Centro de Memória do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo
Depoimento de Zoilo de Souza Assis
Entrevistado por Ignez Barretto e Andréa Afonso
São Paulo, 4 de maio de 2001
Realização Museu da Pessoa
Código CRC_HV009
Transcrito por Marcília Ursini
Revisado por Wini Calaça
P/1 - Bo...Continuar leitura
Centro de Memória do Conselho Regional de Contabilidade de São Paulo
Depoimento de Zoilo de Souza Assis
Entrevistado por Ignez Barretto e Andréa Afonso
São Paulo, 4 de maio de 2001
Realização Museu da Pessoa
Código CRC_HV009
Transcrito por Marcília Ursini
Revisado por Wini Calaça
P/1 - Bom, gostaria que o senhor falasse seu nome, local e data de nascimento.
R - Meu nome é Zoilo de Souza Assis, nascido na Vila de Macaia, em Bom Sucesso, que é a cidade, em 4 de março de 1927.
P/1 - O nome do seu pai e da sua mãe?
R - João Batista de Assis e Maria Luiza de Assis.
P/1 - A origem dos dois?
R - Ambos mineiros.
P/1 - O senhor nasceu nessa cidade. E a sua infância, o senhor passou em Bom Sucesso?
R - É, na Vila de Macaia.
P/1 - Vila de Macaia.
R - Vila de Macaia, que é um lugarejo lá com duzentas ou trezentas casas, onde eu nasci. A cidade fica um pouco mais adiante, mas pertence à cidade.
P/1 - Pertence à cidade. Certo.
R - Vivi aí durante alguns seis anos, depois aí mudei para a fazenda e vivi na fazenda até os quatorze anos.
P/1 - A sua primeira escola, qual foi?
R - Foi em Macaia. A minha primeira professora chamava dona Quietinha, era o apelido dela.
P/1 - E com quantos anos o senhor foi para a escola?
R - Eu fui com sete anos.
P/1 - Sete anos? Então o senhor fez o curso primário lá?
R - Por quatro anos. Eram quatro anos o curso primário.
P/2 - E daí, com 14 anos...
R - Exato. Depois de, quatorze anos, com onze anos, eu fui para fazer o vestibulinho, aí eu fui para Lavras, para fazer o preparatório para ingresso no ginásio, porque antigamente tinha - como se faz um preparatório para entrar na faculdade, havia um preparatório de três ou quatro meses, porque a gente não estudava francês, por exemplo, no Grupo, mas tinha francês no exame de ingresso no ginásio.
P/1 - Ah, que interessante.
R - Certo? Então inclusive os verbos regulares, uma noção bem adiantada. Então eu acho que o ensino era muito mais rigoroso, e a nota para passar era no mínimo sete neste vestibular.
P/1 - Para entrar no ginásio?
R - Que era um vestibulinho, né? Então aí eu fiz o vestibulinho, consegui ser aprovado, não sei porque, mas fui. Porque eu não tinha estrutura realmente, tanto que eu fui reprovado no primeiro ano.
P/1 - Sei.
R - Acho que dois fenômenos contribuíram: primeiro a falta de base, e o segundo o menino que saiu da fazenda e foi para a cidade conviver com os tios que tinham a idade mais adiantada então, e passei a ter o trem de vida que eles tinham.
P/1 - Sei.
R - Certo?
P/1 - A sua mudança foi muito grande.
R - Foi muito grande, e acabei não sendo aprovado no primeiro ano. Então na minha vida toda eu tive um
.
P/2 - E o senhor completou o ginásio em Lavras?
R - Fiquei um ano de castigo na fazenda trabalhando duramente, como se fosse um empregado comum, meu pai era muito rigoroso. E aí serviu de lição, porque eu voltei e voltei como um ótimo aluno. E ganhei, praticamente, eu sempre fui o primeiro ou o segundo colocado em todos os cursos que eu fiz depois disso, inclusive na Álvares, eu ganhei todos os prêmios da Álvares.
P/1 - Olha!
R -
Lá em Bragança, eu fui o segundo colocado durante uns quatro anos também.
P/1 - Bom, então aí depois o senhor foi para Lavras, em Lavras o senhor acabou o ginásio?
R - Acabei o ginásio.
P/1 - Aí o senhor resolveu vir para São Paulo?
R - Seria, na verdade o curso não chamava ginásio no meu caso, porque eu optei já, por influência paterna, para o ramo comercial.
P/1 - Ah, isso que eu ia perguntar.
R - Então, chamava propedêutico, que correspondia ao curso técnico de contabilidade hoje, mais ou menos.
P/1 - Chamava o quê? Curso propedêutico?
R - Propedêutico, curso propedêutico, que tinha línguas, tinha inglês, francês. Matérias não técnicas: Inglês, Francês, História Geral, História do Brasil, Geografia, Ciências e, depois, as matérias técnicas: Mecanografia, Estenografia, Contabilidade Básica, Contabilidade Mercantil que chamava. Então já no primeiro ano eu tive o contato.
P/1 - Que era o curso básico.
R - Que era o curso básico. Então o meu contato com Contabilidade foi no primeiro ano, logo depois de sair do Grupo. Então, eu saí daquele curso e aí vim para São Paulo, mas já com a base, tanto que no emprego que eu fui eu já tinha noções de Contabilidade.
P/1 - Isso foi então uma influência paterna, ele que achava que o senhor devia...?
R - Uma influência paterna que era fazendeiro, a influência na verdade é do meu tio, do Banco do Brasil. Então aquele camarada que aparecia lá, trajado citadino, com a unha esmaltada, sim senhora. E o meu pai, naquela dureza na fazenda, falou: "Eu não quero isso para os meus filhos. Eu quero que vocês sejam... E acho que o caminho é ser um dia funcionário do Banco do Brasil, e chegar a diretor, como o meu irmão chegou, né?"
P/1 - E essa escola era uma escola pública?
R - Nesses primeiros quatro anos era pública. Já no segundo, já era paga. Aliás, a única escola pública que eu estudei foram os quatro anos primários. A partir daí, eu fui para o Instituto Gammon, que era uma instituição de caráter religioso, evangélico, como é aqui em São Paulo o Mackenzie, da mesma organização do Mackenzie. Tem o Mackenzie em São Paulo, o Isabela em Minas, no Rio tem não sei o que também. É chamado Instituto Gammon lá em Lavras, que tinha desde o primário até a faculdade de Agronomia. Tinha inclusive, onde a minha mãe estudou, lá como normalista, também havia estudado lá. Essa escola foi fundada aqui em Campinas, os missionários americanos ficaram aqui um ano e aí foram para Lavras e expandiram. Então eu estudei em um colégio maravilhoso, enorme, um espaço físico das escolas americanas que você vê no cinema, entendeu? Com aqueles gramados, com quadra de tênis, três quadras de futebol, quer dizer, era dividido em mínimo, médios e maiores, de acordo com o desenvolvimento fisiológico, né? Então, a prática de esporte era obrigatória nos três níveis. Então foi uma experiência maravilhosa no Gammon, lá em Lavras.
P/1 - E enquanto o senhor fazia esse curso era diurno e o senhor não trabalhava?
R - Era diurno e regime integral, porque está aí outra coisa também, que infelizmente o Brasil regrediu, né? Porque eu estudava em regime integral, tinha aula, começava às 7h10 da manhã, ia até às 11h e qualquer coisa, 12h10 começava outra vez, até às 15h45. 15:45, quem tivesse tirado nota mínimo de sete, tinha direito de praticar o esporte que quisesse em um dos três locais. Se não tivesse tirado sete, tinha que ir em uma aula de reforço com estudantes de última série, que era o monitor. Aliás, eu cheguei a ser monitor lá dos últimos anos, né?
P/1 - Sei.
R - Então era um colégio muito rigoroso. Eu vim com uma base fantástica, tanto que eu entrei na Álvares Penteado e, quando eu encontrei um colega na rua, quando tinha terminado o primeiro ano, ele falou: "Você ganhou o primeiro lugar?" Eu não acreditei,
falei: "Puxa, como?" Porque eu vim com uma base, aí sim, eu adquiri uma base, no Gammon. Aquilo que eu não tinha lá no Grupo eu adquiri, e vim com uma base fantástica, inclusive de leitura, porque era obrigatório, eu li quase todos os autores portugueses nesse período. Quer dizer, era um ginásio maravilhoso.
P/1 - E foram quatro anos?
R - Quatro anos.
P/1 - E quando o senhor terminou, o senhor resolveu vir para São Paulo?
R - Vim para São Paulo, por acaso. Por acaso.
P/1 - O senhor falou que o senhor queria fazer curso de aviação?
