Programa Conte Sua História
Depoimento de Paulo José dos Santos
Entrevistado por Felipe Rocha e Mônica de Carvalho
São Paulo, 27/04/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH - HV 560 - Paulo José dos Santos
Transcrito por Mariana Wolff
Revisão: Paulo Rodrigues Ferreira
_________________________...Continuar leitura
Programa Conte Sua História
Depoimento de Paulo José dos Santos
Entrevistado por Felipe Rocha e Mônica de Carvalho
São Paulo, 27/04/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH - HV 560 - Paulo José dos Santos
Transcrito por Mariana Wolff
Revisão: Paulo Rodrigues Ferreira
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P/1 – Bom, primeiramente seu Paulo, muito obrigado pela presença. É um prazer recebê-lo aqui no nosso espaço e eu gostaria de agradecer em nome da equipe do Museu pela sua presença, por fazer parte do nosso acervo. Então... A gente sempre começa perguntando o seu nome, o local e a data de nascimento.
R – Obrigado eu. Meu nome é Paulo, Paulo José dos Santos. Nasci no interior da Bahia, numa cidade chamada Caculé.
P/1 – A data qual é?
R – Data de nascimento é 15 de fevereiro de 1952.
P/1 – E o nome dos seus pais, seu Paulo?
R – Meu pai é Américo José dos Santos e a minha mãe, Santa Maria dos Santos.
P/1 – E o que os seus pais faziam? Como eram os seus pais? Fale um pouco deles para a gente.
R – Trabalhadores, trabalhavam em roça, não é? Em sítios que a gente tinha na Bahia, interior. Eram lavradores, serviço de roça, não é? Trabalhavam para si
mesmos, não tinham carteira registrada nem nada, naquela época. Então, era só isso mesmo.
P/1 – Como era o cotidiano? Assim... O que você se lembra do ambiente de casa? Como era a casa em que vocês viviam?
R – A gente vivia, graças a Deus, até muito bem naquela época, não é? Porque era o seguinte: eu tinha três irmãos mais velhos, e eu era o da parte do meio. Meu pai foi casado três vezes, não é? Então, os meus irmãos ajudavam o meu pai a desencadear os mais novos. Eles eram mais cabeça para ajudar a fazer isso; só que os nossos serviços de roça lá… A gente era unido, não tinha como estar brigando, desunido. A união da gente era muito boa por causa do tratamento que o pai dava para a gente. Só que, como ele era meio durão, aquela época, bem duro, duro, tratava a gente… A gente não podia estudar, a gente não podia fazer certos tipos de coisas, como os meus irmãos mais velhos também não tiveram os mesmos estudos que os outros deveriam ter, eles não tiveram também. Estudaram, mas muito pouco também, era mais a roça, era a roça sempre.
P/1 – Voltando um pouquinho mais, os seus avós também eram do mesmo local?
R – Do mesmo local, também.
P/1 – Você sabe o nome deles?
R – Não.
P/1 – Você tem alguma história deles?
R – Não. Digamos assim, eram de lá da Bahia também, do interior, só que não… Só teve a minha avó, porque a minha avó foi a que, depois que a minha mãe morreu, a minha avó foi a que cuidou da gente dentro de casa como se fosse nossa própria mãe, a minha avó. Então o meu pai já não era bem daquela cidade, ele veio de outra cidade para cá. Eu não conheci os meus avós paternos, só os maternos, só.
P/1 – O senhor falou que a sua avó foi quem criou vocês, basicamente? Então a mãe do senhor faleceu cedo?
R – Faleceu cedo. Quando a minha mãe faleceu, eu tinha seis anos de idade.
P/1 – E o que você tem de lembrança dela, assim?
R – Não tenho muita lembrança não, vagamente. Poucas… não tenho quase lembrança dela, não.
P/1 – De alguma coisa, alguma comida?
R – Não, só da parte da minha avó. A minha avó é aquela mãe que eu tive, não é?
P/1 – Ainda dos seus pais, você sabe como eles se conheceram?
R – Não. Eu sei que o meu pai era da cidade lá chamada Brumado. Ele veio para cá, quer dizer, para o interior de São Paulo, por muito tempo. Depois foi para Caculé e gerou essa família lá na cidade de Caculé. Ele tinha uns primos que moravam na cidade, nós éramos da roça, os primos eram da cidade, que conviviam mais com a gente, não é? Mas então não captei tanto o pessoal assim da cidade, os parentes do meu pai, não cheguei a conviver com eles muito tempo, não.
P/1 – Você tem alguma lembrança do falecimento da sua mãe? Você se lembra do acontecimento?
R – Da minha mãe eu tenho, eu… porque era assim: não tinha médico, a gente não sabe que tipo de doença ela teve, só sabe que ela… Quando ela morreu eu era garoto, tinha uns seis, sete anos de idade, eu me lembro dela morrendo na cama, ela estava se batendo na cama, é como se fosse assim um câncer, alguma coisa nesse sentido. Eu me lembro muito bem disso (emoção), eu ficava assim na porta e o pessoal segurando ela e ela se batendo. Mas a feição dela assim, até hoje, eu não guardei. Só vi aquela dor que ela sentia. Porque tudo isso que eu passei na vida também, acho que ela passou; só que como eu tive um tratamento com tudo isso, eu acho que ela não teve para sobreviver, para eu ter ela, assim, a minha mãe.
P/1 – Então, a sua avó materna…
R – Minha avó que, tipo, adotou. Ela morava numa outra casa, morou junto com a
gente, só que a partir dali ela falou: “Vou cuidar dos meus netos”. Porque tinha eu pequeno, tinha mais uma irmã e um irmão pequeno - nós éramos três na época. Aí, minha avó veio e ficou com a gente, junto com o meu pai, todo mundo morando numa casa só, aquelas casas… era tipo umas casas grandes na roça lá, era tipo umas casas grandes, e a gente se criou, todos juntos. Meus irmãos mais velhos e a gente, que eram os irmãos do meio. E foi ali assim, mais ou menos. Não foi diferente, não.
P/1 – Qual era o nome dessa sua avó?
R – Durvalina.
P/1 – E como a dona Durvalina era com vocês, assim?
R – Uma mãe. Porque era carinhosa com todos, não só comigo, mas com os outros filhos do meu pai, que eram mais velhos. Inclusive, o meu pai foi casado com… a minha mãe era tipo cunhada dele. Quando o meu pai ficou viúvo, a primeira mulher do meu pai era irmã da minha avó; aí ele casou com a outra filha, que era da cunhada dele. Ele casou com ela, onde a gente nasceu, teve a gente, tal. Criou uma outra família, todos juntos; então, a gente conviveu tudo juntinho naquela época lá. Foi se desfazer depois que um vem para São Paulo, outro fica lá, não é? A vida foi essa, não foi diferente.
P/1 – O senhor falou que ela era muito carinhosa. Como era o trato dela com vocês? Tinha alguma coisa que você lembra com carinho? Assim, alguma comida, alguma coisa que ela fazia que era especial?
R – Sim, ela não deixava faltar nada para a gente, tudo. Para nós, era a mãe aquela ali, naquela hora. A nossa mãe, quando morreu, a gente não conheceu ela direito, ela acabou, tipo assim, apagou, e ficou a minha avó. A minha avó é como se fosse a minha própria mãe. De tudo que a gente precisava era dela.
P/1 – E nessa infância, o que você fazia? O que você gostava de fazer? Você brincava muito?
R – Não, não tinha o que fazer na infância. Porque, naquela época, como o pai da gente trabalhava na roça e ele era duro, ele era durão, sempre tem que os filhos estão na frente da roça, não pode esquecer da roça. A roça é a primordial aí, era o trabalho, todo mundo trabalhava. E os irmãos mais velhos sempre estavam na roça com ele e nós, como os mais novos, fazíamos outra coisa mais leve, não podia pegar pesado, mas a gente sempre estava constante na roça. Escola era muito pouco naquela época, naquele interior nosso, escola era pouca. A gente não tinha aquela escolaridade porque a gente morava longe da cidade, afastado. Tipo, sei lá, uns sete, oito quilômetros afastado da cidade, a gente não tinha como ir da cidade para a escola. Escola era aquelas casas grandes, que tinha aquelas pessoas que gostavam... Aquelas mulheres que gostavam de ajudar as pessoas, davam aula. Então: “Vamos juntar essa garotada aqui da roça e vamos ensinar a ler e a escrever, fazer alguma coisa”. As escolas nossas eram mais ou menos por ali. Não era aquela coisa de ter aquela obrigação de todo dia cedo pegar… não tinha como fazer isso aí. Primeiramente, você cuidava das coisas de casa para, depois, pensar em ir para a escola, não era definitivo.
P/1 – E você lembra da professora?
R – Lembro. Lembro da minha professora e do meu professor, que quando não era um, era um outro que ajudava. E ensinaram a gente a fazer, tipo, as coisas católicas de igreja - Primeira Comunhão, tal - mas aí foi só essa base e depois parou. Passados alguns anos, teve uma pessoa que disse assim:" “Aquela escola é um Mobral. Vamos entrar no Mobral para a gente aprender mais alguma coisa”. Mas também não ia para a frente porque não recebia a verba do governo, da Prefeitura, não recebia nada disso, era por conta própria que as pessoas faziam isso. Tirava do seu próprio bolso para comprar o material de escola para ajudar as pessoas. Um caderno, uma coisa assim. Era um caderno, um lápis, uma cartilha - que chamava cartilha, na época - uma tabuada para fazer alguma coisa. Foi até onde eu cheguei. Daí para cá, eu não consegui chegar mais.
P/1 – Você falou que morava longe da cidade. Era muito longe? Como era?
R – Para você chegar na cidade, não tinha meio de condução naquela época, você tinha que andar uma hora a pé, de caminhada. Duas horas, uma hora e meia para você chegar até a cidade. Não tinha como você fazer isso quando estava chovendo, nem ia lá porque estava chovendo. A cidadezinha era grande, e outra... A cidade, a gente não conhecia, não eram os pais que levavam, a gente ia, se interessasse ir. Você vai para a escola se você quiser; se você não quiser, você não vai.
P/1 – E vocês costumavam ir para a cidade para fazer o quê?
R – Tem um certo negócio... Como você trabalhava na roça, você tinha que vender mercadoria e comprar alguma coisa para dentro de casa. Você tinha feijão, tinha o arroz, tinha a farinha, tinha… naquela época, não tinha nem açúcar para fazer rapadura de cana, para fazer um café, você tinha que comprar o café na cidade. Então, você levava a mercadoria, vendia e fazia a feirinha sua ali. E levava para casa uma carne, uma misturinha de qualquer coisa assim para passar uma semana na roça. A vida nossa foi tocada desse jeito, e a gente mais criança... era o que o pai mandava fazer. Os grandes iam para a roça e os pequenos iam para a cidade comprar aquilo, aquilo outro. Dá um papelzinho, chega lá, você entrega na venda, o rapaz vai dar aquilo para você, vai pesar a mercadoria, você vai levar para casa. É o que eles faziam com a gente - era isso, não era outra coisa diferente. Não tem negócio de você se empetecar, pôr roupa bonita para ir para a cidade, não. E só depois dos seus dezoito anos é que você podia fazer isso, alguma coisa no sentido, que o seu pai não queria mais dominar você. Eu, com dezoito anos, dezenove, eu já quis me casar e já vim embora: “Quero sair daqui, porque eu estou sofrendo”. Não tinha roça, não tinha nada para mim, tudo que eu precisava era o pai que dava. Precisava de uma roupa, o pai tinha que tirar o dinheiro do bolso para comprar, para dar. Não era lá essas roupas boas, tinha que tirar da lavoura, tirar da roça para poder comprar. Então, a vida minha foi mais ou menos baseada por aí.
P/2 – E o que o senhor plantava lá na roça?
R – Era feijão, arroz, milho, mandioca, mamona. Porque, naquela época, vendia muito coisa de mamona para tipo… A mamona, ela faz um óleo, industrializada para fazer óleo, tipo, óleo de máquinas, de indústria, essas coisas. Então, a mamona é vendida também na cidade, você vai vender as suas sacas de mamona, a semente delas, e vendia. Os mercadões de compra, compravam. Como a cidade era pequena, tinha os compradores, que seriam os terceirizados, as pessoas que compravam para vender para outros. Eles compravam da gente, você vendia o seu quilinho, você levava… para fazer uma comparação, você tinha dez quilos, vinte quilos, ou trinta quilos ou quarenta quilos de mamona, você levava para a cidade para vender, porque você não vai comer mamona. A farinha, você fazia farinha no forno de farinha, tirava uma certa quantidade para passar o ano ali comendo aquela farinhazinha, e o resto você vendia. O arroz era a mesma coisa: “Esse aqui dá para a gente passar até o fim do ano”. Separa ali, guarda ele bonitinho, armazena, e o resto você vendia para comprar uma carne, comprar uma roupa, comprar alguma coisa que precisasse, não é? Sapato era a coisa mais difícil que tinha. Dizia: “Vou comprar um sapato para mim”. Era só sandalinha e olhe lá, o que a gente vivia era disso. Hoje em dia, ainda existem muitos lugares que têm esse tipo de coisa, não é só aqui que tem. E quando se fala do Nordeste, eu, como nordestino que sou, a hora que passa assim, eu vejo tudinho ali, eu já passei por isso. Como hoje eu estou na escola, eu vejo a cidade passando por aquilo. As professoras perguntam: “Tal coisa é assim, assim e tal?”. Às vezes, eu até imagino que já passei por isso, eu sei como é que é, ajudo a dar a resposta, mas tenho a resposta boa, por prática. Não por saber. porque saber é uma coisa, sabedoria é uma coisa, prática é outra, não é?
P/1 – Mudando um pouco de assunto, ainda lá na roça, onde você cresceu, tinha alguma festa, algum momento que você… tinha uns bailes?
