Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Maria do Céu Santiago Moreira
Entrevistada por Fernanda Prado e Marcelo da Luz
Paracatu, 12/06/2017
KRP_HV17_Maria do Céu Santiago Moreira
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Liliane Custódio
P/1 – Então, Maria do Céu, primeiro eu gostaria de agradecer você ter aceitado o convite pra esta entrevista. E pra começar, eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo...
R – Eu que tenho que agradecer. Sou eu. Como eu te disse, vai ser um presente para meus meninos, pra eles se lembrarem de mim, um pouco da minha história.
P/1 – Claro. Essa é uma oportunidade única nossa, para a gente também, por isso que a gente agradece. E pra gente começar, eu queria que você falasse pra gente o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Maria do Céu Santiago Moreira, nasci em Paracatu (MG), 24 de maio de 1944.
P/1 – Fala pra gente o nome dos seus pais.
R – O meu pai, Miguel Telles Santigo, minha mãe, Vera Botelho Santiago, meus irmãos, Joaquim de Moura Santiago e Ana Rosa Santiago Cintra.
P/1 – Vamos falar então dos seus pais primeiro. O que você sabe da origem da família deles, da sua mãe, da do seu pai?
R – Papai era um comerciante e fazendeiro, um homem que eu poderia caracterizar como o símbolo do trabalho, porque ele era um trabalhador. A vida dele, a vida inteira, foi levantar cedo pra abrir a loja ali na esquina, trabalhou a vida inteira na loja e sempre com muita disciplina, muito método de trabalho e, a duras penas, conquistou uma situação financeira razoável. E minha mãe, uma pessoa sensível, gostava de escrever poesias e tinha talento pra fazer doces. Os doces dela ficaram inesquecíveis aqui na história de Paracatu, porque ela fazia doces secos, de uma delicadeza, a casquinha nos doces. Perfeito. Deixou saudade também. E era uma mãe muito carinhosa. Eles foram maravilhosos pra mim, porque quando eu fiquei viúva, eles me acolheram, eu fiquei meio assim desorientada quando aos 29 anos fiquei viúva e fui recebida por eles, abriram as portas da casa, me receberam (choro) e me ajudar a educar os meninos.
P/1 – É normal se emocionar. Tranquilo.
P/2 – O nome da loja do seu pai?
R – Era Casa Santiago.
P/2 – Vendia-se o quê lá?
R – A loja era como as lojas antigas, tinha de tudo, desde cela, perfume, caderno, tecidos, tudo se encontrava na loja. E papai atendia a todos com aquele jeito peculiar dele, educado e gentil. Todo mundo gostava dele na loja. Muito amável.
P/2 – E essa loja ficava onde?
R – Ela ficava na Rua das Flores. Agora eu não o que o tem ali na esquina. E ele deixou de trabalhar na loja quando ele sofreu um acidente. Ele sofreu um acidente com o meu tio, que era médico, muito conhecido aqui em Paracatu, Antero Santiago, conhecidíssimo. Meu tio faleceu e ele ficou impossibilitado de voltar a trabalhar na loja. Desde então, a vida dele transformou, porque uma pessoa que tinha como foco o trabalho, deixou de trabalhar, aí eu acho que ele sofreu muito com isso.
P/2 – E a senhora conheceu os seus avôs?
R – Minha avó da parte de meu pai, Adelaide Santiago, que morava em Belo Horizonte (MG), essa eu conheci, porque eu estudei no Colégio Interno Sacré Coeur de Jésus, e tinha uma saída por mês lá e a gente ia pra casa da avó. A família toda do meu pai morava na Rua Tomé de Souza, e eram os passeios que a gente fazia saindo do internato. Adorava aquilo.
P/1 – E os pais da sua mãe, não chegou a conhecer?
R – Não conheci a minha avó Sanita, que dizem que era uma grande educadora, uma disciplina... Minha mãe falava que ela conversava em francês pra incentivar todos os filhos a falar francês. Na hora do almoço, na fazenda, ela punha um mapa e fazia viagens no exterior. Era uma pessoa que gostava da cultura, gostava... Era muito ligada à cultura mesmo. O que eu ouço falar dela é que ela era uma grande educadora, que soube muito bem educar os filhos. É Botelho, a mãe da minha mãe.
P/1 – É ela que tá naquela foto ali?
R – Não. Aquela que tá na foto é minha mãe. Minha mãe tinha apelido de Enfermeira, porque ela era tão carinhosa e prestativa, qualquer problema que acontecesse aqui na rua, chamavam mamãe pra acudir: “Chama Vera, que Vera resolve”. Era dar um banho num doente. Os trabalhos próprios de enfermeira, ela fazia. E também fazia os bolos de aniversário, ajudava a fazer os bolos, que era muito habilidosa. Talvez seja dela que eu herdei essa sensibilidade pra arte. E também dava aula de pintura, que eu me lembre. Dava aula de pintura.
P/1 – E você falou desses doces que ela fazia, quais doces eram?
R – Era de figo, laranja, mamão. Eu me lembro de mamãe fazer as caixas assim com papel impermeável, os doces, e fazia como se fosse um presente, mandava pra Belo Horizonte pra família do meu pai, presenteando-os com os doces. Elas com o doce.
P/1 – E você falou dos seus dois irmãos.
R – É. Joaquim Santiago, que é Quinzinho, fazendeiro, ele é agricultor, ele planta cana-de-açúcar pra usina. A fazenda dele é uma maravilha. E minha irmã se formou em Economia Doméstica em Viçosa (MG) e mora em Brasília. Uma pessoa maravilhosa, é um anjo pra mim.
P/1 – E a senhora tá em que lugar dessa escadinha?
R – Eu tenho que falar em Cecília também, os dois anjos que me socorrem sempre, é Cecília, que é esposa do Quinzinho, meu irmão, e Ana Rosa, minha irmã, que nossa, aquela ali é uma irmã do coração. Meu irmão também é muito bom pra mim.
P/1 – E a senhora é que lugar de filha? Primeira, do meio?
R – Eu sou a do meio. Eu sou a do meio. O primeiro é muito adulado, porque chegou primeiro, o último é o caçula, e a do meio? Tem uma historinha da do meio, mas eu não tenho nada a reclamar, não.
P/1 – E conta pra gente quais são suas primeiras memórias de infância nessa casa.
R – Ah, o que eu lembro aqui da minha infância era um tempo num ritmo muito mais lento, muito lento, que dava pra fazer tantas coisas... A gente tinha tempo pra tudo, pra visitar amigos, que hoje a gente não vê ninguém fazendo isso. Está todo mundo muito ligado à televisão, internet. Eu sou da época que ficávamos todos na porta da rua conversando com os vizinhos. Eu jogava bola, peteca aqui na porta, vôlei. Tinha uns treinos na UPI que era ali perto onde é a Câmara, né? Embaixo tinha um lugar que nós jogávamos vôlei. A gente adorava isso aí. Tinha as praias que a gente ia, que era Lajedo, Vigário, Martim, e todos os dias das férias a gente ia pra praia. Saía uma turma com sacola, com radinho, com laranja, e com a tia que contava causos maravilhosos pra gente, Adelina, Catita, muito inteligente, a gente amava isso aí, os passeios na praia. Uma época boa.
