Ponto de Cultura Museu Aberto
Depoimento de Luís Vagner Dutra Lopes
Entrevistado por Stela Tredice
São Paulo, 21/08/2007
Realização: Instituto Museu da Pessoa.net
Entrevista PC_MA_HV 51
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Adriano dos Santos Silva
P/1 – Vamos começar. Eu gostaria q...Continuar leitura
Ponto de Cultura Museu Aberto
Depoimento de Luís Vagner Dutra Lopes
Entrevistado por Stela Tredice
São Paulo, 21/08/2007
Realização: Instituto Museu da Pessoa.net
Entrevista PC_MA_HV 51
Transcrita por Vanuza Ramos
Revisado por Adriano dos Santos Silva
P/1 – Vamos começar. Eu gostaria que você começasse falando seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Luís Vagner Dutra Lopes, nascido em Bagé, em 20 de abril de 1948. No Rio Grande do Sul.
P/1 – Luís, qual é o nome dos seus pais e dos seus avós?
R – Meu papai chamava-se Vicente Martins Lopes, e a mamãe, Sulema Dutra Lopes. Meus avós de maior convívio foram seu Romário Lopes Brasil e a senhora Arlinda Cantuária Lopes. E tinha também vovó Ondina, vô Clodomiro, que eram da parte da mamãe.
P/1 – E qual era a atividade profissional de seus pais e, do que você lembrar, dos seus avós também.
R – Eu posso dizer da minha base estrutural, educacional, cultural, humana, de formação. Eu sou de uma família de negros, índios e brancos do Sul do Brasil. Eu tenho um avô de descendência negra. Seu Romário era um homem negro, conheceu vovó, aprendeu a ler com ela. Foi um homem muito esforçado, um homem de muito esforço altruístico. Fundou escolas naquela região do Brasil, no Rio Grande do Sul. Vovô fazia de tudo, chegou a ser reverendo, pastor, buscando os caminhos. Ele foi alfaiate, sapateiro, carpinteiro, era tudo. Vovô era um homem que fazia tudo, um lutador. E ele era de Rosário. Eu nasci em Bagé, vivi em Dom Pedrito, terra do papai. Também Rosário, Dom Pedrito, Santana do Livramento, já falei. O esforço do vovô era para que fôssemos para Santa Maria, que era a capital universitária. Para que fôssemos eu e minha irmã, Cemiramar, estudar lá. Então, vovô Romário era aquele que, vamos dizer, preparou uma base. O que eu me lembro da família, do todo, é que papai era um grande músico. Também um músico, vamos dizer. Ele tinha uma orquestra, chamava Copacabana Sereneiras e Guanabara, era por causa dos Big Bands. Mas no Sul do Brasil, depois as bandas viravam típicas, porque era aquela coisa da confluência euro-cisplatina, da ponta ali do Brasil. Papai também era um músico erudito clássico. Tanto é que o meu nome Vagner vem de Richard Wagner. Esse foi o começo da minha estrutura familiar. Foi primeiramente com meu avô, como base principal, e depois o papai e mamãe. Aí houve separação. Como eu tinha a felicidade de conviver com orquestra e com músicos ao vivo, tive oportunidade de ver muitos se desenvolvendo. Por exemplo, eles tocavam muito jazz, tocavam Duke Ellington, Count Basie, Benny Goodman, Artie Shaw. E tinha o lado típico, aí caía na música. Por exemplo, caía na influência do tango, na coisa da música erudita, clássica. Toda essa formação é o meu começo de vida.
P/1 – Esse seu avô Romário era pai de quem?
R – Do Vicente, do meu pai.
P/1 – E você disse que você vem de uma família de negros e índios ali do Sul do Brasil.
R – É. Esse lado da família do papai, do vovô, negros, descendentes de africanos. Uma família de Rosário do Sul. A vovó era uma mestiça, sarará, com negros e portugueses. Do lado da minha mãe, Sulema, tinha um avô espanhol e com uma avó mestiça também, com índios. Aí entra os bugres na miscigenação da família, aquela coisa.
P/1 – E o seu nome, você estava falando que o seu nome vem do compositor Wagner, não é?
R – Isso. Meu pai homenageou porque ele falava que Wagner era um grande revolucionário, e Luís era luz. Era um nome: a luz revolucionária. Eram umas coisas assim, umas analogias, as viagens de pai.
P/1 – E o Dutra Lopes é de onde?
R – O Dutra é exatamente da mãe, da família da mamãe. E o Lopes vem do vovô, que era Lopes Brasil. E tinha o "Brasil" também em meu nome, que se fosse juntar tudo seria Luís Vagner Martins, da avó, Dutra, da mãe, Lopes Brasil, do pai e vô. Seria isso. Mas eles reduziram: colocaram Luís Vagner Dutra Lopes. Está bom? [Cantarolando] "Caminharei por aí..." Conhece?
P/1 – E você tem irmãos?
R – Tenho irmãos. Eu tive do casamento do papai e mamãe, esse primeiro momento. Tive uma irmã chamada Cemiramar, que mora em Porto Alegre, do Brasil. Uma guria feliz, dois filhos. Uma mulher alegre, lutadora, linda.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho à sua infância, Luís. Eu queria que você descrevesse como era a rua, o bairro onde você morava.
R – Bom, eu saí muito cedo de Bagé. Eu nasci num lugar chamado Panela do Candal, é um tipo de açude, o povo novo, os bairros ali, em Bagé. Logo que se deu a separação de pai e mãe, eu era muito menino, jovem, quatro anos, eu fui viver com o vovô e a vovó. Fui para Dom Pedrito. Depois – que eu falei –, Santana do Livramento. Aí eu fui estudar em Santa Maria. Fui viver na cidade de Santa Maria, onde foi um momento que eu tenho uma recordação muito feliz: de amigos bons, de uma possibilidade de estudo nos colégios locais – Cícero Barreto onde fiz o primário, depois o Colégio Santa Maria, onde fiz o ginásio. E jogava basquete no clube da cidade, nos clubes atléticos de lá, jogava futebol no Rio Grandense, Ideal. Eu tinha uma relação maravilhosa com os meninos e jovens dali, numa fusão com brancos, negros, enfim, um convívio vivido devido ao esforço do meu avô mesmo. Na preparação eu tive uma condição de convívio muito limpa, muito clara, muito evolutiva, com amigos respeitosos, carinhosos, finos. Penso que esse momento de vida meu foi muito claro, para você ter uma visão do mundo com relação ao convívio, educação humana. Foi muito legal, Santa Maria foi muito bonito para mim.