R – Tinha uns bailinhos, tinha uns bailinhos. Na casa de fulano tinha uma festinha, um casamento, um aniversário. A gente ia, mas depois de grande. Porque criança, garoto, não ia em festa não. Estava na coordenação do pai, para você ir lá tinha que pedir para o seu pai. Se o pai liberasse você para ir, você ia, ficava à vontade. No campo de bola já o pai não segurava tanto, que as bolas a gente jogava entre sábado e domingo, ia para os campos de bola à vontade, você podia ir, jogar bolinha no campinho de bola e tal, você podia ir, mas festinha de noite, só por conta do pai. Seu pai, sua mãe, sua tia iam, então você ia; se não fosse…
P/1 –
Como eram esses campinhos de bola?
R – Campinho batido, campinho de terra mesmo, não tinha nada de boniteza, não. Campinho de terra batido, fazia as travinhas com pedaço de pau, e era isso. Você podia ir para lá passar a tarde brincando, jogando bola com a garotada, e a dificuldade que tinha... até as bolas eram difíceis naquela época, até as bolas. Para você comprar uma bolinha daquela ali você tinha que estar pedindo dinheiro para o pai, fazer uma arrecadação, vai que o pai quer dar, ele dá, se ele não quiser dar, você não compra nada, não tem nada, mas você jogava… Era muito bom, não era ruim a vida de lá, só que era apertada, a vida é dura para quem quer ter as coisas, a vida é pesada, mas lá todo mundo sobrevive muito bem, e pouca gente de lá quer vir para cá, não é? Mesmo difícil, a vida é boa, não é ruim. Eu tenho vontade de ir para lá, morar lá. Eu tenho. Mas a minha esposa já não tem - é de lá também, só que ela não quer ir. Então não vou, não vou deixar.
P/2 – E tem gente lá ainda?
R – Da minha família?
P/2 – É.
R – Tem! Meus irmãos, tios, primos, tem várias pessoas. Quando eu quero ir para lá, eu vou. Chego lá, se eu ficar lá um mês, não querem que eu tire uma moeda do bolso para comprar nada, porque eles têm de tudo lá. E é na casa de um, é na casa de outro, todo mundo quer: “Hoje você vai almoçar na minha casa”. “Não, vai amanhã porque hoje ele vai almoçar em casa”. E é assim: “Vai jantar na minha casa”. Você não depende nada, tudo deles. Hoje a coisa lá é mais fácil do que antigamente; era mais difícil.
P/1 – Por que o senhor decidiu sair de lá?
R – Por causa da irmã (choro), eu era muito apegado com a minha irmã, chegou um certo tempo em que ela resolveu se casar: “Vou para São Paulo”. Não ficou lá, aí eu vim embora. Um tempo eu fiquei noivo da minha esposa, mas, antes de casar com ela, eu falei: “Vou passar um tempo em São Paulo, vou para a casa da minha irmã”. Vim para cá, fiquei com ela um certo tempo, voltei, casei e vim para cá de novo, vim morar na casa dela. Aí depois, morando em casa de família, você sabe como é, não é? Um gosta, o outro não gosta, tem que sair fora. Mas a minha vida foi essa, eu saí por causa da minha irmã, que se ela estivesse lá, eu não tinha inventado de vir para São Paulo não. Era muito apegado a ela. Ela mora aqui até hoje; raramente ela vai em casa, na minha casa. Eu vou na casa dela, às vezes, também de vez em quando eu vou na casa dela, nós telefonamos sempre um para o outro. Mas, uma das pessoas que eu mais amei na vida foi a minha irmã.
P/2 – Ela é mais velha?
R – Não. Ela é mais velha do que eu, mas eu gosto muito dela. Minha irmã, para mim, é tudo, é tudo assim... Como família, a minha irmã... Eu tenho os meus irmãos aqui também, mas os irmãos são assim: também vão nas casas uns dos outros, conversam, almoçam na casa de um, jantam na casa do outro, mas é de vez em quando. Não se dão… A gente não está dentro da casa dos próprios irmãos, porque parente não é conveniente você estar todo dia junto na casa dele, porque enjoa, abusa, não é? Sempre você tem que estar na sua casa. Na casa do meu filho, meu filho mais velho... Ele mora no Jardim Danfer e eu moro em Itaquera, ele vai na minha casa, às vezes. Em dois, três meses, ele vai uma vez, vai duas, às vezes passa três meses sem ele ir na minha casa; se eu falar o contrário, eu estou mentindo. Às vezes eu fico… tem o quê? Quase seis anos que eu não vou na casa dele, do meu filho. Parece mentira, não é? Meu neto mais velho, meu neto vai fazer vinte anos agora, há quatro anos que eu não vejo o meu neto. Depois que ele fez dezesseis anos, dezessete, ele já não foi mais na minha casa, porque ele está junto com a garotada, ele trabalha junto com o pai dele, na mesma empresa que o pai trabalha, e eu não vejo o meu neto.
P/1 – Voltando um pouquinho, seu Paulo, o senhor falou que veio por causa da sua irmã. Mas aí o senhor casou e tal, como o senhor conheceu a sua esposa então?
R – Ela é de lá, da minha cidade também. A minha esposa é de lá, da mesma cidade. A minha sogra… tinha uma família junto com a família do meu pai, só que a minha sogra era… não morava com os próprios pais dela, ela morava com um dos tios, das tias dela. E essas tias moravam perto da casa do meu pai, que era uma casa longe da outra - duzentos, trezentos metros, bem longe, que era na roça lá, cada um morava em tal lugar. E a minha sogra, pelos fato dos meus irmãos mais velhos... Ela era da idade da minha irmã mais velha, a minha sogra não saía de dentro da casa do meu pai, com a minha irmã, com os meus irmãos, tudo junto, criou junto. E, naquela época, eu era garotinho, recém-nascido, tipo garoto de dois, três anos de idade, e ela era muito apegada comigo, a minha sogra. Para onde ela ia, ela queria levar aquele garoto junto com ela - era mocinha de dezesseis, dezessete anos e eu moleque. Ela era muito apegada comigo e eu nunca esqueci dessa passagem até hoje, tipo assim, se a minha mãe ou a minha avó estivessem em casa comigo e ela chegasse e falasse: “Vamos ali na lagoa comigo?”, eu falava: “Vamos”. Ela me tirava de dentro de casa na mão e levava. Fui criado assim, junto com a minha sogra. Às vezes… Se eu conto essa história hoje, alguns da minha família não sabem o que está se passando e eu nunca esqueci disso, porque sei lá, fica na cabeça. E ela foi criada junto com a gente. Aí, ela se afastou um certo tempo - eu já tinha os meus quatro, cinco anos de idade - ela casou, se afastou da gente. Ela saiu de dentro da casa do meu pai, foi morar com o marido e tal, já é outro assunto, já não está morando com o tio dela, está morando com o marido dela. Inclusive, me passa pela cabeça um tipo sonho, tipo o casamento dela, que eu fui, que a minha família foi e eu fui, mas segurando na mão das pessoas, porque eu era garoto. E essa mulher teve essa filha. Essa filha dela, eu me lembro até hoje ela indo na minha casa despedir, que ia para São Paulo, com essa menina no braço, uma coisa incrível. E essa menina é a minha esposa, a filha da minha sogra. A minha sogra foi criada junto com os meus irmãos, tipo assim, e ela cuidava muito de mim. Tipo a sua tia. Sua tia é apegada com você, você gosta muito da sua tia, ela leva você para onde quer, mesmo que os pais não estejam ali, não é? No caso assim você é criança, você vai. E eu era assim. Ela casou, teve a família dela, veio para o interior de São Paulo, ficou treze anos aqui no interior de São Paulo, doze, treze anos, foi para lá com ela já mocinha, e aquela olhada, assim, quando chegou na cidade. Essa família, Daniel, que chegou de São Paulo, que morava em São José do Rio Preto, Garça, chegou de São Paulo, que a gente foi na casa deles, porque eles chegaram de São Paulo, e aquela moça bonita, com os seus treze, quatorze anos lá, a primeira olhada, que eu já tinha uns dezoito, dezenove anos, foi naquela menina, aquela menina para mim foi tudo que eu vi na minha frente, aí para mim… E ela também já veio logo sentindo: “Gosto daquele cara”. Primeiro raciocínio era assim, que a gente se encontrou, se deu muito bem - eu e a filha dela - e aquela história continuou, a gente ficou noivo, casamos, eu vim para São Paulo, fiquei um tempo aqui, voltei lá, casei com ela, trouxe, e nós vivemos juntos até hoje. Já tem quarenta e… Vai fazer quarenta e um anos agora, que a gente se casou. E assim minha vida de casado é essa, é uma história bonita, mas para quem não conhece, não sabe o que eu já passei, que eu estou lembrando aqui, que eu lembro disso a vida inteira…. Às vezes eu deito na cama, ponho a cabeça na cabeceira e falo: “Não é porque ela é isso ou aquilo, não”. É a pessoa com a qual eu me identifiquei e nós nunca tivemos briga nenhuma até hoje, graças a Deus; a vida é assim, eu gosto dela tanto como eu gosto dos meus filhos. Então, é a minha família, é aquilo ali.
P/1 – E como foi a viagem para São Paulo?
R – A viagem, naquela época - 1976, 1975 - não existia… Como diria, não tinha um ônibus que fosse para Vitória da Conquista ou para Caculé, não tinha ônibus. Era pau de arara, ou então você pegava um trem. Eu me casei com ela na Bahia. Para vir embora para São Paulo, tivemos que pegar o trem. Trem, você compra uma passagem de trem na Bahia para vir para São Paulo, desce na estação do Brás ali, volta para casa; você desce em Mogi das Cruzes, pega outro trem para Itaquera; no caso, o trem vinha até o Brás, depois dava a volta por São Miguel, você morava em Itaquera, descia em Mogi, descia em Itaquera, era melhor do que ir no Brás e voltar, não é? Então, a viagem minha foi de trem. Eu vim de trem com ela, peguei as malas, comprei passagem de trem e vim embora de trem, eu e ela sozinho. Mas eu saí daqui de São Paulo, fui lá me casar com ela e trouxe para cá. E estamos aqui até hoje, não ficamos na casa de pai, nem na casa de ninguém, casamos e viemos para São Paulo arrumar a nossa vida aqui.
P/1 – E qual foi a primeira impressão que o senhor teve daqui de São Paulo?
R – Quando eu cheguei em São Paulo, para mim foi… primeiro, era tudo de bom, porque naquela época não tinha muito esse movimento que tem hoje, era tudo mato, alguns bairrozinhos eram separados uns dos outros. Você passava em Itaquera, um bairro pequeno; São Miguel Paulista era um outro bairro pequeno, desligado ali, tinha uma área que era mais sapezal, outro… Era uma bolinha assim, de cidade. Cohab 2 não existia, só sapezal. Você ia para Guaianazes, passava por uns (corte no áudio) Guaianazes, era muito bom, não tinha… Não existia muito o que existe hoje em São Paulo. Eu comecei a trabalhar no serviço… Primeira semana que eu cheguei, eu já comecei a trabalhar. Eu era solteiro na época, quando eu vim para cá não era casado. Eu já comecei a
trabalhar, para mim foi tudo de bom.
P/2 – Quantos anos o senhor tinha quando veio pela primeira vez?
R – A primeira vez eu tinha vinte anos. Aí voltei, me casei e vim; fiquei definitivo aqui. Cheguei
em São Paulo, a primeira vez, em 1973 - novembro de 1973. Aí comecei a minha vida por ali, dali para cá. Em 1973 não tinha quase nada por aqui, não é? Se você parar para pensar assim, São Paulo era uma coisa tão pequena, quer dizer, era muito gostoso, mas não tinha o que tem hoje em São Paulo não, muito bom.
P/1 – E qual é… Quanto tempo o senhor ficou separado da sua esposa até voltar, casar e voltar de novo?
R – Eu fiquei, tipo, seis meses. Eu vim da Bahia para cá, fiquei noivo dela, fiquei uns seis meses aqui em São Paulo, voltei lá, me casei e vim com ela para cá.
P/1 – Vocês se correspondiam nesse meio tempo?
R – Correspondia por cartas, não existia telefone, era carta, não é? E eu, como não podia escrever, porque a leitura era pouca, pedia à minha irmã para fazer as cartas para mim e a minha irmã... Eu morava com ela, porque eu vim por causa dela, e ela fazia as cartas para mim porque ela escrevia devagar também, ela não era aquela professora, mas ela sabia escrever, ela fazia… O meu cunhado, marido dela, era muito bom de leitura também. Quando eu precisava, eu pedia para eles fazer para mim. Eles faziam, porque eu não queria mandar uma carta feia para a pessoa que a gente gosta, um papel riscado de qualquer jeito, faltando letra, não é? Então, tinha que caprichar. E para caprichar, tinha que pedir a alguém para fazer.
P/1 – Tem alguma carta que o senhor mandou para ela ou que o senhor recebeu, ou que ficou marcado assim?
R – Tem, se eu soubesse, teria trazido, tem em casa até hoje essas cartas… Algumas dessas cartas guardadas, mas não me lembro onde estão, não. Não me lembro, não me lembro. Mas eu tinha, a gente guardou muitas coisas… Eu falo para ela hoje, ela: “Se esquece disso”. Aí já era. “Não vai mexer com isso não, fica quieto”. Mas a vida nossa foi assim.
P/1 – E o casamento como foi? O senhor voltou, e como foi a festa?
R – A festa foi boa, os pais gostaram, a festa foi boa. Foi na época de, tipo, uma época que teve uma eleição. E você sabe que a política de lá, do interior, sempre tem uma rusga de cidade com cidade, política com política. E estava tudo programado para que a gente casasse naquele dia e, tipo assim, casar hoje, amanhã vai ser a eleição. Adivinha que o padre foi embora da cidade e nos deixou na mão? Não casou a gente. Não casou. Não tem o que dizer, o casamento tudo certo, prepara tudo, faz a preparação durante o dia, as festas, o movimentação da festa, você vai para a igreja, o padre não está, só tem o Cartório para você casar. E está ali esperando você chegar lá, vai no Cartório, casa, e vai casar na igreja. O pessoal do Cartório estava esperando, mas o padre se pirulitou e a gente ficou na mão. A minha mulher fala até hoje que ela não se considera casada na igreja… não, ela não se considera casada. Ela fala: “Casamento em Cartório e só para você. Eu não me considero casada, porque a vontade minha era entrar de véu e grinalda na igreja, e tive que entrar de véu e grinalda no Cartório”. Ela sempre joga isso aí na cara (risos). É uma coisa… Gosto da mulher, que toda mulher sonha, é ou não é? Ela sabe disso, toda mulher sonha que quer entrar na igreja casada, bonitona, cadê? O padre fugiu e a gente ficou na mão.
