Projeto: Diversidade e Inclusão no Mercado Financeiro – Banco Pan
Entrevista de Alexandre Kiyohara
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 18/10/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1238
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Bruna Ghirardello
P/1 – Alexandre, para começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Meu nome é Alexandre Kiyohara, eu nasci dia 20 de julho de 1996, no Rio de Janeiro.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – A minha mãe é Andréia Cristina Kiyohara e o meu pai Luiz Carlos Kiyohara.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Os meus pais... a minha mãe é cozinheira, basicamente, ela cozinha e o meu pai é engenheiro.
P/1 – E como você descreveria o seu pai e a sua mãe e você sabe como eles se conheceram?
R – Sei como eles se conheceram. Na verdade, o meu pai é meu padrasto, então eu não conheço o meu pai biológico e a minha mãe e o meu pai se conheceram numa visita da minha mãe à São Paulo, então ela o conheceu aqui, eles tinham amigos em comum, se apaixonaram, aí ficaram juntos. Eu acho que era isso.
P/1 – Como você os descreveria?
R – O meu pai é um ‘cara’ mais sério, que não tem uma ‘cabeça’ assim, tão ‘aberta pro mundo’. Já a minha mãe é a melhor pessoa do mundo que eu conheço. Ela é uma pessoa muito compreensiva, amorosa e não mede esforços. Então, aquela ‘coisa’ de mãe. (risos)
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho, duas irmãs. Amanda é a mais velha e Aline a mais nova.
P/1 – E como é a sua relação, tanto com seus pais, quanto com as suas irmãs?
R – É ótima. Eu tenho uma relação muito mais próxima com a minha mãe, a gente se fala todos os dias, mesmo ela morando longe e a minha irmã mais nova também mora com a minha mãe, elas moram no Canadá e a minha irmã mais velha mora aqui, então eu acabo sendo mais próximo dela. Mas a nossa relação,...
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Entrevista de Alexandre Kiyohara
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 18/10/2022
Entrevista n.º: PCSH_HV1238
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Selma Paiva
Revisado por Bruna Ghirardello
P/1 – Alexandre, para começar eu gostaria que você dissesse seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R – Meu nome é Alexandre Kiyohara, eu nasci dia 20 de julho de 1996, no Rio de Janeiro.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – A minha mãe é Andréia Cristina Kiyohara e o meu pai Luiz Carlos Kiyohara.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Os meus pais... a minha mãe é cozinheira, basicamente, ela cozinha e o meu pai é engenheiro.
P/1 – E como você descreveria o seu pai e a sua mãe e você sabe como eles se conheceram?
R – Sei como eles se conheceram. Na verdade, o meu pai é meu padrasto, então eu não conheço o meu pai biológico e a minha mãe e o meu pai se conheceram numa visita da minha mãe à São Paulo, então ela o conheceu aqui, eles tinham amigos em comum, se apaixonaram, aí ficaram juntos. Eu acho que era isso.
P/1 – Como você os descreveria?
R – O meu pai é um ‘cara’ mais sério, que não tem uma ‘cabeça’ assim, tão ‘aberta pro mundo’. Já a minha mãe é a melhor pessoa do mundo que eu conheço. Ela é uma pessoa muito compreensiva, amorosa e não mede esforços. Então, aquela ‘coisa’ de mãe. (risos)
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho, duas irmãs. Amanda é a mais velha e Aline a mais nova.
P/1 – E como é a sua relação, tanto com seus pais, quanto com as suas irmãs?
R – É ótima. Eu tenho uma relação muito mais próxima com a minha mãe, a gente se fala todos os dias, mesmo ela morando longe e a minha irmã mais nova também mora com a minha mãe, elas moram no Canadá e a minha irmã mais velha mora aqui, então eu acabo sendo mais próximo dela. Mas a nossa relação, de todo mundo, é muito boa. Com meu pai a gente acaba se falando bem pouco, mas enfim, normal.
P/1 – E você conhece a história dos seus avós?
R – Não muito. Eu conheço a história dos meus avós paternos, os pais do meu padrasto. Acho que a minha avó morava com se fosse uma república, ali na Liberdade, eles são asiáticos e aí ela era vizinha da mãe do meu avô e aí elas acabaram se conhecendo e ela falou que tinha um filho. Enfim, quando eles se conheceram, se apaixonaram e ficaram juntos, mas da parte de mãe eu não sei como foi a história. Mesmo porque o meu avô, que é pai da minha mãe, faleceu quando minha mãe tinha seis anos. Então, não sei.
P/1 – Você chegou a conhecer os seus avós paternos?
R – Sim, ainda estão vivos.
P/1 – E pensando na sua infância, quando você era mais pequeno, quais eram os costumes? Tinha algum cheiro, alguma comida, alguma data comemorativa, que remete à essa época?
R – Nossa, sim. Toda vez que eu lembro da minha infância, eu lembro do cheiro de café com bolacha porque, quando eu vim pra São Paulo, eu estudei numa escola pública no Ibirapuera, aqui perto e todos os dias de manhã tinha esse cheiro de café com leite e bolacha, que era o lanche que a gente tinha no horário do intervalo. E todas as vezes que eu passo em algum lugar e sinto esse cheiro, me remete muito à minha infância. E tem outro cheiro, que é o cheiro do Rio de Janeiro, que eu não sei explicar qual é, mas que também, quando eu passo nas ruas do Rio, tem algumas ruas que têm um cheiro muito específico e, quando eu sinto esse cheiro, às vezes, em São Paulo, que normalmente são em bairros mais antigos, eu tenho muito essa memória afetiva da minha infância.
P/1 – E você lembra da casa e da rua onde você passou a sua infância?
R – Eu lembro de quando eu vim pra São Paulo. Eu vim pra São Paulo com cinco anos de idade e aí a minha memória é de São Paulo pra frente. Eu não tenho memória lá do Rio. E eu lembro do primeiro apartamento que a gente morou, ficava na Brigadeiro, então de final de semana a gente ia pro parque, sempre. Então, essa é a minha memória, dos cinco anos pra frente.
P/1 – E como era esse apartamento? Como era a Brigadeiro, naquela época?