P/1 – E como é que era a cidade nessa época? A rua, a casa, você se lembra?
R – Eu morava numa casa muito bonita. Em primeiro lugar uma entrada com um birô, um escritório, uma bela biblioteca do vovô, com aqueles nanquins, com penas do vovô. Vovô foi um grande fotógrafo. Em Dom Pedrito, no Sul do Brasil, tinha um estúdio grandioso. Nós tínhamos uma casa bonita, o quarto do vovô e da vovó, uma sala grande, uma sala de jantar com uma arte bonita, um corredor bonito, que tinha o quarto do meu pai, o meu quarto, o quarto da minha irmã. Era um casarão, tínhamos uma condição de vida bastante elevada mesmo, boa, com essa chance de vida. E vivenciávamos todos uma estrutura, porque lá era uma cidade bonita. Era uma cidade muito forte, tinha uma viação férrea do Rio Grande do Sul, tinha essa característica muito grandiosa. Por exemplo, no que diz respeito ao social, o movimento dos negros, tinha o 13 de Maio, o clube. E o União Familiar, que foi nesse clube, por exemplo, que começou Lupicínio Rodrigues, onde eu também comecei. Ali ia o Jamelão, Ângela Maria, Cauby Peixoto, os grandes artistas daquele tempo, década de 50, eu era menino. E tinha a oportunidade de, com aquela orquestra, conhecer coisas da música de todo o mundo. De conhecer o frevo nordestino do Severino Araújo. Os chorinhos, Pixinguinha, através da orquestra. A música sempre foi meu âmbito de abertura para uma visão planetária da vida.
P/1 – E o fato de seu avô ser fotógrafo, você lembra-se de alguma cena especial, alguma imagem? Qual a sua relação com as fotografias de seu avô?
R – Eu trarei fotos dele aqui, para que tenha oportunidades de mostrar as fotografias dele com cores, mesmo eu menino, coisas assim. Enfim, muitas fotografias, era um grande fotógrafo retratista. Tem muitas coisas da obra dele, do trabalho dele.
P/1 – Mas você se lembra de alguma cena especial?
R – Lembro-me daquele tipo de máquinas e estúdio dele. Daquelas máquinas antigas que o cara entrava, era uma loucura. Agora, detalhe particular, era só o quarto escuro de revelação, de vez em quando ele me trancava um minutinho ali, para ver se tomava juízo, eram uns “castiguinhos” assim. Era um homem bom! E eu me lembro dele, o esforço dele, em todos os aspectos pela cultura, pela educação. Ele gostava da leitura, gostava da história. Esforçava-se para que nós conversássemos corretamente, tivéssemos um desenvolvimento bom, estudássemos em grandes escolas. Era um homem assim. É esse orgulho que eu carrego, o fato dele ter conhecido a vovó lendo o jornal de cabeça para baixo, fazendo pose para ela. Até que ela olhou – naquela pose não tinha fotografia – sei que ela olhou, gostou do negrão também, foi lá e virou o jornal e falou: "Olha, é assim, e essa é a letra A." E ele a pediu em casamento e viveram muitos anos, quase 80 anos viveram juntos. E era um casal muito feliz, de um amor, de uma dignidade no comportamento humano muito exemplar. Muito bonito, muito forte.
P/1 – Quer dizer que foi sua avó que ensinou seu avô a ler?
R – É, foi ela. E ele se desenvolveu grandiosamente a partir desse momento. E se esforçava para dar a ela uma vida, uma coisa que ele entendia como dignidade mesmo, com um negro que tinha força, tinha condição, tinha talento, tinha valor para fazer uma família, ter uma condição humana, correta. É isso, passava por isso. E mesmo nos clubes, União Familiar, ele foi se esforçando nisso, em escolas.
P/1 – Seu pai que tocava na orquestra?
R – É. E também vovô tocava, ele tocava flauta. Ele sempre foi pela arte, pela literatura. Ele sempre se esforçou para que nós sempre tivéssemos um desenvolvimento bom, uma capacidade de enxergar os tempos.
P/1 – Voltando no seu período de escola, você começou os seus estudos em Santa Maria? E você frequentou essa escola, como era essa escola de Santa Maria na época?
R – Ficava na Rua Silva Jardim, se não me falha agora, tantos anos... Rua Silva Jardim, Colégio Cícero Barreto. Onde eu cursei o primário, naquele tempo que tinha primário, depois admissão. Foi muito bom, foi maravilhoso, do bem. Foi um lugar onde eu conheci todo tipo de pessoa. Porque eu, como tinha um viver bastante musical, artístico, via a orquestra ensaiar, eu vivia em função disso. E, na escola, era a oportunidade de cruzar com os amigos, conhecer as gurias, me apaixonava, ficava apaixonado. Como dizia o papai: "E vem cá, mas ela sabe?" [risos]. Namorada, as meninas, os amigos. Foi muito bonito esse momento meu, deu para desenvolver. Professoras, Senhora Ayra, eram boas professoras, eu lembro. Depois do primário ali, eu fui para o Colégio Santa Maria. Era uma escola de irmãos, de padres, era um colégio forte de Santa Maria. Eu fui fazer o ginásio lá.
P/1 – E quais são as lembranças que te marcaram? Tem uma lembrança especial desse período escolar?
R – Ah, tem. Lembranças, tenho. Tinha os trabalhos manuais, a oportunidade de ouvir pessoas falar sobre coisas novas para mim sempre. Novas por um lado, porque eu sempre ouvi falar, porque em casa eu tinha uma preparação grandiosa. A escola para mim era um local de convívio, de aprender sobre estar junto, que é ter o mestre, alguém te ensinando. Eu tinha um pensamento de jovem. E, por exemplo, eu era um menino que nunca teve nenhum problema na escola, nada. Aquele momento era limpo, era um momento de convívio mesmo.
P/1 – Essa preparação que você tinha em casa, como era essa preparação durante o seu período escolar?
R – Era o seguinte: o vovô era um homem que gostava de poesia, gostava de versar, era um declamador. E eu vivia em função desses sonhos, dessas ilusões, dessas divagações. Sempre vivi esse mundo. O mundo da música, a música que me fazia chorar. As notas me tocavam profundamente. Eu tinha uma, vivi uma vida assim. Eu praticava o esporte, eu não tinha uma noção do que era tudo. Gostava de ler. O papai lia seleções, umas coisas que falavam do outro lado do mundo. Como eu tive o meu cantinho, eu tinha o rádio, então, eu ouvia em espanhol, rádio em alemão. Ouvia muita música francesa, eu tive a oportunidade de exercitar a mente. Não dava para entender tudo, mas viajava com um esforço para compreender coisas, que eu penso que isso tenha sido um grande empurrão na possibilidade de aprender. Muito cedo eu havia decidido o que eu queria ser: músico, e cantar, compor, escrever. Eu queria viver esse mundo. Muito cedo. A única coisa que eu pensei em ser antes foi presidente da República. E, no resto, sempre a música mesmo.