P/1 – E ainda tiveram que votar na eleição?
R – Não, mas a gente não votava lá… Quer dizer, eu votava aqui e ela votava lá, não é? Não, ela não votava porque ela era menor de idade na época, ela casou com dezessete anos. Eu já votava, mas eu já votava aqui em São Paulo.
P/1 – E aí, vocês vieram para cá e vocês foram morar onde?
R – Fui morar com a minha irmã um certo tempo, fiquei com a minha irmã uns dois meses, três meses…
P/1 – Onde era a casa?
R – Itaquera. lá em Itaquera também. Aí, já arrumei casa, já aluguei casa e já mudei para a minha casa e continuei, graças a Deus, com ela, não é? A vida inteira. Minha irmã comprou casa em Guarulhos, mudou para Guarulhos e eu fiquei em Itaquera. Desde que eu vim, de 1973 até hoje, eu moro em Itaquera, todo mundo… Naquela região, todo mundo me conhece, digamos assim. O subprefeito de Itaquera, se você falar do Paulão, Paulo Guarani, todo mundo sabe quem é. O Leandro, da escola de samba Leandro de Itaquera, aquele Leandro, era meu cliente pesado. Eu vendi muita mercadoria para o Leandro, a vida inteira.
P/1 – Então é a mesma casa em que o senhor está desde que…
R – Não, de casa, ali pertinho, de uma rua para outra, eu mudei. Porque eu morava no Jardim Morganti e hoje eu moro na Vila Carmosina, morei numa vila e depois mudei para outra. Para essa outra vila já tem trinta e sete… Vai fazer trinta e sete anos. Trinta e sete anos em uma rua, trinta e seis anos em uma rua, porque a minha filha mudou para lá com um ano, ela fez trinta e sete, então tem trinta e seis anos que eu moro numa rua só, mudei de uma casinha para outra só. Porque paga aluguel, aluguel você tem que estar pulando - o proprietário quer a casa, aí você muda. No meu caso, eu não tenho casa. A placa está dentro da minha casa, já vai fazer um ano que a placa está lá para vender. A mulher: “Fica aí, ‘seu’ Paulo, não sai daí não. Enquanto o comprador não falar: ‘Comprei, a casa é minha’, ele vai dar três meses para você mudar, se ele pedir antes, vai ter que me reembolsar os três meses e o senhor sai”.
“Tudo bem”. Estou lá até hoje. Aquele lugar é a minha diversão, aquela rua é para mim uma família, todo vizinho ali... Graças a Deus, não tive nada com ninguém, nunca tive briga, nunca tive passagem, nunca tive processo, nunca tive nada, graças a Deus, estou sempre lá.
P/1 – O senhor falou que logo que o senhor veio, o senhor já arranjou um emprego. Qual era esse emprego?
R – Primeiro eu trabalhei na Sabesp - Saneamento Básico do Estado de São Paulo. Aí trabalhei na Sabesp uns três meses, estava solteiro, foi um dos meus primeiros serviços. Aí, depois que eu me casei, passei a trabalhar - seis meses depois - comecei a trabalhar na S.A. Frigorífico Anglo. Saí da Sabesp e entrei no Frigorífico Anglo. E começo a trabalhar com a carne, serviço de água e esgoto; então, se eu estivesse até hoje, eu estava muito melhor do que trabalhar… a carne vicia e a água não.
P/2 – Como assim?
R – A explicação para viciar... Um serviço em que você trabalha com a carne e tem a carne de graça para comer, para levar para casa, sempre está ali... Às vezes, o patrão te dá uma mercadoria, te dá um pouquinho de cada coisa, é como se fosse você ter uma hora extra para ganhar e mais um agrado, aquilo que é uma carne para você levar para casa, você vicia. E a Sabesp não, você acabou de trabalhar, tomou o seu banho, troca de roupa, vai para casa e vai dormir para amanhã cedo estar aqui de volta. Eu, se estivesse na Sabesp, teria me aposentado mais cedo pelo tempo de trabalho, porque ganhava adicional de insalubridade; então, era um salário bem melhor e eu estava muito bem. Mas na carne me viciei, acabei me estrepando, os vícios (risos)...
P/2 – O que você fazia na Sabesp?
R – Eu fazia serviço de água limpa. Se eu falar assim, pouca gente conhece como é que é. Água limpa são aquelas redes de cano de ferro que eles colocam na rua, de fora a fora, para depois ligar daquele cano para dentro da sua casa. Então, eu fazia ligação para as casas. As máquinas vinham, abriam as valas, os caminhões vinham, pegavam os tubos de ferro e jogavam dentro daquelas valas, e você ligava ele com chumbamento de... esqueci como chama. Chumbamento de cobre? Não, era outro tipo de material que eles colocavam no cano para chumbar, para vedação do cano no outro, para ligar, porque aqueles canos tinham mais ou menos... Não lembro se eram dez metros um de cada outro, não é? Cada cano tem dez metros. Então, você liga um no outro para fazer aquela ligação de um no outro, tem que fazer chumbamento - chamava serviço de água limpa. Água limpa é a água que nós bebemos, a encanação. O carro vem, fura aquele cano, faz a ligação para a sua casa, liga a sua água. Era esse o serviço que eu fazia na Sabesp. E eu já estava chegando a quase meio oficial na época, mas a vaidade de ser… morar com o meu cunhado, trabalhar com a carne, todo dia chegar com carne em casa… Vamos trabalhar com carne, não é? Vicia, não tem jeito.
P/1 – E você conseguiu no mesmo lugar em que o seu cunhado trabalhava?
R – Foi, ele me encaminhou para lá, me arrastou. Ele, o meu primo, todos trabalhavam nesse Frigorífico Anglo. Aí tive que ir para lá.
P/1 – Como foi o primeiro dia no frigorífico?
R – É esquisito porque é frio, serviço pesado que eu fazia, esse serviço de lombar carne, não é? Descarregar os caminhões. E é pesado, para mim é muito pesado, mas eu era naquela época forte, um cara forte, tinha meus vinte anos, vinte e poucos anos, então, gostava de fazer esse tipo de serviço. Foi o que eu achei na frente, e outra: para quem não sabe muito ler e escrever muita coisa, você vê, é serviço de ajudante, você entra como ajudante, o serviço braçal, é o pesado que pega. Onde os patrões ganham dinheiro é no serviço do ajudante, que o profissional quer fazer outra coisa, não quer pegar o pesado, só quer pegar o pesado o ajudante. É aí que é o caso de quem não tem aquela leitura, é o que pega, não é? Só de ajudante que arruma serviço; então é ali que eu vou entrar para fazer isso. Entrei na Sabesp, como ajudante, estava chegando a meio-oficial, aí tive que sair para trabalhar no frigorífico.
P/1 – E no frigorífico o senhor também começou como ajudante?
R – Também comecei como ajudante e nunca cheguei a profissional, porque nesse serviço que eu fazia não tem, é ajudante para a vida inteira, você nunca vai chegar numa profissão a não ser que você tire uma carta de motorista e trabalhe como motorista para entregar mercadoria. Se você não fizer isso, você vai ser ajudante a vida inteira, pegar pesado, mas o vício da carne fácil, o patrão: “Você trabalhou bem, vamos cortar um pouco de agulha aqui”. Tirava um pedaço para um, para outro, cada um levava um pedaço para casa. Um cupim, pegava um negócio assim - “Leva para casa” - você pegava e levava, aí fica fácil. Trabalhar no açougue, o patrão, dono do açougue: “Você vai levar frango, um quilo de contrafilé, vai levar um quilo de bife, um quilo de…”. Então, isso aí, é um incentivo do vício para você trabalhar naquilo ali. Tanto que hoje não tem mais isso, acabou. Porque, às vezes, a pessoa… Quando o cara tem os olhos grandes, ele vicia para ganhar aquilo, ele não quer só aquilo, ele quer mais, quer aquilo e mais um pouquinho. E aí é onde o patrão vai cortando de todo mundo, acaba cortando, e zera, não é? Hoje em dia tem isso.
P/1 – E o senhor quis começar a aprender a profissão de fato? Como foi isso?
R – Eu tive que mudar para trabalhar em açougue, desossar a carne, fazer a preparação das carnes, mudar para açougueiro. A minha profissão de lombada de carne, como no início, eu tive que mudar para açougueiro, trabalhar em açougue, preparações de carne para exportação, desossar, fazer as desossas, preparar as carnes, limpar, fazer os bifes, bifaria, trabalhar em bifes para indústria, para empresa, para a Volkswagen, para metalúrgicas, para esse tipo de empresa. Aí, a gente… Foi onde eu mudei a minha profissão para esse tipo de coisa.
P/1 – Qual é a diferença de trabalhar no frigorífico para o açougue?
R – O açougue tem menos peso, no açougue você não pega tanto peso como pega no frigorífico. No frigorífico é mais puxado, o frigorífico hoje em dia também mudou para o interior e deixou mais pessoas na mão aqui. Hoje, os frigoríficos aqui só entregam nos açougues. Pegar carne pesada e descarregar carne, você vai chegar numa certa idade que o seu corpo pesa, que você não tem mais como você fazer aquilo. Aí, você vai ter que se entregar e arrumar outro jeito de trabalhar ali dentro; no meu caso, eu aprendi a fazer serviço de desossa, eu passei a minha profissão para desossador. Como eu fazia serviço de desossa, para mim era mais fácil de trabalhar, não pegava tanto peso, porque você fazia a preparação, mas quem fazia ali era o ajudante, que pegava os pedaços de carne e já colocava na mesa para você desossar. E você corre o risco de acidente, então, você ganhava um adicional de insalubridade por motivo de acidente e frio, porque o frio também dá adicional, não é? Não é só o calor que dá; o frio também dá adicional. Então, eu tive que mudar a minha profissão para isso.
P/1 – Mudou de lugar também?
R – Mudei de lugar, mudei de empresa. Ali é a que paga mais por motivos tais, tem as classificações de produção, você trabalhava por produção. Em empresa grande, você tinha que trabalhar correndo. É aquele tal negócio: até para tomar café você tem pressa, porque se você está ganhando por produção, quanto mais você fizer o serviço, aquilo vai render para você, você tem uma produçãozinha a mais; e, no caso, patrão também gosta, porque o serviço dele está rendendo. Existe todo esse tipo de coisa.
P/1 – E como foi aprender esse serviço de desossa? Como é trabalhar com a carne, diariamente? Ali, fazendo…
R – É um incentivo tão grande hoje em dia você trabalhar com esse tipo de coisa, desossa. Hoje em dia não, naquela época. Porque só você estar aprendendo a desossar aquela peça de carne, aquele serviço que você gosta de fazer, é tão gostoso, é tão bom, prático, tem um homem lá do seu lado olhando para ver se você não está errando, cortando as carnes erradas demais. Ele está te fiscalizando; se você está fazendo direitinho e rápido, ele não fala nada, só anota o que você fez - se foi bem, foi ruim, ou está médio. Ele vai anotando o serviço que você está fazendo. Dependendo do ponto que você está ganhando com ele, você vai sempre para a frente e está correndo, fazendo as coisas certas. Por exemplo, uma pessoa que chega numa sala de preparação para carne, não conhece as peças de carne, você que está na desossa, você conhece todos os ossos que tem na carne, o nome da carne, a peça que tira, tira picanha, tira maminha, tira o baby-beef de alcatra - você sabe o que é baby-beef, mas você não sabe de onde está vindo aquilo. “Dá uma maminha para mim”. Você também não sabe de onde foi tirado aquilo, não é? No meu saco, se você pegar duas peças de carne, uma diferente da outra - uma carne de boi e uma carne de vaca - e cortar os bifes separados aqui e colocar na minha frente, misturar eles assim: ‘Separa os dez bifes de carne de boi e os dez bifes de carne de vaca, está tudo nesse monte aqui”. Eu separo a carne de boi e a carne de vaca. Tem gente que não sabe nem o que é de boi e o que é de vaca. Você vai no trilho, várias peças de carne, tem a carne de boi, tem a carne de vaca, você tem que separar uma peça da outra, dá para separar. É só no olhar que você já separa: esse é vaca e esse é o boi. O cara, ou a mulher, o homem chega no açougue para comprar alguma coisa: “Essa carne é de vaca”. Mas a gente que está lá dentro e sabe trabalhar... Não é, mas a pessoa duvida de você lá dentro: “Eu sei que é”. Mas não é. Mas a gente que está trabalhando sabe que é ou que não é, tem as separações. Por isso, você vai fazer como eu já fiz: nesse frigorífico tem pessoas que fazem estágio para um trabalho grande de exportação, é tipo estudante universitário que vai fazer estágio no lugar desses de carne, ele tem que saber onde vai, se ele não souber… Com quem ele está fazendo o estágio, aquela pessoa tem que saber como fazer o estágio. Se não, você não sabe como cortar a carne, como preparar a carne, se a carne é de boi ou é de vaca, ou… Tudo isso existe, eu já fiz esse estágio de pessoas que querem aprender a fazer. Patrão:
“Faz isso”. Aí a gente fazia. Esse Frigorífico Anglo não era uma firma nacional, brasileira, era uma firma internacional, os patrões de lá eram aqueles que você chamava de mister: mister fulano de tal. No caso que eu falei ali aquela hora, não é você ou senhor não, é mister. Se você falasse: “O senhor…”, ele não sabia o que era a palavra ‘senhor’, você tinha que falar mister. Porque senhor é mister, não é? Então era isso, tem todo esse ensinamento, o aprendizado ou não. Eu trabalhei com uma pessoa, fiz serviço para essa pessoa, se eu falar para você hoje aqui, você pode não conhecer essa pessoa, mas é uma pessoa famosa de televisão por aí a fora, e de carne. Essa pessoa... Se, por um exemplo, se você falar em algum lugar o nome dessa pessoa, ele hoje pode não lembrar de mim, mas eu lembro muito bem dele. Porque no meio de cem pessoas dentro da empresa, ele ia lá e me apontava, me tirava do meio dos cem: “Vem aqui você, faz o meu serviço que você sabe fazer, faz para mim, você prepara para mim?” “Preparo”. Tipo assim, eu preparava cinco, seis peças de carne para ele, ele pagava para mim, me dava de graça mais dinheiro do que ele estava pagando naquela carne para o patrão. Ele pegava enrolado na mão assim, enfiava no bolso: “Não quero, não faz isso comigo não, você vai me prejudicar”. “Se eu te prejudicar, eu te levo para trabalhar para mim, se ele te mandar embora”. Falava na real mesmo: “Se ele te mandar embora, meu, te levo para trabalhar para mim”. Eu só não fui trabalhar com ele nos Estados Unidos, em outro país fora aí, porque eu era casado na época - o Marcos Bassi, não sei se você já ouviu falar.