R – Bom, a Brigadeiro já tinha bastante prédio, que a gente já estava em 2001, por aí, mas a meu ver, como criança pequena, era uma sala muito grande. Eu lembro que era uma sala grande, de estar, tinha a sala de jantar atrás, mas eu não tenho lembrança dos quartos, por exemplo, como eram os quartos. Eu só lembro, realmente, da sala de estar. Lembro que ficava perto do Ginásio do Ibirapuera, era atrás, mesmo, então a gente fazia natação no ginásio, mas da casa, em si, eu não lembro. Eu tenho mais memória do sítio que a gente tinha, em São Roque. Então, o sítio eu tenho 100% de memória de como ele era, como eram os cômodos, tudo isso. A gente passava bastante tempo lá, de final de semana. Todo final de semana a gente ia.
P/1 – E como era esse sítio? Me conta um pouco.
R – Conto. Esse sítio você entrava, ele tinha aquelas porteiras de madeira, bem... que qualquer pessoa que quisesse, pulava aquilo ali. E aí você ia subindo, à esquerda tinha como se fosse uma casa, que era a primeira versão, a primeira casa quando compraram o terreno, então ela já estava meio tombada, digamos assim, telhado caindo. Um pouco mais pra frente tinha um galinheiro. Aí, logo mais à frente tinha um milharal gigante, à direita tinha a casa do caseiro e pra esquerda você via a piscina bem grande e atrás a casa, que era a casa que a gente ficava, que era aquelas casas de madeira e você até pisava no chão, fazia rec, rec, rec. E a gente entrava pela sala, na porta da frente, aqui, a parte da sala de estar tinha alguns quadros, algumas espadas cruzadas, um negócio que parecia um tapete (risos), pendurado na parede. Depois, na frente era a cozinha, aquelas cozinhas bem antigas também e aí a gente virava pra direita e tinha os quartos. Eu acho que eram uns três quartos. Isso eu também não tenho certeza e eu lembro, tenho uma memória muito nítida que a gente, todo dia de manhã, quando estava no sítio, que normalmente era sábado, a gente ia de sexta-feira, a gente acordava muito cedo pra ver o Bom Dia & Companhia. Então, eu ia com meu cobertorzinho, seis horas da manhã, pra sala do sítio, mas eu lembro disso e a parte de trás da casa tinha uma grama, que era onde a gente estacionava o carro, você olhava, tinha as pedrinhas certinhas, pra colocar os pneus. Tinha uma outra casa, que a gente não entrava, que isso daí era a minha maior curiosidade, ela era sempre trancada, ninguém falava o que era e tinha a parte da churrasqueira e aí tinha um terrenozão e eu ficava brincando muito ali, com pazinha, areia, esse tipo de coisa. Mas essa é a minha lembrança. E muito mato, mato mesmo, tipo árvore que, se eu entrasse ali, claramente me perderia no mato. Mas era isso.
P/1 – E tem alguma história, alguma memória de histórias de lá?
R – Tenho. (risos) Eu tenho uma memória engraçada. A Aline, minha irmã mais nova, nasceu em 2000, então nessa época ela tinha um ano de idade. Só que ela sempre foi muito arteira, quando era criança e aí, um dia, estava eu, a Amanda, que é a mais velha e a Aline e aí a Aline saiu correndo e (risos) pulou na piscina, mas era um nenê. Só que aí, nisso, eu fui correndo e pulei também, para salvá-la, mas a gente pulou, todo mundo, no fundo. E aí a Amanda veio e saiu (risos) correndo, pra salvar os dois. No final estavam os três se afogando e meu pai teve que vir salvar os três, pegar os três. Mas quando a gente lembra disso, é uma coisa muito engraçada, porque a gente sempre foi muito unido, então uma pulou, aí veio o outro e pulou atrás, pra pegar, veio a outra e pulou atrás, pra pegar, ninguém ia se salvar e ia morrer todo mundo junto, mas a gente estava sempre junto, a gente brincava muito junto. Tinha aquelas piscininhas de nenê, de criança, qualquer um entrava lá, eu entrava lá, já estava mais velho; a Amanda entrava lá também, que tem três anos a mais do que eu. Então, era uma escadinha, mas a gente estava sempre junto. Então, foram boas lembranças que a gente construiu lá. Eu tenho uma boa lembrança também da minha avó paterna, que eu a perdi quando eu tinha dez anos, mas a minha avó era assim: a minha pessoa no mundo. Tinha uma ligação muito forte com ela. E quando ela ia pro sítio era só besteira que a gente fazia, só ‘arte’. Minha mãe ficava ‘louca’. Então, a gente ‘aprontava’ muito, mas muito, de colocar inseto na caixa, pra dar de presente e a pessoa tomar um susto. Mas era bem divertido. Eu lembro que a fase do sítio foi muito gostosa.
P/1 – Você estava falando que sua avó era essa pessoa. Eu queria saber um pouco sobre essa relação com ela.
R – Eu conto. Bom, a minha avó eu a conheço, obviamente, desde que eu nasci, só que a minha mãe, por ser mãe solo, criou eu e minha irmã mais nova sozinha. E essa minha avó materna, era mãe dela e ela cuidou muito da gente, quando a gente era criança, lá no Rio, pra minha mãe poder trabalhar, pra poder sustentar a gente. Então, ela era aquela avó mesmo, que dava besteira. Ela ia pro boteco, tomar cerveja, ela me levava junto pro boteco. (risos) Me colocava no balcão e falava: “Quer um golinho?” Eu com três anos de idade. Completamente doida. (risos) Me dava muito doce. Eu comia doce ‘sem freio’ com ela. Eu lembro que ela foi a pessoa que me ensinou a jogar tênis de mesa, futebol. Ela me incentivava muito, porque desde criança eu tinha essas coisas que eram ditas como coisas de menino e, na época, como uma pessoa trans, vista como uma menina, todo mundo afastava essas coisas de mim, então ela aproximava tudo isso de mim. Então, ela deixava. Eu lembro que ela sempre quis me dar uma camisa do Flamengo. Só que era muito caro, essas coisas oficiais de futebol e um pouquinho antes dela falecer, no mesmo ano que ela faleceu, ela conseguiu comprar uma camisa oficial. Eu tenho essa camisa aqui, oficial, do Flamengo, pra mim. Então, ela me aproximou muito de quem eu sou hoje. Sem ela saber disso. Então, eu tinha uma relação muito próxima com ela, ela jogava comigo, ela fazia álbum da Copa comigo, tanto que... a minha vó faleceu em 2006 e foi a Copa na Alemanha e a gente estava fazendo álbum em julho, ela faleceu em setembro, fazendo o álbum juntos e faltaram algumas figurinhas e ela chegou a pedir pra Panini, só que as figurinhas nunca chegaram, porque ela pediu lá na casa dela. Enfim, depois ela faleceu e eu não tenho nem o álbum completo da Alemanha, até hoje, por causa disso, mas eu tenho muito isso com ela: ela era tanto a minha pessoa, que eu senti quando ela faleceu. Eu estava na escola e eu lembro de acordar não passando muito bem. Eu estava meio mal, meio esquisito, não queria ir pra aula, mas era típico eu não querer ir pra aula, então tudo bem também. Mas eu estava meio mal e aí, nisso, eu fui pra escola e eu estava com uma sensação péssima e minha avó paterna foi buscar a gente na escola. Aí eu falei: “O que aconteceu? Cadê a minha mãe?” Aí ela falou assim: “Sua mãe foi lá pro Rio, visitar sua avó, mas já, já ela volta”. Aí eu olhei pro lado, pra minha irmã e falei: “A vovó morreu”. Aí a minha irmã falou: “Não, não fala isso, não tem nada a ver e tal”. Eu falei: “Tá bom”. Bom, dito e feito e eu senti o que tinha acontecido. Então, a gente tinha uma conexão muito forte. Ela era realmente a pessoa que me trazia tudo que eu queria ser, mas que todo mundo falava que não.
