Aqueles nossos pés de carambolas
Naquele ano tínhamos nos mudado não me lembro para qual cidade. Sim, não lembro realmente para onde, porque papai tinha uma mania esquisita de construir casa e na melhor oferta ele vendia. E lá íamos: mamãe- a dona Lazinha,- eu, Marinho e Lúcia, as ou...Continuar leitura
Aqueles nossos pés de carambolas
Naquele ano tínhamos nos
mudado não me lembro para qual cidade. Sim, não lembro realmente para onde, porque papai tinha uma mania esquisita de construir casa e na melhor oferta ele vendia. E lá íamos: mamãe- a dona Lazinha,-
eu, Marinho e Lúcia, as outras três meninas vieram bem depois e óbvio, o paizão à frente da godoyzada toda. Então nos mudamos para uma casa mista, aquelas metade alvenaria e outra metade em madeira. Era um lar aconchegante - a madeira proporciona um conforto diferente do concreto e tijolos. Eu escolhi um dos cômodos de madeira, por ser relativamente grande, um que tinha uns 5 metros as laterais e uns 4 metros a frente e a outra parede da janela.
Uma janela barulhenta, com trincos ruins e com suas abas faltando uns pedaços. Eu, minha irmã e meu irmão a batizamos de “ A casa verde’, por causa da pintura nas madeiras em um verde água todo desbotado. Era bem estragadinha, estruturalmente falando. Mas linda, a achávamos muito linda porque dela víamos há uns 10 metros no fundo do quintal todas as árvores que ali tínhamos: um abacateiro de copa enorme, uma mangueira não menos imponente que cobria o chão com mangas Tomy e eles: mais ao fundo do imenso quintal, os dois pés de carambola. Eu, nunca tinha visto e tampouco provado daquela fruta de formato parecido com estrela. Sim, estrela, numa aula de Botânica, que nós chamávamos de Biologia ou de aula das coisas da terra, eu descobri que nos \"States\" a carambola é chamada de star fruit (fruta estrela).
Eram as duas árvores menores do quintal com poucos galhos grossos e muitas folhas; o que fazia com que eu e meu irmão déssemos preferência para subir no abacateiro ou na mangueira. Mas na competição de dar frutos, os pés de carambola ganhavam com folga dos outros concorrentes. Como tinham frutos! Lindos e aromáticos frutos. E aquela senhora, Lázara Pereira, a
Dona Lazinha não deixava por menos, recolhia aquela abundância de frutos e usava sua criatividade de mãe e experiência com o aproveitamento de alimentos e preparava deliciosos sucos de carambolas e a criançada fazia a festa. Agora já éramos quatro filhos, pois mamãe tinha dado à luz a mais uma menina - e eu e Marinho com cara de poucos amores porque queríamos era mais um menino pra gente zoar. “ Outra menina, que saco hein Marcão! São chatas\", me sussurou o mano quando mamãe voltou do hospital com a notícia.
Mas ficamos no empate. Duas meninas, dois meninos. Anos depois ficaríamos para trás, porque o Sr. Aparecido , nosso pai, o velho Godoy trouxe ao mundo mais duas do sexo femimino e ficou 4x2 no placar para as meninas. Já era, papai e mamãe fecharam a fábrica depois do nascimento da caçula Carla Patrícia, a Paty, como nós a chamamos.
Mas e as carambolas? Ah, as suculentas carambolas! E eram muitas receitas com carambolas. Certa vez mamãe pegou umas não muito maduras, as cortou em cubinhos (o corte brunoise), as misturou com chuchu, refogou e serviu para a gente, tentando nos enganar, dizendo que era só de chuchu a receita. A textura de ambas é meio parecida, então seria fácil dar uma enganadinha na prole. Eu, desconfiado do sabor mais cítrico, exclamei: \"É carambola!\". \"Quieto, come, quer que a gente leve umas chineladas? E nem adianta correr viu, porque ela acerta de longe\", resmungou minha irmã Lúcia.
Eram assim as refeições: saladas de carambolas, sucos de carambolas, carambolas nas lancheiras. Tinham muitas, o ano todo quase. \"Mas mamãe, eu queria abacate, manga\", falei uma vez. \"Coma o que tem, os abacates e as mangas não estão maduros ainda\", ordenou nossa rainha. \"Mas manga verde com sal é gostoso\", eu tentei argumentar, teimoso que era. \" Tá doido menino, ceis
comam as carambolas. Não quero ver ninguém com manga e sal na mão. Ceis qué morrê? Depois bebem leite, pronto, vai tudo me dar trabalho no hospital. Ceis não tem dó da mãe né!\" ela retrucou, se lamentando.
E era assim. Foi assim! Os pés de carambolas reinavam naquele quintal e as frutas sempre estavam à mesa daquele lar feliz. Difícil, pobre, simples, mas feliz. Muito feliz! Com Dona Lazinha no comando: a guerreira. O Sr. Godoy na boléia das compras e dos aluguéis. Eu, o primeiro varão, ajudava nas despesas com meus trampos.
Eu já trabalhava para ajudar nas despesas da casa. A bem da verdade, eu estava com meus 16 anos de idade, começara bem antes na labuta, aos 10 anos. Meu pai chegava com o um avental ou a camisa cheia de graxa ou manchada dos couros que lixava, pois ele tinha uma sapataria há dois quilômetros de nossa casa (não nossa, pagávamos o aluguel naquela). Eu retornava do trabalho com meu uniforme branco, estava trabalhando em um laboratório de análises clínicas. \"Meu dotorzinho chegou\", dizia mamãe. E meu irmão com a roupa cheia de pó de serra, porque estava trabalhando em marcenaria. Experiência que lhe rendeu a profissão que exerce até hoje. Trazíamos o soldo e entregávamos para ela, o centro da casa, a matriarca, a chefona, a \"braba\" Dona Lazinha. Ela fazia a gestão, separava para o aluguel, as despesas com alimentação e todo o resto. Guerreira, administradora, cuidadora, amorosa, forte: MÃE! Era uma casa com muito amor. Simples, mas com muito amor envolvido.
Dias desses fui ao mercado e vi umas carambolas nas prateleiras dos hortifrutis. Há tempos não as via. Comprei algumas, algo em torno de 2 quilos. Fiz um suco delicioso, daquele jeito que mamãe fazia, bem docinho. Anoiteceu, cortei
em 6 partes iguais uma delas que sobrou. Um pedaço representando cada irmão. Ficaram em formato de estrela. Igual mamãe fazia. E anoiteceu mais. Fui lá fora. Eu via milhares de estrelas naquele céu de setembro, mas uma bem brilhante, solitária, imponente, reluzia. \"Será que é minha rainha? Quem saberia?\", me questionei. Olhei para os pedaços de carambolas no pratinho. Seis estrelas alí. Olhei para o céu. Tentei segurar uma furtiva lágrima. Em vão.
Eu plantei um pé de pitanga um ano atrás e ele já está na altura de minha janela. Acho que vou plantar um pé de carambolas !
Pensando bem, deixa quieta esta idéia! Quando der saudades daqueles sabores, daqueles aromas, daqueles amores, eu vou ao mercado e compro e choro de novo. Deve ser melhor assim, do que abrir a minha janela e ver meu pé de carambolas todas as manhãs e ficar com toda a nostalgia assolando meu peito.
Marcos Godoy
06/02/2024
01:32h
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