R - Na realidade, foi o seguinte: alguns amigos da mesma idade sabiam que eu era bom aluno, já era um bom aluno lá em Lavras, e me deram um programa para ingresso nessa escola técnica de aviação que tinha sido recém criada aqui e que os professores eram praticamente todos americanos. O pessoal chamava os daqui de "Coca Cola", porque a Coca Cola foi introduzida em São Paulo naquela época e os americanos já estavam viciados, então todos os estudantes também tomavam Coca Cola, então eles tinham o apelido de Coca Cola. Essa escola depois mudou-se para uma cidade do interior de São Paulo aí, ainda existe lá, não sei onde está. Mas eles me mostraram o programa e disseram: "Dá uma lida no programa, você sabe o que está escrito aqui?" Eu falei: "Sei." "Você não quer me dar umas aulas?" Uns quatro ou cinco colegas, amigos. Eu falei: "Eu dou." Então eu dei uns dois meses de aulas para eles, e aí eles disseram: "Por que você também não vai fazer conosco, ingressar na escola? Porque se nós não passarmos, eles nos dão a passagem de volta." E era verdadeiro isto. Aí eu falei com papai: "Escuta, na pior das hipóteses eu vou conhecer São Paulo, né?" E vim, mas vim para ficar. Nesse ínterim, um tio, que tinha ingressado na aeronáutica e chegou a coronel, eu liguei para ele, aí por parte de mãe, e perguntei: "Escuta, eu vou para aviação. O que é que eu devo fazer?" Ele falou: "Olha, não fica na aviação porque eu ganho mal." Era coronel, mas ganhava um salário… "Você faça uma especialização, porque vai haver um grande desenvolvimento da aviação brasileira." Naquele tempo não tinha aviação, praticamente, particular e civil, tinha a Varig, que estava começando. "Então você vai fazer Meteorologia Aeronáutica, e você vai ganhar rios de dinheiro com isto." Me encantei com isto. Aí venho, faço o exame na escola, sou aprovado, o único da turma, certo? Sou aprovado. E na hora da escolha, eu falei... "O que o senhor quer ser?", o coronel perguntou. Eu falei: "Eu quero ser meteorologista." Ele falou: "Nós só temos paraquedas como especialização. Os outros cargos já estão preenchidos." Eu falei: "Então eu estou me demitindo, eu estou pedindo baixa e vou embora." E desisti da escola. Então na realidade eu passei, mas não cursei.
P/1 - E aí o senhor resolveu...?
R - Aí, como eu tinha trazido uma indicação de uma pessoa que tinha uma pensão aqui em São Paulo, e ele, o irmão dele era uma figura proeminente na minha cidade, eu fui procurá-lo. E eu tinha trazido um pouco de dinheiro, que papai tinha me dado. Aí, eu liguei para casa e disse: "Escuta, eu vou ficar aqui uns dias para conhecer a cidade", eu tinha garantida a passagem de volta, "e vou ficar aqui na pensão do seu Galileu." E esse seu Galileu era uma figura tão simpática quanto era o irmão dele que eu conhecia lá em Lavras, né? E nós nos tornamos, apesar da diferença de idade muito grande, amigos. Ele nem queria que eu saísse na cidade à noite porque queria ficar batendo papo comigo e tal. E aí a família da mulher dele tinha a drogaria chamada Guimarães, que era a segunda maior drogaria de São Paulo. A primeira era a... ainda existe aí, agora parece que foi vendida para um banco. Mas no atacado, digamos, para vender para as farmácias, essa era a mais importante. Falou: "Por que você não fica aqui em São Paulo?" Ah, uma coisa curiosa: o último ano em que eu estudei lá em Lavras, eu disputei o campeonato de futebol e o meu time ganhou o primeiro. Em dezesseis times disputando, o meu time foi o vencedor. Só que a entrega de medalhas era no ano seguinte. E os outros colegas que participavam comigo, inclusive o Sérgio de Borges Sobrinho, de Belo Horizonte, todos eles estavam preocupados porque eles não voltariam, a maioria não voltaria para Lavras. E eu era o único que voltaria para continuar fazendo a Contabilidade lá, que tinha uma bela escola, em continuação. Chamava Curso de Perito Contadores. Bom, com esse aspecto, eu acabei sendo o único que não voltou, os demais foram. Eu vim para São Paulo e acabei não voltando a Lavras. Bom, então, o senhor Galileu falou: "Por que você não trabalha? Aqui tem uma das melhores escolas do Brasil de Contabilidade". Eu fui ler a história dela, fiquei encantado, a Álvares Penteado formava as pessoas mais notáveis da República, na época. E eu falei: "Puxa, vida!" Ele falou: "Você vai estudar à noite e vai trabalhar durante o dia. Eu vou te arranjar um emprego lá com os meus cunhados." Eu falei: "Mas eu nunca trabalhei." "Não tem importância. Você sabe escrever à máquina?" Eu falei: "Sei." "Você sabe não sei o quê?" "Sei." "Então está empregado." Fui lá e fiquei dois meses como auxiliar lá, sem registro. E eles acabaram me registrando, e eu fiquei lá dois anos, até que eu fui para o INSS depois, fiz o concurso e fui para lá. E aí eu fui fazer a Álvares Penteado, à noite. Só tinha livre o sábado à tarde, porque a gente trabalhava até meio dia no sábado. Então eu estudava no sábado, ia ao cinema uma vez por semana, naquele tempo a vida era bem mais difícil, e também se ganhava mal. E para mim porque não havia tempo para estudar. Então o que a gente estudava? Formamos um grupo e a gente estudava no domingo de manhã. E esse grupo acabou formando aqui em São Paulo uma entidade que tem até hoje aqui, chama Centro de Oratória Rui Barbosa. Eu sou um dos fundadores e fui o primeiro tesoureiro desse Centro Acadêmico. Quer dizer, aquele grupo de estudo acabou se reunindo não só para estudar a matéria específica, mas depois coisa de cultura geral. E aí com outros acadêmicos de outras escolas. E formamos esse Centro Acadêmico, se chama Centro de Oratória Rui Barbosa, né? Durante anos eu frequentei aquilo, até que mudei para a cidade. Então completei, em 1950, a Álvares Penteado. Fiz o concurso do Banco do Brasil...
P/1 - E a Escola Álvares Penteado, ela era uma boa escola?
R - Maravilhosa, eu tive a primeira aula magna com o famoso Horácio Berlinck. Aliás foi a última aula magna, porque logo em seguida ele faleceu. Então eu conheci pessoalmente essa figura carismática, que era realmente fantástica do diretor geral, né?
P/1 - Primeiro diretor.
R - Primeiro diretor da Álvares Penteado, que era uma fundação sem fins lucrativos. Eu paguei a duras penas o primeiro ano e com esta notícia de que eu tinha ganho o primeiro lugar, então, o que eu tive? Uma liberação do segundo ano, e assim sucessivamente. Ganhei todos os anos, depois eu não paguei mais.
P/2 - Uma bolsa?
R - A bolsa integral, de 100%, eu recebi. E ao final, eu recebi um prêmio, eu não sei se tinha dinheiro também, agora, o Epitácio Pessoa, ganhei uma coleção de livros, diplomas e medalhas. E acho que um valor em dinheiro também, correspondente à anuidade. Como eu tinha pago o primeiro ano, acho que eu tive um valor, que seria a anuidade que eu pagaria no último ano de volta, sabe?
P/1 - Ah, que bom!
R - Foi uma beleza, uma ajuda financeira. E o prestígio, porque você vê como a coisa acontece, né? Com os primeiros colocados, a Álvares Penteado fazia uma reportagem bem grande no Estadão, que era e ainda é o jornal principal de São Paulo, né? Não sei, mas a Folha praticamente era inexistente, a Folha era um jornal de segunda categoria. O Estadão era o grande jornal, o nacional. E ela publica essa notícia. Quando eu chego em Santo André... Ah, bom! No tempo de estudante eu abri uma conta no Crédito Real de Minas Gerais aqui em São Paulo, porque o meu pai era amigo do gerente lá em Lavras e tal. Então eu fiz a conta aqui. Quando eu fui para Santo André, transferi a conta, e quando eu chego lá no banco, o contador geral levantou e falou: "O senhor é o Zoilo de Souza Assis?" Eu falei: "Isto mesmo." "Eu sou lá de Lavras." Eu falei: "Não diga?" "E aí eu perdi o contato com você agora, outro dia eu li no Estado de São Paulo que você foi o primeiro colocado e tal." Então você vê que coisa interessante. O Estado então publicou uma reportagem e aí muita gente... isso ajudou também, do ponto de vista inclusive profissional, né? Porque você sair da Álvares Penteado e sair em primeiro lugar era como sair hoje da Getúlio Vargas em primeiro lugar. Está empregado com o melhor salário que quiser, né?
P/1 - Bom, aí nesse momento você saiu da Álvares Penteado...?
R - Saí da Álvares Penteado, eu estava aí já trabalhando no INSS, antigamente chamava IAPI. Eram quatro instituições diferentes para cada profissão. Para os industriários, para a indústria, que era o mais importante na época, era o IAPI, Instituto de Aposentadoria e Pensões Industriais que chamava. Então trabalhei cerca de dois anos e aí prestei concurso no Banco do Brasil. E trabalhei durante três meses, e recebi inclusive o décimo terceiro integral, que já tinha naquele tempo. E saí, então, praticamente em dezembro de 1951.
P/1 - Quando o senhor se formou?
R - Em 1950.
P/1 - Em 1950.
R - Em 1951 saí do banco...
P/1 - Aí o senhor já estava constituindo uma empresa própria?
R - Exatamente, já tinha um escritório de Contabilidade com um sócio, está certo?
P/1 - E o que fazia o seu escritório naquela época?
R - A Contabilidade?
P/1 - É.
R - Bom, eu não era formado ainda, né? Quer dizer, eu comecei a trabalhar nesse escritório antes de me formar. Quer dizer, eu trabalhava meio dia no INSS, que lá a vantagem do INSS, por isso que eu também evolui bem na faculdade, porque eu tinha meio dia para estudar, eu só trabalhava de meio-dia até às seis da tarde. Então a manhã toda eu estava livre para estudar, né? Aí eu comecei a trabalhar um pouco de manhã com esse meu amigo que já tinha um escritório modesto. Aí nós reunimos as forças e montamos um escritório, alugamos duas salas no edifício Marrocos, que tinha sido inaugurado, que é uma maravilha de edifício. Então alguém que tinha um cartão com escritório no Marrocos você já viu, parecia o nababo. E conseguimos uma série de clientes aí, especialmente na área de farmácias, os meus primeiros clientes foram na área de farmácia.