P/1 – E a fazenda?
R – Ah, tinha os passeios na fazenda. Quando chegava o final do ano, mamãe perguntava: “Pra onde vocês querem ir?”. Eu falava: “Eu quero ir pra fazenda da minha tia Cândida”. E ficava lá um tempão na fazenda, porque eu adorava essa coisa de não olhar relógio, ficar mais livre, o contato com a natureza.
P/1 – E o que tinha lá que fazia a senhora escolher lá?
R – Na fazenda?
P/1 – Dessa sua tia.
R – Minhas tias todas eram maravilhosas, mas essa tia era demais comigo, era muito boa, me chamava de Nenita. Minha irmã, o apelido dela era Nena, que era menina em espanhol, e o meu Nenita, porque era a menorzinha, Nenita. Adulava-me demais, é por isso, me adulava. Tinha uma prima que tocava violão de noite, uma lua maravilhosa, tinha uma campina linda na frente, nossa. E tinha uma vereda com barro, que minha mãe fazia umas coisinhas de cerâmica, depois pregava uns decalques, bandejas, bulinho. E a gente naquela de fazer aquelas peças, a bandejinhas com xícara, bule e assim a gente foi aprendendo a lidar com o barro. Depois no curso eu fiz cerâmica, aí já não era uma coisa tão estranha pra mim, que de criança eu já fazia essas coisas, fazia até brochinho, essas coisas. Minha mãe, nunca vi tão habilidosa. E ela me incentivou, quando ela fazia os bolos, eu queria ajudar, ela falava: “Não, deixa isso pra lá, o seu departamento é outro”. Quer dizer, aí foi me encaminhando pra pintura. A pintura pra mim era uma coisa maravilhosa, mas eu só comecei a trabalhar com óleo mesmo, telas e óleo, aos 20 anos. Era guache e aquarela, e lápis de cor. Trabalhava muito em aquarela. Eu gosto de transparências, você vê que as minhas telas são todas suaves, porque que busco na minha pintura uma atmosfera de lirismo e de sonho, isso eu consigo nas cores suaves, nos tons que sobrepõe e vão diluindo, e sumindo. O negócio da linha rígida, ela vai ficando indefinida e as figuras fragmentam também no fundo da tela.
P/1 – E o que você se lembra da casa da infância, da movimentação, dos pais com os irmãos, se tinha hora de comer, se tinha algum momento de estar junto?
R – É, tinha um hábito que hoje já não acontece mais, é muito difícil, era arrumar a mesa pra todo mundo almoçar junto, pra família se reunir. E hoje não dá mais, todo mundo corrido, correndo, um faz o prato na cozinha e é assim. Mas eu me lembro dessa harmonia de arrumar a mesa e todo mundo conversar, e o pai e a mãe, todo mundo tinha que estar presente.
P/1 – E como era a casa, pra quem não passou por aqui, ou viu assim?
R – A rua toda aqui, todo mundo era meio parente, sabe? Minha tia morava aqui, todo mundo se conhecia, tudo meio parente, então era uma festa, ia pra conversar na esquina com a amiga, tinha um bate-papo ali na dona Edilene com Letícia. E é muita alegria, que hoje eu sinto tá com menos isso. Lógico, a juventude tá cheia de gás, todo mundo cheio de vontade de fazer as coisas, cheio de sonhos, eu acho que a alegria vem daí também. Depois a vida vai... A gente vai aprendendo com ela e vai vendo que nem tudo é maravilhoso como a gente imaginava. A gente imaginava coisas maravilhosas, não é. Não é. Mas tudo bem. Tá tudo certo.
P/1 – E a senhora tinha uma brincadeira favorita?
R – Eu era muito esperta, gostava de pique, brincar de pique, jogar vôlei, era boa. E corria demais, ganhava dos meninos na rua, eles ficavam com raiva de mim, porque eu era mulher e ganhava deles. Falavam assim: “Olha, estou de mal, viu?”. Porque eu tinha ganhado na corrida. Depois a mãe vinha aqui: “É, Vera, nós temos que fazer esses meninos fazerem as pazes, porque eles têm que comungar”. Ai, ingenuidade, inocência. Eu me lembro de dona Bete chegar aqui, falar: “Didita tem que conversar com Binha, porque senão ela não pode comungar” (risos).
P/1 – E quais são suas primeiras lembranças da escola, de começar a estudar?
R – Do ginásio? Ah, os professores eram severos, a gente morria de medo deles (risos). Tinha o maior respeito. Tinha um respeito absurdo.
P/1 – E a escola aqui? Foi essa sua primeira escola, foi aqui em Paracatu?
R – A primeira foi [a Escola Estadual] Afonso Arinos. Foi Afonso Arinos. E fiz o primário lá, depois, no admissão, eu fiz aqui na escola normal. Saudade dos professores. Tempo bom. Tinha as horas dançantes que a turminha fazia da quarta série, regada a ponche, ponche, era uma groselha com umas maças picadas, servia com pouquíssimo álcool. E tinha horário. Papai falava assim: “Olha, vocês vão tal hora, mas têm que voltar 11 horas da noite”. Hoje eu vejo, 11 horas ninguém tá nem arrumando pra sair. Não é mesmo? Era a hora de voltar pra casa, 11, 12 horas.
(Pausa)
P/1 – Você se lembra de ir à loja do seu pai, ficar lá com ele?
R – Lembro. Nós éramos fregueses assíduos lá. Na hora que ele vinha pra almoçar, tinha uma passagem aqui pelo beco, a gente entrava, ia lá e comprava: “Tira esse tecido pra mim, pega esse sapato, não sei o quê”. No final ele ia ver a conta, tava desse tamanho. Ele falava: “O que tá acontecendo? Essas meninas, essas meninas”. Comprava tudo de novidade que tinha chegado à loja: “O que chegou aqui?” “Olha, chegou essa seda, chegou isso” “Três metros”. Vivia fazendo roupa. Oh, gente. Hoje ninguém faz roupa mais, não tem costureira. Hoje compra tudo pronto.
P/1 – Quem fazia as roupas?
R – Era uma costureira aqui da rua, dona Iva. A gente vivia lá. Freguesas.
P/1 – E os modelos vinham de onde?
R – Ah, naquela época não tinha essa ditadura da moda, não. Nós que inventávamos os modelos, fazíamos as roupinhas. Porque eu acho que o encanto era a beleza da idade. Tudo que põe fica lindo. E acabava até ditando moda, porque às vezes as meninas gostavam, falavam assim: “Empresta aquele vestido, que eu quero fazer igual”. Falava assim: “Ah, mas isso é muito engraçado”. A gente inventava os modelos. Pode? Simplicidade absoluta. Eu fui educada de uma maneira muito simples. Eu sou uma pessoa simples.
P/1 – E o que a senhora se lembra de quando fez 15 anos? Teve algum momento? Uma festa?