P/1 – E da onde que você acha que vem essa influência para você ser músico?
R – Família mesmo. Pai musical, minha mãe também. Porque a mãe Sulema, nós nos separamos muito cedo. Eu voltei a reencontrá-la 38 anos depois. E depois da minha conversão budista, agora. Uns anos atrás. Mamãe também é uma mulher extremamente musical, rítmica. O negócio dela é dança. Eu, ao reencontrá-la, é que eu pude compreender isso. E eu, profissionalmente, dentro do meu trabalho como músico, a trilha guitarreira e tal, eu sempre fui um músico realmente muito rítmico. Minha aceitação no mercado nacional e no exterior advém também dessa minha formação, dessa influência. Exatamente por essa confluência de influências que eu vivi desde menino.
P/1 – Na sua adolescência – vou agora pulando alguns anos à frente – você tinha um grupo de amigos, como que era esse grupo de amigos, o que vocês costumavam fazer juntos? Locais que vocês iam, como era, como foi sua adolescência?
R – Bom, aí eu saio de Santa Maria, dos 12 para os 13 anos, pouco antes da Revolução de 64, ali eu tinha 16, pouco antes, 13 anos, fui para Porto Alegre. Fui morar num bairro chamado Partenon. E, nessa época, eu rapidamente comecei a tocar guitarra. Eu formei um grupo: The Jetsons. Antes um pouco, Beatles, um pouco antes. Então, eu fazia música instrumental de guitarra. Com influência americana dos Ventures, ingleses dos Shadows. Mas tinha uma base familiar, uma base de música, que eu tocava outras coisas. Mas era um conjunto de guitarra, jovem, eu colocava todas aquelas influências naquele trabalho. E conheci outros meninos. Por exemplo, Luís Ernani, Guimarães, que foi outro guitarrista. O Édson Amaral Rosa, que era um baterista. Depois, o Waldir Jacks Martelli, um baixista. Olha só. E depois o Francesco Rossidi Scornavacca, que é o Franco, que é inclusive o pai do KLB, lançador do Zezé de Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, e um monte de grupos dessa área. Esse era o baixista, meu amigo de infância, que hoje se tornou um grande empresário na área artística. E tinha também o Anyres Marcos Rodrigues. Eu muito cedo formei um grupo de músicos. Estudávamos. Eu saí dali, 13 anos, eu fui vivenciar, estudei num colégio chamado Mackenzie em Porto Alegre, para fazer o Científico ali. Dezesseis anos. Nesse período de Jetsons, música instrumental, eu fazia música e comecei a tocar na televisão. E o grupo começou a fazer um sucesso regional muito legal. Eu estudava e tocava. Nos fins de semana eu tocava, e o resto do tempo eu estudava. E jogava bola, que eu sempre gostei de esporte. Basquete, eu fui jogar na Sociedade Israelita. Tenho um primo que foi do Grêmio, uma época, do basquete lá no Sul do Brasil. Que eram dois negros do Grêmio, Calunga e Calunguinha. Purpão e Purpinha, Purpinha no Sogipa.
E Valência e Valencinha no Petrópolis, que eram grupos de basquete. O Calunga fez parte da seleção brasileira de basquete, como jogador de basquete e vôlei. Foi um dos poucos atletas que jogaram duas modalidades na seleção brasileira. E, em Porto Alegre, dentro da família, dessa estrutura familiar que vai se abrangendo, vai abrindo, tinha um clube, que é o clube mais antigo de negros do Brasil. É antes da abolição da escravatura. Que a família também faz parte. Chama-se Floresta Aurora, é de 1872. Existe até hoje. Um clube. Grandes artistas, grandes poetas, homens de luta, dentro dessa expectativa humana de evolução de uma condição melhor de convívio, do desenvolvimento disso. Eu, desde menino, no Partenon, como músico, eu fui fazendo muitos amigos. De pessoas, meninos, enfim, que gostavam da mesma coisa da área musical, a cultura, arte.
P/1 – E você chegou a tocar nesse clube Floresta?
R – Cheguei a tocar e toco. Esse ano, inclusive, recebi uma homenagem nesse clube. No ano retrasado, eu recebi uma mensagem também no Sul, na Câmara, Troféu Lupicínio Rodrigues, pela luta.
P/1 – Qual luta?
R – Pela luta de um artista brasileiro. Por exemplo, no meu caso, eu sou aquele menino que saí muito cedo com meu conjunto, Os Brasas, aos 18 anos, e tenho aproximadamente 400 canções gravadas no meu país, com mais de mil e tantas participações como músico em discos de vários artistas. Desde sempre. Como artista com carreira solo, tenho 14 discos no Brasil, e você caminha o mundo, você faz uma luta em prol disso. Ou seja, de você conseguir estabelecer uma caminhada correta, honesta, onde sua música tinha que ver com o seu comportamento, com a sua personalidade, com o seu caráter, o que você vê transmitindo. E você vai fazendo um trabalho. Eu vim, passo pela falange rock n' roll, reggae music, surf music, soul, choro, samba, tudo, porque está tudo incluso no meu trabalho. Agora você, depois de quantos? São 40 anos gravando com todo mundo, são mais de 200 intérpretes. E, nessa geração nova. Parece-me que as pessoas que organizam esse tipo de coisa reconheceram um trabalho que tem uma ligação com o mundo, com tudo. Daquele menino que começou lá, filho daquele senhor, neto daquele outro. Que saiu do Rio Grande do Sul, veio caminhar São Paulo, Rio, Brasil. Depois, um tempo de Europa. Tocando pelo mundo. E voltando. E continuando sempre o trabalho.
P/1 – Bacana.