P/1 – Eu fiquei curiosa pra saber se você descobriu o que tinha naquela casa do sítio, que você não podia entrar.
R – Eu nunca descobri porque, depois de um tempo, a gente vendeu o sítio, porque a cidade era em São Roque e Mairinque. Começou a crescer, crescer, crescer e, nisso, começou a ficar perigoso. Então, quando a gente não estava no sítio, de dia de semana, tinha gente que invadia o sítio, que entrava lá. Então, a gente falou: “‘Meu’, não dá mais, vamos vender”. E a gente vendeu o sítio. Então, eu vou morrer sem saber o que tinha (risos) naquele quartinho. (risos)
P/1 – E vocês - eu sei que era no sítio - frequentavam a cidade também, ou era uma coisa mais afastada, mesmo?
R – A gente frequentava, sim, viu? E sempre no dia que a gente chegava, que a gente parava numa padaria, que tinha o melhor sonho do mundo e eu sou louco pra descobrir que padaria é essa, até hoje, porque como a gente nunca mais foi, os meus pais não sabiam nome de rua, de padaria. Eles só iam pela memória que eles tinham na cabeça deles. Então, eu tenho a memória de ir pro sítio e eu tenho o caminho na minha cabeça, mas eu não sei chegar, qual o endereço, mas eu já quis voltar lá pra comer esse sonho. Porque, pra mim, esse sonho, é o melhor do mundo. Pode ser que hoje ele nem seja. Mas na época era o melhor sonho, então toda vez que a gente chegava era exatamente isso: um ritual. A gente chegava lá, parava nessa padaria, comia o sonho e ia pro sítio. A gente só voltava pra cidade pra ir em padaria, comprar comida, pra ir em mercados, só pra isso. No mais, a gente não ia pra nada, a gente ficava muito no sítio porque, no fim, no sítio tinha tudo. A minha mãe sempre cozinhou, então a minha mãe fazia todas as refeições lá. Na época não existia iFood, nada disso. O sítio não tinha sinal, naquela época não tinha telefone, era telefone de discar, que você colocava o dedo, assim. Então, era muito gostoso. A gente ia pra lá pra, realmente, desconectar.
P/1 – E quais são suas memórias mais marcantes, da infância?
R – Esse colégio que eu falei que foi o primeiro colégio em São Paulo, EMEI Heitor Villa Lobos. Ele fica aqui no Ibirapuera. Então, eu lembro das brincadeiras, das professoras. Eu tenho uma memória da minha infância, muito louca, que é assim: eu sempre gostei muito de história. Muito. Sempre prestei atenção em aula de História, sempre gostei de viajar para lugares que tinham história e eu lembro de uma vez que eu estava sentado na escola, brincando no tanque de areia. Só que eu falei: “Vou cavar em outro lugar. Não vou ficar cavando nesse tanque de areia, não. Vou cavar em outro lugar”. Comecei a cavar. Eu achei cruzados (risos) no chão e aí eu falei: “Caramba, eu estou descobrindo o Brasil, sabe? Que loucura!” Eu tinha na minha cabeça que eu ia achar coisas de Dom Pedro e que sei lá o que. Então, era muito engraçado. Eu tinha muito isso de cavar, quando eu era criança, que eu achava que eu ia achar as coisas. Uma outra lembrança da minha infância é a praia. Eu vou pro Rio de Janeiro, eu piso lá, parece que eu tenho cinco anos de novo. Então, eu tenho essa memória afetiva com o Rio de Janeiro, muito forte. Não é com qualquer praia, eu amo praia, sou um peixinho fora d’água, ali, mas eu amo praia mesmo, mas o Rio de Janeiro me traz uma memória afetiva muito forte. A casa da minha avó paterna e do meu avô, que fica no Butantã, porque a gente também sempre ia pra lá, todo final de semana. O Ton Hoi, que é um restaurante que tem no Butantã, que é chinês e que a gente ia desde que a gente pisou em São Paulo, ele está lá até hoje, a gente come lá até hoje, então os ‘caras’ viram a gente crescer. E o meu condomínio, que agora eu moro sozinho, mas era um condomínio que eu cresci, que meus pais compraram uma casa, a gente viu construir o condomínio, tudo isso, a gente conhece os seguranças. Então, essas são as minhas memórias de infância mais fortes. Eu brincando na rua, jogando bola, eu jogando ping pong. Pra mim... e sempre era uma coisa ativa. Nunca era... eu tenho memória também de quando eu voltava da escola, eu ficar assistindo o programa da Eliana. Essas coisas eu tenho, mas não são coisas que me marcaram, super.
P/1 – E quais eram as brincadeiras favoritas dessa época?