R – Ah, sim, teve. Teve o debut, foi lá no cinema. Foi. Foi lá mesmo. E se esqueceram de falar meu nome, eu me lembro disso. Depois que papai comigo lá, esperando pra entrar, todo mundo já tinha entrado e eu lá feito uma... Esperando ser chamada. Eu lembro que cochicharam lá em cima... Não, foi pra entregar o diploma de quarta série, foi isso, não foi... Festa de debutante eu não tive. Não tive. Eu lembro, os últimos serão os primeiros, aí que eu fui aplaudida à beça. Eu falei: “Mas olha só”. Foi uma beleza. Papai: “Tá vendo, Dita?”. E quando no internato eu formei, também no normal, eu e minha irmã formamos no mesmo ano. Eram as duas, nós fomos as mais aplaudidas também porque eram duas.
P/1 – E como foi pra senhora ir pra esse internato? Sair de Paracatu e ir pra...
R – Para o Sacré-Coeur?
P/1 – É.
R – É porque na época todos os meninos, os rapazes, estudavam fora. A educação se completava. Não tinha faculdade aqui. Hoje tem, né? Eu lembro que o internato foi também... Eu gostava da disciplina do internato, do ritmo. Eu aprendi a ser disciplinada lá dentro, organizar, ser organizada. Horário pra tudo, pra estudar, pra divertir, era uma beleza o Sacré-Coeur de Jesus. Acho que agora é o Pitágoras, não é? Colégio Pitágoras. Se não me engano, o dono do Pitágoras é um rapaz de Paracatu que foi da minha época, Evandro Neiva. Agora ele não é mais... Acabou. Não existe internato mais.
P/1 – E dava saudade?
R – Vixe, quando vinha para as férias, a gente ficava dividida entre deixar as colegas lá do internato e morrendo de saudade, vinha pra Paracatu, a gente fazia a maior bagunça no ônibus, uma jardineira, um ônibus que parava ali... Agora a rodoviária mudou. Mas a gente vinha cantando de madrugada, adorando estar pisando na terra, na terra querida que era Paracatu. Todo mundo amava esse Paracatu, a turminha nossa, as horas dançantes, as festas, as festas do jóquei. Carnaval era muito melhor do que é hoje. Acho que na época tinha um clima de mistério, todo mundo fazia suas fantasias escondido, então era surpresa quando aparecia uma pessoa fantasiada, ninguém contava, sabe, aquela novidade mesmo de mostrar uma coisa diferente. O Carnaval era muito melhor do que é hoje. Muito.
P/2 – Era carnaval de rua?
R – Não, carnaval lá no jóquei mesmo. Todo mundo se conhecia. Paracatu, todo mundo se conhecia. A gente chegava lá, cumprimentava todo mundo. Agora eu não conheço mais ninguém, porque cresceu muito, diluiu isso aí. Era uma grande família.
P/1 – A senhora se lembra de alguma fantasia de carnaval?
R – Minha mãe adorava fantasiar os meninos e eu passei a gostar também por causa dela. Tatiana, ela já fantasiou demais e ela ama fantasiar. Eu me lembro de ela me fantasiar de baralho, mas era tudo muito simples. Simples, uma sainha com os baralhos, com a coisa, aquele trem... Como chama? Do coringa, não é? Então, e ficava bonitinha, tava tudo bom. Nada complicado. Ficávamos satisfeitos com pouco. Acho que precisa muito pouco pra ser feliz, não é, não? Precisa de muita coisa não.
P/2 – A senhora ia à igreja nessa época de infância?
R – Sim. Tinha o hábito de todo domingo ir à missa, às aulas de catecismo, às procissões da rua, bonitas. Por falar nisso, daqui a alguns dias tem a de Corpus Christi, que é famosa aqui em Paracatu, todo mundo enfeita as janelas, põem flores na janela. Então essas lembranças, esses significados aí que fazem meu universo, que compõem meu universo e é disso aí que eu tiro toda inspiração pra pintar, que são dos quintais com as jabuticabeiras e mangueiras ensombradas, com os cozinhados que a gente fazia no quintal, as festinhas de criança que a gente fazia no porão da casa, os teatrinhos.
P/2 – E o que a senhora pensava em ser quando crescesse? Quando criança queria ser o quê?
R – As coisas aconteceram tão naturalmente. Eu só gostava era do prazer de pintar. Mas eu nunca almejei ser uma grande artista, nada disso. As coisas vieram tão naturalmente, eu fui fazendo, fui tendo o reconhecimento das pessoas. Foi uma coisa muito natural. Eu ficava feliz, porque nas exposições eu conhecia as pessoas, interagia com elas. Porque a arte prentende comunicar e ficava feliz de estar comunicando alguma coisa, de as pessoas entenderem aquilo que eu estava fazendo. Mas eu nunca fui ambiciosa assim, nunca tive essa ambição, talvez por isso.
P/2 – Teve algum momento na escola que algum professor ou professora identificou essa qualidade de uma pintora, de uma artista?
R – Sim. Meu professor de desenho, Petrônio Costa, que mora ali no sobrado, morava, sempre me incentivou. Ele me dava a maior força pra continuar, me elogiava. É fundamental o elogio pra motivar a gente, pra incentivar a gente, é uma gasolina isso, senão seu motor para mesmo. Se alguém começar a por defeito... Mas ele sempre falou: “Tá bonito. Continue. É isso mesmo”. Sempre admirou aquilo que eu fazia. E eu aprendi, através da pintura, a me olhar, a me conhecer, a considerar os meus valores, as coisas que me encantavam, pra eu tirar aquilo como um instrumento pra criar meus quadros, e acaba que a criação é sempre resultado, como é a criação divina também, a gente tá sempre envolvido em muito amor, a criação. A gente tem que ter muito amor quando faz isso, quando cria.
P/1 – E conta pra gente como foi acabar a escola lá em Belo Horizonte. Quais foram os próximos passos assim da sua trajetória?
R – Eu comecei Belas Artes [instituto Marangoni, Universidade Federal de Minas Gerais], depois eu parei um ano, porque minha irmã elogiou tanto o cursinho dela de Viçosa, que ela fazia Economia Doméstica, o superior, eu falei: “Ah, eu vou pra lá. Vou conhecer Viçosa, que deve ser uma maravilha por causa da Agronomia”. Ela falou: “Dita, você vai adorar isso aqui”. Ela casou com um rapaz de Viçosa e eu também casei, mas ele não frequentou a escola, nem nada, a escola de Viçosa. Depois que eu frequentei um ano lá, eu descobri que a Belas Artes era muito mais importante pra mim, voltei pra escola de novo. Eu não lembro a época que eu fiz isso. Eu saí da Escola Guignard, fui pra Viçosa, depois voltei. Na escola, eu tinha a professora Sarah Ávila, que era uma grande admiradora do meu trabalho, eu ficava feliz de ela dar aula com meus desenhos. Ela dava aula usando os meus desenhos, admirando a composição, as linhas. Nossa mãe. E Sarah Ávila é um talento da Guignard. Foi. Meus professores lá da Guignard, eu peguei uma época maravilhosa, eram ótimos, maravilhosos, que deixaram saudade. Inimá, Inimá de Paula, Ildeu Moreira, Yara Tupinambá, que tem um mural lá na reitoria, e Sarah Ávila, Pierre Santos, essa turma aí eu não sei... A Sarah Ávila morreu. Já morreu.