R – [Risos] Eu fico muito feliz que a gente começou um trabalho intitulado samba-rock. Aqui no Rio Grande do Sul era suingue, balanço. No Rio de Janeiro, sambalanço. O Jorge Ben, com o Tim, com Bebeto, com todos. E uma geração, 30 anos após, uma geração de brasileiros jovens compreende que essa música brasileira tem força para ir para o mundo, como o pop. A música brasileira, no seu total, é forte, planetária, e muito grandiosa. Mas esse é um toque, por exemplo, que uma geração, como jovens como Marcelo D2, Seu Jorge, agora Zélia Duncan, grupos como o Tchê Garotos, Ultramen, Papas na Língua são jovens, todos meus intérpretes também agora, entendeu, regravando coisas minhas. E isso me enche de alegria, logicamente. Porque a gente está aqui, vivenciando e vendo que aquele esforço de estudo, de preparação, hoje tem uma resultante em outras gerações. Acho que seja um dos grandes motivos de alegria, de poder falar sobre o trabalho da gente.
P/1 – Que é totalmente do bem.
R – Totalmente do bem, preocupado com isso.
P/1 – Voltando, falando em jovens, vamos voltar um pouquinho em sua juventude mesmo, como é que era a moda na época, como é que vocês se vestiam? Quer dizer, você já era músico, guitarrista.
R – Isso.
P/1 – Como é que eram os bailes, os namoricos, como é que era essa época em Porto Alegre, anos 60, ditatura?
R – Isso.
P/1 – Vamos voltar, o que você se lembra desse período?
R – Eu me lembro de tudo. Tinha um pai radiotelegrafista, um homem da viação férrea, um homem da comunicação, então, eu lembro bem dos conceitos, das coisas, vamos dizer assim, certo ou errado, você vendo do seu próprio país, aqueles que falam o mesmo idioma, tua gente, envolvida por umas lutas internas, umas coisas, devido à mente. Eu ficava um pouco interpretando as coisas. Porque eu posso dizer que a minha geração, meus amigos todos estudavam. Quando fui morar em Porto Alegre, morei em vila. Depois da revolução, papai teve problemas. Aquele nível de vida que vovô vinha trazendo até então se transformou em outra coisa, sem problema nenhum para, vamos dizer assim, para a formação, para a educação. Porque já tínhamos uma base legal. Mas deu para sentir uma diferença. Mesmo assim, lá no Sul do Brasil, eu via toda a rapaziada, toda a gurizada, as meninas, todo mundo estudava. É diferente. Nesse ponto, mesmo a negadinha, nas quebradas, todo mundo tinha caligrafia bonita, sabiam falar. A gente tinha influência do mundo, da música internacional. A gente tinha oportunidade de assimilar palavras, frases, versos. A gente estudava Francês, Inglês, Latim, Espanhol, Geografia, Matemática, Português, Ciências, era isso. Então, parece-me que, naquela época, a gente tinha uma condição, uma base educacional bastante forte. E eu via quase todos os meus amigos completamente esclarecidos em todos os assuntos.
P/1 – Adolescentes.
R – Adolescentes.
P/1 – Vivenciava coisas, e gostava de, lógico, como toda gurizada, namorar e rarará, rarará. Os bailinhos, aquelas reuniões dançantes, o rock chegando. O começo da loucura pegando. É, 64, 65. Em 66 eu vim embora. Eu saí com 18 anos, vim com meu grupo, Os Brasas, para São Paulo, viemos tentar a vida. Mas tínhamos uma preparação tão boa musical. Luís Vagner, Edson da Rosa, falecido, o Anyres Marcos, o guitarrista, e o Franco. Nós quatro viemos para cá em 45. Um dia, nós fomos contratados pela televisão Rede Excelsior. Era Jovem Guarda aqui, Roberto, Erasmo, Wanderléa. Amigos que eu conhecia do Sul também. Porque a gente tinha um trabalho que as pessoas iam perto. Chegavam ao Sul: "Ó, tem um grupo de músicos aqui, tem uns meninos lá que tocam guitarra, uma banda boa." A gente conviveu com essas pessoas. Eu conheci Roberto, Erasmo, a Wanderléa, Wanderlei Cardoso, Rosemary, os artistas da época, Renato e seus Blue Caps. Chegamos a São Paulo, fomos contratados aqui era Rede Record, nós fomos contratados pela Rede Excelsior. Que na verdade era Jacques Netter, David Grimberg, depois Edson Leite, Walter Clark. Essa turma andava por ali, e a gente ficou contratado pela Excelsior. Três anos nós ficamos contratados por essa rede de televisão. Ali comecei a fazer programas aqui, fazer programa com a Bibi Ferreira, com José Vasconcelos, com os homens da época, fazia os Trapalhões. Nós mesmos, Os Brasas, tínhamos com Carlos Evar, com o Carlos Imperial. Ele veio para cá, eu tinha o programa O Bom, do Eduardo Araújo com a Silvinha e nós, Os Brasas. O Carlos Imperial levou-nos para o Rio de Janeiro, fazíamos programa de televisão na Tupi. Um programa nosso mesmo, chamado Esses Jovens Maravilhosos e seus Ritmos Alucinantes. Tivemos essa experiência muito rapidamente, começamos a cantar e a gravar com todos os artistas. Apareceu na nossa vida um homem chamado Edmundo Peruzzi, um mestre, um maestro e ele deu-nos direção. Era aquele cara: "Não, não é só fazer sucesso, ganhar dinheiro. É a música, você tem que trabalhar corretamente, desenvolver." A gente já tinha noção antes, esse mestre vem nos orientar musicalmente. Através dele nós nos tornamos um bom grupo de estúdio. Então, gravávamos quase todos os nomes. Em 67, pintou a Passeata Contra as Guitarras, foi o primeiro grande choque, assim, com os ídolos. Que a gente tinha Gilberto Gil, a Elis Regina, ali deu um grande choque para mim. Aqueles ídolos, o cara estava contra as guitarras, falava que a gente era alienado. Lógico que tiveram uma influência, mas era a rotação planetária mesmo, tem que ir. Esse foi o primeiro grande choque. Causou um efeito, nos tornamos uma lista negra na Ordem dos Músicos do país. Eu, menino, não entendia muito bem esse afastamento, esse lance da separação.
R – O que vocês tocavam? Que tipo de som?
P/1 – A gente tocava as músicas da época, da gente, influências. Tocávamos influência de Beatles, Rolling Stones, Dave Clark Five, Ventures, Shadows. E tocávamos música nossa, música do Eduardo Araújo, Silvinha, Jovem Guarda, enfim, movimento rock mundial. Éramos desse tempo mesmo, entendeu?
R – E essa passeata, como foi? Conta um pouquinho onde aconteceu.