P/2 – Sim.
R – Conhece o Marcos Bassi? Da 24 de maio? Então... trabalhei para ele. Não trabalhei para ele, trabalhei com ele naquele Clube do Churrasco, lá na 24 de maio. Porque ele tem o Clube do Churrasco, passa na televisão, ele fez propaganda de carne, ele assou carne no Big Brother, na Globo, ele já fez várias coisas. E aquele Marcos ali, eu fiz muito serviço para ele, de preparação de carne para ele, estava todo mundo trabalhando, mulher, homem na sala, fazendo bifaria, o patrão… Ele era liberado na empresa, porque ele era cheio de dinheiro, empresário: “Posso escolher a pessoa para fazer o meu serviço?” ‘Pode”. “Cem aqui, faz o meu serviço para mim”. E eu olhava para o patrão, o patrão falava: “Vai”. (risos) E eu ia fazer, com o maior prazer eu fazia. Aí, depois, ele abraçava comigo, punha a mão no meu ombro assim, já estava com a mão fechada, não sabia nem o que tinha na mão dele, jogava assim… Se ele fosse pagar cem contos naquela mercadoria que ele estava comprando, ele me dava uma nota ou duas notas - uma de cinquenta e uma de cem junto - e enfiava no meu bolso. “Não faz isso comigo não, pelo amor de Deus, o cara vai me mandar embora por isso aí”. E, às vezes, o rapaz ainda vinha atrás de mim: “O Marcos te deu alguma coisa?”. E ele falava: “Se ele te perguntar, fala que eu não te dei nada, não”. “Ele não deu nada”. Porque se ele falasse que deu, eu estaria mentindo para ele, não é? Então, vai que vai, ele está tirando do bolso dele, a carne ele está pagando, não é? Existe tudo isso, a benfeitoria que você faz para uma pessoa, a pessoa que reconhece é bem aproveitado de você fazer, e isso é um vício que dá em qualquer funcionário, não é… É um vício, que se você dá sempre um dinheiro para um funcionário, ele vicia com você, todo cliente que tiver, quer largar o dele para fazer o do outro. Você tem que ser tranquilo, sossegado, deixa a água correr, se ele te chamar, você vai; se ele não te chamar, você não vai, não é? Existia tudo isso. Quando eu ia, os caras já ficavam de olho: “Paulão vai fazer o serviço do Bassi”. Sabia que o Marcos dava, eu não ia, eu estava lá fazendo o meu, ele ia lá, batia nas minhas costas: “Vem aqui, faz o favor, prepara a minha carne aí, rapidinho, vou lá para cima com o Luiz, depois você vai lá, chega lá e me chama depois”. Preparava a carne, porque eu já sabia como era, tudo direitinho, ali, já pronto para esse Clube do Churrasco lá, ele mandava eu ir para lá: “Vai lá almoçar um dia lá, vai lá para comer a picanha assada”. Vou nada, foi sempre isso. Ele me chamou para ir para os Estados Unidos, mas eu era casado, tinha minha mulher, meus filhos eram pequenininhos, não vou largar minha família aqui para… sem saber leitura, sem saber a língua de lá, vou nada. Existiu tudo isso comigo.
P/2 – E onde era esse açougue?
R – Do Marcos?
P/2 – Em que você trabalhava e que o Marcos ia?
R – Era esse mesmo Frigorífico Anglo, e esse da JL… Essa JL, que eu trabalhava, que era… frigorífico de preparação de carne para exportação, ele pegava carne nesse lugar. Às vezes ia, nesse que ele ia buscar carne, aquele jogador de bola, Rivelino; ia aquele que era treinador do Corinthians, o Oswaldo Brandão, sempre ia junto com ele. E era cara que vinha e ficava em pé ao meu lado, vendo eu fazer o serviço. Cara famosa, mas eu nunca dei chance de... “Eu vou deixar de fazer o meu serviço para pedir a conta ali, para trabalhar com o Marcos”. Ele falava comigo para eu ir trabalhar com ele, não desistia, ele falava: “Por que você não quer trabalhar comigo, se eu vou te pagar melhor do que ele?”. Eu falava: “Não Marcos, porque eu prefiro a sua amizade do que o seu dinheiro e o seu serviço. Você sendo meu amigo para a vida inteira, eu tenho um cara do meu lado. Agora, se você for meu patrão e amanhã me mandar embora, vai que você não vai me pagar direito e eu vou querer pôr você no pau, não vai perder a amizade? Vai. Então não quero”. Eu falava assim. “Eu quero a
sua amizade, porque a sua amizade para mim é gostosa. Eu estando perto de você eu vejo artista, eu vejo ator, eu vejo jogador, eu vejo todo mundo, eu posso ir lá, entrar lá, tomar um café, comer, beber e sair tranquilamente, desinteressadamente. Mas, se eu for seu empregado, eu não vou poder ver ninguém porque eu vou ter que estar fazendo o seu serviço. Então, prefiro assim: eu ser eu. Eu quero trabalhar e ganhar o meu; então, aqui eu estou tranquilo”.
P/1 – E qual foi o dia que ele foi lá, que foi o mais legal?
R – Não, o dia… era todo dia a mesma coisa para mim, não tinha um dia diferente do outro. O dia que para mim foi mais legal foi ele falar comigo e eu recusar o serviço dele nos Estados Unidos. Para mim não foi um dia bom e, ao mesmo tempo, foi um dos melhores dias, porque na hora em que eu saí ele falou assim para o cara: “Você está vendo como que é o cara? O cara deixou de ganhar um montão de dinheiro lá fora para não perder a família, para não deixar a família dele desamparada”. Esse dia para mim foi… Quer dizer, ele me considerou dez vezes melhor do que outra pessoa, não é? Ele falou: “Ele deixou de ir para ganhar em dólar, ganhar um dinheirão pesado lá fora para poder não deixar a família dele sozinha aqui”. Isso aí para mim foi tudo, porque tenho minha família, não vou desprezar as pessoas que eu mais amo, eu não vou deixar, ficar lá do lado de fora chorando, vendo pela televisão por acaso notícia? Não, eu prefiro estar aqui. Eu sou assim.
P/1 – E como que era o cotidiano do açougue?
R – O cotidiano do açougue é tipo... Você fala açougue sem ser as empresas, no caso? Essas empresas grandes, só açougueiro?
P/1 – Não, como que o senhor trabalhava, como que era o dia a dia do seu trabalho, a rotina assim?
R – A rotina era aquela que… É como, digamos, hoje na minha escola; hoje, depois de velho, eu não quero faltar um dia, eu não quero perder um dia para amanhã ninguém estar me cobrando o que eu fui e o que eu faltei - só se for por doença. O meu cotidiano é esse, eu quero ser decente para qualquer pessoa. Eu deixei de ser gerente de açougue, deixei de ser um cara para tomar conta de tudo sozinho por falta de escrever e ler. O cara me dava tudo, eu trabalhei… Cheguei a trabalhar em caixa de açougue sem saber fazer minhas contas. Fazia minha leiturinha devagar, o patrão mandava os cheques assinados para eu preencher, para pagamentos de mercadorias naquelas maquininhas digitais, que você fazia antigamente, aquelas maquininhas que preenchem o cheque. Você digita, os números do banco, agência, tal, tal, tal, depois você clica, ela abaixa, preenche o cheque no valor que você fez - se você fez errado, o cheque também vai sair errado. O patrão mandava os cheques assinados, eu preenchia para ele, devolvia, ele verificava: “Está correto?” “Está”. Carimbava e mandava para o banco. Quer dizer, mas naquela época eu fui ensinado por alguém, eu fazia não era na sabedoria, eu fazia na prática. O que você faz na prática não é porque você sabe fazer, é porque você aprendeu na prática, não é uma sabedoria. A pessoa que sabe é aquele que pega o papel, lê e escreve bonitinho, e faz porque sabe: “Eu sei fazer”. Mas já eu não, eu fazia na prática.
P/1 – E, seu Paulo, o que dá satisfação na profissão? O que o senhor mais gosta de fazer?
R – Você diz de açougueiro?
P/1 – Isso.
R – Era chegar de manhã cedo na casa de carne, olhar as carnes nos trilhos e desossar a carne. Não dava prazer atender ninguém no balcão, meu prazer era
destacar aquelas carnes, desossar as carnes. E quanto mais eu desossava carne, eu não queria parar. Para mim, o maior prazer que eu tinha era estar trabalhando ali com saúde; sem saúde, não. Para mim, era tudo aquilo ali.
P/1 – E tinha algo de que você não gostava?
R – Tinha: atender o cliente, trabalhar no atendimento - e eu atendia muito melhor do que qualquer um. Mas eu não gosto. Porque você chega lá fora, eu estou atendendo. Para mim, eu estou achando que você não está satisfeito com o que eu estou fazendo. Eu estou fazendo super bem para você, no meu entender você está achando: “Ele está caprichando para mim”. Mas eu estou aqui dentro sabendo que ele não está gostando. Aquilo é uma impaciência que não me deixa quieto, é atender o cliente. Não sei oferecer uma coisa que está meio... Que vai vencer amanhã - eu tenho que empurrar isso aqui hoje porque amanhã
vence, ele que se lasque para lá. Então, para mim, não é o meu feitio. Eu quero te passar aquela verdade, aquilo que é. E é onde o patrão não gosta. Você está no açougue, o patrão fala para você: “Você tem que vender o mais ruim primeiro, os melhores você deixa para depois, que segura mais no frio”. Aí eu vou ter que te vender… Inclusive, tem até um apelido desse tipo de mercadoria, a gente fala assim: “Vende as tochas”. Quer dizer, tocha: o que é tocha? É aquele para queimar, não é? Jogar fora. Quer dizer, os miolos você fica para você, para passar depois, bonitinho, para os clientes VIP, não é? É aí que está o problema. Eu não gosto desse tipo de coisa, não gosto. Porque assim... Se você está comprando uma mercadoria ruim, o direito de você vir reclamar é comigo, não é com o patrão - você nem conhece, não sabe nem quem é o dono. “Você fez isso, fez aquilo…”. Quer dizer que para mim já está errado. Então, o meu contragosto é isso, não gosto de… É atender o cliente, eu gosto de chegar, desossar a mercadoria, preparar ela, encher os balcões, bonitinho, nas bandejas. Para as pessoas falarem assim: “Está bonitinho, está bem feito o que você fez”. Para mim é nota dez, mas atender não, não gosto. E eu atendo muito bem, mas eu não gosto.
P/2 – O que mudou nesse trabalho que o senhor fazia? O que mudou em relação a hoje?
R – Mudou em relação a hoje?
P/2 – Os açougues hoje são iguais?