P/2 – Essa escola é da universidade federal?
R – Não. A Guignard não. A reitoria talvez.
P/1 – E o que aconteceu?
R – A Escola Guignard, o objetivo da Escola Guignard é formar artistas. Quer dizer, artista para criar mesmo, na criação, então um pecado se você copia alguma coisa, não pode copiar nada. Lá você tem que criar, tirar de dentro de você. Então eu sempre exerci, quer dizer, sempre trabalhei esse lado da criação.
P/1 – Tem algum mestre da pintura que inspira, que traz algum sentimento bom e que ajuda nesse processo?
R – Van Gogh, pra mim, foi um pintor fantástico, as linhas dele, aquele movimento de linha, eu sempre admirei muito. Os impressionistas: Renoir, aquela delicadeza, aquela sutileza de pincelada. Muitos. Os clássicos mesmo. Da turma de hoje, eu que não guardo, mas tem muita gente boa também, que eu admiro, mas eu não estou lembrando os nomes.
P/1 – Não tem problema. E quando acabou o curso da Belas Artes, o que aconteceu?
R – Acabou, logo eu casei e morei em Belo Horizonte. Fui morar e logo também fiquei viúva, então foi assim uma loucura, as viradas aí da vida. E quando Zé Carlos morreu, eu tava de sete meses, o Zé Carlos nem conheceu o pai. Eu voltei para Paracatu. Voltei para o casarão aqui, para o velho casarão.
P/2 – A senhora poderia nos contar como foi esse encontro, como a senhora conheceu o Zé Carlos?
R – O Zé Carlos? Ah, sim. A minha, irmã quando fez o curso superior lá. Nós fomos pra formatura e, na festa de formatura, a irmã do Zé Carlos era colega de Nena, Ana Rosa. E o pai da Helena mandou o Zé Carlos, meu marido: “Vai lá tomar conta de sua irmã”. Era uma numa boate, numa festa, aí ele dançou com a minha prima primeiro, depois dançou comigo. Depois, chegou a casa falando: “Mãe...”. Com a dona Delma, minha sogra: “Encontrei a mulher com quem eu vou casar, é uma italianinha, uma viúva italiana”. Olha, até arrepio, porque viúva eu fiquei. Porque eu tava com uma roupa preta, o cabelo amarrado assim, um coquinho baixo de bailarina, ele me achou com cara de italiana, uma viuvinha italiana. E realmente foi assim uma coisa que tava escrita nas estrelas. Nunca mais ele deixou de me procurar. Um apaixonado. Mas não era pra ser, durou pouco. Zé Carlos foi uma pessoa maravilhosa, um homem lindo por fora e por dentro. Ele era uma pessoa boa, de bons sentimentos, não falava de ninguém, alegre, gostava de contar piada, muito alegre, bem-humorado. E muito bonito. Ele era bonito, parecia um americano. Quando eu era nova, eu falava assim, eu tinha vontade de casar com um baterista americano, que eu achava lindo os bateristas com aqueles cabelos pra cima, louro. Ele era baterista. Isso é incrível, ele tocava numa banda e era baterista. Falava assim: “Ih, você arrasava corações, hein, Zé?”. Ele falou: “Você nem imagina quantos”. Mas gostou foi aqui da italianinha, da nariguda.
P/2 – Vocês moraram em Viçosa por um tempo?
R – Não. Nunca morei em Viçosa, não. Foi em Belo Horizonte mesmo. Ele sai de Viçosa e vai trabalhar Mannesmann pra ficar perto de mim, porque eu tava terminando Belas Artes. Ele era escriturário lá na Mannesmann. Superinteligente. Era um rapaz que aprendia tudo fácil, numa rapidez incrível. Quando faltava alguém que tinha adoecido: “Chama o Zé Carlos que ele substitui”. Porque ele aprendia rapidamente tudo. Muito inteligente. Pouco tempo. Foi muito pouco tempo.
P/1 – E como foi o processo de voltar pra cá pra Paracatu, pra casa, e superar tudo isso, ter o filho?
R – Eu fiquei desesperada, porque com sete meses e eu tive completamente... Percebi que alguma coisa muito errada tinha acontecido, que ele tinha morrido, porque o telefone tocou no meio da noite e eu levantei num pulo, e meu sogro pegou o telefone e eu falei tudo que tava acontecendo sem ouvir nenhuma palavra. Falei: “É Zé Carlos?”. Ele falou: “É”. Eu falei: “Ele morreu?”. Ele falou: “Sim”. Eu falei: “Nossa!”. Até arrepio até hoje. Aí minha vida, meu sonho desmoronou. Acabou o sonho, o sonho romântico, o sonho de adolescente. Acabou. Mas é isso, a vida ensina a gente pelo sofrimento. A gente não aprende de outra maneira, infelizmente. A gente aprende pelo sofrimento. A gente tem que aprender a lidar com ele e levar essa vida mais leve, porque o processo é esse mesmo.
P/1 – E como foi voltar então e passar por esse processo de superação?
R – Meu pai, minha mãe: “Vem pra casa. Vem pra cá, fica conosco”. Eu não tinha cabeça pra nada. Eu voltei pra esse abraço aí, o apoio que eles me deram.
P/2 – Aí a senhora já estava formada?
R – Acho que eu fiquei um ano pensando em Zé Carlos. Um ano, me custou esquecer, quer dizer, empurrar isso pra longe. Custou. Mas a gente tem força. Tem os meninos, né? Os meninos. O Zé Carlos nasceu e eu fiquei centrada em ser uma boa mãe. O meu objetivo passou a ser uma boa mãe, que eles gostassem de mim. Não sei se consegui (risos). Não sei se consegui. Meu grande objetivo é esse mesmo, ser uma boa mãe, fazer o bem, mas a gente é imperfeito demais, às vezes pensa que tá acertando, tá errando tudo. Como vou saber? Não sei.
P/1 – Ah, sim, eu perguntei: quando a senhora volta para Paracatu, já tinha terminado as Belas Artes?
R – Sim. E aqui em Paracatu eu tentei dar aula no ginásio. Eu fui dar aula de Administração do Lar, pelo cursinho que eu tinha feito. Mas sempre tive um problema bárbaro em enfrentar público. Isso não conseguia. Eu voltava, meu pai falava assim: “Você sofre tanto, Dita. Eu acho que não tá valendo a pena, é melhor você parar”. Essas palavras pra mim foram preciosas. Ele assinou embaixo. Falei: “Parei. Parei, não dou aula mais”. Larguei. Tanto é que eu não consigo dar aula. Não consigo. Acho que a minha timidez é absurda mesmo. Não dou. Não consigo. Cada vez que eu enfrentava os alunos, eu tinha uma taquicardia maluca. Falei: “Não, tô sofrendo muito”. Apesar de ter uma profissão que precisa sempre estar em contato com o público, por causa das exposições, mas pra mim sempre foi penoso isso.