P/1 – Aconteceu em São Paulo. Lembro-me que até saiu alguma coisa na Revista Cruzeiro, Fatos e Fotos, Manchete, da época. Parece, como disse o próprio Ministro Gilberto Gil, que foi um equívoco da época dele. Realmente um grande equívoco. Quando se distancia, corta as coisas, faz mil efeitos. Tiveram efeitos muito constrangedores em muita gente. Meu próprio mestre. Sobrou o primeiro nome da lista negra da Ordem dos Músicos do Brasil. Se bem que tem muitas coisas que a gente não tinha muita noção. Era que nem no tempo que falava doutor, doutor era o doutor. Hoje você fala doutor, pode ser um ladrão, safado, sem vergonha. Isso já mudou. Mas, naquela época, a gente era jovem para chegar num contexto, em outra cidade, no maior centro do país, a maior cidade da América, São Paulo, aprendendo coisas. A gente era muito puro mesmo. Para ti ter uma ideia, a primeira vez que a gente foi fazer o programa do Chacrinha, a gente ficou no aeroporto com os instrumentos, todo mundo foi e a gente não sabia nem o que fazer. Só fomos tocar quando as pessoas voltaram do programa. E nós quatro sentados ali, era uma verdade. Éramos bem assim, éramos isso.
P/1 – Quer dizer que Os Brasas começaram na Excelsior. Onde vocês tocavam para ser um grupo fixo da casa, como era isso?
R – A gente tocava no programa Linha de Frente. Era Vips, Sérgio Reis, Antônio Marcos, Vanusa e todo mundo, uma equipe danada. Aí vinha Martinha, Marcos Roberto, Dory Edson, Newton César, enfim. E tinha outros grupos: Cardeais, Songbeats, N S Show. Foi aí que eu conheci O’Seis, antes de se tornarem Os Mutantes: Rita Lee, Serginho, Arnaldo, parece que Liminha, Nando. Muitas coisas antes de acontecerem os grandes booms aqui em São Paulo. A gente tocava numa boate chamada Saloon, na Rua Augusta. A gente foi contratado nessa boate, tocava ali e fazíamos a televisão. Fazíamos esse programa, fazíamos O Bom com Eduardo e Silvinha, Deni & Dino – grande sucesso, grande dupla. Faziam um rock, mas com influência brasileira, muito criativos. A gente gravava com esses grupos, tinha também a Vanusa, Silvinha, Eduardo Araújo, que eu acho que falei, e a banda jovem desse maestro e muitos convidados. A gente tinha oportunidade de tocar com Cyro Monteiro, Aracy de Almeida, Cauby Peixoto, com todo mundo, várias gerações, a gente ia tendo oportunidade de desenvolver. A gente foi morar no Rio de Janeiro, saímos daqui falando já uma coisa ligada a outra, a televisão Excelsior era aqui, e Excelsior e Tupi, no Rio de Janeiro. Fomos morar num solar. O Solar da Fossa era um solar em Santa Terezinha, que era onde morava Caetano Veloso, junto com a esposa Dedé, Maria das Graças, que era Gal Costa, Maria Bethânia, morava Paulo Diniz, Anderson Alves. Nesse lugar também morou MPB-4, que o Chico ia para lá ensaiarem vocais. Depois Tim Maia, Cassiano, Hyldon, um grupo de músicos, Leny Davis, Dzi Croquettes, era um turbilhão de coisas. Torquato Neto, muito, o pessoal do cinema. Lembro-me da Beth Faria, Cláudio Marzo, Renata Sorrah, Darlene Glória. Era um lugar que moravam, sei lá, tinha 84 quartos, era um convento antes. E ali era um lugar dos artistas, aquela década de final de 60, de 70.
P/1 – E você morou ali?
R – Morei ali, aliás, com o grupo Os Brasas e depois sozinho também. Era um lugar, um encontro dos intelectuais, dos músicos, poetas, Zé Keti, Dalmo Castelo, depois Paulinho da Viola, todo mundo ia ali. E ali tinha um convívio de tudo que é tipo de gente, tudo muito ligado à arte, à cultura. Rogério Duarte, Paulo Leminski, estou lembrando, agora começo a lembrar de pessoas.
P/1 – E de algum fato marcante? Deve ter muita história dessa época, não é?
R – Ai, ai, ai! Claro, tenho tantas coisas que chega uma hora que eu me perco.
P/1 – Ok, Luís Vagner, você estava contando então de uma época que você morava no Rio. Que tinha esse convento. Algum fato, alguma história que tenha te marcado nesse período?
R – Eram muitas histórias para conseguir lembrar, mas, nesse lugar, eu fazia televisão, então tinha esse convívio com todo mundo, mas vivenciava uma série de coisas. Eu, por exemplo, escrevi uma música: “Vejam só que desgraça que / essa desgraça eu vou contar / eu no Solar da Fossa, vivendo em meio à gênese / com a Jurema a cobrar, e eu sem grana para pagar / Tô duuuuro”. Esse era o papo. Na realidade, a Jurema era uma mulher grande, escultural. E ela usava aquelas roupas apertadas, era grande e fumava charuto. E ela era dona de tudo, ela que dirigia aquele monte de gente da loucura, entre aspas. Foi de muita experiência. E você conviver com tudo que era artista, de tudo que era lugar do país, Zé Keti, João do Vale também apareceu por ali. Eu comecei a produzir também, através do senhor Ismael Correia. Foi o lançador do disco do João Gilberto, da família Correia, dos Golden Boys e Evinha, pessoas muito musicais. Eu comecei a produzir discos também. E gravava como guitarrista. Em 70, já se dava o final d’Os Brasas. E minha carreira solo começava ali. Comecei a caminhar, tocar com Raul Seixas, tocava com Tim, Jorge Bem Jor.
P/1 – E nesse momento você morava no Rio?
R – Nesse momento, 70, sim, no Rio.
P/1 – E como era o Rio naquela época? O que você se lembra daquele período?
R – O Rio? O Rio é aquela coisa, aquela alegria, gostam mais de beira de mar, todo mundo nu, o físico, a sensualidade existindo, viajando em busca de aventuras e romances, enfim, você está exposto ali. Aquela coisa natural para você que não é nascido ali naquele ambiente, você vai cruzando e vai tendo oportunidade de vivenciar coisas que para você eram diferentes. Rio de Janeiro, aquela alegria, aquela beleza, aquela coisa linda. Eu vivenciava isso. Porém, ao mesmo tempo em que era isso, também era tudo misturado. Tudo muito próximo, estávamos vivenciando juntos todas as coisas. Mas era um lugar onde podia se andar tranquilamente em qualquer lugar ainda. O grau de atraso, de escuridão que vem tomando conta não só do Rio, de nosso país, enfim, dessa educação humana que vem se transformar num templo de violência, não era assim. Na década de 70 era bem mais tranquilo, e o desenvolvimento de amizades, enfim, de convívios ainda se fazia forte. E a música ainda tinha muito da harmonia reinante. Não só essa influência tão grande da valorização dessa coisa da música americana mesmo, tão forte. Existia todo um quê de preparação com os músicos, mesmo dentro da Jovem Guarda, do Tropicalismo, da Bossa Nova que já vinha. Tinha um lírico viver junto.
