez um livro, o Cachorro dos Mortos, que o camarada matou um casal no sítio, o cachorro viu e só sossegou quando revelou a identidade do assassino. Tem todo um viés sobrenatural. Eu disse: “Se Leandro de Barros faz, por que eu não posso fazer?”. Eu pensei: “Isso dá um cordel”. Só que para eu falar meramente do caso em si, eu teria que dar um contexto local, tinha que falar da mercearia, então eu disse: “Terminei”. A partir daquele fato o cordel cresceu para trás, para citar como era a mercearia. Eu não quis exercer nenhum controle de números de estrofes, onde tinha que parar, parou, porque eu queria narrar uma história. Deu 193 estrofes, se não me engano. Foi um esforço grande, eu terminei meio exausto. Às vezes sai a rima e a estrofe rápido, às vezes eu ficava enganchado numa palavra e não saía. Eu tenho uma característica um pouco diferente do Cordel tradicional, porque como o cordel tradicional é muito feito por repentista, a primeira e a terceira frase ficam livres, que é para eles pensarem o que vai fechar, mas como eu não tenho o problema do tempo, todas elas estão com rima. Quando eu terminei o “A Mercearia do Meu Pai”, eu pensei: “Nunca mais eu vou fazer um negócio desses, Deus me livre, dá muito trabalho”. Aí veio a história dos 200 anos do Banco do Brasil.
P - Como nasceu essa idéia?
R - Em 2007 começaram comunicados internos dizendo que o Banco ia fazer muitos eventos em homenagem aos 200 anos. Eu, como amante da história, fui me inteirar um pouco. Eu consegui os cinco volumes da história do Banco do Brasil, que é de Cláudio Pacheco, e tem Afonso Arinos, que participa do primeiro volume. São volumes grandes que eu tinha, mas nunca tinha tido coragem de enfrentar. Então eu disse: “Eu vou começar a ler”. Comecei Aí pensei: “Eu vou fazer um cordel”. Porque, sim, eu tinha feito um cordel sobre o DRS, pequeno, com poucas estrofes, que, inclusive foi lido no encontro de Quixadá, onde o Presidente Lula esteve. Eu fui convidado e terminei, me botaram nessa saia justa, que não tinha nada combinado. Cheguei lá: “Sobe no palanque e recita o seu cordel”. Eu: “Mas não faça um negócio desses”. “Mas já estava feito” Eu falava de DRS e de Pronaf, então, tinha isso aí. Teve uma boa repercussão, eu disse: “Eu vou fazer a minha homenagem ao Banco. O Banco está completando 200 anos e eu 20 de Banco, ou seja, 10%. Essa é a minha maneira de homenagear o Banco”. Eu tive a idéia, mas quando eu vi o tamanho da empreitada, eu desisti Isso foi mais ou menos em novembro, dezembro de 2007. Mas como eu ia tirar férias em janeiro, eu disse: “Não, eu vou pensar só nas minhas férias”. Quando cheguei nas férias, talvez por conta de estar com tempo livre, eu cometi a loucura de achar que podia ir e comecei O início é muito legal, porque tinha aquele efeito visual da história de Dom João VI, do Dom Pedro I, o Banco foi embora para Portugal, o Banco quebrou, aquelas coisas engraçadas que a televisão mostrou muito, saíram publicações de todo jeito comemorando os 200 anos da chegada da família real, que coincide, é lógico, com o Banco do Brasil. Então, eu comecei por aí, mas eu não tinha a pretenção de chegar em 200, a minha pretenção era uns 120. Eu disse: “Não dá para contar em menos, mas uns 120 está bom”. Eu fiz por etapas, porque não dava para marcar tudo de uma vez, então, eu disse: “Não, eu vou falar uma década, duas”. Então, eu lia aquelas décadas, ia e anotava, fazia os versos e voltava, então isso durou, mais ou menos, de janeiro a março, final de março, começo de abril. Ele foi crescendo e quando eu cheguei no final do último volume, descobri que o último volume era até a década de 50, faltava desse pulo para cá. Eu fui pesquisar outras fontes, Internet, o próprio Banco do Brasil, biblioteca, encontrei o livro da fundação do Banco do Brasil, que tinha também sobre o Museu da Pessoa. Vários aspectos eu peguei, coletei, fui separando em épocas e disse: “Isso aqui é dois mil a não sei quanto. Isso aqui é de 1900 a 1995”. Aconteceu uma coisa curiosa: no início eu estava com receio, aí me deu a idéia: “Se passar de 150 eu vou a 200”. Mas o receio no início era de não chegar aos 200. Quando eu cheguei a 170, eu estava na década de 70, então, eu tive medo de passar, aí eu fiz o contrário, fiz de 200 para trás. Eu digo: “Onde imendar, imenda, porque tem que sair 200”. Eu fui pressionado, porque nós tivemos um encontro nacional de auditores em Brasília, em abril e eu queria levar a novidade, obviamente, que o foco da discussão ia ser os 200 anos do Banco. Aí eu corri, os colegas lá da auditoria ajudaram a gente de última hora, ia viajar no outro dia, pegar o avião, e a gente tirando xerox, cortando, fazendo os folhetos. Nós fizemos tudo manual, só depois é que eu publiquei numa editora, corremos e levamos. Foi um sucesso O próprio presidente do Banco, no palco, recebeu um e leu alguns versos, todas as diretoras, as diretoras que estavam presentes procuraram a parte que lhes tocavam e diziam. A galera aplaudiu, ficou cobrando, eu tive que botar na Internet para atender à demanda. Quer dizer, foi um retorno gratificante. Então eu senti, porque a minha parte, o meu presente foi dado, foi aberto.
P - Você é casado?
R - Sou.
P - Como se chama a sua esposa?