P/2 – Os filhos cresceram aqui em Paracatu?
R – Cresceram em Paracatu.
P/2 – Estudaram aqui? Todos?
R – É. Todos.
P/2 – Eram três filhos? São?
R – São. Os filhos, meus filhos são as joias, minhas joias. É tudo que a gente ama nesse mundo. Eu falo que a arte me preenche, é um prazer, é meu trabalho, porque uma vida sem trabalho não existe. A pintura é minha vida, mas antes disso vem: a família, meus filhos, vem Deus, acho que Deus tá em primeiro lugar, depois a família, sim, os filhos. Isso é mais forte do que tudo.
P/1 – E o que tinha mudado na cidade do tempo que você ficou fora? Você sentiu alguma diferença quando voltou pra cá?
R – Ah, devagar... É um processo de transformação, a cidade muda e nós vamos mudando. Eu falo que existem várias pessoas numa só, todo mundo é assim, não é? Aquela de antes, sonhadora, já não existe mais. Parece que eu li uma historinha, que foi uma história que eu li. E já passou por outra fase, outra fase, e agora eu nessa outra fase, querendo mais evoluir, evoluir espiritualmente. O grande ponto é esse, a evolução espiritual, é o que me preocupa agora. A gente tem que melhorar por dentro. Tem que ser melhor. Tem que largar os valores materiais e ser mais espiritual, mais espiritualista, chegar mais perto da essência da gente, que nossa essência é espiritual, então a gente tem que melhorar nos valores eternos, crescer nesses valores, ser melhor, mais tolerante, mais generoso, mais paciente. São esses os valores que a gente vai levar, os outros somem, desaparecem, é como a beleza da juventude, acaba tudo, vai embora. Se a gente não preservar o que é eterno, a gente tá perdido. É até uma atitude inteligente, você cuidar o seu lado de dentro e largar o lado de fora, porque senão como faz? Depois você fica ridículo querendo conservar um negócio que já não tem mais, fica querendo consertar coisinha aqui, ali. Melhore o que você tem dentro, que o seu grande potencial é esse, é o que você vai mostrar pra Deus. Mas não tô dizendo que sou ótima pessoa, nem nada, eu tenho essa percepção. Eu sou imperfeita, quero melhorar, vejo isso tudo, mas sei que o caminho, olha, é imenso. É imenso.
P/1 – E como isso tá em suas pinturas? Quer dizer, qual foi uma das primeiras obras que você fez? Conta pra gente desse processo de artista mesmo, de primeiros trabalhos.
R – Engraçado, eu sempre trabalhei... O meu tema, o tema do meu trabalho sempre foi a figura feminina, sempre, sempre. Agora, essa figura é que vai modificando, com o tempo vai mudando de acordo com a minha evolução humana também. A evolução artística e a humana, a minha de ser humano vêm juntas, porque eu me modifiquei, a pintura também modificou, embora conservasse, o tema fosse o mesmo. Mas eu já tenho um lado diferente, vejo de outra maneira, sabe? Eu falo assim: “Você faz os quadros parecidos?”. Não. Não são parecidos. Tem sempre alguma coisa diferente. Tem sempre alguma coisa que melhorou dentro do lado artístico. Eu percebo isso. Mas sempre, sempre, foi a figura feminina. As aquarelinhas, eu fazia crianças. Gostava de fazer cartão de Natal. E todo mundo fala que as figurinhas pareciam Tatiana, a carinha redonda, de olhinho azul. Falam: “Nossa, você já fazia a Tatiana nos cartões de Natal antes mesmo de ela nascer”. Engraçado, né? Tem coisa que não existe coincidência nesse mundo. Diz que não existe. Que tudo tem uma explicação. Essa eu acho muito interessante isso. As carinhas serem parecidas com ela, as coisas que acontecem, se você procurar, tem sempre uma explicação, que você talvez não alcance no momento... Tudo tem explicação.
P/1 – E quando foi o momento que você foi passando dos quadros para objetos tridimensionais assim, outras experimentações?
R – Às vezes, eu fico um pouco querendo uma alternativa, variar da pintura, fazer as bonequinhas. Quando eu fazia cerâmica, eu gostava de inventar também cerâmicas diferentes. Aqui foi mesmo uma alternativa pra distrair que eu comecei a fazer essas bonecas. De repente todo mundo achou bonitinha, engraçadinha (risos).
P/2 – E Paracatu, ela tem alguma influência sobre a sua obra? A cidade, sua vivência aqui? Ou ela vai além?
R – Eu acho que minha pintura não tem nada do regional, sabe? Não tem nada, nada. Parece que tem um movimento interno, uma inspiração que eu não tenho explicação pra ela. Não sei explicar. Que eu sempre fiz aquilo e Petrônio sempre dizia pra mim que tava bonito, que explorasse isso, e eu sempre gostei. Mas o lado do regionalismo nunca me encantou. Nunca. Eu tenho até dificuldade assim de fazer. “Por que você não faz as coisas da terra?” Não sei. Eu escrevi até num convite ali um comentário meu: não sei de onde surgem essas mulheres. Então um processo quase do subconsciente.
P/2 – Maria, bem, e o que seriam as coisas regionais, o regionalismo em Paracatu? Descreve um pouco pra gente assim.
R – Ah, aqui em Paracatu tem as tapuiadas, aqui tem as barraquinhas também de Santo Antônio, São Benedito. O que mais? Essas coisas. Isso aí. Coraci vai te dizer, falar sobre isso.
P/1 – E falando dela, ela foi sua professora.
R – Foi minha professora do terceiro ano primário. Primário. E ela fala muito de um desenho que eu fiz do coreto lá em frente a Alfonso Arinos quando eu era menina, que eu já gostava de desenhar demais. Dona Coraci. Ela também pinta, Coraci. Ela é presidente da Academia de Letras aqui.
P/1 – Vamos falar então das exposições. Conta pra gente como elas aconteceram, como foi ter uma exposição sua.
R – Ah, minhas exposições, assim, eu vou fazendo quadros, quadros, sem pressão nenhuma, porque sob pressão o artista não trabalha. Quando eu tenho uma quantidade razoável, eu falo: “Ah, agora já posso fazer uma exposição”. Vou lá à Casa de Cultura e agendo uma. Mas é um sucesso sempre. Incrível. A primeira foi um sucesso. Tava na Casa de Cultura, e Graça é uma incentivadora das artes aqui. Foi uma grande [incentivadora] lá na Casa de Cultura, aqui em Paracatu, das artes em Paracatu. Foi ela que começou. A Graciele, a atual, muito boa também. Eu fiz um ano na época com a Graciele. Agora nós estamos numa época difícil, e tá todo mundo decepcionado com os dirigentes, tá uma tragédia isso aí, então o Brasil tá muito sofrido com isso. Eu pensava assim, a arte, numa época que tá todo mundo muito trabalhando pra sobreviver, acaba sendo um luxo, porque outras profissões são uma necessidade, mas a arte, a filosofia, acabam sendo luxo. Mas eu pensei que a alma e a mente se ferem tanto quanto o corpo, então, precisam da arte. O papel dela passa a ser importante. Às vezes, eu penso: “Ah, tem tanta coisa tão grave nesse mundo”. Aí vem alguém que olha meus quadros, fala assim: “Você não pode parar de pintar, porque isso faz um bem para a minha alma, para o meu espírito”. Porque tem um lado espiritual também na minha pintura. Aí eu fico satisfeita. Acaba sendo um grande incentivo as palavras que a gente ouve. Eu preciso delas. E a exposição cumpre esse papel, de colocar o artista próximo do público, do outro, pra se motivar mesmo, e pra transmitir alguma coisa, uma conversa. Uma conversa assim de alto nível.