P/1 – Só voltando um pouquinho ao Solar da Fossa, essa dona desse local, a dona Jurema. Ela inspirou alguma música, que você estava contando?
R – É, eu escrevi essa música: “Vejam que desgraça é o Solar da Fossa”, era um título assim, entre aspas. Por exemplo, foram os Mutantes que gravaram a música [cantarolando]: “Tá dá dá di / tá di da dá / di di dá dá sol lá”. Eles também documentaram a passagem deles por ali, esse lugar foi muito forte. Penso que todos eles, o pessoal que morou por ali deve ter músicas e coisas.
P/1 – Quer dizer, eram apartamentos?
R – Apartamentos. Do número um ao 84.
P/1 – E quanto tempo você morou lá?
R – Eu morei primeiro em 68, depois morei em 70, até perto de finalizar. Depois se tornou o Rio Center lá, perto do Canecão, Botafogo. Lauro Müller, o nome da rua.
P/1 – Nesse período, no Rio, você estava trabalhando tocando em boates, como que era isso?
R – Não, eu trabalhava na produção, estava gravando disco e guitarra. Tocava minha guitarra com todo mundo, com os amigos. Gravava bastante.
P/1 – E, voltando ainda um pouquinho ali, a gente falou um pouquinho da sua adolescência, eu tenho uma pergunta que eu acabei passando, que era dos namoros da época. Você teve uma primeira namorada que você se lembra, que tenha marcado, que você queira falar?
R – Eu me apaixonava bastante, eu sempre me apaixonei muito. Mas é engraçado, a primeira vez que eu me senti apaixonado e amando alguém, e chorando, um sentimento de amor, de que eu queria e não tinha, ela não existia onde eu precisava, eu não a via. Eu era menino, devia ter uns dez anos, onze anos. E foi ouvindo o Nat King Cole, Aos Meus Amigos, que ele cantava em português e espanhol. Esse disco me marcou muito. Tinha uma música chamada Ansiedade e outra, Ojos Negros. Foram coisas que me marcaram muito. E os amores, eu tive guria, me apaixonei sim. Eu me apaixonei por algumas gurias [risos].
P/1 – E você teve algum noivado, chegou a ser noivo?
R – Não, eu não namorava nem noivava, nem nada disso.
P/1 – E casou?
R – Não.
P/1 – Você tem filhos?
R – Tenho filhos. Tenho quatro filhos.
P/1 – Quatro filhos. E como foi na sua vida ser pai?
R – Eu tenho Manauara, Cainara, da minha primeira união, tenho Luís Vicente, de outra companheira, e Flecha do Arco-Íris, de outra companheira. Eu tenho quatro filhos, eu tenho um relacionamento, posso dizer, sincera e honestamente, um relacionamento formidável com meus filhos. E com as mães deles também. Damo-nos bem, somos amigos. Respeitamo-nos, nos admiramos. É uma coisa sem trauma, sem loucura, sem nada.
P/1 – Que bom. E você acredita que o fato de ser pai, na sua vida, tenha mudado, tenha provocado alguma mudança nas suas crenças?
R – De alguma forma muda, talvez, aquilo que eu falava, tentei falar, sobre o amor antes da mulher. Em relação aos filhos, parece que você já os têm antes, também. Quando eles chegam, apenas passa a ser uma coisa real. Passa a existir. Tudo isso, logicamente, quando você vê em vida, matéria, aquilo tomou outro significado. Aí, vai se transformando no decorrer do tempo. Mas é uma coisa que parece inerente. É assim que eu sinto. Cada vez mais, eles vão se tornando mais amigos, e você vai tentando fazer com que eles compreendam essa ligação, essa eternidade de sentimento. Porque eu sempre fui um homem muito religioso, muito espiritual, talvez seja a palavra. Eu sempre fui buscando caminho: "Por quê? Por quê? Por quê?" Fui caminhando, buscando religiões, buscando em várias coisas. E fui encontrar respostas para os meus porquês no budismo de Nitiren Daishonin. E eu pertenço a uma organização dedicada à paz, à cultura e à educação que se chama Soka Gakkai, que tem um senhor, Daisaku Ikeda, o presidente. Uma organização de budistas, leiga, mundial. E já faz 20 anos, foi aí que a minha vida realmente se transformou grandiosamente. É uma luta em prol da paz, dos ensinos do Buda.
P/1 – E os seus filhos, qual a atividade deles, o que eles fazem atualmente?
R – Um faz cinema, Flecha do Arco-Íris, mora na Argentina. A Manauara trabalha com produtos de beleza. A outra menina trabalha em banco, agora se formou em Recursos Humanos. E tem um que é o terror, o terrorzinho. Está estudando ainda. E ele falou para mim. O que ele era mesmo? Eu não posso, nem sei dizer o que ele é. Foi um nome que eu achei que é uma coisa, depois era outra. Foi que nem quando eu ouvi o meu filho falar: “Sou MC.” Falei: "Pô, MC? O que é MC?" [Risos] Mestre de cerimônia. Tem uns novos nomes do trabalho. Agora, eu nem sei direito o que é. Mas, diz o ditado: "Para ser feliz, tem que se esforçar e vencer qualquer que seja o obstáculo.” É a maldade.
P/1 – Voltando um pouquinho à sua trajetória profissional, você teve esse período no Rio, e você falou que teve momentos que você foi tocar na Europa, que você sentiu que a música brasileira é bastante reconhecida pela sua abrangência.
R – Isso.
P/1 – Alguma experiência que tenha te marcado, dentro dessa experiência de tocar ou morar fora?