R – Não. Está muito fraco, os atendimentos não são muito… Quer dizer, os funcionários dos açougues, os açougueiros... Para mim, tem dia que eu vou ao açougue, eu vejo… Tem vários lugares que você vai que até atende bem, mas tem uns lugares que você vai, que não é lá essas coisas. Não tem uma limpeza sofisticada, não tem uma coisa bonitinha para você chegar e falar: “Aqui é bacana para você comprar”. Mas não tem... É tipo assim, você vai comprar coisa barata... Se você vai comprar barato, você já tem que ir na bandeja do negócio barato, não é você pegar o barato e vender por caro. Está trapaceando um cliente e está existindo tudo isso hoje, não está como era antigamente. Porque, antigamente, você chegava… Vamos supor, você vai chegar lá e dizer: “Eu quero a mercadoria boa, a mais barata, a mais em conta”. Ou diz assim: “Eu vou pagar o preço, você pode caprichar para mim, eu vou pagar o preço”. “Então está bom, eu vou limpar ela pra você bonitinho, fazer seu bife e te entregar ela bem embaladinha, no capricho, você vai pagar o preço, vai levar para casa e amanhã vai falar: ‘Aquela carne estava jóia’. Aquilo me satisfaz, aquela resposta sua. Não hoje, hoje você chega num balcão, pega... Vou no mercado, vou em algum mercado comprar alguma mercadoria para mim, o cara pega, não pega nem a faca para cortar, eu vou pegar uma costela, vou pegar um bife que já está embalado, leva para casa, está uma porcaria ali dentro daquela bandejinha. O de cima está bonitinho, o de baixo está uma porcaria. Quer dizer, vende o preço normal, o que custa você pôr bife ruim no valor de um real e você pôr um melhor que o cliente vai gostar,
no valor de dois? Não custa nada fazer isso, não é? Quer dizer, se tudo vai custar um e cinquenta, você vende o ruim por um real e vende o bom por dois, vai dar a mesma coisa. O pobre vai comprar o que é mais inferior, que ele vai cozinhar, ele vai comprar por um real. Agora, se você pode pagar mais um pouquinho, você vai comprar o melhorzinho, você vai pagar dois, quer dizer que a mercadoria vai empatar o preço - para mim seria isso. Mas, hoje em dia, os patrões não fazem isso não, eles dão as costas para o funcionário, dão a ordem e dão as costas. Quer dizer, entra no carro e vai embora, dá uma ordem e vira as costas. O que o encarregado vai ter que fazer? Vai ter que tirar da garganta dele para poder atender legal o cliente, senão não atende. Ele atende hoje, o cliente não vai lá mais. “Pô, aquele cara me atendeu errado, não gostei do que ele fez comigo”. Ele fala para mim, que estou lá fora, na rua: “Eu ia lá hoje comprar, já não vou mais, o cara não atendeu legal, o fulano também não vai me atender legal, vou para outro lugar”. A tendência é essa, cada dia que passa acontece isso. Eu tenho muito lugar lá, eu já trabalhei; às vezes, eu passo seis, sete meses para ir lá e conheço os donos, os donos, desde o início que trabalharam comigo, como aprendizes. E hoje ele comprou a casa, ele é dono das casas e os gerentes dele não fazem o que é preciso fazer. Ele vem, dá ordem ali, dá mercadoria, dá ordem para você, e dá as costas: “Tchau, um abraço, você tem que se virar”. Isso dói na gente, isso machuca, porque você não está brigando com o gerente porque ele quer brigar com você não, é porque ele é obrigado, porque se ele fizer errado o patrão vem depois e pode até mandar ele embora, ele pode até perder o emprego; quer dizer, o gerente briga com você e fica de bem com o patrão, que mandou ele fazer as coisas erradas, e ele não é assim. Eu saí do meu serviço já, por isso. A minha aposentadoria é desse tamanhozinho e eu fazendo um biquinho aqui e acolá, às vezes ele me chamava para fazer um bico no fim de semana, porque estava apertado para os funcionários. Eu dispensei fazer esse tipo de coisa, porque eu via como ele fazia com os funcionários dele. Não, não dá não, eu estou aposentado por invalidez, não vou fazer bico nenhum, não vou fazer nada, não vou me meter a fazer uma coisa que não estou propício a fazer. Hoje eu não posso andar direito, não posso correr. Ave Maria, se o cara vier lá de cima para cá e o cara me pegar... se eu tiver que dar um pulo, o cara vai me pegar, porque eu não vou pular, eu vou cair, vou me machucar. Com certeza. Tenho o tornozelo
ruim, o joelho ruim, então vai ser isso aí. Por causa de desgaste físico
de patrão, porque você tenta fazer o bem para ele, acaba se prejudicando depois, e não pode recuperar. Hoje eu estou com sessenta e cinco anos, não aposentei por trabalho, aposentei por invalidez, por motivo de saúde e estou com a saúde defasada até hoje, por ser tão honesto com patrão. Às vezes, chegava dia de você ficar 24 horas no serviço, dormir na empresa - dormir não, que você passava a noite acordado, porque você está trabalhando para o dia de amanhã não ficar em falta de nada. E o patrão não reconhecer você, é terrível isso aí. Hoje em dia, se fosse para eu fazer, eu não faria nunca, não faria. E dou razão a quem não queira fazer, que eu já vi que a saúde da gente é tudo na vida. É isso aí.
P/2 – E esses açougues que o senhor trabalhou eram todos perto de casa, não?
R – Não. O perto de casa foi só esse varejão de carne agora, esse aí é uns trezentos metros da minha casa; cinco, seis minutos a pé eu estava na minha casa. Já os outros, eram mais para o centro aqui de São Paulo. Teve um que era na Lapa, Vila Jaguara - Vila Jaguara é zona oeste aqui em São Paulo. A Anglo era na Mooca... então é por aí. Teve um outro mercado que era na Celso Garcia - é, Celso Garcia. Eu trabalhei lá na Celso Garcia, eu trabalhei uns cinco, seis anos, acho que cinco anos na Celso Garcia, onde era ali do lado daquela igreja do Edir Macedo, no templo lá, uma travessa da Celso Garcia com a rua Bresser, esquina ali. Trabalhei muito tempo, os patrões eram muito bons no início. Aí, no fim, começaram a brigar os dois, teve uma desavença, teve que mudar a firma, mas essa que é a vida minha; foi sempre assim. As coisas que passaram na minha vida, o que mais me apurei até hoje, no caso, foi gostar de ser um funcionário produtivo à firma, à empresa, não para mim. Porque eu não produzi nada e eu trabalhei muito. Eu gostava muito de trabalhar, gostava, adorava. Fazer uma comparação, que não tem nada a ver, é como hoje: nunca quis faltar um dia na minha escola porque eu nunca quis faltar um dia no meu serviço. Porque eu trabalhava na Lapa e saía da minha casa todo dia às quatro horas da manhã, pegava o primeiro ônibus que passava para vir até o Minhocão, aqui na Santa Cecília, para pegar o ônibus para a Lapa. Vinha de Metrô, pegava o ônibus para entrar no serviço às seis e meia, sete horas, lá na zona oeste. Sempre, a vida inteira fiz isso aí. Nunca gostei de deixar na família faltando nada, preguiçoso… preguiçoso assim, chegar em casa, ter que lavar louça, ter que varrer casa, arrumar quintal, eu sou preguiçoso. Eu falei para a minha esposa: “Você está aqui, casada comigo, eu quero chegar aqui em casa e achar tudo isso bonitinho, vou chegar, vou tomar um banho, vou sentar na mesa, vou comer, quero a minha comida ali prontinha, e é só. Vou dormir, porque eu vou ter que trabalhar para dar tudo, para você não precisar fazer isso; então, você faz para mim. A casa, o resto, sou eu. Eu vou te dar roupa, vou te dar tudo que você precisa”. Ela sabe disso. Até hoje ela nunca teve uma carteira registrada, a minha esposa. Mas também, graças a Deus, nunca faltou nada em casa. Com esse problema que eu tive do câncer, eu mantive a minha obrigação certinha. Tive ajuda de muita gente, que eu não vou negar que tive, tive ajuda e até hoje eu estou tendo ajuda, porque o pessoal gosta de me ajudar, porque me considera um amigo e vê que a minha situação não é lá essas coisas. Eles me ajudam, caprichosamente, e além de me ajudar, eles vão em casa, eles… Tem muita gente que gosta de mim, porque eu sou o Paulão, todo mundo sabe quem é o Paulão, das igrejas, dos salões de festas, dos açougues. Falou: “Paulão”, todo mundo sabe quem é o Paulão. E a minha esposa também, é igualzinha a mim, o nome dela é a mesma coisa. Em tudo quanto é lugar: “Cadê a dona Cecília?”. O padre não quer ficar um minuto sem a
dona Cecília na igreja, ajudando ele com os outros funcionários, porque na igreja tem a creche... Tem de tudo dentro da igreja: tem a creche, tem o salão da igreja, tem festa, tem tudo. As comidas, preparação de comida, ele quer que Cecília esteja na preparação da comida, ajudando o pessoal da creche, ajudando o pessoal da cozinha, até o padre da igreja; toda a comunidade conhece a dona Cecília, é a minha esposa. Às vezes, tem uns que nem me conhecem direito, tanto como conhece ela, vai para viagem, põe ela no carro, leva para onde quer, vai para Minas Gerais, interior de Minas aí, vão dois, três carros, vai ônibus: “Dona Cecília vai…”. Vai para tudo quanto é lugar, as mulheres não deixam ela para trás não. E a gente não tem dinheiro, vai tudo de graça, entra no carro de um, no carro de outro, e vai embora. É o Paulo e a dona Cecília. Os filhos também são conhecido por motivo da gente.
P/1 – seu Paulo, o senhor falou que teve que se aposentar por motivo de saúde. Como foi isso aí?
R – Foi um câncer. Esse câncer me corroeu, me corrompeu muitos anos, eu não sabia que era um câncer. Eu sei que estava me definhando, estava me acabando, entendeu? Às vezes, eu descia na calçada da minha casa para ir para a rua, não estava conseguindo. Eu chegava na minha casa, jantava, não conseguia comer. Porque tudo que eu comia ficava um bolo aqui no estômago, e eu escorava no sofá, deitava, tipo que deitasse assim com a barriga para cima, aí eu tinha que ficar passando a mão até ficar aquele barulho no meu estômago e a comida parecia que estava passando de um lugar para o outro. Aí dava uma melhorada, dava uma relaxada, eu dormia sossegado. Ia trabalhar no outro dia, chegava no açougue, trabalhava até nove horas, apanhava um papelão assim no chão, deitava, que não estava conseguindo. Naquela situação, eu já tinha ido várias vezes ao médico, em um hospital, em outro, chegava lá o hospital dava um comprimido para você, falava: “Você toma isso aqui”. O outro me deu uma glicose, me aplicou uma injeção na veia, eu tive uma disenteria, falou que eu estava com gordura no intestino. Eu tive uma disenteria de cinco dias, sem parar, e não acontecia nada. Então, aquilo ali me prejudicou cada vez mais, que aquela disenteria diminuiu muito, até que chegou um dia em que o meu filho saiu do serviço dele - porque ele trabalhava aqui em São Paulo, no centro aí - ele saiu do serviço dele, passou lá e falou: “Pai, vamos ao médico?” “Não, filho, porque eu já fui no Planalto, no Santa Marcelina, eles não deixam entrar ninguém. Já fui lá, tomei um medicamento errado, então por aqui não dá. Ou eu vou nas Clínicas, ou vou ao Hospital São Paulo”. Era um sábado de tarde. Até aí, tudo bem. Ele falou: “Vamos onde você quiser, vamos passar no Santa Marcelina, se não resolver”. Ele trabalhava num escritório de advocacia, era tipo um ajudante do escritório de advocacia. Então ele foi… Nós fomos ao Santa Marcelina. O gerente do açougue deixou eu ir porque eu estava deitado no chão na hora em que ele chegou: “Seu pai está ruim aí”. Entrou e falou comigo: “Vamos, vamos… tome um banho ai”. Tinha um banho lá no açougue, tomei um banho e saí com ele, umas três horas da tarde. Aí fui para o Santa Marcelina. Chegou no Santa Marcelina, cadê que os seguranças queriam deixar eu fazer uma ficha lá dentro? “Pelo amor de Deus”. Aí ele falou… Ele entendia um pouco de lei, que ele viu os patrões dele falando, ele falou: “Olha, eu vou ligar para o meu advogado, o meu patrão, que é advogado, e vocês… Daqui a pouco ele vai chegar aqui e eu quero ver… Ela já vai vir logo com a televisão para conversar com vocês. Vai chamar alguém da televisão, vai chamar a polícia, vai abrir uma ocorrência contra vocês, porque isso é omissão de socorro, meu pai está assim, assim, assim porque não consegue entrar no hospital para fazer exame”. Não sei o quê e tal. Aí ele: “Não vai entrar, não?”. Pegou o telefone celular, fingiu que estava ligando”. ‘Você está ligando para quem?” ‘Estou falando com o meu patrão. Eu não falei para você que eu ia falar com o meu patrão?” “Tá, então, faz uma ficha aqui para o rapaz, mas você não entra não, você vai ficar aqui fora, ele entra sozinho”. “Ele não vai entrar sozinho não, ele está desse jeito, não vai entrar sozinho”. Aí o meu filho entrou comigo lá, ele deixou numa boa, me levaram para a emergência, porque só tinha atendimento de emergência, eu fiquei lá na emergência. Quando o médico chegou, que me chamou, que eu entrei para a sala lá, eu comecei a contar a história para o médico. O médico me pôs na maca, começou a fazer uma massagem, falou: “Faz tempo que você sente isso?” “Tem mais ou menos um ano”. “Um ano, ‘seu’ Paulo?”. “É”. Ele viu o caroço por dentro do meu intestino, eu estava magrinho, só estava o couro, ele já viu, percebeu aquilo logo ali, ele apertava, dava aquela dor terrível como se fosse uma apendicite, mas se já tem tanto tempo não é apendicite. Aí, mandou eu fazer os exames de sangue. Quando ele fez os exames de sangue e fez uma radiografia, foi que ele viu o problema que tinha no intestino. Ele falou: “‘Seu’ Paulo, o senhor passou muito tempo sem procurar um médico”. Eu falei: “Não, eu tenho atestado de duzentos hospitais aqui, eu nunca deixei de ir ao médico, só que ninguém me atendeu. Hoje você está me atendendo porque teve ameaça de ser processado, lá fora. Por isso que você está me atendendo hoje aqui. Foi uma ocorrência que ia fazer aqui, aí você está me atendendo”. Aí, quando o médico me examinou, que viu aquele problema, pegou o RX e o exame de sangue, falou: “‘Seu’ Paulo, o seu problema pode ser decidido hoje, agora. Porque nós estamos todos aqui, sem fazer nada, nós somos médicos, vamos fazer uma cirurgia no senhor hoje. Topa fazer a cirurgia, ou não?”. Eu falei: “Agora, depende de você”. Aí ele já falou para as meninas, já me preparei para subir. As meninas já me tiraram dali, já me prepararam lá para a cirurgia, e naquele dia eu não fiz porque chegou emergência, um rapaz com um monte de tiro no corpo, teve que passar ele na frente; mas eu fiquei internado para o dia seguinte. Me fizeram a cirurgia, tiraram aquele câncer, um monte de pedaço do meu intestino fora. Foi aí que o médico falou para os meus filhos: “Vocês não falem para o seu pai o que está acontecendo”. Uns dias depois que eu estava… Que eu saí dali do hospital - antes de eu sair - eles conversaram com o médico: “Não fala para ele que ele tem um problema de um câncer. Já foi feita a autópsia…”. Como que é? Autópsia não…
P/1 – Biópsia.
R – “Já foi feita a biópsia, ele tem um câncer. A gente tirou o câncer dele, o motivo foi esse aqui do câncer, a biópsia está aqui, você vai ficar com ela na mão, só que se você falar para ele que ele tem câncer, ele pode ter um problema de…”. Como é que se fala, gente?
P/2 – Depressão?
R – “Depressão, e ficar pior para ele. Então, deixa ele aí, quando ele descobrir que está com esse problema, já vai estar sendo curado”. Aí, um mês depois, eu fui tirar os pontos, passei no outro médico, o outro médico falou: “‘Seu’ Paulo, o senhor vai fazer uma quimioterapia”. “Então, no caso, eu tive um câncer?”