R - Fábia.
P - Tem filhos?
R - Tenho duas filhas.
P - Que idades?
R - É Hana e Lara. Hana está com 14 e Lara com 10.
P - O que a sua esposa faz atualmente?
R - É funcionária do Banco, passou no concurso. Quando a gente estava namorando nós passamos, casamos no Banco e continuamos até hoje.
P - Ela também foi para Recife?
R - Foi.
P - Uma outra pergunta óbvia, mas provocando uma reflexão sua. O que significa para você trabalhar no Banco ou o que significou esse tempo todo, o que representa para sua vida isso?
R - É você estar, de certa forma, inserido na comunidade, significa você ter a oportunidade de conhecer várias culturas do Brasil e vivê-las, vivenciá-las, não é apenas passar, mas vivenciá-las. Também é crescimento pessoal e intelectual também. Se der um olhar para mim antes do Banco, mesmo já tendo deixado a universidade, o Banco me deu horizontes, oportunidades, cursos, treinamentos. Eu sou educador do DRS, entrei, fui selecionado para ser educador e, das primeiras turmas que disseminaram o DRS, eu, praticamente, viajei todas as regiões do Brasil, do Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás, o Pará, Bahia. Não fui mais porque o trabalho não permitia, a gente tinha que fazer a agenda para ajustar, mas foi uma forma de me interagir com culturas das mais diferentes, é muito interessante Em Goiás, por exemplo, a gente viu a miscigenação. Goiás é um estado feito quase por migrantes de outros estados. Eu achei isso muito legal, tem gente de Pernambuco, da Bahia, de Tocantins, Mato Grosso, índios, negros, brancos, o pessoal que veio de Minas, grupos religiosos. Então, com essa diversidade você sente um pouco do que é o Brasil. Quando você sai um pouco do seu casulo, a gente está muito imerso na nossa cultura. Às vezes nós nos pegamos com algumas xenofobias tolas. Quando a gente conhece o outro, o diferente, e a gente é bem recebido, a gente consegue transmitir um pouco da nossa vivência, da nossa cultura. É fantástico
P - Você saberia enumerar uma grande lição que toda essa vivência no Banco te deixou para o resto da vida?
R - Eu acho que a disciplina é muito importante, não a disciplina vista como uma coisa injusta, punitiva, mas a disciplina de você analisar os cenários, de você acatar certas determinações, você ser contra, mas aceitar a visão do outro, tentar dialogar, perceber que o objetivo dali é maior que as diferenças internas. Isso eu aprendi muito no Banco, no dia-a-dia, nas discussões, da gente estar sempre com o olhar diante daqueles problemas do dia-a-dia que o Banco tem, que toda empresa tem, e a própria vida tem.
P - Sonielson, o que lhe parece o fato do Banco do Brasil estar, também, comemorando os 200 anos, resgatando essa memória dele através desse projeto, o que isso significa para você?
R - Significa essa resiliência do Banco como um ente, um ser vivo. É interessante, a comunidade fala do banco como se fosse um ser vivo. A gente fala: ”O Banco do Brasil está completando 200 anos”. Então, enquanto ser vivo, o banco passou por dificuldades imensas e sempre ressurgiu, sempre encontrou saídas. Então eu acho que isso é uma grande lição para todos nós, a questão de você, mesmo nos momentos de dificuldades, encontrar saídas. O Banco passou por vários momentos, teve que implantar tecnologias novas. Antigamente você chegava, ia trocar um cheque e tinha que receber uma senha, ficar esperando várias pessoas. Hoje em dia, é tudo simplificado. O banco passou por essas situações, se adaptou, procurou sempre inovar, sem passar por cima dos seus princípios. Então eu acho que esses 200 anos do Banco do Brasil é muito isso. Só existem cinco empresas no mundo que chegaram a essa marca, e o Banco do Brasil chegou por ser o Banco do Brasil de cada momento. Não é o único em toda a vida, mas em cada momento ele foi o Banco que a sociedade esperava que ele fosse. Eu acho que isso é o que vai garantir a sua sustentabilidade até quando ele tiver esse foco, de que ele representa aquilo que a população deseja de um banco, ele vai permanecer.
P - Tem alguma coisa que você gostaria de ter dito e que a gente não te perguntou?
R - Eu creio que é difícil eu me lembrar. Eu acho que nós abordamos muita coisa.
P - O que você achou de ter participado desse depoimento?
R - Em primeiro lugar: orgulho. Orgulho, reconhecimento. É aquela coisa da garrafa do náufrago, que você joga e ela está retornando com o navio atrás. Então, não foi em vão, porque eu sou muito de não esperar retorno para não me decepcionar com as pessoas. Fiz esse cordel, se as pessoas tiverem gostado, bem Se não tivessem gostado, também, eu não ia ficar com raiva, e nem ia deixar de fazer outra coisa que eu estivesse pensando em fazer. No DRS, da mesma forma, por onde eu andei, onde eu ando, as pessoas lembram de alguma coisa que eu fiz ou que eu ajudei. Eu acho que a gente tem que fazer as coisas que achamos que devem ser feitas, com simplicidade, e não esperar retorno. Mas quando ele vem é bem vindo. Então, o fato de eu estar inserido nesse Museu da Pessoa e, ainda mais, representando a caatinga, da qual eu sou filho, é um motivo de orgulho, é um motivo dessa visão do Banco de aceitar essa diversidade, estar com o olhar em todos os biomas, em toda geografia humana do País. Eu fiquei muito feliz quando recebi o primeiro contato e até agora, sem dúvida nenhuma Eu não mediria esforço para participar.
P - A gente agradece bastante a sua conversa, as suas informações e a sua memória, que foram muito úteis para nós.
R - Obrigado
P - Muito obrigado a você.Recolher