R – Eu gostava muito de jogar bola, como eu falei. Então, era isso. Eu gostava muito de jogar ping pong. Gostava de brincar de esconde-esconde. Gostava bastante, porque eu gostava de brincar à noite, então assustava as pessoas. O que mais? Eu gostava de jogar tapa-tapa, sabe aquele que você vai falando o número da carta: “A, dois, três”, se é a carta, você bate. Gostava de jogar isso. Minha avó jogava muito baralho, só que eu não aprendi nada. Hoje eu sou um zero à esquerda pra isso. E eu acho que isso, porque era isso: eu sempre estava jogando bola. (risos) Todo dia. Eu lembro até que (risos) a minha mãe, uma vez, me deu de presente um relógio, pra eu voltar na hora pra casa. Ela falava: “Quando apitar, você volta” e colocou alarme, todo dia, às sete, porque a minha mãe falava: “Tem que chegar em casa na hora”. Porque eu morava em condomínio, então eu descia pra quadra, mas a gente se perde, quando é criança. A gente vai indo, vai indo e não volta nunca. A gente só volta pra comer o lanche da tarde, porque a mãe mandou e depois volta pra brincar. Mas era isso. Era muito jogar futebol, eu jogava muito.
P/1 – E você torce pra algum time?
R – Por incrível que pareça, não, sabia? Eu acho que depois que a minha avó faleceu, eu parei de fazer essas coisas, de acompanhar. Eu parei de fazer álbum da Copa. Isso é uma coisa que eu não... sabe, fui parando. Óbvio, além de esse ano estar supercaro as figurinhas (risos), mas eu fui parando de fazer essas coisas. Eu gosto muito do futebol, mas quando ele une a gente pra uma coisa só. Que nem, por exemplo, quando tem Copa do Mundo. Pô, o Brasil está unido para uma coisa. Tirando esse ano. Mas eu não gosto do que o futebol causa negativamente nas pessoas. De briga, quebradeira. Então, isso é uma coisa que eu fui me afastando, também, porque foi me deixando meio assim.
P/1 – E quando você era pequeno, tinha alguma coisa que você queria ser, quando crescesse? Alguma profissão? Ou não passava pela sua cabeça, isso?
R – Tinham várias. (risos) Eu tive fases. Eu tive a fase que eu queria ser jogador de futebol, que eu queria jogar profissionalmente, mas a minha mãe falava: “Não, isso daí não dá dinheiro, você não vai conseguir, tanananananana”. Eu tive a fase de querer ser médico, porque eu jurava que estava tudo bem, mas hoje eu vou tirar sangue, eu desmaio. (risos) Então, assim, não. Deixa eu pensar o que mais. Eu tive a fase da educação física. Essa fase eu tive também, eu jurava, estava lá no terceiro colegial: “Eu vou fazer educação física, é isso”, minha mãe falava: “Menino, (risos) você não vai fazer, não tem nada a ver com você”. Então, eu tive essas fases e sempre alguma coisa envolvia esporte, era sempre assim e o que é muito louco, porque hoje em dia eu estou voltando a correr, a fazer exercício, mas eu fiquei muito tempo sedentário. Óbvio, por conta da pandemia, mas é muito louco o quanto pra mim é difícil restabelecer essa relação que eu tinha com o esporte.
P/1 – E depois dessa primeira escola que você estudou, que você contou algumas coisas, quais foram as outras escolas que você estudou?
R – Eu lembro que eu estudei em mais uma, acho que era Ludovina o nome, que ficava ali... puts, como é o nome daquele bairro? Não é Moema. Enfim, eu sei que é aqui perto, estudei nessa. Depois de lá eu fui pro Giusto Zonzini, que ficava ali na Raposo, perto de onde a gente morava. Depois eu fui pro Albert Sabin e me formei. Então, eu estudei, dei uma ‘rodada’ no começo, porque... ah, não, eu fiz um ano de Adventista também. Minha mãe falou: “Chega, basta, isso aí não vai dar, não”. Nada a ver. (risos) Tipo zero. Daí eu fui pra Adventista, depois pro Giusto e aí, depois eu fui lá pro Sabin. Mas foi isso. Eu fiquei no Sabin bastante tempo, até o terceiro colegial. Foi bom. E foi isso: a gente ‘rodou’ no começo, porque a gente tinha acabado de chegar em São Paulo, minha mãe não tinha referências e a referência do meu pai era Bandeirantes e Palmares, porque ele fez ambas. Então, não tinha muita condição, né?
P/1 – E como você ia pra escola?
R – De carro. A gente sempre foi de carro e aí chegou na fase do Sabin, quando eu já estava no colegial, acho que segundo, terceiro, aí minha mãe colocou a gente no ônibus da escola, porque ela deixava a gente de manhã, a gente sempre foi com a minha mãe, mas aí, como eu tinha muita coisa pra fazer na escola, quando chegou no segundo, terceiro, o Sabin sempre foi uma escola que incentivou muito a gente fazer esporte, então tinha tudo: capoeira, judô, natação, mil coisas que você pode imaginar, todos os tipos de ginástica e eu fazia muito esporte, então eu lembro bem que eu tinha horários diferentes e a minha mãe fazia as coisas dela, trabalhava e nisso a gente pegava ônibus, porque eu chegava de manhã e pegava o ônibus das seis e quinze, pra voltar pra casa, porque eu ficava o dia inteiro lá.
P/1 – E quais foram as pessoas mais marcantes da sua vida escolar? Teve algum professor, algum colega?
R – Olha, eu tive colegas, isso é fato, dois amigos que me marcaram muito quando eu era criança, que foi o Maurício e o Roger. A gente andava junto, porque era assim: eu andava com os garotos, sempre andei com os meninos. Então, a gente ficou amigo um tempo, estudou junto nesse EMEI Heitor Villa Lobos, depois a gente foi junto pro Ludovina e aí, depois, cada um foi pro seu ‘canto’. Lembrando onde era, no Itaim, a escola Ludovina. E aí a gente foi cada um pra um ‘canto’. Então, acabei que perdi o contato. Anos depois, pouco antes da minha transição, a gente acabou se reencontrando, porque acho que eles me procuraram em rede social, acho que Twitter até (risos), eles me acharam e a gente acabou se reencontrando. Já de professores eu tenho memória afetiva com professores mais velhos, quando eu já estava em colegial, que eu tive professores que me marcaram muito. Principalmente depois, na faculdade. Tive uma professora que, nossa, acho que de todos os professores, ela foi a pessoa que mais me marcou, foi a da faculdade, que ela me ajudava muito, muito, muito. O nome dela é Roseni, ela dava aula de mídia. E aí eu gostava de mídia, mas eu trabalhava com outra coisa e ela sempre me incentivava, ela falava: “Você é bom, vai fazer isso e tal”. Ela me ajudava, me ajudou no TCC e ela foi a primeira pessoa na faculdade que eu contei da minha transição. E ela falou: “ ‘Meu’, estamos juntos, vamos embora. É isso”. Me ajudava, me mandava artigo, coisa pra ler, isso e aquilo e hoje a gente é amigo, super amigo, colega de profissão, porque também, depois que aconteceu, ela continuou dando aula, depois eu comecei a dar aula e aí a gente, enfim, foi se aproximando e a gente construiu uma relação muito boa, mas de longe ela foi a melhor professora, a que mais me marcou na vida.