P/1 - E aí o senhor fazia o quê, o livro?
R - Aí eu fazia já a escrituração fiscal, eu já tinha uma boa noção de contabilidade, fazia também já o diário datilografado, né? E só não podia assinar porque eu não estava formado, não tinha registro, mas o responsável era o outro colega.
P/1 - Que já era formado?
R - Já era formado. Então era um pouco mais velho inclusive, que também trabalhava no INSS, depois prestou concurso para o imposto de renda. Eu não pude prestar porque eu não estava formado, e ele passou e foi, ela foi a razão de eu ir para Santo André. Porque a minha sorte é essa, ele foi nomeado para criar praticamente a Delegacia de Santo André. E lá ele sentiu que o nível intelectual das pessoas era baixo, dos profissionais. E ele, com o nível que ele sabia que eu tinha, se eu fosse para Santo André eu seria bem sucedido. E felizmente aconteceu mesmo isto. Então, logo em seguida, eu comprei um escritório antigo, mas com o nível muito fraquinho e tal, e que as despesas eram praticamente iguais à receita. Então eu, que já ganhava uma fortuna aqui no Banco do Brasil, abandonar para ir trabalhar no escritório que a receita era igual à despesa, foi muita coragem. Mas rapidamente eu consegui aumentar o número de clientes e passei a ter uma remuneração razoável.
P/1 - E nesse momento o senhor também resolveu fazer a Getúlio Vargas?
R - A Getúlio Vargas foi bem depois, né?
P/1 - Foi bem depois?
R - Eu fui para Santo André em 1952. Depois lá para a década de 1960 que eu fui para a Getúlio e terminei em 1964. Então por que eu fiz Administração? Porque era uma complementação da Contabilidade. Quer dizer, muitas cadeiras que eu não tinha visto na Contabilidade eu fui ver na Administração, como fui ver depois, quando eu fiz a Faculdade de Direito. Eu fui liberado de várias cadeiras também, porque eu já tinha conhecimento, ou por ter feito a Getúlio Vargas, tinha tido algumas noções também de Direito Comercial, Direito Administrativo, já tinha visto uma série de coisas. Então a Faculdade de Direito para mim foi um passeio, eu já tinha acumulado a experiência profissional de muitos anos e duas faculdades muito boas. Então eu fui, eu perdi um ano lá de primeiro lugar por um cara que veio no último ano, que tirou o meu encanto, ganhou o primeiro lugar, porque era um cara que veio de um Seminário, uma faculdade de padre, que estudava vinte e quatro horas.
P/1 - Sei.
R - O cara sabia tudo de cor.
P/1 - Sei.
R - Então eu ganhei os três primeiros, ele ganhou o último. Então eu não pude fechar, como eu fechei na Álvares.
P/2 - E na Getúlio também, na parte de Contabilidade, o senhor dispensou alguma matéria, não?
R - Aí, veja, eu praticamente ajudei, porque havia oito bolsistas, não, doze bolsistas internacionais. E aí o meu interesse pelo espanhol, porque para ensiná-los a Contabilidade,
que eu ajudei muito esse pessoal, eu aprendi um pouco de espanhol com eles. Depois eu fui estudar para completar e depois, mais recentemente, eu integrei o Comitê do Mercosul Universitário, porque aí eu era o único brasileiro que sabia redigir a ata em espanhol. Que muita gente fala ou pensa que fala espanhol, mas não escreve, porque as regras de espanhol são tão complicadas quanto em português, os verbos regulares e tal. Mas aí o interesse do espanhol, porque nós tínhamos então argentinos, tinha os chilenos, uruguaios, da Costa Rica, da América Central, mais um outro país que eu não me lembro. Eu sei que tinham doze bolsistas internacionais. E era regime integral, você entrava às sete horas da manhã e saía às cinco da tarde.
P/1 - Nossa!
R - Só tinha uma hora para o almoço, que a gente almoçava ali. Aliás, eu peguei a mudança da faculdade aqui da Martins Fontes lá para onde ela está hoje, que é na Nove de Julho. Então o primeiro ano de aula tinha barulho de gente batendo martelo ainda, certo? No último ano, em 1964 lá, que ela deve ter ido para lá, em 1964. A gente ia almoçar por ali e aí aconteceu outro fenômeno - eu pesava cinquenta quilos - como a gente almoçava... e tinha parado de beber, porque eu tive um problema de fígado, fiquei não sei quantos anos sem beber, depois o médico me liberou, eu comecei a tomar uma caracu no almoço. E a gente almoçava muito bem, porque os restaurantes em volta, ali na Paulista, eram uma maravilha. E eu comecei a tomar uma caracu, e engordei quatorze quilos no último ano da faculdade, passei a ter praticamente o peso que eu tenho hoje, sessenta e seis, aumentei dois quilos depois de 1964 para cá. Perdi todas as camisas e tal. Então também mudei de peso também.
P/1 - Bom, eu agora vou entrar nas perguntas um pouco mais específicas.
R - Certo.
P/1 - Como o senhor acha que a Contabilidade se inseriu no processo econômico em São Paulo, ou acompanhou, a partir de 1950? Quer dizer, como é que foi essa evolução da Contabilidade?
R - Bom, então veja, na verdade a Contabilidade, eu diria que até nessa data ou até um pouquinho antes disto, ela não era a bússola que é hoje para a administração. Por quê? Ela era um pouco tardia, certo? Porque você não tinha como abreviar os lançamentos. Os lançamentos contábeis eram datilografados. Então quando você terminava de fazer o mês anterior, os fatos já eram outros, quer dizer, não era... depois, com o desenvolvimento do sistema mecanizado da Contabilidade, que ela pode levantar um balancete diário, se você quiser, ela então aí realmente ela explodiu, e o país explodiu. Na verdade o país explodiu foi da década de 1950 para cá, que ele se industrializou etc. Então a Contabilidade teve que acompanhar esse desenvolvimento do país para poder ser o instrumento de administração que é, para tomada de decisões, está certo? Antes, eu diria que no comércio rudimentar, o comerciante tinha mais ou menos noção do que estava ganhando ou perdendo, porque ele era uma pessoa que tinha sobre a sua vista o comércio, o seu estoque. Então tirava uma quantidade daqui, o resto é lucro. Ele já sabia mais ou menos como é que fazia o balanço, o balanço de mercadoria era feito uma vez por ano, por exigência legal, pura e simplesmente, porque o cidadão conhecia.
P/1 - Era uma coisa intuitiva?
R - Intuitiva, né? E ainda também não tinha a Getúlio Vargas, a Getúlio Vargas é mais Administração, não tinha o curso de Administração Empresarial. Então não havia essa especialização. O contador era muito mais uma pessoa que dava informações já depois dos fatos ocorridos, eu diria.
P/1 - Durante bastante tempo foi assim?
R - Durante muito tempo.
P/1 - Até...?
R - Até que houve então a mecanização.
P/1 - Que é década de 1950?
R - De 1950 para cá, está certo? Porque aí você teve, então, uma agilização, digamos assim, do processo de informação. E o contador então, claro, ele cresceu juntamente de importância, na medida que ele dava informações que eram, digamos, ele passou a ser parceiro do dirigente, né? Antes o cidadão procurava ele só para saber quanto ele ia pagar de imposto, está certo? A partir daí ele passou a ser procurado também para saber se posso fazer tal investimento, se é aconselhável fazer esse investimento, qual é o retorno desse investimento. Quer dizer, então você veja que o contador em si, ele ampliou muito a sua importância e ele passou a ser um elemento chave dentro da administração. O que não aconteceu, aliás, com o administrador, que ficou meio perdido. Eu sou administrador, posso dizer sem ofensa. Mas na verdade o contador tem uma posição muito mais nítida dentro da empresa do que o administrador. O administrador hoje, a maioria deles que estão exitosos, na verdade eles foram ser administrador de pessoal, na área de recursos humanos. Aí sim eles encontraram, digamos, um veio importantíssimo, né? E desenvolveu o RH.
[PAUSA]
P/1 - E com relação à Contabilidade manual? Como foi esse processo para o senhor?