“Por que você sabe que quimioterapia faz parte de câncer?” “Porque a prima da minha esposa teve câncer e foi operada nas Clínicas, então eu sei que a quimioterapia, radioterapia, é problema de câncer”. “Já que você falou, então é. Foi um câncer que foi tirado, está tudo bem agora com o senhor, vou depender agora só dessa quimioterapia, se vai fazer”. Eu fiz quimioterapia por seis meses, de junho até dezembro de 2002. Graças a Deus, tirou com uma mão, assim. Agora, no ano passado, no mês de fevereiro, que eu fiz sessenta e quatro anos, o médico me chamou lá na sala dele, me deu alta. Porque fizeram acompanhamento a vida inteira comigo, não é? Ele falou: “‘Seu’ Paulo, o senhor está são, vou lhe dar um presente”. “Que presente?” “Estou olhando a sua ficha aqui, o senhor faz anos hoje, não é, ‘seu’ Paulo?” “É meu aniversário”. “Sessenta e quatro anos, ‘seu’ Paulo? Então... Seu câncer está curado, graças a Deus; o senhor tem a alta na sua mão, pode ir embora para a sua casa”. Putz, pra mim foi tudo aquilo. Fiz sessenta e cinco anos e recebi alta. Sessenta e cinco não, foi sessenta e quatro parece, ou sessenta e dois, um negócio assim. Foi no mês de fevereiro, acho que foi ano passado que eu fiz. Eu sei que tive esse problema do câncer. Depois dele, eu tive hemorragia. Hemorragia eu fui desenganado pelo médico, estourou tudinho por dentro, próprio tratamento… parece que nunca foi sarado, é a mesma coisa de você ir lá, o médico passar remédio que não tem nada a ver, você toma e não sara. Tendinite, bursite, artrose... Aqui, olha, esse bração é praticamente… Esses dedos aqui são todos adormecidos, tudo dormente, você encosta aqui dá aquela dormência na mão, esses nervos, por dentro do braço aqui. Aquela dor que eu senti, fui no médico, o médico me deu remédio errado, vários remédios errados, me estourou por dentro, todo meu intestino, quase morri, foi erro do médico, deu 1% para eu sobreviver, porque estourou tudo, eu tomei quatro ou cinco bolsas de sangue para repor o meu sangue. E pra achar? O meu sangue é ‘O’ negativo. O negativo é… Deu trabalho, mas eu fiquei ali, graças a Deus eu curei, voltei, e hoje estou vivo. Mas o maior cuidado, pisando em ovos para não quebrar, entendeu?
P/1 – E foi um logo após o outro?
R – Não. Foi… Eu operei o câncer em 2002 e a hemorragia foi em 2006. A hemorragia foi depois, veio em 2006, por causa de remédio errado.E de 2006 até hoje, 2017, não tiraram o problema do meu braço. Eu estou com um exame fechado na minha casa, ultrassom e mais outro exame do braço, e hoje em dia não tem um médico no posto de saúde que eu possa levar esse exame para o médico ver.
P/2 – Não tem nada a ver com o dedo que o senhor sofreu o acidente?
R – Esse dedo aqui?
P/2 – É.
R – Não. Eu acho que não sei, pode ter dado problema esse dedo depois de velho, mas esse dedo aqui, eu tive o acidente dele em 1988. Em 1988 eu tive o acidente nesse dedo, cortei ele.
P/1 – Como foi o acidente?
R – Acidente de trabalho, a faca entrou em cima assim, saiu na palma da mão. A faca de desossa é pequenininha assim, desossando, aí não tinha proteção de luva, entrou aqui assim, passou dentro da junta, cortou o nervo, um foi para cá e o do dedo subiu assim, ficou para fora assim. Quase secou a ponta, teve que tirar um pedacinho dele para puxar… A facada do umbigo, ela entrou todinha a faca assim, entrou no umbigo, perto do umbigo, assim. Na hora que entrou, pus a mão assim, o sangue caiu no chão, parecia que tinha sangrado o carneiro.
P/1 – E foi acidente, também?
R – Foi acidente também.
P/1 – O senhor mesmo que…
R – É, na correria, desossando a carne, ela engancha no osso, você puxa para o lado, vem direto assim. E aquelas facas não cortam, elas rebarbam assim - se deslizar, elas vão. Não senti a dor na hora, só senti a pancada, quando pus a mão assim, o sangue passava no chão assim. Fiquei parado, não podia mexer, tinha que ficar ali, quieto, até alguém chegar, colocar um pano. Me levaram para a Santa Casa, a Santa Casa não quis me operar, me levaram para o Hospital Dom Pedro, o Hospital Dom Pedro não quis me operar, me levaram para aquele hospital no Ipiranga, o… Monumento - Hospital Monumento do Ipiranga. Aí foi que me operaram, fiquei doze horas sem operar daqui da barriga. Do dedo também foi no Ipiranga.
P/1 – Mas você conseguiu recuperar?
R – O dedo? Muito pouca coisa; esse dedo aqui é lerdo. Antes eu ganhava uma pensão desse dedo aqui. Eu ganhava 80% do valor do salário mínimo por acidente de trabalho desse dedo como pensionista direto. Aí, quando me aposentei, eles me chamaram lá e me tiraram essa aposentadoria do dedo - essa pensão do dedo - coisa que não deviam ter feito. Já perguntei para o advogado e o advogado foi recorrer, foi fazer esse negócio para mim, reabrir o processo, foi uma advogada famosa, não sei se eu posso falar ou não.
P/1 – Pode.
R – Foi uma advogada famosa e essa advogada falou para mim... Ela não, o outro advogado da área dela lá, porque o meu caso tinha sido encerrado, foi causa perdida, e ela falou para mim, na televisão, ao vivo, que o meu caso era causa ganha porque foi acidente de trabalho. E foi em 1988 que aconteceu isso e a lei mudou em 1996. De lá para cá, eu teria o direito de ganhar esse direito todinho. Eu fui lá no escritório dela, ela fez para mim... Passado um tempo eu liguei lá, passaram-se três anos, dois anos, eu liguei de novo, o advogado falou: “Sua causa foi encerrada”. Como eu tinha o número do processo, a minha filha entrou no processo, estava assim: “Foram pagos treze mil e não sei quantos reais no processo…”. Estava lá o número do processo, está lá na Justiça, com ele. Disse que eu tinha ganhado treze mil e poucos reais por essa indenização. Mas eu fui lá perguntar para eles, pessoalmente, e eles falaram que tinha sido encerrado, que aqueles treze mil era não sei o quê, não sei o quê, e fiquei assim: “Como é que eu faço agora?” Aqui tem, no Diário Popular, está constando que eu ganhei a causa, que foi encerrado, que foi pago tal, mas no computador dela lá, está fechada a conta, eu não tenho a senha dela para reabrir o processo dela... Eu tenho a senha do número, a minha filha puxou e deu aquele negócio lá. Acho que essa causa está perdida, não é? Quer dizer, para verificar se eu ganhei ou não tenho que pôr outro advogado para mexer, para saber se aquela causa foi paga ou não. Aí, eu não vou pagar o advogado, porque agora não é certo que vou ganhar dinheiro para pagar para ele, é meio complicado. Acidente de trabalho isso aqui. Essa… Eu falei que ia falar, então vou falar: essa doutora Maria Faiock, que faz o programa com o Eli Corrêa... Vai a Cíntia, ela trabalha para a Cíntia, do Eli Correa; sempre às quartas-feiras, às três horas da tarde, ela está no programa da Cíntia, falando ao vivo para todo o Brasil, no rádio. Eu escutei ela falando no rádio, eu liguei lá, falei com ela pessoalmente, minha família toda escutou ela no rádio falando comigo: “‘Seu’ Paulo, é causa ganha”. Peguei o telefone depois, fui lá na República, ali, ela fez toda a papelada, ficou dois anos, depois a causa não aparecia de jeito nenhum para mim. E ela falou: “É causa ganha e é grande, vai pagar sua indenização, seus…”. Aposentei em 2006, até agora, 2017, olha quanto eu ia receber de salários atrasados? Mas não teve jeito, não.
P/1 – seu Paulo, mudando um pouquinho, eu queria que o senhor falasse um pouco mais sobre as casas em que o senhor viveu até agora. Como era a primeira rua que o senhor morava, lá em Itaquera?
R – Tranquilo, era tranquilo. Eu morava do lado da casa de um cidadão considerado lá, que era Moraes, um cidadão chamado Moraes. Hoje é a delegacia, onde era a casa dele, ele morreu. Era o dono da pedreira de Itaquera, onde é o campo do Corinthians hoje. Esse Moraes, eu morava na mesma rua dele, vizinho assim, então a gente sempre estava se vendo. Tranquilo. Depois - eu morei não muitos anos lá - eu mudei para essa rua que eu moro, mudei em 1981. Porque eu moro nessa rua em que eu moro até agora - de 1981 até 2017 que eu moro nesse mesmo endereço. Quer dizer, a rua, não a casa, porque a casa é outra. Mas essa casa em que eu moro vai fazer dezoito anos. Já tem dezoito que eu moro lá, na rua, só ali. Essa rua em que eu moro é tipo assim... É uma família que mora ali, só que é muito barulhenta, sabe como é que é uma família barulhenta? É som, é música, é barulho, é festa, até eu já fechei a rua uma vez, meu filho fez quinze anos e eu fechei a rua de ponta a ponta; churrascão era assado no quintal, mas a carne era distribuída na rua, carne na rua. Uma viatura de polícia na ponta da rua, outra viatura na outra. Até a Prefeitura foi tirar meu som, meu som era grande, não é? Tirar as caixas da rua lá, chamaram a Prefeitura, mas gente da própria Prefeitura, que estava vendo, falou: “Se nós conseguirmos tirar ali, ele vai dar um dinheiro para nós, nós estamos ricos, nós vamos embora, não é?” E jogaram essa bomba para cima de mim, jogaram a bomba e eu já esquivei o pessoal, fui lá, chamei… Ele foi entrar na minha casa assim, sem eu saber, eu não estava lá, estava no outro lugar, entraram lá, falaram com a minha esposa, a minha esposa já perdeu a cabeça logo, aí me chamou para dentro de casa, os caras: “Quer dar um dinheiro para nós aí, a gente deixa, senão nós vamos encostar o caminhão e levar tudo dentro”. “Espera aí que eu vou ver se um colega meu tem um dinheiro aqui”. Saí, a polícia não estava, porque a hora da bagunça começou às oito horas, a polícia estava fazendo ronda, mas já sabia… tinha feito a solicitação, tinha feito o pedido, as viaturas já tinham passado por ali, já tinham conversado com alguém, com todo mundo ali. Colega meu ligou, a viatura estava na padaria pertinho, já desceu. Aí falei: “Seu dinheiro está aqui, olha”. O sargento já pegou logo um papel na mão: “O senhor tem esse papel aqui?”. “Não”. “Eu tenho, que ele foi lá na Delegacia falar, ele foi na Prefeitura, só que na Prefeitura vocês são covardes, ninguém atendeu ele, está aqui, olha, que ele falou, que ninguém atendeu ele na Prefeitura. Já na minha Delegacia, está o nome dele aqui bonitinho, porque ele foi lá falar com a
gente”. Aí os caras não tiraram. Eu falei: “O que eu posso fazer é isso, eu estou dentro da lei, se você não está, está querendo algum dinheiro que nem me pediu aqui, eu não tenho dinheiro para lhe dar, não. Eu posso dar um jeito para os caras que estão trabalhando para mim, mas para vocês não. Quer comer e beber, come; senão, não tem nada não”. O que mais já aconteceu de importante para mim, na vida ali, foi isso. Os caras da Prefeitura queriam me levar um pouquinho e eu não dei, foi só isso. Mas, graças a Deus, na rua tudo tranquilo. A rua é uma família. Eu entro e saio onde eu quero, na casa de qualquer um ali, todo mundo conhece, todo mundo… Jogatina, jogatina assim, de baralho, brincando. Jogo uma caxeta ali, eu jogo um truco, jogo uma festinha de vez em quando. Eu não bebo, nunca bebi, só fumava; fumar, eu fumei muito, mas beber não.
P/1 – Então o senhor tem amigos ali de longa data?
R – Tenho, tenho. Amigos eu tenho, graças a Deus, não posso dizer que não.
P/2 – Conta um pouco das festas que o senhor fazia na rua.
R – A festa para mim era tudo, não é? Porque a minha vida foi aquilo ali, alegria, sempre gostei de alegria; a minha esposa até enche o saco: “Paulo, você fica dando comida para os outros, de graça, enchendo a barriga dos outros”. Eu trabalhava com carne, a carne era a coisa mais fácil que tinha para mim para chegar até ali. E os colegas - você sabe como é que é - colega quando vê uma boquinha fácil para comer, rapidinho chega lá, não é? Então, as festas... Era todo o pessoal da vizinhança já ajudava a fazer, muitos deles ajudavam a fazer, tinha um moleque lá que achava que eu era um coordenador de tudo, falava: “Vamos fazer um negócio aí?” “Vamos, o que você quer que faça?” “Vamos fazer uma festinha”. A gente já puxava logo o som para fora, porque o som era a coisa mais fácil que tinha, porque era todo meu, não pagava nada para fazer - fazia baile de casamento, fazia baile de aniversário, festa de todo jeito. Teve uma vez que nós fizemos quarenta e oito horas de festa sem parar, sem desligar… só desligava o som só um pouquinho assim, só para tomar um café, tomar um banho, aí voltava… Chegamos a fazer isso, começar num sábado às sete horas da noite… Não, quarenta e oito horas é mentira, é muita coisa. Foram vinte e quatro horas. Nós fazíamos casamento; às vezes começava o casamento às sete horas da noite, começava a tocar às seis e meia, sete horas, e ia terminar no domingo às sete, oito horas da noite - no domingo já para segunda-feira; fazíamos direto. Às vezes, nós fazíamos... Carne para assar é que não faltava, quando você pensava que estava acabando chegava um monte: “Tem mais carne aqui, vamos tacar no fogo”. Forró, era lambada, era tudo quanto é troço naquela época, era muito bom. Por isso, graças a Deus, todo mundo me conhece, todo mundo sabe quem eu sou. Se você chegar na zona leste, em Itaquera… Não todos os lugares, mas em vários lugares ali e perguntar: “Você conhece o Paulão, assim, assim, açougueiro?”. Todo mundo fala.