P/1 – E como foi sua adolescência? O que você fazia pra se divertir?
R – Quando eu tinha onze pra doze eu entrei no escoteiro, então eu fui escoteiro por muito tempo. Então, todos os finais de semana tinha atividade no escoteiro. Então, cada final de semana era uma coisa. Num a gente aprendia a usar os facões, no outro o lampião, no outro a gente fazia alguma atividade, no outro montava uma tenda, que a gente chamava... até esqueci o nome, mas enfim, a gente aprendia a montar a barraca, a gente fazia tudo. Aprendia as amarras, todas. Tinha a mais difícil, que era a amarra quadrada, acho que eu não sei fazer isso até hoje. Mas eu passei muito tempo, dos onze até os dezessete no escoteiro, foi bastante tempo, então todo final de semana. Eu parei mesmo, porque começou a chegar na época de vestibular, então tinha que estudar, mas isso era o entretenimento, todo sábado e, muitas vezes, domingo eu ia pro Cooper, onde era o escoteiro e eu acampava. Nossa, eu acampei muito pelo Brasil, pelo interior. Conheci Minas, conheci alguns lugares do Rio. Foi muito bom. Conheci muita gente, que eu ainda tenho contato até hoje, acabei cruzando depois, no mercado de trabalho. Mas era isso que eu fazia pra me ocupar, porque durante a semana era a escola.
P/1 – E tem alguma viagem desses acampamentos que você lembra com mais carinho, que tenha sido mais marcante?
R – Tenho, sim. A minha última viagem como escoteiro, porque a gente tinha fases. Então, dos cinco aos sete você é castorzinho; aí dos sete aos dez você é lobinho; depois dos dez até os quinze você é escoteiro; depois, dos quinze até os dezessete, dezoito você é pioneiro... não, você é sênior guia; e depois você é pioneiro, até os 21, dos 18 aos 21; depois você é chefe. Quando eu fui passar de escoteiro pra sênior, eu tive um último acampamento e, ‘cara’, foi um acampamento que me marcou muito. Eu estava com todas as minhas amigas, porque a ‘galera’ tinha mais ou menos a minha idade, então a gente passava junto e era muito gostoso. Porque era isso: a gente não tinha celular, naquela época a gente conversava por SMS, então a gente se unia de final de semana, mas foi muito legal, porque você vai achar isso meio doido, mas foi muito legal que a gente passou só perrengue. Só que foi perrengue gostoso. Então, tipo: choveu, caiu um raio na barraca. Puts, que pena, a barraca ficou toda torta, graças a Deus não tinha ninguém lá dentro, mas a gente teve que dormir com a barraca torta. Aí chove, você não monta direito, alaga a barraca, tem que dormir no molhado, mas foi gostoso. Foi muito bom, porque a gente se uniu, pra passar sufoco. E eu lembro que a gente tinha montado a barraca, nesse acampamento, atrás de um templo e aí, (risos) esse templo - ‘cara’, eu choro de rir com essa história – era budista, um negócio bonito e a gente montou a nossa barraca atrás, porque os chefes queriam – eram quatro patrulhas – que cada uma montasse num ‘canto’ do lugar, só que pensa num lugar gigante! Era um campo enorme, um clube e aí a minha barraca montei lá. Beleza. Aí eu fui tomar banho. À noite, quem era monitor, eu, no caso, a gente tinha reuniões com os chefes, pra falar sobre como estava e o dia seguinte como ia ser, que horas a gente ia acordar, porque tinha essa coisa que acordava às seis da manhã, para hastear a bandeira, todo negócio. A gente acordava com o galo cantando. E aí eu montei a barraca, a minha patrulha foi tomar banho, fui pra reunião. Quando eu voltei, falei: “Gente, cadê a minha patrulha?” Nada de ninguém. Entrei na barraca, deitei na pose da morte, mesmo, assim, porque fica no saco de dormir. Falei: “Vou esperar a minha patrulha aqui”. Começo a ouvir só cigarra. Era eu e as cigarras. Aí eu falei: “Bom, acabou pra mim, né? Cadê a patrulha? Que esquisito.” Quando eu cheguei, aí eu falei: “‘Cara’, vou levantar, vou lá”. Peguei o lampião. “Vou lá, atrás”. Aí fui ao vestiário e falei: “Gente, vocês viram o pessoal da Lince?”, que era a minha patrulha. “Alê, você não ficou sabendo o que aconteceu?” “Não”. Falaram assim: “Então, elas foram lá pra barraca e aparentemente elas viram alguma coisa e aí elas foram lá pra barraca dos meninos”. Aí eu falei: “‘Mano’, eu fiquei sozinho nessa barraca meia hora, eu e o espírito ali, eu não acredito”. Aí eu saí correndo, falei: “Gente!” Vieram me contar que uma menina foi pegar as coisas delas, uma ficou tipo lá atrás, com a lanterna, iluminando e ela estava na barraca dela, do nada ela sentiu uma mão assim. Aí eu falei: “Gente, pra mim acabou, chega”. E aí a gente foi dormir na barraca das minhas amigas. Falei: “‘Meu’, não vai pra dormir aqui”. Fui dormir na barraca delas. A gente é amiga até hoje. A Débora e a Luiza, são as minhas melhores amigas da vida. E aí eu fui dormir na barraca delas, no dia seguinte foi o chefe, ele falou: “Não tem nada, quer ver? Vou mostrar pra vocês”. Foi com a máquina fotográfica. Daqui a pouco ele volta e aí eu falei: “E aí, Ivo, pegou alguma coisa?” Era Ivo o nome dele. Aí ele falou assim: “Troca sua barraca de lugar”. Foi isso que ele disse. Eu falei: “‘Meu’, acabou pra mim, chega”. Mas era muito engraçado, porque a gente se divertia muito e a Luiza, que é minha amiga, é médium. Fato. Ela vê, sente. E várias vezes a gente, em acampamento, ela via coisas e ela só falava: “Pessoal, vamos por aqui, não vamos por aqui”. Ela não falava o que era. E hoje, depois de velho, ela fala: “Então, gente, é que ali eu vi um senhorzinho, um negocinho” e a gente, ‘mano’, podia ter infartado de susto e era isso, sempre assim. Porque a gente sempre estava no meio do mato. Então, era isso. Pior do que gente viva, era gente morta, (risos) até a gente brincava. Mas a gente se diverte muito hoje, quando a gente conta essas histórias. Então, são memórias. Esse acampamento foi muito engraçado, porque a gente sofreu.