R - Os diários, você fazia os registros dos lançamentos contábeis em um livro, manualmente. Deste livro, você transpunha para um outro livro chamado Razão, também manualmente. Eu pratiquei isso durante algum tempo. Depois eu comprei uma máquina chamada Sistema Ruf, em que você tinha o diário datilografado e o diário era fixo no rolo da máquina. E você inseria... aquele outro livro auxiliar, chamado Razão transformou-se em ficha e você inseria a ficha, datilografava em cima da ficha com um carbono copiativo, que saía no Diário. Então aí já eliminamos uma operação. Primeiro que deixou de ser manual, eu fiz isso no meu escritório, em Santo André, e foi tal essa revolução que uma empresa muito importante na cidade, industrial, grande, foi lá no meu escritório para ver como é que era, para eles fazerem na indústria também. Aí o cara vendeu os equipamentos também depois para essa indústria. Bom, então se fazia só a somatória, lateralmente, em uma outra máquina de somar. Quando você puxava um saldo, adicionava um crédito, deduzia um débito, você tinha que fazer numa máquina em separada para pôr o resultado. O segundo avanço foi acoplar essa própria máquina Ruf, que o representante... era fabricado no exterior isso, o representante era aqui na Consolação, no começo da Consolação, em frente à biblioteca. Eu frequentei isso também muito. Esta máquina, ele acoplou a ela, mecanicamente, uma máquina de somar, ou seja, você colhia o saldo anterior, adicionava o valor de lançamento débito ou crédito e a máquina dava o subtotal para você, e você só tinha o valor ali, para só transferir. Quer dizer, você não precisava mais digitar, essa expressão não existia na época, à máquina, quer dizer, ela fazia isso manualmente. O segundo passo. Aí foi uma máquina que dispensou essa máquina, porque dentro da própria máquina tinha os somadores. A Caixa Econômica Federal importou da Alemanha Oriental um determinado número de equipamentos. O Maqueline, o famoso Maqueline, da empresa, eu não me lembro o nome da empresa agora, ele faleceu recentemente aí, deixou... ele importou, e o vendedor que tinha vendido a Ruf falou: "Olha, o Maqueline está importando para a Caixa Econômica Federal um equipamento e me trouxe o prospecto." Eu falei: "Eu quero três máquinas dessa. Eu quero duas com cinco somadores para Contabilidade e uma com o máximo de somadores"... o máximo era quinze somadores... "para eu fazer a folha de pagamento". Então eu também fui a primeira empresa lá na região que teve este tipo de equipamento, que foi uma revolução. E daí já pulamos logo para o computador. O próximo passo foi o computador.
P/1 - Sei. Ainda eram aqueles monstros, assim? (riso)
R - Aqueles monstros. Bom, quando eu vi aqueles monstros, o que eu fiz? Primeiro, eu contratei um bureau aqui em São Paulo, certo? Terceirizei e mantive durante algum tempo o sistema tradicional, porque eu não estava muito confiado, não sabia se ia dar certo, e como eu vi que deu, aí eu fui ver que tipo de equipamento eu deveria comprar. Mas eu já tinha uma experiência, porque o meu pessoal já estava sendo treinado. Aí eu aluguei um outro bureau, chamado Block Time, quer dizer, ele me alugava só o equipamento e eu operava. Então eu fiz isso durante um ano. E aí eu tive noção de equipamento, o que eu deveria comprar de equipamento, e realmente perdia muito porque cometeu desatinos, comprou computadores monumentais aí que não precisava, e nem era multimídia. Quer dizer, eu tive essa experiência toda, então quando eu informatizei o meu escritório eu sabia o que estava sendo feito, porque estava sendo feito. Então, realmente, aí é o atual... que o que é que mudou? A gente tinha inicialmente um centro de processamento onde tinha as pessoas especializadas e só ali tinha os computadores. Então os demais municiavam, digamos, aquele setor, e recebiam depois o trabalho. O segundo passo foi o PC, um equipamento menor, que hoje cada funcionário meu lá no escritório tem um computador na mesa em rede, né? Ele tem as informações todas. Então a última coisa é esta. A segunda, que nós estamos examinando, é ter os clientes todos com computador, e ele não mais mandar documento para nós, certo? Então nós vamos entrar online com ele e obter, no computador que ele tiver, que ele vai preparar algum tipo de lançamento, e aí vai cortar muito emprego também, infelizmente. Ele vai preparar uma série de coisas que hoje ele manda para eu fazer no meu escritório, que eu não quero fazer, eu quero fazer a parte mais nobre. Então ele prepara lá, sob a minha supervisão, me encaminha isso online, eu processo e devolvo a informação processada para ele. Que este é o avanço que ainda não está disponível, porque o sistema de transmissão de dado ainda é um pouco precário no Brasil, cai a linha, e não é muito confiável. Então quando tiver a banda larga e tal funcionando, como já tem na Europa, o próximo passo será, sem dúvida, este. Porque no futuro, com as máquinas... a Universidade de Minas Gerais desenvolveu agora uma máquina que vai custar 500 reais. Então isto vai ser a revolução no Brasil do computador, todo mundo vai ter um computador em casa, e toda escola vai ter computador. E o BNDES vai financiar isto, quem quiser fabricar sob a licença da Universidade de Minas Gerais. Vai cair para 500 reais o computador, certo? Então aí, a hora que eu levar até para a quitanda os meus clientes, o micro empresário, eu posso levar para ele, porque vai ser financiado. E isto ele vai pagar uma prestação de 50 reais por mês, a idéia é esta. Então você veja que aí eu posso colocar online também comigo. Aí vai ser uma revolução, né, também. E essa revolução vai produzir uma coisa que a fiscalização brasileira não conseguiu: vai reduzir a sonegação.
P/2 - Ah, isso é muito bom.
R - Porque na medida que você tiver que passar as informações...
P/1 - Informatizar tudo.
R - Informatizar tudo, você vai ficar também um pouco preso na máquina. Então os impostos tenderão a cair as alíquotas, porque hoje nem todos pagam devidamente os impostos devidos. E por isso aqueles que não podem fugir pagam alíquota alta, e tão alta como nos outros países todos já, hoje, no mundo inteiro.
P/1 - Bom, quais são os fatores mais importantes que levaram a transformações ou rupturas na sistematização contábil, ao longo de 1900 para cá?
R - Bom, eu não sou tão antigo. Eu diria até 1950, com a industrialização do Brasil, que o Brasil até 1950 era um país agrícola com a sua população... São Paulo tinha menos de 1 milhão de habitantes, era uma população rural, rudimentar, e analfabeta, certo? Então, com o pós-Guerra, a Guerra terminou em 1945, que o Brasil teve que fazer um esforço de industrialização e, aí sim, você não podia manter o sistema de informação rudimentar que havia no sistema dinâmico que é a indústria, está certo? E depois o serviço, porque aí os bancos também, no Brasil, tiveram uma influência muito grande também nisto, no desenvolvimento também da tecnologia de informação. Que o banco precisa da informação no dia, não pode ser a informação para o dia seguinte. Você tem que chegar lá e saber o seu saldo agora. Não quero saber se eles não processaram o débito e o crédito, eu quero a minha informação precisa agora, eu quero tirar o meu dinheiro. Então isso obrigou também a um grande deslanche no sistema de informação, e a Contabilidade acompanhou. Então eu acho que foi a industrialização, o próprio desenvolvimento econômico do Brasil, que obrigou, talvez. Se nós mantivéssemos, quem sabe, o nosso sistema agrário, rudimentar, provavelmente a nossa Contabilidade estaria naquele sistema ainda informativo, que era muito útil, porque ele era pós-evento. Até porque também o ritmo dos negócios era muito mais lento.
P/2 - Certo.
R - Isso é outra coisa que as pessoas não conseguem compreender, como é que um negócio pode ser mais ou menos rápido. Hoje as coisas fluem de uma forma velocíssima, e por isso também o estresse em muita gente, tal, porque não consegue se adaptar. Isto era uma coisa lenta, quer dizer, o tempo passava, por incrível que pareça, a impressão que se tinha é que o tempo passava devagar. O ano tinha realmente 365 dias. Agora parece que tem a metade. Você acabou de fazer uma coisa, já está no fim do ano. A gente comenta isto, né? "Como este ano voou. Já é Natal?" É a loucura da vida, que esse dinamismo empresarial é que acarretou isso, né? Não sei se para o bem ou para o mal, também não quero...
P/2 - O senhor teve algum contato, talvez no início da carreira, com alguma empresa estrangeira que veio para cá, as indústrias ou os escritórios contábeis de algumas multinacionais, esse tipo de coisa?
R - Não, com multinacional de contabilidade não. Eu tive contato com multinacional empresa, onde inclusive eu funcionei como... porque uma das funções que eu tive na minha vida também foi de perito judicial. Por exemplo, quando foi criada a Comarca de Santo André, eu fui o principal perito durante alguns anos até que se criasse... Porque também não era tão bem remunerado como eu já estava sendo. Mas isso me valeu, porque eu tive um contato com as empresas multinacionais. E pude examinar dentro da empresa, quer dizer, eu fui lá com uma ordem judicial para examinar documentos. E aí eu pude ver muita coisa.
P/2 - A maneira deles trabalharem era diferente?
R - Exato, exato. Porque eles já tinham uma tecnologia um pouco mais avançada, né? A departamentalização, por exemplo, que eu adquiri no escritório mais tarde, eu aprendi na Rhodia, no grupo Rhodia lá em Santo André. Eu fiz Pirelli, Firestone, Internacional Harvard, a Rhodia, que é onde eu fiquei mais tempo, a Swift, que também era uma grande multinacional. Enfim, eu tive esse contato e aí fiz amizade também com os contadores das empresas, que eram pessoas altissimamente bem remuneradas. E aí a troca.
P/2 - E como era o treinamento dessas pessoas? Era feito no Brasil? Como é que era isso?
R - O treinamento? Não, tinha duas coisas. Primeiro, que eles traziam técnicos do exterior, que treinavam. Aliás, aqui na própria Getúlio Vargas, quando eu cheguei lá, já não era mais assim, mas na Getúlio Vargas durante muitos anos todos os professores eram americanos. Que vieram, impuseram o sistema, treinaram os brasileiros e foram embora. Hoje a Rhodia, todos os cargos de chefia, no tempo que eu fiz essas análises, eram ainda franceses. E aí também, como eu já falava razoavelmente o francês, tive essa outra facilidade lá, né? E alguma simpatia até, talvez porque você chega falando a língua do cidadão.