P/2 – A senhora acompanhou, durante a época de 1980, teve um movimento cultural aqui em Paracatu, não teve? A criação da Casa de Cultura, teve os festivais de música popular,
R – Sim. Sim. Claro.
P/2 – A senhora se lembra dessa época?
R – Lembro.
P/2 – Você poderia falar um pouco das personalidades, algo...
R – Quem vai falar melhor é o Douglas e Tuiã dos festivais. Eu fui lá, mas... A música também, não é só pintura. A música, nossa, é tão importante na vida da gente, você tá triste, você escuta uma música, você fica bem. Uma música é um presente pra alma mesmo. Mas foi assim, é importante esse contato com a arte, com a arte seja ela qual for, é sensibilizar o ser humano para arte, para o belo, porque a beleza é fundamental em tudo.
P/2 – E Paracatu também recentemente passou por um processo de patrimonialização do Centro Histórico. Como a senhora vê essa mudança? A senhora acompanhou durante a década de 1960, 70?
R – Acho que quiseram fazer mais, mas a falta de incentivo... Eu, por exemplo, tenho essa casa que é um marco na história, 200 tem essa casa. Ela estragou e eu não tenho condição de restaurá-la. O patrimônio tinha que dar uma ajuda maior, não só pintar a frente da casa, isso não resolve, porque as casas estão baleadas na sua estrutura, porque elas são de madeira e não têm fundação e encheram de trinca. Eu não tenho nem mais gosto de arrumar essa casa. Trincou tudo. Porque eu te falei do lençol freático aqui da rua, né? Destruiu as casas todas, porque ele funcionava como freio das casas, e a casa estragou de uma maneira, e agora como eu faço? Tinha que por engenheiros que cuidassem de restaurar a estrutura dela, que eu acho que são pedras que funcionam aí. São as pedras que calçam a casa antiga, porque é madeira e pedra. E o que eu fiz? Arranquei todas as pedras. Não sabia. Botei aquelas coisas de cimento. Depois Fábio Ferrer... Então, o Fábio entende da arquitetura antiga. Ele falou: “Maria do Céu, você fez uma coisa erradíssima, agora a fundação via puxar sua casa pra baixo. Você não tinha que ter arrancado as pedras. As pedras, a água circula no meio dela, e as madeiras são o que a mantêm”. Você vê que a casa não cai. Ela não cai. Tá toda trincada, mas não cai. Então eu sinto que poderiam ter um apoio maior para os donos da casa, que são os maiores interessados, somos nós, os donos da casa, que tem o lado afetivo que nos liga a ela.
P/1 – E como é esse lado afetivo? Quer dizer, como é estar aqui ainda e ter nascido aqui?
R – Pois é. É a história. É a história da gente, a nossa história que está aqui, não é? As lembranças que estão nessa casa, então eu tenho interesse. Quer dizer, eu tenho, de preservar. E fico triste de ver tudo estragado. No tempo do meu pai, não era assim, não. O lençol aí fez uma festa aqui, estragou tudo. Mas acho que até Ouro Preto (MG) tá sofrendo com isso. Ouro Preto. Isso é um horror. Então não posso reclamar. Se Ouro Preto não tem nenhum incentivo, aqui nós não vamos ter.
P/1 – E como era essa casa antes? Tinha o outro lado também?
R – Antes era uma casa só, essa e a pousada, aí foi dividida, porque antes as famílias eram grandes. Hoje, família são dois filhos, três. Antes eram dez, 12.
P/1 – Na época do seu pai ainda era uma casa só, é isso? Ou já era dividida?
R – Não, foi dividida, essa parte ficou pra minha mãe. Todo mundo aqui era uma grande família, a rua toda. Agora a rua tá despovoada. Dona Cota, seu João, dona Edilene, Gastão, dona Cota, todo mundo já foi embora. Todos. Agora, quem está aqui ainda sou eu, minha prima e Douca aqui em frente, da turma, mas todo mundo já se foi.
P/1 – Descreve pra gente, ou conta, uma das suas obras que a senhora tem mais apreço, que gosta mais. Que você se identifica mais, que hora que você terminou, você falou: “Essa aqui me representa”.
R – Sim. Uai, quando eu termino um quadro, quando eu termino, pra eu terminar, eu tenho que gostar, achar que fechou, que tá com uma composição boa, que tem as linhas bonitas, que o quadro esteja me passando um sentimento bom. Mas dentro de algum tempo, eu começo a achar defeitos. Defeitos. E acho: “Eu tenho que mudar aqui”. Mamãe falava assim: “Didita, venda esse quadro. Tire esse quadro daqui, senão você não para nunca. Nunca. Nunca. Nunca” “É porque, mãe, ainda não achei a hora de parar”. Eu falei: “Ah, agora sim, agora eu gosto dele”. Entendeu? Uma coisa tão de intuição. Intuitiva mesmo. Mas tem quadro que eu... Daqueles ali, eu gosto de todos. Gosto. Mas tem quadros que eu já fiz que eu não gosto, que acho que eu poderia ter feito isso, feito aquilo. É uma coisa. O caminho da perfeição é inatingível mesmo. Inatingível. A gente não chega nunca, nunca tá satisfeita. E essa insatisfação tem que falar isso. A insatisfação, a eterna busca, é que faz a nossa evolução. A gente só evolui porque a gente está buscando, porque a gente sente que não chegou lá. Então essa insatisfação eterna é que determina a nossa evolução de artista. É, não é, Douglas? Vamos buscando sempre.
P/1 – A senhora tá pintando um quadro hoje? Tem alguma tela começada?
R – Não. Eu fiz uma encomenda. Eu encomendo lá de Belo Horizonte as telas, sabe? Faço encomenda de um monte de tela e ponho aí. Cada vez eu penso assim: “Será que eu vou conseguir fazer essas telas?”. Eu acho sempre que vai acontecer alguma coisa, eu não vou dar conta, quando eu vejo, to encomendando de novo. De novo outro monte de telas. Encomendei mais dez, eu terminei com elas.
P/1 – Já tem alguma coisa na cabeça, uma imagem?