P/1 – E alguma coisa mudou, da infância para adolescência, emocionalmente? Houve mudanças, para além da física?
R – Pra além da física, eu acho que o meu psicológico, porque a física interferiu muito no meu psicológico também. O que aconteceu? Eu jogava bola sempre com os meninos, então eu jogava bola, muitas vezes, sem camisa, isso e aquilo e quando eu comecei a crescer, entrar na puberdade, começou a nascer peito em mim e aí eu já não podia mais ficar sem camisa, mas aí eu usava top, mas aí, quando eu jogava bola com eles, me machucava, porque eles vinham, batiam, sei lá o que, pa, pa, pa e eu falo sempre que essa foi a mudança pra mim. Na minha cabeça eu era um menino. A minha infância inteira eu fui um menino. Quando eu entrei na adolescência, eu entendi que eu era uma menina. E foi horrível esse choque, porque era isso: eu era uma coisa e do nada não, você não é e aí eu lembro que o meu psicológico começou a ficar muito afetado, porque eu gosto de menina desde criança. E eu tenho memórias muito claras de eu gostar de mulher, desde criança. E aí eu comecei a sentir angústia dentro de mim, porque eu sentia que eu não podia falar sobre isso pra ninguém, porque as pessoas me zoavam, então eu lembro que, quando eu jogava bola, os meninos odiavam quando eu fazia gol, ganhava deles. Isso era o ego ferido, famoso. E eles odiavam e, para isso, eles me insultavam. Então, eles me chamavam de ‘sapatão’, Maria Macho, esse tipo de coisa. Então, eu lembro que essa fase da infância para adolescência, a transição foi muito ‘dura’ pra mim, porque eu não sabia lidar com o mundo lá fora, a minha reação era ser reativo, então eu era reativo com eles, quando algum menino me ofendia, eu ia lá e o espancava, eu batia nele, eu era assim e aí isso foi uma coisa que eu fui fazendo e era isso: alguém falava alguma coisa, eu pa, retrucava. Eu, na escola, que eu até falei, eu não gostava muito da escola, os professores falavam, eu debochava, eu era aquela pessoa que ficava brincando o tempo inteiro, tipo: eu não levava ninguém a sério e era isso, porque essa era a minha reação, para as coisas. Então, eu lembro muito claramente de que essa fase que eu entrei na adolescência eu era simple plan, o negócio era assim pra mim. Então, era muita reação, o tempo inteiro e eu já reagia, antes de alguém me atacar. Então, eu lembro muito claramente de que eu era assim, então eu tenho muito essa visão hoje, quando eu converso com a Luiza, que é essa minha melhor amiga, ela fala: “‘Meu’, você mudou muito, porque você era muito reativo, brigava com todo mundo, batia nos meninos, isso e aquilo”. Então, o meu psicológico ficou muito afetado, porque foi isso, um choque de realidade.
P/1 – E depois, quando você terminou a escola, como foi? Você começou a trabalhar, começou a faculdade? Como foi esse período, depois da escola?
R – Quando eu terminei a escola logo eu quis fazer faculdade e aí tinha aquela indecisão, de não sei o que quero, tal, meus pais: “Então, vai pro cursinho”, porque colocaram na minha cabeça que eu tinha que fazer medicina, falei: “Tá bom”, fui fazer cursinho, no Anglo Tamandaré. E aí eu fiquei seis meses no cursinho. Não foram nem seis, é que o cursinho começava em março, em junho eu já estava lá, (risos) aí eu prestei vestibular pra PUC, porque a minha irmã já tinha feito Publicidade e eu falei: “ ‘Meu’, eu sou da área da comunicação, não tem jeito, vou fazer” e aí eu fui prestar vestibular, passei na PUC e falei: “Vou fazer PUC” e aí o meu pai falou assim: “Não, você não vai fazer”, aí eu falei: “Vou fazer”, aí ele falou: “Não, que sei lá o que, você vai estudar e continuar no cursinho”, eu falei: “Eu não vou continuar nesse ‘buraco’ aqui, eu vou sair disso aqui e eu vou fazer a minha faculdade, nem que eu tenha que pagar”. E aí eu comecei a trabalhar. Então, com dezoito anos eu estava trabalhando. Eu comecei a enviar currículo e aí eu fui pra Decathlon, porque eu gostava de esporte e aí surgiu a oportunidade de eu trabalhar numa loja da Decathlon, do lado da minha casa. Então, eu fui trabalhar na Decathlon, então me deu um senso de responsabilidade muito grande não só trabalhar, mas como vendedor, porque eu comecei a ter o senso de que, ‘meu’, eu não tinha os meus finais de semana e pensa, estava no primeiro ano de faculdade, então festa eu não tinha, não tinha rolê com o pessoal, eu trabalhava muito, então era de domingo a domingo, a folga era durante a semana, tipo terça-feira. Gente, terça-feira, quem é que folga? Fazer o que terça-feira, sabe? Então, era isso, desse jeito. De vez em quando eu tinha folga no domingo, então até eu podia ir para uma festa num sábado, beber com os amigos, mas isso me deu muito senso de responsabilidade do que é trabalhar, conseguir o próprio dinheiro e a partir daí eu já não dependia de ninguém, porque eu tinha dinheiro pra comer, eu pagava a minha faculdade, então foi indo. Foi assim que começou. Mas aí deu essa ‘mudança de chave’, mas ainda, quando eu entrei na faculdade foi muito bom, porque eu comecei a ver que existia um mundo, mas ainda era um mundo do tipo: “Existem mulheres como eu, as mulheres lésbicas, posso ser uma mulher lésbica aqui, em paz e feliz, na PUC”. Então, assim, foi a primeira fase, do: “Vou me vestir como eu quero e gosto de mulheres. Tá bom, então eu sou uma mulher lésbica”. Então, foi só o primeiro passo.