P/1 - Ah, ele fica mais contente.
R - A Rhodia, então, ela tinha um sistema de treinamento interno também muito bom, mas ainda, digamos, os cargos de importância eram todos ocupados por estrangeiros, por franceses. Eu me lembro até o primeiro brasileiro que chegou a um cargo de comando, que é um grande amigo meu, o Reinaldo Borges, e foi uma festa, o primeiro brasileiro. Hoje não tem nenhum francês na Rhodia, nem um diretor. O Mosa, que tornou-se diretor internacional, aliás compôs o board
internacional, trabalhou em Santo André, e eu o conheci pessoalmente lá na Rhodia, que hoje é essa figura nacional aí de administração. Então, se eu tive alguma influência, digamos? Tive, evidente que tive, nesse contato eu acabei absorvendo algum tipo de conhecimento, mas não com o escritório de Auditoria.
P/1 - Sei, é com o conhecimento da empresa.
R - Com a atuação, porque nessa altura eu nunca tinha atuado como auditor. Quer dizer, a minha experiência primeira foi como executor de contabilidade, a segunda foi como perito contábil de juiz, eu era nomeado, todas as perícias de juiz, falências, concordatas, tudo isso, só se eu não aceitasse que o juiz nomeasse outra coisa, se não era eu que fazia. Então durante alguns dois anos eu fiz isso e adquiri uma vastíssima experiência. E quem faz perícia depois faz puditoria. Então aí me registrei no Banco Central e pude fazer Auditoria.
P/1 - Auditoria.
R - Que antigamente não tinha CVM, era o Banco Central que você se registrava lá, auditor independente. E o próprio Conselho tinha um registro à parte, que depois perceberam que era uma besteira, que o contador é por sua natureza um auditor. Ele pode não ter os conhecimentos práticos, mas teóricos tem. Então o cadastro, que eu pertencia a esse cadastro do Conselho, foi eliminado, separado. É um cadastro só. Mas tinha o registro depois no Banco Central, que era no Rio de Janeiro, onde eu fui pessoalmente até. E depois acabou...
P/1 - Hoje é registrado no Banco Central?
R - Não, agora não mais, porque criaram a CVM, Comissão de Valores.
P/1 - Sei.
R - Então aquilo que o Banco Central fazia passou para a CVM.
P/1 - CVM. Então o auditor hoje, ele tem que se cadastrar?
R - Tem que se registrar. É um cadastro, como faz no Conselho, se ele quiser auditar uma empresa de capital aberto, porque tem duas categorias. Nas empresas de capital fechado, ele pode atuar desde que ele seja contador com registro no Conselho. Quer dizer, o registro do Conselho é prévio, e outro é uma segunda habilitação para fazer Auditoria de empresas de capital aberto.
P/1 - E o senhor se lembra de algum fato político ou um momento político e que as coisas aconteceram, algum governo que fez mais legislações para a profissão, quer dizer, quais foram os momentos mais importantes para a profissão?
R - Bom, sem dúvida nenhuma o que eu vou dizer agora muita gente contesta, mas eu acho que o grande momento da história brasileira de desenvolvimento foi na revolução militar. Quer dizer, tirando essa parte dos constrangimentos, que o nosso, aliás, comparativamente aos constrangimentos de iguais movimentos na América Latina, o nosso foi uma brincadeira, vê o que aconteceu no Uruguai, no Chile, na Argentina, nem pensar aqui no Brasil. Você conta nos dedos as pessoas que sofreram algum tipo de punição, que eram contestadores, eram de ideologia diferente. E é justamente, a revolução foi feita... Eu, que participei ativamente desse movimento, acho que o que nós fizemos foi uma contrarrevolução, que a revolução era comunista, praticada pelo João Goulart e pelo Brizola. A quebra da hierarquia militar, enfim, todo o movimento, eu acho que houve uma reação, eu fiz discurso públicos a favor de uma intervenção militar. Eu falei, em um discurso que eu me lembro que eu fiz perante o diretor do imposto de renda, aqui em um almoço em Santo André, eu disse: "Eu não tenho certeza se eu vou acordar amanhã com a bandeira comunista pendurada, da foice e do martelo." Quer dizer, este era o movimento, certo? E aí o Brasil, porque estava um pouco na moda essa questão. E os militares brasileiros foram totalmente diferentes dos outros militares, porque os militares brasileiros eram competentes do ponto de vista de administração. E fizeram revolução no sistema tributário. O que nós temos ainda de bom no sistema tributário foi feito na revolução. Agora, o que é que eles fizeram? Pegaram as melhores cabeças dos professores da época e encomendou para cada um que fizesse um estudo. Não foi nada feito... Como eu te disse: "Não, isso foi lá imposto." Coisíssima nenhuma. Quando eu fiz a perícia na Swift, eu conheci o chefe de Departamento Jurídico dele, em função dele eu dei palpite em algumas coisas no imposto de ISS, com o autor que era de São Paulo, entendeu? Na prática, eu falei: "Isso não pode funcionar assim." Então tive acesso e depois ajudei na elaboração da Lei das Sociedades Anônimas também, porque o Cruz, lá do Rio de Janeiro, me convidou para ser o segundo assessor dos dois advogados que fizeram.
P/1 - Essa Lei das Sociedades Anônimas é a de 1976?
R - Essa é a de 1976, exatamente, que já é depois, bem depois. Mas nesse início aí, lá em 1966, por aí, quando se estudava reforma tributária, que foi uma revolução.
P/1 - Revolução em que sentido? O senhor pode dar algum exemplo, como é que era antes e depois?
R - Em 1964, não, 1967, eu fui aos Estados Unidos em um Congresso, e eu voltei disposto a mudar de profissão. Ah, bom, antes disso! A Internacional Harvard era uma empresa que montava caminhões lá em Santo André. E ela desativou, ela montava um caminhão fantástico, mas por qualquer razão ela resolveu desativar. E estava em processo de encerramento da empresa. Muito bem, o diretor financeiro dela era brasileiro e membro do clube que eu frequentava, que era o Lions Clube de Santo André. E no jantar ele me contou que ia pagar não sei quanto de imposto no fechamento. E ele me deu as coordenadas, eu dei para ele, falei: "Escuta, por que você não faz assim, e não precisa pagar nenhum imposto, dentro da lei?" O cara abriu os olhos desse tamanho.
P/1 - Ficou feliz.
R - O Paulo Meirelles: "Puxa, você podia ir lá na empresa conversar sobre isso?" "Posso."
Então ele me convidou para um almoço, e aí tinha dois auditores da Deloitte Plender, que era uma Auditoria Internacional que tinha aqui em São Paulo. Os caras: "Como é que é essa história?" Eu coloquei, eles foram estudar e viram que podia fazer. Aí queriam me pagar. Eu falei: "Não, mas espera aí, vocês já me deram um almoço, eu dei esse palpite em um jantar para um amigo, não tem custo isto." "Não, então você vai visitar o nosso escritório à nossa custa lá em Chicago." A sede é Chicago e, como eu estava pretendendo ir em um Congresso de Cinquentenário dos Lions, eu falei: "Puxa vida, então eu vou aceitar em tal data." E eles me deram. De fato eu fui à convite e fui recebido pelo presidente internacional da Deloitte lá em Chicago, fiquei uns quinze minutos conversando com ele. O meu inglês aí também ajudou. Aí conheci e ele me possibilitou acompanhar os auditores em algumas empresas lá em Chicago. E uma delas era uma empresa de um brasileiro, no quarto andar de um prédio, um rapaz de Curitiba. Ele tinha uma firma que tinha dezesseis pessoas trabalhando, ele fabricava, consertava e vendia jóias. Eu falei: "Escuta, qual é o valor do seu estoque?" Nós estávamos em julho. O exercício financeiro lá nos Estados Unidos fecha no dia 30 de junho. Eu falei: "Agora você deve ter feito o levantamento do Inventário. Qual é o valor do seu estoque? Ele falou: "Mas que inventário? A gente não faz isto aqui." Eu falei: "Você não tem um levantamento do seu estoque? Tem que escriturar no livro." "Que livro?" Não tinha livro também. Eu falei: "Mas e a escrita fiscal?" Não tinha escrita fiscal. Bom, aí eu fui ver o negócio de perto, como é que era pago. Esse moço tinha uma empresa que comercializava, tinha empregado e não era considerado pessoa jurídica. Ele apresentava a declaração de imposto de renda uma vez por ano, duas na verdade, em dezembro, uma preliminar, e depois em abril. E o contador ia duas vezes por ano na empresa dele. Claro que chegava lá no carro último tipo, fazia a declaração de imposto de renda, cobrava uma nota preta e ia embora. Quer dizer, não tem papel nenhum. Como é que era pago o imposto, o sailing tax, que é, digamos, o nosso imposto hoje, chamado ICMS, que na época nós chamávamos Imposto sobre Renda de Consignações? Lá, para o tipo de empresa dele, ele fazia o seguinte: ele abria uma conta no banco... Outra coisa: a gente abre a conta em um banco só nos Estados Unidos, tanto que se fala "o meu banco". No cinema você ouve isso, até pensa que o cara é sócio, né? Não, é porque ele tem um banco só, certo? E o banco atua, ajuda e tal. Ele abre uma conta no banco e vai depositando o valor da transação dele. No fim de três meses, ele pega o extrato e pega só a coluna dos depósitos e soma. Aí está o total das vendas. Ele não multiplica pela alíquota do imposto... na época era 4,5 no Estado de Illinois, e encontra o valor do imposto. Faz um cheque em nome do Tesouro do Estado de Ohio e põe no correio.