P/1 – E tudo isso tocava no som do senhor?
R – Tocava, tocava. E depois disso é que eu fui apagando, aquela molecada que gostava da coisa foi dando incentivo, só que o ruim deles é que tem um tal de um forró no meio, e aí quebra, porque o forte… Entra na cabeça da gente, uma coisa que você não gosta, quer dizer, não é que não gosta, você não curte muito, outras pessoas não curtem; para você é um barulho, para os outros é prazer, não é? Para mim, se torna um barulho. Vamos supor, aqui na Vila Madalena tem umas ruas que os moradores… Eu vejo isso na televisão, os moradores não gostam, mas para quem gosta daquela rua é um prazer; agora, para um morador, é um barulho. É uma coisa terrível. Então, eu parei com o meu por causa disso, mas o meu, dentro do quintal, abre lá as portas lá, para a rua lá, dentro do meu quintal lá, que nem domingo mesmo eu fui dar uma limpada em tudo, dar uma mexida em tudo ali, coloquei tudo para fora do quintal, a mulher não estava, falei: “Está ligado aqui um CDzinho rolando”. O cara já sai da casa dele, vai tomar uma cerveja na beira da minha calçada, já para ficar escutando aquela música lá, de antigamente. E vai… (risos) Chega domingão, o som está de fora, está gostoso de fazer: “Vamos tomar uma cerveja ali, o som está ligado, só sai música boa dali, então, vamos para lá”.
P/2 – O que é música boa?
R – Eu gosto mais de… ultimamente, digamos assim, para mim é música normal, aquelas músicas de antigamente, tal, mistura uns forró bom no meio, umas coisas assim, uns pagodes, um sambinha, é bem bom. Eu gosto de escutar isso aí. Um sertanejo…
P/1 – Fala um pouco para a gente da história desse som aí. Como é a história do som?
R – O som é tudo. Para mim, escutar música é tudo que eu gosto. Não tem muito o que falar, não é? Porque é tipo uma coisa que eu não sei nem te explicar como é que é. Esse som foi provocado por causa do meu filho, que o meu filho mais velho: “Pai, dá um som para mim? Em vez de fazer a minha festa, você me dá um som? Compra um sonzinho pra mim?”. Eu peguei, comprei um aparelho pequeno, as caixas pequenas, e comecei por ali. Aí, vai rolando um movimento, você vai aumentando a coisa, aumentando a coisa, daqui a pouco você está começando a fazer festa de casamento, festa de aniversário, aí você já vai que a semana que vem você já vai querer crescer, comprar um disco melhor, compra uma caixa melhor, daqui a pouco está grande
o negócio. E é tudo que ele queria na vida,
rapaz, aquilo ali, o moleque sentado no meio daquele som. Antigamente, tinha aquelas fitinhas cassete, eu gravava para o pessoal música internacional, flashback, tudo quanto é tipo de coisa assim, mandava, levava para a firma, para os colegas na firma, os colegas chegavam a me abraçar: “Oh, Paulo, aquela ali, que não sei o quê”. Para mim, esse tipo de coisa é tudo na minha vida, adoro demais isso aí, eu gosto muito.
P/1 – E você tem um monte de disco, então?
R – Tenho, tenho LP, vinil, ainda tenho na minha casa, porque eu não estou tocando vinil… mais o que é raridade, agora é mais CD, é…
P/2 – iPod.
R – É, também tem em casa esse iPod. Mas quem mexe mais é o meu garoto, o meu neto.
P/1 – Mas você gosta mesmo é do bolachão?
R – É. Ou CD, não é?
P/1 – E qual é o seu xodó, assim?
R – O xodó são as caixas de som que eu tenho e aqueles aparelhos que eu toco, porque não é um aparelho que vai marcar zueira em você, que você se incomoda, não. Nós podemos estar conversando aqui, ele pode estar tocando o que estiver tocando, não te incomoda que eu toque mais um tuite, não é? E mais: de vez em quando uma pancada. Ele não tem chiadeira, não tem nada, não te incomoda em nada; tanto que os vizinhos escutam aquilo ali, mas não incomoda o vizinho. A gente sabe como que trabalha com aquilo ali. É bem organizado, bem… Eu estou querendo, agora, depois de passar esse meio de ano aí, estou imaginando já… Estou fazendo a minha lição de informática já para comprar um tablet. Não, como é que chama? Um computador, dependendo do que for, já para estar instalando junto com esse som. E o pior é que eu quero vendê-lo, eu quero vendê-lo para comprar outro. Estou pensando em passar para frente, porque muita gente quer comprar. A minha filha falou: “Se eu colocar isso aí na internet para vender para você, pai, amanhã os caras vêm buscar aqui na porta”. Eu falei: “O cara não vai chegar aqui com a nota de dinheiro e não vai me dar na mão. Não, eu vou falar para depositar na minha conta do banco: ‘Deposita lá’. Quando entrar no extrato e ver se está depositado, ele vem buscar, senão…”. Eu adoro aquilo lá demais, e o pior é que eu tenho um monte de coisa guardada em casa - autofalante, tuite, todas essas coisas - porque eu já diminui um pouco o som, tirei as coisas e guardei para montar outro grande. Então, aquele que está ali, eu vou tentar vender, vou comprar algumas peças pequenas e o resto eu mesmo vou fazer as caixas e montar outro grandão.
P/1 – O senhor mesmo que montou?
R – Eu... Meu filho, meu filho vem só… Eu mesmo que coloco as peças, encaixo tudo no lugarzinho certinho ali. Eu instalo tudo direitinho.
P/2 – Mas o seu filho vive disso?
R – Não, meu filho não, meu filho trabalha numa empresa que serve tipos de embalagens para restaurante, faz esse negócio de marmitex, faz essas coisas assim. Mas só as embalagens, só para trabalhar, esse negócio assim, de restaurante. Ele e o meu neto trabalham com isso, meu neto é o despachante para a rua, manda carregar os caminhões, faz as Notas Fiscais. E o meu filho que, às vezes, ajuda a distribuir nas vans, carrega as vans e entrega na rua.
P/1 – Aproveitando que você falou do seu filho, como é que foi ser pai, seu Paulo?
R – Pai? É tudo. Pai é pai, não é? Pai não esquece… eu sou tão dedicado aos meus filhos que eu vou falar para você... Os meus filhos não quero ver… Ave Maria, sei lá, é tudo! Desde quando o meu primeiro garoto nasceu, até as duas filhas... é tudo que eu tenho.
P/1 – Como foi esse nascimento?
R – Só para você ter ideia, nem só dos meus filhos, que eu já dei muitas coisas para eles. Assim, ajudei. Eu não dei, ajudei. Como ter um neto em casa... Na minha casa, não tinha internet. Tinha na casa da minha filha, que morava nos fundos; ela tinha instalado internet para os meninos, tal, aí ela mudou de casa agora, porque vai vender a minha, ela já saiu fora e foi para outro lugar. Mas o meu neto foi para lá porque eles desligaram a internet dali e levou para lá. Eu falei: para a minha mulher e eu trazermos o meu neto para aqui, para ficar pelo menos uma noite conosco - ou um dia, de vez em quando - vou pôr internet aqui. Se eu não puser, ele não vai vir. Estou te falando. Eu gosto demais deles, quando eles chegam em casa, o que os meus filhos nunca fizeram comigo, o que os meus netos fazem hoje - chegar, pular em cima de mim, agarrar o meu pescoço, deitar no meu colo, deitar em cima de mim, me beijar, me dar tapa na cabeça. Meus filhos nunca fizeram isso comigo, de ter essa liberdade que os meus netos têm, entendeu? Então, para mim, é tudo isso aí. Às vezes... Eu chego em casa agora, sento no sofá, começo a cochilar, não tem ninguém lá, só estamos eu e a minha mulher, minha mulher fica fazendo os crochezinhos dela - que agora ela faz isso aí - e eu sentado no sofá, pego um livro da escola, vou fazer alguma lição, vou ler alguma coisa. Eu fico sem graça do meu neto não estar ali. A gente vai num barzinho que tem do lado assim, compra uns salgadinhos, uns doces, coloca no armário. O meu neto já sabe, quando ele entra na porta ali ele já vai direto para aquele armário, já abre a porta, o que tem lá ele já abre e come. Mas é só isso, ele pegou, comeu, sai e vai embora, porque ele está com o celular na mão… Quer dizer, se tem internet ali, ele já vai ligar logo ali… Não tem... Aí, umas duas, três semanas atrás eu liguei para a Vivo, falei para o cara: “Eu queria uma internet baratinha. Como é que você pode fazer para mim”? Ele falou: “‘Seu’ Paulo, tem internet essa linha do senhor, a gente vai mandar um ‘modem’ para lá, você vai instalar o ‘modem’ e a gente vai fazer a conta baratinha”. “Não vai ficar caro?” “Não, o negócio do senhor, o senhor paga sessenta, sessenta e cinco reais de conta de telefone fixo. A gente vai fazer uma conta para o senhor assim: vai pagar vinte e três reais e sessenta centavos de telefone na conta fixa e instalar internet para o senhor, vai dar sessenta e três reais tudo”. Eu falei: “Então instala”. O cara veio, instalou. Agora pronto, chego em casa, ele está no sofá, com a perna para cima. O maior gosto que eu tenho, dar tudo para eles, não falta nada. Quer dizer, só assim... A liberdade para eles para mim é tudo, é como os meus filhos também. O meu filho chega em casa, a primeira… Ele vai fazer quarenta e um anos, o meu filho mais velho, cheio de cabelo branco na cabeça... Enquanto ele não me abraça e me dá um beijo, para ele, não está satisfeito. É a primeira coisa que ele faz: sai do carro, entra na minha casa, me dá um abraço, me dá um beijo, dá na mãe dele também.
P/1 – Eu tinha esquecido de perguntar: seu Paulo, o senhor tinha comentado alguma coisa de uma enchente.
R – Isso foi na minha terra, na Bahia, quando eu fui batizar o meu filho. O meu sogro, que o batizou lá na Bahia... A gente levou os documentos, não é? Foi a primeira vez que a gente foi lá, e tal; quer dizer, depois de casados, uns dois anos aí, a gente foi lá para batizar o meu filho. Naquela época, peguei os documentos, carteira profissional, tal, levei as malas, a gente veio para a cidade, não era tão longe, mas aquele negócio... Está formando uma nuvem ali, vamos embora que dá tempo de nós chegarmos lá, uma nuvem rapidinho, pega no meio do caminho, dá um toró de chuva tão grande que a enchente carregou, molhou tudo que tinha - a roupa do corpo, que nós íamos pegar um ônibus ali na cidade para vir embora para São Paulo. E aí? Como é que nós vamos fazer? Todo molhado, tem que parar em algum lugar e trocar. O ônibus está parado ali, vai sair daqui a dez minutos, não dá tempo de nós trocarmos de roupa, porque a roupa está toda dentro da mala. E agora? Fazer o quê? Vamos para o carro molhado, entramos no ônibus com a roupa molhada, assou a gente tudinho assim, nas pernas, por causa da enchente. Fui tirar carteira profissional aqui em São Paulo, depois que chegou, estava dentro da mala, fui pegar assim, a bicha fazia assim, rasgava que nem papel assim. E agora? Tem que jogar fora. Peguei só um número que eu tinha para pegar outra, essa que eu tenho dentro de casa. Minha vida foi assim. Mas eu nunca briguei por motivo que eu estava errado não, graças a Deus nós estamos aqui, estamos inteiros, estamos vivos.
P/1 – O senhor voltou lá para a Bahia algumas outras vezes, depois?
R – Voltei. Há três anos eu fui lá para a Bahia. Depois, agora, levei os meus netos, que são o xodó; a gente foi para São José do Rio Preto uma vez. Não, Garça. A gente leva eles, não quer deixar. Como agora, se eu chegar e falar: “Nós vamos viajar para a Bahia no mês que vem”. Todo mundo quer ir, mas precisa a parte financeira. Eu já não pago mais, mas tem que agendar. Mas, para agendar, eu tenho que pagar o da minha esposa, que ela é mais nova e tem que pagar de quem vai comigo para sair junto com aquele agendamento ali, para irmos todos num ônibus só. Senão vai ter que ir na frente ou atrás, não é? Eu fui lá em janeiro… Janeiro fez três anos que eu fui lá, está tudo mudado, mudou tudo, tudo. Tem coisa que você não conhece mais nada, até a casa que era do meu pai, em que eu nasci, derrubaram, você só vê os torrão no chão, aquilo ali era a fazenda do fazendeiro, fizeram uma represa de água lá; aquela água, quando chove, que enche, passa em cima de onde era a casa do meu pai, coisa… Não tem mais nada, mudou tudo, mudou tudo. Mas a minha família continua lá, e plantando feijão, arroz, milho e está lá na…
P/2 – Na mesma terra? Não, não é? Porque essa foi inundada.