R – Sim, por exemplo, a primeira vez que eu tive oportunidade de viajar para fora foi através do Jorge Ben Jor. O Jorge escreveu uma música, uma homenagem a mim, chamada Luís Vagner, guitarreiro. Contando a história, como ele me conhecia, foi uma honra, me honrou. Emocionou-me profundamente. Sou sempre grato ao amigo. Jorge Ben Jor fez isso. Era 82. E eu tive oportunidade de tocar com ele. A gente já se conhecia antes, lógico. Em 85 foi a primeira oportunidade que eu fui tocando contrabaixo ele. Fomos fazer Argélia, tocamos na Itália, na França, Suíça. Foi a primeira oportunidade que eu viajei para o exterior. E me identifiquei muito com a França. Ah, sei lá, sabe essas coisas "eu já vivi aqui"? Eu não tive problema com idioma, com nada. Saí falando. Quer dizer, me esforçando [risos]. Mas um grau de comunicação bastante legal. Em 85 fiz amigos, me apaixonei, fiquei com vontade de voltar. Em 89, eu voltei. Essa primeira oportunidade foi muito legal. Estava me associando com amigos, no caso com Jorge, e conhecer, trabalhar com músicos famosos. Como nós morávamos junto, perto do Miles Davis, foi um grupo, foi um momento. Conheci também Herbie Hancock, que também é budista.
P/1 – Ah, é?
R – É.
Da Soka Gakkai também. O Wayne Shorter, um grupo de músicos que estava fazendo a excursão, aqueles músicos de Jazz. Aí cruzei com músicos africanos participando da primeira Fête de la Jeunesse, depois da guerra da França com a Argélia. Nós participamos da primeira vez, lá. Isso foi em 85. Foram momentos que eu estava chegando, vivenciando aquela coisa, Europa, África. Essa colonização, império, depois a volta disso tudo, numa visão de eternidade da vida, assim mesmo. Quando chegou em 89, eu voltei, já com meu grupo, Luís Vagner e Amigos Leais, onde foi o Toninho Crespo, Evaldo Correia, Lula Barreto, Marco Farias, Sérgio Henriques, músico Luís Carlos de Paula. Fomos para o Festival Jazz Wien. Foi bonito. Primeiro você tem oportunidade de vivenciar coisas assim: uma hora é John McLaughlin a Paco de Lucia, Al Di Meola. Outro dia é B. B. King, Alfred King, Fred King, os Kings da guitarra. No outro dia, Luís Vagner [risos], Omar Komak. A dimensão daqueles que você todo tempo cultuou, seus ídolos, daqui a pouquinho você está junto. E, daqui a pouquinho, é a sua vez. Esse tipo de experiência é uma desmistificação, ao mesmo tempo é uma visão que você tem do comprometimento, da responsabilidade e da igualdade no teu crescimento como ser e no que significa um trabalho dedicado a realizar coisas. Uns lugares você conhece, outros não, mas você está fazendo. Nem todo mundo tem obrigação de saber. Mas, quando sabe, sabe que se trata de uma coisa correta, de um esforço de um artista que é vencido pela sua verdade. Isso é o mais importante.
P/1 – E essa sensação de tocar com esses músicos, o que você se lembra dessa época? Tem algum fato, algum evento desse período que você tocou nesses festivais e que tenha te marcado, alguma coisa que tenha acontecido?
R – É tanta coisa e é um todo. No momento que você entra você vai encarar um público de 15 mil pessoas que você não sabe nem falar o idioma, você está chegando, você vai apresentar sua música, vai apresentar o seu coração, tudo o que você carrega. Luís Vagner, guitarreiro do Brasil, está incluso tudo aí. Tudo que você fala, todas as coisas tem essa ligação. Você, como homem, simboliza e representa a sua música, você é tudo isso, o seu país, tudo que você é, tudo. Não sei com que palavra dizer. Se é comprometimento, se é seriedade. Você tem que estar a um nível de responsabilidade mesmo. Aí vem o papel da arte, a eternidade. Porque naquele palco também já tocou Fulano, que já não toca mais. Você também traz os seus pais, e toda a base que você tem, daqueles que te ensinaram, seus mestres, e tudo isso você carrega naquele momento, aquela educação, o seu país, a índole, o caráter, a dignidade, o esforço, que significa você realmente fazer arte. Porque a arte é a flor da cultura, como diz um senhor. Ou seja, e você é um artista que tem que conduzir a tua obra dessa maneira. Para que tenha esse caráter na tua passagem pelo planeta. Quando eu, por exemplo, tive o momento de tocar com banda do B. B. King, quem me deu a guitarra do John McLaughlin. Não, não, não. Minto. John Scofield, que tocava com Miles Davis, um grande guitarrista, desses jazzmen, fantástico, um homem de estúdio e técnica. Ele que me entregou a guitarra para eu tocar, com muito carinho. Admirei-o porque esse irmão, como uma dessas... São quatro mãos, ele me dando a minha e a dele, eu falei: "Agora, vou tocar com a banda do cara." E o detalhe é, por exemplo, que os músicos, tocando, eles falam: "No school, man. Feeling." Que é o blues. Eles falavam: "Não é escola; sentimento". Você começa a aprender um monte de coisa. Não adianta você colocar a escola, você tem que colocar o sentimento que está te tocando. E aí rola uma energia e permite muitas coisas acontecerem.
P/1 – E como é que você sentiu tocando com B. B. King?
R – Com a banda, eu me senti aquele menino feliz de sempre, que veio ao mundo para fazer isso e, naquele momento, era aquilo mesmo. Como se fosse o meu pai, o tio Caçapa, os músicos setembrinos da orquestra do papai, aqueles lá. Era a mesma coisa para mim. Só que aqueles eram dos Estados Unidos, com a mídia, o merchandising, a marca, eram grandes do mundo. Mas aqueles também eram grandes do mundo. É assim que eu vejo a música. Interessante, todos que fazem com esse coração são grandiosos. Então, logicamente, uns têm mais sorte, boa sorte, outros têm apoio, outros não têm. Hoje a gente vê mais que nunca isso. Muitas vezes sucesso não significa valor. Fama não significa nada de sabedoria.
P/1 – E por que guitarreiro, Luís Vagner?