P/1 - Bem fácil, né?
R - Não paga, não tem comprovante, nada, certo? Eu fui visitar a repartição porque eu fiquei tão impressionado, eu quis visitar a repartição que controla isto. Bom, e fui visitar depois a repartição do imposto de renda também, lá de Chicago, que é uma cidade de 4 milhões de habitantes. Era mais ou menos a população de São Paulo na época, aqui, as cidades eram mais ou menos equivalentes. Então, eu contei para ele: "Olha, se você tivesse no Brasil, a sua empresa, você seria considerado pessoa jurídica por equiparação, uma ficção legal que diz que se você tem empregado, tem um comércio regular, você é considerado pessoa jurídica, ainda que seja individual." Por ficção legal é pessoa jurídica. Então você tem um registro para pagar os impostos federais, um para pagar os impostos estaduais, um para pagar os impostos municipais. Que impostos são esses? No imposto federal era o imposto de renda da pessoa jurídica e depois o imposto de renda da pessoa física. No Estado... ah, tinha o IPI também, porque ele fabricava jóia. IPI, Imposto sobre o Produto Industrializado, chamava Imposto de Consumo na época. Então...
e isso tudo com escrituração separada, talões de notas separados. Se vai vender uma jóia fabricada por ele, é uma série de notas fiscais. Se vai vender uma jóia que ele comprou e revendeu, era outra nota fiscal. Se ele vai fazer um concerto, era outra nota fiscal, e com livros separados para cada uma dessas categorias. Bom, o imposto de Conselho chamava transações, era o imposto estadual, que hoje é o ISS da prefeitura. Ele falou: "Zoilo, mas espera aí. Se eu tiver que escriturar tudo isso e ainda fazer a Contabilidade para apresentar um Balanço, para ver quanto eu tiro de lucro para pagar o imposto na pessoa jurídica, das dezesseis pessoas que eu tenho hoje, que estão só em vendas ou na fabricação, quanto eu teria de ter deslocado para a parte administrativa?" Aí eu me dei conta de como nós estávamos fossilizados, meu Deus, no Brasil. E aí a minha vontade de voltar, jogar fora o meu diploma e ir vender banana, porque não tinha mais prazer em fazer o que eu estava fazendo, você entendeu? Achava que era um trabalho inútil, idiota e custoso para o empresário. E aí, graças à Deus, veio a revolução, já tinha vindo a revolução de 1964, e veio a famosa reforma tributária, que deu uma limpada...
P/1 -
Uma simplificada.
R - Uma simplificada, que os burocratas foram novamente complicando, porque o processo original é maravilhoso e altamente funcional. Mas cada burocrata quer dar o seu dedinho e cria um novo... qualquer coisa, e virou essa colcha de retalhos que nós temos hoje.
P/1 - Nós temos essa herança burocrata.
R - E todo mundo hoje quer que se modifique novamente. Então eu diria que a grande revolução, se você me pergunta, foi esta da reforma tributária, ocorrida lá em 1967, 1968.
P/1 - Está certo. Mudando um pouco o assunto, eu queria que o senhor indicasse quais são os segmentos de atuação dentro da Contabilidade e quais as especificidades de cada um. E se isso mudou ao longo do tempo ou está mudando.
R – Mudou e vai mudar mais. Então no passado, e recente até, você tinha bem específico a atuação de cada profissional que se especializava. O contador de custo fazia custo, certo? Então isto hoje está desaparecendo, porque essas especificidades estão indo para um programa de computação, que vai executar todo o trabalho que antes requeria a participação humana nisto. Então a tendência do profissional do futuro, do presente, aliás, e futuro muito próximo, é ser generalista. É conseguir tirar desses diversos programas específicos o conteúdo disso e transformar isto em informação para tomar decisões de administração. Esse realmente é o... Você dirá: "Vai encurtar, então, o campo, porque não terá necessidade de tantos profissionais." É verdade. Quer dizer, não se pode imaginar que as escolas continuarão despejando essa quantidade de profissionais que hoje despeja no mercado, porque não haverá realmente espaço para trabalhar nisso. Porque a máquina vai substituir muitas das pessoas que estão no mercado.
P/1 – Essa é uma pergunta que eu coloquei aqui porque várias pessoas entraram nesse tema, eu não sei se o senhor vai achar que é bom responder. A partir de que momento a Contabilidade passa a ser considerada uma ciência e qual é o seu objeto de estudo principal?
R – Olha, eu, honestamente, não apliquei muito do meu tempo nessa questão de discutir os sexos dos anjos. Quer dizer, eu respeito os cientistas da Contabilidade, que se contam nos dedos no Brasil inteiro. Em São Paulo um deles é o saudoso professor Hilário Franco, recentemente falecido. Em Minas tem um outro fantástico, no Rio Grande do Sul tem uns dois, enfim, são poucas as pessoas que se aprofundaram nessa questão, porque o cotidiano não permite. Via de regra, essas pessoas que se aprofundaram também eram catedráticos, estavam lá na cátedra. Então até por dever de ofício tiveram que mergulhar fundo na questão, digamos, filosófica da Contabilidade, que não é o comum da grande massa onde eu me incluo. Então eu sempre estive à margem dessa grande discussão se é ou não é uma Ciência.
P/1 – Então eu vou aproveitar, já que o senhor falou da parte de educação, o senhor fez um percurso que, na verdade, a maioria das pessoas que eu tenho entrevistado fizeram. Começaram a carreira de contador ou a trabalhar nessa área fazendo o curso técnico de contabilidade. Hoje ainda existe o técnico de Contabilidade e a faculdade, a universidade, né?
R – Certo.
P/1 – O senhor acha que ainda existe esse caminho para as pessoas, elas começam e chegam aonde o senhor chegou? O curso técnico ainda é uma coisa importante hoje? Ou as pessoas fazem um curso normal e de repente lá na frente vão achar que vão fazer faculdade de Contabilidade? Como é que é essa história?
R – Bom, veja, o curso técnico, como havia antigamente, teria ainda validade, mas no momento, veja, esse curso técnico que havia antigamente, ele não permitia o ingresso em nenhuma outra faculdade, a não ser a faculdade de Ciências Contábeis. Então daí a especificidade do curso. Na medida em que ele permitiu que você prestasse o vestibular para qualquer faculdade, isso foi um grande mal, eu acho, para a profissão contábil. Por quê? Muita gente que já tinha o curso, completou o técnico de Contabilidade e verificou que no universo das atividades restava muito pouca coisa que ele não podia fazer, porque ele pode fazer tudo, ele pode, o técnico em Contabilidade pode ser, entre aspas, o contador do Banco do Brasil ou da Petrobrás. Não há nenhum limite de competência. Ele, tendo o curso técnico de Contabilidade, ele pode ser o responsável - eu não diria o contador, vou tirar essa expressão - ele pode ser o responsável pela Contabilidade de qualquer tipo de empresa. Ora, e o grande mercado está na execução disso. O que restou que esse técnico não pode fazer? A Perícia e a Auditoria, que é um campo bastante específico e um mercado muito mais limitado. Então grande parte dos estudantes de Contabilidade que se formaram no curso técnico tiveram muito maior motivação para fazer Advocacia, porque lhe dava o status de doutor, que normalmente o contador não tem, embora ele seja um Bacharel, ninguém chama o contador de doutor. Mas o advogado, feito em qualquer escola de fim de semana, é doutor. Então houve uma motivação, e isso em prejuízo de um aprimoramento profissional. Então nós estamos falando que muitas profissões vão desaparecer. Uma, que eu tenho absoluta certeza, que não tem mais possibilidade de sobrevivência, é o curso técnico de Contabilidade. Até porque o curso técnico de Contabilidade, que de técnico só tinha o nome, porque realmente era uma tintura de Contabilidade, e o resto preocupação com o vestibular, não preparava ninguém. E o cidadão ficava, então, meio profissional da Contabilidade e também, quem sabe, acabava indo para outra profissão, eu fazia Advocacia e ia exercitar a parte jurídica dos seus clientes e tal. Agora, esse novo ministro, aquilo que nós sempre lutamos para acabar porque, desde que eu estou na profissão, já uma Convenção de Contabilidade realizada em São Paulo na década de 1950, que foi onde se estudou e se propôs pela primeira vez a extinção do curso de Contabilidade, digo não do curso, mas do registro contábil. Porque o grande público não sabe diferenciar quem é o contador e quem é o técnico. E dois terços das pessoas que estão no mercado são técnicos. Isso é que é o absurdo. E se intitulam contador. Isso também foi ruim para a imagem da profissão, porque você, que é um profissional, digamos, de outra área, um engenheiro formado na Politécnica, contrata alguém que se diz contador, e você vê que ele não sabe falar nem bem o português, que imagem que você tem desse profissional da Contabilidade? É um de segunda classe, que esse é o técnico, com todo o respeito, e tem as exceções. No meu escritório mesmo, o melhor profissional que eu tenho na Contabilidade no escritório é o Martinelli, eu até estou citando o nome dele como homenagem, e é técnico. Eu queria que ele fizesse Auditoria, então eu falei: "Nós vamos pagar para você o curso em uma das faculdades da cidade." Ele frequentou seis meses a faculdade e falou: "É pré-condição eu continuar na Atlanta, eu me formar?" Eu percebi que tinha alguma dificuldade, eu falei: "Não, absolutamente. Eu quero só a sua evolução." Ele falou: "Pois então eu vou sair da escola, porque eu estou desaprendendo, eu estou ensinando lá, não aprendendo." Realmente, então você veja que o nível do ensino no Brasil, com a massificação do ensino que houve, isso a revolução cometeu esse equívoco, a massificação, quer dizer, a passagem direta, acabou com o vestibulinho, aquele famoso que eu fazia lá atrás. Depois uma outra dificuldade para o curso colegial, e outra maior dificuldade para a faculdade, quer dizer, essa massificação que houve, a pessoa sem tradição cultural chegar à universidade, certo? Quer dizer, nós vamos pagar esse prêmio, esse preço altíssimo por isto, porque a pessoa tem... os pais lá atrás não são pessoas de cultura. Eu falei: "Era um pessoal agrícola e analfabeto. E o filho foi para a faculdade." Então ele paga esse preço, ele leva todo esse vício de origem na vida. Provavelmente os netos dele é que serão os profissionais realmente, alguém bem nascido, enquanto as pessoas que nasceram já de lares bem formados eram bem exitosos. Então, na medida em que o curso técnico infestou o mercado, as pessoas de maior capacidade intelectual começaram a sair do ramo da Contabilidade. Isto eu sei que muita gente não gosta que se diga, mas isso é uma verdade. Foram para outras áreas para não serem confundidos com essa grande categoria aí, de quase 500 mil pessoas, das quais a maioria não tem cultura nenhuma. Então as grandes cabeças foram para outras profissões. E aí caiu, então, o nível, de um modo geral, da profissão como um todo. Que depois teve que reagir, está reagindo, com o esforço dos Conselhos, a voltar a executar a sua atividade. O Conselho, para que é? É para ver se a pessoa que está registrada tem capacidade para exercer o produto que ela está vendendo. E não faziam nada disso, agora estão fazendo. Então este treinamento continuado dos Conselhos está revitalizando a nossa classe e mantendo, quem sabe, um nível razoável de prestação de serviço.