P/1 – E por que você decidiu publicidade? O que te levou para a publicidade, de fato, quando você pensou: “É isso que eu quero fazer” e como foi escolher a PUC, também.
R – Bom, Publicidade. Eu sabia que eu era da área da Comunicação, que era isso que eu queria, mas eu sabia que publicidade era muito ampla, então era melhor pra mim, porque qualquer coisa que eu decidisse fazer, eu ia poder fazer dentro do curso de publicidade. Já relações públicas era muito nichado. Jornalismo, não gosto de escrever, eu gosto de falar, então eu falava assim: “Gente, não vai dar pra mim. Jornalismo não” e aí foi que eu falei Publicidade. Quando eu decidi a PUC foi muito louco, porque a PUC me mudou muito, então, quando eu fui me inscrever nas faculdades, eu não queria fazer ESPM, porque a minha irmã tinha feito a ESPM e eu falava: “Um monte de playboy, não vou fazer isso e caro, não quero”. Mackenzie jamais. Eu falei: “Não, Mackenzie não vai dar, não gosto, mackenzista não” e aí sobrou a PUC e eu sabia um pouco da história da PUC, não sabia super, mas eu tinha estudado na época da escola, por conta da Ditadura e quando eu entrei na PUC pra fazer o ENEM, isso foi em 2014, que foi quando eu estava no terceiro colegial, eu falei: “Gente, essa aqui é uma faculdade particular? Credo, parece a USP”, mas eu gostei, porque parecia a USP, só que todo mundo junto, no mesmo lugar, porque a USP é aquela imensidão, cada faculdade em um lugar e aí eu falei: “Legal” e eu fui até num dia que estava fechada, porque não tinha aluno lá e tal, mas um dia eu fui com uns amigos meus. Quando eu estava no cursinho, eles falaram: “Vamos lá, pra você conhecer?” E aí eu vi o pessoal engravatado, de Direito, o pessoal de Publicidade no mesmo ambiente, o pessoal de Artes do Corpo pelado. Eu falei: “Uau! Esse lugar aqui é demais, é aqui que eu vou estudar”. Então, quando eu ‘bati de frente’, que eu fui prestar a PUC e eu passei, eu lembro que eu passei em terceiro lugar, no vestibular do meio do ano, eu falei: “‘Meu’, é isso que eu vou fazer”. Eu nunca tinha ido super bem na escola. Quando eu passei em terceiro lugar, eu falei: “‘Cara’, eu sou bom!” Porque, assim: eu passei por uma infância onde o meu pai dizia a vida inteira que eu não ia ser nada. Eu o chamo de pai, porque ele me criou. Mas quando eu sempre me refiro a pai, é o meu padrasto. Mas ele sempre foi tipo: “Ah, você não vai conseguir”. Eu repeti de ano uma vez, ele ficava ‘jogando na minha cara’. Então, eu fui criando essa síndrome de que eu não conseguia, que eu não era capaz. Então, quando eu passei na PUC, eu falei: “‘Meu’, é agora. Eu sou bom, eu vou fazer”. E aí foi muito isso, assim. E a PUC, quando eu falo que ela me transformou, é porque eu não fui formado como publicitário na PUC, eu fui formado como ser humano. Então, esse senso de democracia, o que é democracia, o que é liberdade de expressão, eu aprendi na PUC. Eu aprendi um lugar de resistência, de potência. Então, eu ver as pessoas lutando pelo que elas acreditam piamente foi assim, pra mim, um lugar onde eu realmente mais aprendi na minha vida e, consequentemente, onde eu conheci até a Roseni, aquela professora. Então, assim, eu falo: “Eu não trocaria a PUC por nada”. Eu poderia fazer qualquer faculdade, com uma infraestrutura muito melhor, mas eu seria formado como publicitário e não como pessoa.
P/1 – E como foi esse momento de um certo acolhimento que você teve na PUC, que você falou e como foi seguindo sua trajetória lá?