R – Exatamente por isso. Eu não era um guitarrista, aquela coisa do instrumento importado, a guitarra. Por exemplo, a minha primeira guitarra eu tive que mandar fazer. Porque não tinha, não existia no Brasil. Poucas guitarras, e saía muito cara a importação na época. E o guitarreiro é o seguinte: eu toco guitarra, mas eu toco do meu jeito brasileiro. O guitarrista, aquela coisa daquela escola mais assim. E eu sou um autodidata do meu instrumento. Hoje, por exemplo, tem escolas, tem aula. Tu pega ali, compra um vídeo com a aula de tal. Não tinha nada. Para fazer bend, para mim era puxar a corda. Para ter cordas leves eu tinha que inverter. O que na guitarra é mi, si, sol, ré, lá, mi. Aí, eu usava para fazer as coisas mi, mi, sol, ré e lá, só. Não usava o mi para poder ter umas cordas frouxas para fazer os bends. A gente vivia inventando, criando. Tentando criar um jeito de conseguir aplicar certos tipos de escola do instrumento aqui. E o guitarreiro é esse guerreiro mesmo, esse esforço para tocar ali aquele instrumento do teu jeito e de uma maneira própria também. Hoje, com certeza, isso já se faz uma escola brasileira nessa área. Antes de mim, por exemplo, existiu Bola Sete. O Bola Sete é um guitarrista que foi a grande influência na vida do Carlos Santana, junto com Wes Montgomery e Christian. Agora me fala o nome de um guitarrista francês? E ele foi a grande influência na vida do Carlos Santana, que conseguiu colocar a música tropical mexicana no rock n' roll, e se tornou uma lenda viva da voz e da guitarra. Nesse ponto, eu penso que o guitarreiro define essa dedicação e esse esforço para uma maneira nossa de tocar o instrumento.
P/1 – E por que você resolveu ser músico?
R – [Risos] Sabe por quê? Eu acho que eu não resolvi, acho que já vim, já estava resolvido. Não teria outro caminho, não saberia vivenciar mais nada. O caso que eu te falei, na escola, onde eu estava sempre na música. Eu ia vivenciar os amigos, curtir, tal. Mas eu era músico, eu queria música. Tudo servia para que eu pudesse fazer música. Eu nunca ganhei um pila a não ser da música. Desde o meu primeiro um pila, que foi tocando. Que era da música.
P/1 – Um pila é um...?
R – Um real. Seria um cruzeiro. Um pila. Gaúcho, né? "Um pila, tchê! Barbaridade, um pila. Bah! Toquei um montão." Foi sempre isso. A música me deu essa oportunidade de sair com essa veia para o planeta e conhecer pessoas e hoje poder está aqui com você, contigo, conversando. O que é maravilhoso mesmo.
P/1 – E, Luís Vagner, quais são as principais que você vem tirando da sua trajetória de vida?
R – Eu penso que para nós, como seres humanos, é a oportunidade da evolução mesmo. Oportunidade de compreender por que estamos passando por aqui. Por esse planeta. Nesse tempo. Onde que estão as respostas aos porquês. As necessidades de compreendermos a vida e a morte. É inevitável. Saber o porquê, para que isso. Porque, senão, fica muito sem sentido o que a gente está vivenciando no tempo de hoje, de uma maneira tão esdrúxula, tão enlouquecedora. Homens que roubam o tempo inteiro, que enganam, que se matam por causa de nada. Que vão tirando as pessoas duma condição de evolução, de conseguir uma vida humana. E passam a proporcionar ao nosso planeta uma coisa sub-humana. Ou seja, mentes demoníacas, que levam ao mal. E que acarretam problemas a todo tempo a todos nós, os seres humanos. Temos vivenciado isso. Para o ar, que não pode, já está tudo quebrando, e vai caindo. O mar revolto, as ondas de violência, a terra com abalos. O tempo inteiro tem esse mundo de coisas acontecendo. E a gente, como ser humano, precisa compreender. Interpretar melhor a vida. Ensinam-nos coisas e nem sempre são corretas. Na maioria das vezes, elas estão distorcidas. E, no decorrer do tempo, as pessoas vão distorcendo mesmo para os seus benefícios, e a gente tem uma dificuldade incrível, por exemplo, no tempo de hoje, de acreditar em coisas. Falam uma coisa, já vem distorcida. Aquele lá já distorceu aquele ensino, aí já virou outra coisa. Eu penso que o principal, para nós, é buscar os meios, o caminho que, independente daquilo que lhe foi dito, temos uma sabedoria para discernir coisas na era atual. Isso para mim, eu acho que é a coisa mais importante, Stela.
P/1 – E como é que você se sente em dar esse depoimento aqui para o Ponto de Cultura?
R – Eu me sinto muito feliz e honrado por ter a oportunidade de falar de coisas que me pertencem verdadeiramente. Desde aqueles que me deram uma vida até meus filhos. Ao amor que eu acredito. Eu me sinto honrado, que eu poderia, deveria e poderia falar em muito mais pessoas, mas, às vezes nos falha. Nem sempre a gente lembra tudo. E eu gostaria de dizer o seguinte: eu me converti um homem budista porque consegui, através do budismo do Nam-myoho-renge-kyo e da Soka Gakkai, as respostas aos porquês que eu sempre esperei. Sobre uma visão de por que isso, por que a missão de cada um. Isso é algo muito importante, que eu faço questão de frisar porque, realmente, isso é uma das coisas mais importantes que um ser humano pode chegar a compreender, a conhecer. Esse ensino. Todos nós estamos buscando e buscamos o quê? Uma felicidade, a felicidade. É importante, ela está dentro da gente.
P/1 – Obrigada, Luís Vagner.
R – Obrigado.
P/1 – Foi um prazer conversar com você, mas, antes de acabar...
R – Ainda tem mais um...
P/1 – Tem só uma apresentaçãozinha que eu quero que você faça. Que isso depois vai para o site, aí tem um jeito das pessoas se apresentarem, que é você falar o seu nome, a cidade de nascimento, a profissão e a atividade atual. Numa coisa só. Eu pensei, se você quiser pegar a viola e fazer uma. Se quiser, também não precisa. Eu que estou inventando.
R – Sempre é bom.
P/1 – Já que você a deixou aí do lado, então queria que você falasse seu nome completo, a cidade que você nasceu e sua profissão.
R – [Tocando] Tá.
P/1 – E o que você está fazendo atualmente. “Músico e estou tocando não sei onde.” Acho que vai ficar bonitinho.
R – Está afinadinho.
P/1 – E a gente vai ter a honra de ter uma jam session aqui particular.
R – [Tocando] Botei corda nova. Sabe como é quando coloca corda nova, né?
P/1 – Também, se quiser pôr a viola na jogada, se não quiser... Mas acho que é bacana.
R – Bom, o que eu..?
P/1 – É só falar seu nome completo, a cidade de nascimento, a sua profissão e o que você está fazendo atualmente, profissionalmente [risos].
R – [Tocando] Eu, Luís Vagner Dutra Lopes, nasci em Bagé em 20 de abril de 1948. E eu faço sempre, sempre música. [Toca e canta] Estou aqui / Conversando com a Stela / Numa boa / Para o Museu, no Museu / Da Pessoa / Numa boa. [Toca].
P/1 – [Palmas] Obrigada.Recolher