P/2 – E o que o senhor falou que o ministro agora, da educação...?
R – É, esse ministro, que tem feito coisa muito boa, uma das propostas que eu tenho encaminhado, eu também gosto de mandar carta para a autoridade, sabe? Raramente sou respondido, mas ele me responde de vez em quando. Uma coisa que eu estou propondo é o que acontece no Japão, que as crianças estudam em regime integral. No dia seguinte que a Marta assumiu, eu mandei uma carta para ela. Falei: "Você quer ficar na história de São Paulo? Põe essas crianças para estudar como é no Japão, em regime integral." Como eu estudei em regime integral, lá atrás. Meu Deus! Tem que voltar a isso para tirar as crianças da rua, inclusive. E aí entra o Suplicy, quando ele apresentou o projeto dele, eu mandei e ele me respondeu, manualmente até, uma atenção, que eu guardo esse documento como história. Ele justificando o projeto dele, porque eu fiz críticas ao projeto dele, dizendo que eu só entendia o projeto dele acoplado com o regime integral na escola. E ele disse que levaria em consideração isto. E agora, nessa reunião que ele fez na Índia, ele diz exatamente isto, quer acoplar o dinheiro com a obrigação do estudo em regime integral. Quer dizer, que essa colaboração, sem falsa modéstia, eu ofereci ao Suplicy quando ele apresentou o projeto lá atrás, né? Então, respondendo, o ministro visava o seguinte: você, para fazer o curso técnico em Contabilidade, tem que primeiro fazer o colegial, ou seja, você faz os quatro anos, depois mais três do antigo científico, que hoje é o chamado colegial, e aí você pode fazer a Contabilidade. Ora, então se eu já terminei o colegial, eu me coloco no lugar de um jovem que terminou o colegial, e tem a seguinte opção: fazer o técnico e depois fazer a faculdade de Ciências Contábeis. Se eu tenho acesso direto à faculdade de Ciências Contábeis, por que que eu vou fazer o técnico? Então eu acho que ele vai ser eliminado por não ter candidato, entendeu? Porque alguém que pensar um pouquinho não vai ter muita motivação.
P/1 - Já foi feita essa modificação?
R – Foi feita. Hoje você não entra mais....
P/1 – Quando foi feita?
R – Acho que a partir do ano passado começou. É uma coisa nova que está... é uma maravilha isto. Eu parabenizei o ministro por isso. Quer dizer, aquilo que nós queremos na classe vai acontecer agora. De uma forma ou de outra eliminar o registro técnico no Conselho, porque não vai haver técnico pedindo registro.
P/1 – Vai diminuir bastante.
R – Evidente.
P/1 – Sensivelmente, ao longo do tempo.
R – Ao longo do tempo vai desaparecer.
P/1 – Interessante. Então, a próxima pergunta era sobre o ensino técnico e a Ciência Contábil. Na Ciência Contábil, ainda tem a Faculdade de Contabilidade ou de Ciência Contábil?
R – Não. A Faculdade de Contabilidade e de Ciência Contábil é a mesma. É a mesma faculdade. Você tem a Faculdade de Economia, Administração, as três cadeiras, as três faculdades que são, digamos, bem próximas, primas, parentes próximas, é Contabilidade, Faculdade de Ciência Contábeis e Administrativas, a Faculdade de Administração e a Faculdade de Economia. Que antigamente tudo isso era estudado só na faculdade, no curso de Contabilidade, quer dizer, você tinha as noções de tudo. Na medida que você parou, por isso o meu desejo de entrar na outra faculdade...
P/1 – De fazer as outras?
R - Exatamente. Só não fiz Economia.
P/1 -
Acaba sendo uma composição natural?
R - Porque aí eu viraria economista e perderia o meu... Não, porque o economista, socialmente, é a profissão mais importante, né? Mas na verdade o campo dele é mais na atividade pública.
P/1 - Pública?
R - Cadê o grande economista da iniciativa privada que está aí? Tem os Trevisans da vida, que são contadores.
P/1 – Existe algum pioneirismo dos paulistas no desenvolvimento das práticas contábeis?
R – Sem dúvida nenhuma. São Paulo é, digamos, a locomotiva em tudo. Eu sou mineiro, posso falar isso com bastante isenção. Então eu acho que São Paulo realmente, que foi o estado industrial, se bem que eu tenho a tese de que se... hoje não se pergunta mais de onde você veio, mas quando eu vim ainda havia um certo bairrismo em São Paulo, contra pessoas de outros lugares. Porque praticamente não havia a migração que houve a partir da década de... final de 1940, que houve a grande... não tinha nem estrada ligando Minas e São Paulo. Você tinha que vir de trem, como eu vim. Estrada de rodagem não havia. Então, praticamente, o mineiro que saía de Minas ia para o Rio. Eu fui um dos poucos que vim para São Paulo, na época. Então eram poucas as pessoas que não eram paulistas. Então havia um certo bairrismo paulista de quatrocentão, aquela coisa, né? E eu, para me defender dele, porque achavam que o meu estado era um estado atrasado, tanto que eles diziam o seguinte: "Um cara foi em uma banca e perguntou: você tem o Estadão atrasado aí, da semana passada? O cara traz o mapa de Minas." (riso) Então eu, para me defender deles, dizia: "Olha, se por acaso os canadenses que investiram em eletricidade aqui em São Paulo e fizeram a Light, São Paulo Light and Power, tivessem ido para Minas Gerais, se os colonos italianos, alemães, espanhóis que vieram para São Paulo tivessem ido para Minas, o estado desenvolvido da nação não seria São Paulo, seria Minas. Por quê? Porque Minas, além de tudo isso que você tem aqui, nós temos mais lá. Temos terra, que São Paulo não tem, em quantidade. A riqueza mineral de Minas é fantástica, por isso que chama Minas, né? Tem de tudo. Então, tem toda a matéria prima. E teria que ter um porto de mar, certo? Então essa ferrovia, a São Paulo Railway, que os ingleses construíram, se estivesse ligando a Minas, o desenvolvimento teria sido Minas, está certo? Quer dizer, então não são vocês, paulistas, que fizeram o desenvolvimento, não."
P/1 - É uma situação...
R - É uma situação de fato. Você nasceu aqui e teve a sorte de vir o capital, inglês principalmente, que veio nos primórdios, depois é que os americanos, depois da Guerra que os americanos vieram. Mas antes eram os ingleses que dominavam aqui, do ponto de vista de investimento. Uma das melhores ferrovias do mundo, das duas melhores do mundo, eram de São Paulo. Uma era a São Paulo Railway, que ligava Santos, descia uma serra daquele tamanho com estrada de ferro. Isso era impensável com aquele sistema de cremalheira, quer dizer, uma tecnologia de ponta. A outra, que foi para o Oeste aqui, a Companhia Paulista, cheguei a viajar nela para Sertãozinho. Era o trem da Europa de hoje, com aquele conforto que a gente tem em um trem na Europa hoje, tinha aqui em São Paulo na Companhia Paulista. E o Carvalho Pinto fez a grande burrice de encampar. E aí acabou, porque tudo que é do Estado, infelizmente...
P/1 - Acabou, né?
R - Acabou.
P/1 – O senhor participa de Sindicato...?
R – De tudo.
P/1 – Então, quais são as grandes questões pelas quais o Sindicato luta? E quais foram as grandes conquistas?