R – Não, é. Mas quando aquela enchente baixa, que de vez em quando aquela lagoa seca - que não é sempre que chove assim - eu fui lá e peguei a lagoa vazia, eu andei por onde era a lagoa ali, tinha uma roça lá dentro, mas no ano seguinte já teve uma enchente que alagou tudo, tudo de novo. Quer dizer que agora tem água na lagoa, já falaram para mim que a lagoa está quase cheia, tem peixe, você vai pescar, é muito gostoso, é muito bom. Quem vai lá uma vez, sempre quer ir. Já teve gente que foi lá uma vez, foi duas e voltou para morar lá, porque lá é bom. É difícil a coisa, mas é legal você estar por ali, é uma cidade que, de onde você dá um grito todo mundo ouve, todo mundo conhece a família de todo mundo, de fulano, de fulano, de fulano. Inclusive, a Bárbara, que é a minha professora, os pais dela são de lá. No meu caso, são da minha idade, são como eu - eles são de Caculé também - só que eu não conheci a família dela lá porque eu já estava aqui, eles vieram depois. E a Bárbara também, é como minha filha, meus filhos nasceram aqui, a Bárbara tem vinte e nove anos. É uma pessoa que eu adoro demais, vim conhecer na escola, como minha professora, que me alfabetizou, posso te dizer que ela me alfabetizou aí na escola. Se falar de uma mulher que é uma professora... Porque eu tinha tanto medo de entrar numa escola pelo fato de um professor, achando que o professor era um carrasco - ou faz ou racha - eu passei um certo tempo sem entrar. A Bárbara é de Caculé. eu fui saber porque ela foi fazer uma lição para mim sobre documento - o que significa o RG, o CPF, a carteira de trabalho, como se dá o nome disso, daquilo - ela passou uma lição para mim, ela pediu os meus documentos dentro da sala, os documentos de todos os alunos. E ela passando, falou: “‘Seu’ Paulo, nós somos conterrâneos”. “Por quê?” “Eu também… Meus pais são de Caculé; eu nasci aqui, mas eu sou de lá de Caculé porque eles são”. Eu não cheguei a conhecer a família dela lá, mas ela é de Caculé, ela sabe que Calculé é bom, que os pais dela vão lá e falam para ela: “Caculé é gostoso”. Mas é melhor para quem tem, para quem tem pouquinho já pesa um pouco, já pesa.
P/1 – Seu Paulo, quando o senhor voltou a estudar?
R – Eu voltei no ano passado. Março, dia 31 de março do ano passado eu voltei a estudar. Estou tentando ver se me seguro, mas o pior é que eu quero estudar e estou gostando da escola, porque eu não sabia certas coisas que hoje eu estou aprendendo. A gente pega uns professores aí que, para mim, é como se fosse um irmão, pelo que eles fazem com a
gente. Acho que nem um tio faz, nem um pai, dar aquilo que eles estão nos dando - o carinho, a dedicação para cada um dos alunos. Tem uns alunos que, tipo ali, têm Síndrome de Down, têm outros tipos de deficiência, e até a gente para e vai ajudá-los. Eu levanto da cadeira, vou lá, ajudo a fazer as coisas deles, fazem de tudo com eles ali. E os professores não se irritam com eles, não acham ruim nada que eles estejam fazendo, orientam, estão do lado, sempre do lado deles, ali, ajudando. Aqueles não são professores, são pais. Para mim, eu considero assim, que ajuda todo mundo. Dona Merci, o… esqueci o nome do menino lá, eles são os diretores da escola. Sei lá, é como se fosse uma família aquela escola ali. Hoje... Não é que eu esteja falando do EJA assim, é que eu considero... Eu achava que era uma coisa diferente: “Eu vou entrar nessa escola, ver como é”. Daí eu cheguei um dia, me mandaram fazer uma coisa, eu falei: “Não, eu não estou autorizado a fazer nada porque é o seguinte: eu estou novo aqui, eu estou recém chegado, eu não sei como é a organização aqui, então não posso fazer nada para não estar ultrapassando as coisas dos outros. Eu estou sendo mandado, eu não estou mandando em ninguém, não tenho capacidade de mandar em ninguém, estou sendo mandado”. Mas para ajudar, às vezes, a gente faz algum programa de deficiente e vai levar as pessoas em algum lugar, de ônibus, tal, a gente vai junto, ajuda cadeirante. Para mim é tudo o que precisa. Hoje, eu saí de casa às seis e meia da manhã, que eu estou tentando fazer a informática também. Hoje, dia o quê? Quinta-feira. Seria dia de aula de informática para mim. Eu entro sete e meia; aí, quando são dez horas eu passo para a aula normal, tentando chegar mais para a frente um pouquinho, porque informática… eu não tenho celular bom - não ‘avexo’ dizer - esse celular tem mais de cinco anos, é o que eu tenho. Isso aqui é para eu ligar para a minha casa, receber uma ligação no celular… Ninguém sabe que celular que está ligando, só que está ligando, e é bom, conversa bem, então esse aqui nunca passou na mão de ninguém a não ser a minha, é o celular que eu tenho, eu ligo pra você, eu ligo para qualquer um, recebo sua ligação normal, mas eu… Tendo internet na minha casa, eu posso comprar um novo, bonitão, pá, pá, pá, não é? Para eu usar. Mas a minha leitura da informática é fraca, eu não estou entendendo ainda mexer com esse tipo de coisa, eu quero saber o que eu estou fazendo na informática, para ter um celular bom, computador bom, dentro de casa. Então... mas ali, para mim, está ótimo. Eu acho melhor ali do que estar em casa, você acredita isso?
P/1 – Como foi voltar a estudar depois de tanto tempo? Como é para você... Que nem você estava falando da Bárbara, como é aprender, ser alfabetizado, assim?
R – É bom demais, rapaz, é uma coisa… Olha, eu vou falar para você. Você fala assim: “Qual é a palavra da escola hoje, que você sentiu uma precisão de conhecer aquela palavra da escola?” Uma, eu sinto... na idade que eu tenho - 65 anos - eu nunca tinha ouvido falar uma palavra daquela, e eu escutei na escola. Não na escola, eu vi no livro porque eu li. Porque se eu não tivesse lido aquele livro que a professora falou para mim:
‘O senhor pode ler em casa, ajuda ler em casa, você pega assim a lição... eu vou dar a lição amanhã, você lê isso aqui, tal, tal”. Eu falei: “Tudo bem”. Eu cheguei um dia em casa assim, não estava fazendo nada, peguei o livro e fui ler, eu vi aquele escrito lá; depois que eu li toda aquela lição, ainda falei para a minha esposa: “Está acontecendo assim, assim, assim, tal. Eu vi esse negócio aqui, eu não sabia dessa história, essa história para mim aqui é nova”. Posso contar?
P/2 – Uhum.
R – E a coincidência é que isso aconteceu no dia seguinte, aquela história que eu falei para a minha esposa. Ela ficou admirada, ela falou: “Não, não pode ser coincidência, é uma coisa óbvia”. Ela até tirou um barato da minha cara, porque ela falou: “Mesmo que você não soubesse, mas você não teria o direito de falar isso para ninguém”. Eu falei: “Eu falei do meu modo que eu li, para falar a palavra original, não é uma palavra... eu falar do jeito que…”. Digamos assim, eu não sabia falar o que significava a palavra LGBT, veja só! Como eu estava lendo o livro, peguei aquela história ali e estava lendo. Aí, contando as histórias de que as pessoas mais prejudicadas são os pobres, são os pretos, são os negros, são não sei o quê, os índios, bá, bá, bá. Aí, os LGBT, tal, tal, são prejudicados. Aí são gays, travestis, não sei o quê, bá, bá, bá. Aí caiu a minha ficha. Espera aí: LGBT. É essa palavra que significa: lésbica, travesti, homossexual. Eu fiquei assim, imaginando. Aí eu chamei ela, conversei com ela, ela leu e eu falei: “Agora eu estou sabendo como posso chegar numa pessoa que gosta da gente… A gente, na minha casa, tem vários tipos de gente, tem os colegas da minha filha, da escola, vão lá, que são gays, jogo de cintura lá, eu gosto dessas pessoas, porque são educados, são bem… Então, naquele sentido, eu nunca podia falar para eles ou contar uma história para eles em que tivesse uma outra pessoa, vamos supor assim: “Tem uma pessoa que era gay, que era não sei o quê, tal, tal”. Eu não sabia se eu estava falando certo ou se eu estava falando errado. Para mim era uma palavra diferente e foi naquele sentido que eu vi ali, comentei com a minha esposa, e tudo bem, passou. No dia seguinte, eu vou no posto de saúde - eu tinha uma consulta para passar no médico - quem está do meu lado? Um colega dela, da igreja, um cara sabido, canta, ajuda o padre na igreja, faz todo o trabalho na igreja, no computador e tudo, e ele é do meio LGBT. Ele estava ali do lado. Eu cheguei: “Oi, tudo bem?” “Oi, ‘seu’ Paulo, tudo bem, tranquilo”. Tinha morrido um colega dele, no Parque do Carmo, matado, jogado dentro do mato, os cara mataram o cara e jogaram dentro do mato, colega dele, colega da gente, já foi na minha casa, colega da minha filha, dos meus filhos, do meu genro, e acharam dentro do Parque do Carmo, morto. E o menino passou a mensagem para a minha filha, falou: “O enterro dele vai ser agora de tarde, no cemitério da Vila Formosa…”. Eu tinha acabado de ir para o posto, ela passou em casa para ir para o enterro desse rapaz, que era do meio LGBT. Eu cheguei para ele… Contei a história para ela, para a minha esposa, aí cheguei, o rapaz estava sentado lá no banco: “Oi Albert, tudo bem?” “Oi, ‘seu’ Paulo, tudo bem?”. Conversou comigo, levantou, me cumprimentou, beleza, a gente ficou batendo papo ali, eu contei a história para ele, falei: “Oh, Albert…”. Tinha um monte de gente no posto, posto de saúde você sabe como que é? Um monte de gente sentado na fila, esperando o médico, cheio de gente, não é? Quer dizer, se eu não sei aquela palavra e eu chego para ele… Como é que eu vou falar para ele a palavra que a pessoa que estava morta, que era colega dele - que eu já vi os dois juntos - tinha morrido, se eu não estava sabendo? Ficava difícil para mim falar: “Ele é gay, é não sei o quê…”. Eu não sei se a palavra que eu estou falando - gay - está certo ou se está errado, não é? Aí eu contei a história para ele, falei: “Olha, o fulano… aconteceu isso assim, tal, aquele fulano assim, fulano de tal, morreu, e a Érica foi para o enterro dele lá no cemitério da Vila Formosa”. Ele ficou pasmo assim, parado, ele falou assim: “Quem é, ‘seu’ Paulo? Eu conheço?” “Ele é do meio LGBT”. Ninguém se tocou na palavra que eu falei: “Ele é do meio LGBT”. Ele se levantou assim, ficou apavorado: “‘Seu’ Paulo, ele é meu amigo…”. “Então, é essa pessoa”. Rapaz, esse camarada se desesperou tanto, que ele entrou na sala do médico, pediu os papéis e falou: “Eu vou no enterro agora. É na Vila Formosa?” “É”. Ele tem carro, e também não é tão longe, ele falou: “Vou lá agora, não vou passar nem em casa”. Saiu de lá e veio para a Vila Formosa, porque o cara é colega dele e estava sendo enterrado, e ele não estava sabendo de nada da história. Cheguei em casa e contei para a minha esposa. Minha esposa falou: “Tu é doido de ter falado isso para o Albert?”. Aí contei a história para ela. Falei: “Eu falei a palavra certa, minha filha, ninguém tirou barato de mim que eu estava xingando o cara ou estava desmoralizando, eu falei que ele era do meio LGBT”. E ele sabe o que é a palavra LGBT, que ele vive dentro disso, saiu dali e foi para a Vila Formosa, chegou lá, encontrou com a minha filha lá, aí falou: “Você falou alguma coisa para o Albert?” “Falei, eu contei a história”. “Pois do posto de saúde foi lá para o cemitério”. Então, olhe como são as coisas, não é? Isso eu aprendi na escola, se eu não estivesse na escola, não tinha aprendido essa palavra. A vida tem certas coisas que… é isso aí, muito importante.
P/2 – Só para fechar, eu queria saber: o senhor, então, voltou para a escola agora mais tarde, não é?
R – Isso.
P/2 – E os seus filhos?
R – Adoraram a ideia.
P/2 – Não, mas e a escola dos seus filhos?
R – Meus filhos são todos formados, graças a Deus. Eles têm ensino médio completo, têm alguns cursos, a caçula chegou a fazer faculdade mas teve que trancar porque teve que trabalhar. A do meio também é formada, tem o seu ensino médio completo também, ensino fundamental e ensino médio, têm tudo, são todos graças a Deus - a minha esposa também tem. A minha esposa não se formou aqui; quando eu casei com ela, ela já tinha essa formatura lá da Bahia, ela morava na cidade lá na Bahia, a escola dela, coisa mais fácil, então ela veio formada. Hoje, nas minhas lições em casa ela me ajuda a fazer com grande dedicação, ela senta do meu lado e faz. O os meus netos também; a minha neta vai se formar agora, ano que vem. O meu netinho não, o meu netinho está na sexta série do ensino fundamental, mas ele sabe tudo, graças a Deus. O pior ainda sou eu, mas de agora para frente eu quero ir embora, quero ir para o meu estudo.
P/1 – Paulo, já para encerrar, quais são os seus sonhos hoje, que o
senhor tem para o futuro?
R – O futuro? Eu não sei até onde eu posso chegar, não é? Porque pelo que eu já passei, pode acontecer mais alguma coisa. Mas o meu sonho, ainda é minha vontade, era ter o meu cantinho próprio para que quando um dia acontecer de eu morrer, primeiro a minha esposa e os meus filhos terem direito, seria esse… é uma coisa minha.
P/1 – E para encerrar mesmo, eu queria saber o que o senhor achou de vir aqui hoje contar essa sua história toda aí para a gente? Relembrar tudo isso?
R – Ótimo, tranquilo, beleza. Não vou ficar mais, porque está na hora de ir embora, mas para mim foi ótimo dar essa entrevista, esse depoimento aqui para vocês, para mim foi ótimo. Entrevista não, porque eu não sou pessoa para ser entrevistado, eu dou depoimento daquilo que eu estou sabendo, só isso (risos). Daquilo que eu quero fazer. Para mim, foi ótimo, foi tranquilo. E peço assim, um dia que vocês quiserem perguntar alguma coisa para mim, eu estou disposto a falar qualquer coisa que precisar. Então, estamos aí. Para mim, foi ótimo.
P/1 – Está legal. Então, muito obrigado, seu Paulo.
R – Não tem por quê.Recolher