R – Ah, é assim que eu faço a tela, vou te falar: primeiro, eu trabalho um desenho desse tamanho e vejo se há possibilidade de ele ficar bonito. Eu falo: “Esse aqui vale a pena ser ampliado, aí eu o amplio na dimensão da tela e encomendo a tela pela dimensão, aí eu passo para a tela. Que antes eu ficava desenhando na tela, estragando tudo. Tudo a gente aprende. Sujando a tela com lápis, passando borracha, desenhando na própria tela. Tem gente que nem desenha, que vai de vez, mas eu gosto de desenhar. Eu faço assim: eu tenho a visão primeiro pequeno, depois ampliado grande. Não consigo ter aquilo que eu tô pensando fazer grande. Não, tenho que fazer pequeno. Aí eu sigo fielmente aquilo que foi desenhado, aquilo que foi planejado no tamanho menor.
P/2 – Eu vejo que nas bonecas...
R – Sim.
P/2 – Tem uma característica, que são os peitos.
R – Sim (risos). As mulheres de peito. Isso foi minha filha, falou: “Mãe, essas bonecas têm uma característica, são todas peitudas”. Eu falei: “Ah, porque as mulheres de hoje têm que ser peitudas pra enfrentar essa vida”. E esse movimento feminista que está jogando-as pra cima, dentro de todas as áreas aí, atuando. Eu falei: “Ah, uma boa. Boa ideia, mulheres de peito”. É o que nós estamos precisando. As mulheres estão valentes, corajosas. Como você, né, Fernanda? Como ela, né?
P/1 – Como a senhora, né?
R – Ah, não sou, não. Eu faço as bonequinhas.
P/1 – Bom, conta pra gente então, pra gente ir encaminhando para o final, a senhora contou dos carnavais e de se vestir com fantasias... Como foi vestir seus filhos pra levá-los aqui para o carnaval daqui? Do que você as vestia?
R – Sempre as fantasias eu que fazia, mas tudo assim no “improvisation”, que Tatiana fala, “improvisation”. A gente pega alguma coisa que já tem e vai fazendo, no final, fica tudo lindo. Fica lindo. Também, eu acho meus filhos lindos, então tudo que põe fica lindo. A Tatiana sempre ganhou uns concursos de fantasia pra trás, né, Douglas? Sempre. Muito originais as ideias. Ela às vezes me dava a ideia, falava: “Ah, vamos fazer assim”. Isso eu peguei da minha mãe mesmo, que ela gostava de fazer fantasias. Isso era dela mesmo.
P/2 – Numa conversa que nós tivemos previamente, a senhora comentou que a avó da senhora recebia uns modelos de costura, franceses. Que história é essa?
R – É. Uns figurinos. Os desenhos das roupas eram bicos de pena. Aquelas figuras, sabe, das mulheres com aquela bundinha estufada, com aquelas rendas, e eram os figurinos que vinham da França mesmo, a coisa mais linda. Eu falei: “Eu não posso jogar isso fora”. Eu guardei aqui, só que eu não sei onde tá. Um monte desses figurinos. Que minha mãe falava que vinha pra ela, pra ela fazer as roupas. Antigamente, eles faziam, os pais costuravam, não tinha essa tirania da moda de hoje, que tá usando isso, ninguém usa outra coisa. A pessoa tinha mais possibilidade de inventar até. Eu achava que a moda antiga era tão bonita. Mamãe falava das sedas que usavam. Tem aquela foto ali, as roupas que ela usava, de chapéu, luva, bolsa. Eu até peguei um pouco dessa época em Belo Horizonte, quando eu ia ao cinema, as minhas tias levavam luvas e bolsa. Eu falava: “Meu Deus do céu, não tenho luva, não”. Elas iam de luvas para o cinema. Que chique.
P/2 – E por falar em cinema, Paracatu tinha cinema, não tinha?
R – Tinha. Tinha cinema. A gente frequentava demais, porque não tinha televisão. Três vezes por semana a gente ia para o cinema. Tinha uma prima que ia todos os dias, não perdia nenhum filme, Catita, essa que ia com a turminha pra praia, ela não perdia um dia de cinema. Eu ficava morrendo de inveja, falava: “Catita vai todos os dias para o cinema. Ah, eu também quero ir todo dia”. Não tinha outra coisa. E os filmes, parece que eram melhores, os faroestes. Hoje não. Eram aqueles filmes policiais. Hoje fui ver um filme antigo, falei: “Nossa, esse tá ultrapassado. Não, tem filme melhor agora”. Mas na época a gente vibrava com esses filmes. Acho que a produção era maior lá em Hollywood, não era? Maior de filmes. Acho que andou decrescendo um pouco, né, Douglas? Andou decrescendo. Eu não gosto muito de filme de ação, hoje só vê filme de ação, muito. Eu gosto de filme mais intimista, policial, que marcou enigmas, Hitchcock.
P/2 – Dona Maria, quais os nomes dos filhos da senhora? E o que eles fizeram, costumam fazer?
R – Tatiana, aquela lourinha, fez Educação Física, é apaixonada por atividade física e por alimentação fitness. Nossa, que todo quer ser saudável. O outro meu filho, Sandro, esse adora moto, é motoqueiro. E o outro, Zé Carlos, gosta de tênis. Cada um gosta... É que eu tô falando dos esportes. Na verdade, eles não estudaram, fizeram a quarta série. Não quiseram estudar. Arranquei os cabelos pra ver se estudavam, não quiseram. E Tuiã, meu neto, também não quis. Eita, Tuiã. Tuiã é música. É grande esse Tuiã, né? Compõe cada música linda, muito sensível. Mas são meninos maravilhosos esses meus filhos, meu Deus. A integridade de meu pai, o caráter dele, o espírito de trabalho, a honestidade, essa marca forte, todos têm. Todos. São criaturas de sentimento, sabe? Gente boa. Todo mundo fala assim: “Isso é gente boa demais”. A turma deles fala assim. Mas são mesmo. São pessoas que não gostam de falar mal dos outros, têm uma natureza assim... Eu falo, são evoluídos. São pessoas evoluídas. Todos.
P/1 – E a senhora só tem um neto?
R – Não. Eu tenho quatro netos, com o Tuiã. Duas meninas do Zeca: Larissa, Lorena, lindas; uma do Sandro, Eduarda, linda, linda; e o Tuiã que é lindo. Não tem ninguém feio, todo mundo é lindo. Puxaram ao pai, que era lindo. Quer dizer, meu marido. Os meus meninos são bonitos também. São bonitos. Mas essa beleza aí, essa beleza o tempo acaba estragando também. Melhor que sejam lindos por dentro, e essa beleza eles têm.
P/1 – E a senhora contou da loja do seu pai, e a gente já vê que mudou o Centro, as coisas já estão diferentes, o que aconteceu com ela?