R – Bom, primeiro diria o seguinte: que a existência do Sindicato de profissão liberal é uma anomalia, é uma coisa criada no Brasil, que não tem em parte nenhuma do mundo. Você, nos Estados Unidos, você não encontra Sindicato de Contabilistas. Por que não? Porque os profissionais de nível universitário estão tão próximos... para que é o Sindicato, basicamente, criado lá na Inglaterra? A história original do sindicalismo foi lá. Foi para lutar contra, digamos, as deficiências do trabalho, os salários baixos, especialmente dos mineiros lá nas minas de carvão na Inglaterra, que trabalhavam vinte quatro horas, tinham um salário miserável e tinham uma vida curta, porque não tomavam sol. Então, aí apareceram as trade unions, o Sindicato de trabalhadores para, unidos, se anteporem ao poder econômico. Esse é o princípio do Sindicato, é criar condições melhores de trabalho. Ora, se eu sou um profissional liberal que não tenho nenhum intermediário entre mim e o empresário, eu dialogo com ele, por que eu preciso ter um Sindicato no nosso meio? Então o Sindicato de profissionais liberais no Brasil é uma ficção desnecessária. Quer dizer, eu acreditei nisso até eu ir para OIT, em 1987, certo? Depois disso eu passei a combater, e até hoje eu combato, acho que tem que acabar, isso é uma besteira, não tem utilidade nenhuma o Sindicato de profissional liberal. Porque ele não tem a motivação fundamental, tanto que ele não realiza o acordo coletivo de trabalho. São pouquíssimos, conto nos dedos os Sindicatos que tem no Brasil inteiro, e tem quatrocentos e tantos Sindicatos de profissionais liberais no Brasil, não fazendo nada, só arrecadando dinheiro. Então faz como o Sindicato de São Paulo, que é um dos poucos que prestam algum serviço, e é mais serviço assistencial. E alguns cursos também, de treinamento, que aliás eu utilizei alguns deles. Então se o sindicato no Brasil, o Sindicato de profissional
liberal, teve alguma utilidade, foi ter iniciado o processo do ensino continuado, isso foram eles que continuaram. Os Conselhos não queriam nem saber disso. Quer dizer, praticamente os sindicatos, com a perda de recursos econômicos que nós tivemos quando em 1990 o presidente Collor encaminhou um projeto de lei extinguindo a contribuição sindical, que é outra arbitrariedade que só existe no Brasil, não tem em lugar nenhum do mundo isto, a obrigatoriedade de pagar a contribuição sindical. E isto possibilita que o Sindicato receba uma fábula e não precise de sócio. O Sindicato de São Paulo não tem cerca de 5 mil sócios e tem uns 50 mil profissionais na capital. Então deve existir esse Sindicato? Na minha opinião não, está certo? Tanto que quando o Magri foi o ministro do trabalho, em uma viagem que eu fiz do Rio para São Paulo, e eu tinha mandado uma carta para o Collor, e fui recebido pelo Collor sobre isto, antes dele tomar posse, lá no Bolo de Noiva ainda. Eu disse isto que eu estou dizendo, que o sindicato não deve existir, não deve ter contribuição obrigatória, que o sindicato é uma farsa. Então, na volta, o Magri era o presidente de um sindicato aqui de eletricitários: "Mas como?" Eu falei: "Escuta, meu amigo, vamos falar de uma outra profissão, da construção civil. Qual é o percentual que tem de pessoas filiadas ao Sindicato?" "Bom, não chega a 5%." Falei: "Então..." Porque ele disse: "Se acabar a contribuição sindical", diz o Magri, e é esse o bordão utilizado até hoje, pela esquerda radical, "acaba o Sindicato". E eu perguntei para ele: "Que Sindicato? Você acha que esse Sindicato que está aí, tendo ou não tendo, muda alguma coisa?" Agora eu faço uma ressalva: depois que apareceu a CUT, as coisas mudaram. A CUT exercitou o que o Sindicato tem que fazer, não as federações. E depois a Força Sindical. Então eu respeito essas duas entidades. A CUT, um pouco, ela perdeu um pouco da sua credibilidade à medida que ela se tornou um braço do PT. Mas se ela mantivesse uma independência, com a competência que ela tem, ela seria um espetáculo. Seria uma entidade tão importante quanto tem nas outras partes do mundo. Para você ter uma idéia, na Alemanha tem dezesseis Sindicatos só, dezesseis. O Sindicato dos metalúrgicos que eu visitei tem quatro milhões e meio de associados. Isto é um Sindicato. E não cobra um centavo obrigatório de ninguém. A única contribuição obrigatória que tem na Alemanha é o seguinte: quando eles fazem um acordo coletivo, que vale por quatro anos, pelo menos na época que eu estudei, em 1987, que eu estive lá, visitando. Digamos, eles querem um aumento de 4,5% e o patrão está oferecendo três. E depois eles fecham lá em três ponto nove vírgula dois. Então teve um ganho, porque estavam oferecendo três e, pelo poder do Sindicato, ele conseguiu... Neste caso, todas as pessoas que estavam naquela profissão tem um percentual do primeiro rendimento pago para uma chamada contribuição, traduzindo em português seria contribuição de solidariedade. E com isto eles enchem a borra do dinheiro, certo? E o que fazem com esse dinheiro? Aplicam no mercado, e todos os Sindicatos da Europa são ricos, nos Estados Unidos também. Porque o Brasil, como o Sindicato era um auxiliar do Getúlio Vargas, e aí ele criou o Sindicato dos profissionais liberais, para também ter na mão as elites pensantes. Então, ele criou um tipo de Sindicato no Brasil que não era para brigar contra ninguém, era para ser um auxiliar do Estado Novo, e daí a contribuição obrigatória, porque o Sindicato não precisava de associado. E tinha dinheiro e poder para apoiar as teses do governo. Então a história é lá de trás. Então eu sou radicalmente contra a existência dos Sindicatos, acho que deve ter, como nos Estados Unidos, as organizações profissionais autônomas de livre ingresso, ingressa quem quer, e também sou contra os Conselhos, claro. Acho que o Conselho também não cumpriu a sua finalidade, acho que eu deveria ser, assim, eu deveria ingressar no Conselho mediante... Agora que impuseram o exame de suficiência para entrar. Porque eu fui ler a história lá de quando criaram os Conselhos lá, pelo Capanema, e ele dizia o seguinte: "Em um país bastante atrasado, ninguém distingue um cara que põe um jaleco branco e pendura um estetoscópio de um médico formado." Então é preciso que o Estado venha e diga: "Esse é formado, você pode entregar o seu bem precioso, que é a vida para ele, a sua saúde." Foi por isso que foram criados os Conselhos, para que eles, de fato, dessem a garantia para o tomador do serviço de que ele era a pessoa adequada. Que Conselho fez isso no Brasil, inclusive o de medicina? Ninguém fez. Ganharam dinheiro, fizeram os prédios monumentais da vida, mas não fizeram, de uns tempos para cá que estão investindo alguma coisa no aprimoramento técnico profissional. Antes praticamente não teve nenhuma razão de existir os Conselhos, como ele é feito no Brasil. Porque qualquer um entra, entra porque é obrigado. Deveria ser ao contrário: entra quem tem capacidade. E os que quiserem fazer serviços inferiores, como é nos Estados Unidos, que o contador por certificado tem um status, e os não registrados tem outro status, se ganha a metade. Não tem importância, ele tem um mercado de trabalho para outro tipo de serviço, de empresa que não exige aquela competência do profissional. Então é o contrário do que nós fizemos aqui no Brasil. Você vê que tem muito chão para discutir, né? (riso)
P/1 – Que tipo de trabalho a empresa que o senhor atua/executa e quais foram as alterações que esse trabalho sofreu ao longo do tempo?
R – É. Eu diria que ao longo do tempo houve uma simplificação de alguns procedimentos fiscais, com a reforma tributária ocorrida lá na década de 1960, final da década de 1960, e esse foi um primeiro passo, que me alentou a continuar na profissão, na realidade. E o segundo grande momento foi o da informatização. E de fato, hoje, a gente não perde um tempo precioso fazendo trabalhos manuais, acabaram os trabalhos manuais praticamente. Então você tem hoje um sistema informativo que possibilita você utilizar o seu tempo em coisa mais nobre. Então eu diria que seria isto.
P/1 – E a outra coisa: na sua opinião, que questões, temas ou conceitos devem ser abordados para construirmos a memória da Contabilidade de São Paulo?
R – A memória? Eu acho que é fazendo isso que nós estamos fazendo. De um modo geral, eu diria que o primeiro passo, o grande passo, seria isto. Quer dizer, ouvir as pessoas que têm uma tradição, ou pelo menos alguma experiência de vida na profissão, que possam fazer uma análise. Certamente haverá pessoas com muito mais competência para fazer análises muito mais aprofundadas do que a que eu fiz. Então, se houver uma escolha, e eu sei que vai ser feita uma escolha adequada, porque o presidente do Conselho é uma pessoa muito competente e bem intencionada, as duas coisas têm que estar juntas, e felizmente estão. Eu tenho certeza que ele vai, com essa exceção, eu acho que ele quis me prestar uma homenagem, mas... ou talvez até por ser do interior de São Paulo, porque eu sou de fora da capital. Por isso, quem sabe, ele tenha me honrado com esse convite.
P/1 - Bom, então vamos acabar por aqui. Muito obrigada pela sua entrevista.
R - Está certo.Recolher