R – Depois que papai sofreu o acidente, ele fechou a loja. Ele desencantou. Não conseguia, começou a usar muleta. Porque ele quebrou tudo. Quebrou tudo. Achava que ele ia morrer. Mas depois que ele tava todo quebrado, descobriram uma úlcera nele, que ele não sabia. Aí falei: “Nossa senhora, nessa situação ainda vai ser operado de úlcera”. Mas, acredita, salvou numa ala que todos tinham morrido. O número do quarto dele era 445. Ele tinha horror do número 13, e o quarto que ele ficou era 445. Todo mundo: “Não conta pra Miguel, que ele vai ficar preocupado com o 445”. O rapaz do lado morreu, o outro morreu, e ele se salvou com essa úlcera e todo quebrado. Só não quebrou o pescoço, mas quebrou aqui, quebrou aqui, quebrou aqui, aqui, aqui, tudo quebrou. Meu tio não era bom pra dirigir, numa curva, ele foi reto. Ele não era bom pra dirigir. E foi azar. Meu tio morreu, e ele ficou desse jeito. Não tinha como administrar loja nenhuma. E ele era craque no imposto de renda, papai. Fazia com uma perfeição, descobria cláusula, pra fazer o imposto perfeito. Papai era muito inteligente. Meu irmão também é, tem essa cabeça de papai, essa visão super pra negócios. Quinzinho é um craque nisso, tanto é que a fazenda dele é maravilhosa. Agropecuarista, é isso? Ele planta cana-de-açúcar, antes era feijão e tudo, porque faz uma reciclagem no terreno pra mudar. Mas agora é só cana-de-açúcar, vende pra usina.
P/2 – Isso aqui em Paracatu?
R – É. Ele tem um potencial de água maravilhoso na fazenda. Água. Água hoje é ouro. Ele foi represando um pequeno riacho lá, foi ficando grande, represou, fez uma grande represa, agora ele tem água demais. Muita água. O que ele fez foi perfeito. Construiu uma bela de uma represa lá. Foi uma visão de futuro, porque hoje todo mundo tá aí brigando atrás de água. Mais alguma pergunta?
P/1 – Tem mais um par ainda. O que a senhora gosta de fazer quando não tá pintando ou criando as suas obras, as bonecas?
R – Eu gosto de ver filmes, gosto de ler livros. Como é difícil, nessa idade, descobrir alguma coisa que gosta de fazer. Tô precisando descobrir. Eu gosto de ver filme, televisão, embora eu fale tão mal da televisão. Eu gosto de televisão, de assistir entrevistas de pessoas inteligentes. Gosto.
P/1 – E conta pra gente como foi então estar aí desse lado e contar um pouco da sua história pra gente nessa tarde.
R – Uai, foi quase uma homenagem que eu fiz para os meus queridos que já se foram. Eu senti como uma homenagem, que eu falei deles com muito carinho, muito amor. E um prazer também de falar de uma história, da minha história pra vocês, tão atentos e sensíveis a ouvir. Disponíveis pra ouvir. Não sei se isso é interessante ou não, mas essa disponibilidade é muito rara nos tempos de hoje alguém estar atento à história do outro. O carinho de vocês também, especial, vocês simpáticos, carinhosos.
P/1 – Eu acho que é isso.
R – Eu tenho a agradecer a vocês.
P/1 – A gente que agradece.
P/2 – Eu ainda teria mais uma pergunta. Se você gostaria de deixar uma mensagem para a atual e futura gerações.
R – Ah, sim. Estejam mais atentos a essa turminha de hoje aí que não olha pra ninguém, que não percebe o outro, que não vê o outro. Perceba o outro, porque essa vida é rápida demais. Muito rápida. Essa é uma semente. Plantar carinho e amor, isso é uma coisa que enche o coração de alegria, de felicidade. Isso é a maior fonte de felicidade, é essa atenção, esse carinho que você deixa para os outros. A turminha de hoje tá muito ligada ao celular, muito preocupada com o seu mundinho, fechado no seu mundinho, não é capaz de ver o outro. Às vezes, o outro precisa. Ninguém sabe o bem que tá fazendo ao outro, uma palavra... Não é ficar ensinando o outro, não precisa de ensinamento, não, a vida ensina. Ele tem consciência do que ele fez de errado, do que fez certo, ele sabe, ele é um ser que tá em evolução e tá se descobrindo a cada minuto as suas verdades, sabe muito bem, não precisa de ninguém ficar mostrando e falando. Eu acho que é muito mais poderoso e muito mais enriquecedor um gesto de carinho, uma atenção que você dá ao outro. Às vezes não custa nada, um minutinho da sua vida, um segundo, ninguém sabe o bem enorme que ele tá fazendo.
P/1 – E no fim eu tenho mais duas perguntas, a primeira é mais pontual, e talvez até... Quando a gente veio aqui numa conversa prévia, a senhora contou de um calendário que fez pra Kinross há um tempo.
R – Ah, foi. Há muito tempo.
P/1 – Conta como foi fazer esse calendário, o que tinha nele.
R – Eu fiz foram dois quadros que eu tinha aí, acho que eles nem existem mais, um trabalho muito bom. Foi o primeiro, foram duas mulheres sentadas numa cadeira. Eu nem tenho mais. Depois o calendário foi outro, foi exatamente do folclore de Paracatu. Eu acho que eu fiz foi dia de Reis, não lembro mais, eu fiz um desenho. Eles devem ter lá. Devem ter. No cavalo, uma figura num cavalo. Eu fiz isso.
P/1 – E agora a última pergunta, pra gente encerrar, é: quais são seus sonhos?
R – Eu, meu sonho agora, o meu sonho é deixar uma lembrança boa pra todo mundo. Esse é meu sonho. Que gostem de mim, que tenham uma lembrança boa quando eu não estiver mais aqui. É esse o meu sonho. Não ter pisado na bola terrivelmente, não ter feito muitas coisas pra deixar alguém amargurado ou triste comigo. Eu quero que eles tenham uma saudade boa. Uma saudade boa da mãe, da avó. Quero ter acertado mais do que errado, que a gente erra mesmo. Acertado mais um pouquinho. Eu tenho horror de falar... Se alguém quer me deixar amargurada, é falar assim: “Nossa, com você é ruim”. Não falei isso, não, porque acho que todo ser humano tem pavor disso aí. Não fala que você é ruim, não. Eu quero ser boa. Quero ser boa. Tô tentando ser. Às vezes, a gente conversa muito e pergunta muito e acaba amolando. Eu quero deixar todo mundo feliz no seu espaço. Que sejam felizes todos e que se lembrem de mim com saudade boa, não saudade sofrida. Saudade boa. E também que meus quadros quando eu deixar aí, que eles iluminem também as pessoas que ficarem com eles. Porque pra mim, a pintura sempre me iluminou por dentro, que também traga luz pra eles, luz por dentro deles. Com as minhas realidades reinventadas, que eu sempre vou modificando pela emoção. Espero ter colorido bastante. Ainda há um tempo pra colorir bastantes telas aí. Colorir e desenhar essas realidades que eu imagino, que são tão importantes pra mim. Muito importantes.
P/1 – Espero não ter te aborrecido com tantas perguntas, mas eu acho que...
R – Chega, porque agora eu comecei a falar bobagem (risos).
P/1 – Imagina. Imagina. Eu acho que é isso mesmo. E a gente em nome da Kinross e também do Museu da Pessoa agradece muito a sua entrevista, a sua contribuição com o projeto.
R – Opa! Eu que agradeço.
FINAL DA ENTREVISTA
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