R – Olha, foi muito gostoso, porque eu lembro do dia do trote, que eu cheguei e, gente, eu era uma menininha mirradinha, assim, tipo não tem noção do mundo, ficava: “Meu Deus!”, medo de tudo, até de andar de ônibus. E aí eu lembro que eu olhava pro lado e eu via, que ainda na minha época, em 2015, para ser muito sincero, eu não via as pessoas muito expostas, então eu não via várias meninas namorando com meninas, vários homens, eu realmente não via, mas eu sabia que existia, que ali eu podia ser eu, que ninguém ia me julgar. E, pra mim, ali, ser chamada de ‘sapatão’, estava tudo bem. Naquele ambiente, que era seguro. Eu sentia tudo isso. E aí eu fui desenvolvendo, então eu fui começando a usar... eu lembro que eu entrei, eu usava blusinha rosa, da Hollister. Tipo: nada a ver. Shortinho branco, tipo nada a ver comigo. E aí eu entrei desse jeito e aí eu lembro que no meu primeiro ano na PUC, depois que eu comecei a trabalhar e juntei meu dinheiro, a minha primeira compra, eu fui à Renner e comprei roupa na seção masculina. Então, eu sabia que eu podia usar roupa masculina na PUC e que estava tudo bem, que ninguém ia me criticar, falar de mim e foi passando, com o tempo isso foi evoluindo, eu fui me sentindo mais à vontade pra falar de mim, da minha sexualidade, que até então era sobre a minha sexualidade, pra me relacionar com pessoas, porque durante o colégio eu namorei escondido três anos, uma menina. E aí foi difícil, então saber que na PUC eu podia ter isso e que eu não ia precisar me esconder mais, foi muito bom e aí eu fui evoluindo, evoluindo, evoluindo e era muito legal, porque eu via o quanto eu ia amadurecendo com essa pauta, o quanto eu ia entendendo o meu local, o quanto eu tinha que falar, me posicionar, mas que isso não ia interferir. Então, eu passei por trabalhos onde eu sofri muito preconceito, muito. Porque eu era assim: eu tinha um cabelo desse jeito, desse tamanho, então meu cabelo era curto, era meio Justin Bieber, até, fazia uma voltinha. (risos) Mas era isso, assim, então eu sofri, sim, preconceito. Hoje eu consigo falar disso, porque antes eu falava: “Preconceito, eu? Não, não sofri”, mas era muito velado, na fala das pessoas. Só que eu fui evoluindo, evoluindo, então paralelo a faculdade, no trabalho. Então, tipo: poxa, na própria Decathlon eu lembro que teve uma vez que um menino ‘deu super em cima de mim’ e ele falou assim: “Você não quer ficar comigo, não?” Eu falei: “Não, não gosto de homem”. Aí ele falou assim: “Mas é que você nunca ficou, pra saber, sei lá o quê”. Sabe aquelas coisas? E eu ficava assim: “‘Cara’, não quero” e eles não desistiam, era sempre assim. E tinha mais uma coisa, também: na Decathlon as pessoas me ‘pisavam’ muito, porque eu era o único, lá, que fazia faculdade. Então, era muito aquela coisa tipo: eu estava lá e tinha gente que falava: “O que você está fazendo aqui? Você faz faculdade, isso aqui é pouco pra você”, mas também tinha gente que olhava e falava: “Puta, você vai ‘decolar’ aqui, sabe? Vai ser O cara”. Mas não era o que eu queria pra mim. Eu não queria ser vendedor, depois gerente de loja. Eu não queria. Não era pra isso que eu estava estudando. Admiro muito pessoas que fazem isso, porque eu conheço pessoas que hoje trabalharam comigo e viraram gerentes, mas não era o que eu queria. Então, eu fui evoluindo junto com a faculdade, com o trabalho, tomando essas ‘porradas’ do mundo, até que teve uma vez que eu decidi e eu falei: “Nesse trabalho eu não volto mais, porque o ambiente não me cabe e eu não vou me moldar pra caber em algum lugar”. Então, eu fui criando esse senso, porque no começo eu me moldava, eu falava: “Aqui eu não posso ser muito, aqui eu não vou beijar na frente de sei lá”. E depois, menina, despiroquei. Não, brincadeira, depois eu realmente falei: “Não, é do meu jeito, é como eu me sinto à vontade e está tudo bem”. Então, a fase da faculdade foi muito importante, porque teve paralelo o trabalho também, que eu fui criando esse senso de ambiente corporativo, então como estar no ambiente corporativo, sem ter que me ‘podar’, mas também como estar em ambientes sem me ‘podar’, mas que são de entretenimentos, diversão.
P/1 – Eu queria saber o que você fez com o seu primeiro salário, você lembra?
R – Lembro. Eu fui comprar roupa. No meu primeiro salário eu falei: “Chega das blusinhas da Hollister, não quero mais, dos shortinhos brancos” e eu fui comprar roupa. Então, o meu primeiro salário eu lembro que eu comprei um doce pra minha mãe e fui comprar roupa.
P/1 – E como foi seu primeiro dia de trabalho na Decathlon, você lembra?
R – Lembro. Nossa, como eu lembro! Meu primeiro dia na Decathlon foi muito engraçado, porque eu cheguei e aí você já ganha o coletinho da Decathlon, aquela coisa bonita. Aí eu estava lá, com o pessoal, eles faziam uma reunião numa sala, colocam todos os colaboradores novos e aí eles apresentam a loja, vão passando pela loja inteira, mostram cada seção: seção de corrida, seção disso e daquilo, mostra tudo e depois vem o seu gerente e começa a te apresentar para as pessoas. Então, eu tenho muito claro, porque eu lembro que teve uma menina - primeira e única vez que eu ‘fiquei’ com alguém do trabalho – que chegou e falou: “Oi”. Aí, sabe aquela coisa que você olha pra pessoa, ela olha pra você e aí eu falei: “E aí?”, aí ela: “E aí?” Aí, beleza. A conheci. Ele falou: “Essa daqui é a fulana, de tal seção”. Aí ‘rolou um clima’, um dia, fora da empresa, óbvio, a gente saiu, ‘ficou’, não ‘rolou’, porque depois ela começou a namorar com uma amiga minha, mas eu lembro, porque eu lembro desse dia, mas eu lembro também que foi uma coisa muito louca, porque eu olhava e falava: “Meu Deus, isso daqui é gigante! Eu não vou ‘dar conta’”, mas eu saí de lá outra pessoa. Então, eu lembro que, no começo, todas as vezes eu lembro muito disso, que eu entrava muito assustado, com muito medo, mas eu saía ‘gigante’ dos lugares. Então, eu trabalhei em muitos lugares. Tive muitos trabalhos, até eu me encontrar em Diversidade, mesmo, mas eu gostei muito dos lugares que eu fui e foi gostoso.
P/1 – Alexandre, pra gente conseguir dar conta de contar toda sua história e de abarcar toda sua trajetória profissional, eu queria que você fizesse uma reflexão de quais foram os três principais momentos da sua trajetória profissional, até o trabalho que você está agora. Não precisa falar dele, mas até chegar nele, quais foram esses três momentos principais e, somado a isso, os momentos da sua vida, que eles englobam também.
R – Olha, eu posso englobar talvez os últimos três lugares que eu trabalhei e sem problema nenhum citar nome, mas tudo começou num outro momento, quando eu estava no final de 2019, eu tinha trabalhado numa agência e tinha sido mandado embora, porque a gente - foi a primeira vez que eu fui mandado embora na minha vida, primeira e única vez. A gente tinha perdido a conta e, quando você perde a conta do cliente, tem que fazer redução de custos, mandar o pessoal embora e aí isso em 2019, fui mandado embora. Beleza. Aí, um ‘cara’ que eu já tinha trabalhado ‘lá atrás’, me chamou pra trabalhar na empresa dele, só que a empresa dele era basicamente assim, familiar, ele era um cara muito preconceituoso e não entendia de nada, tinha que ser do jeito dele, mas ele não entendia de nada. E aí eu estava trabalhando nessa empresa e aí essa agência que tinha me mandado embora, me chamou de novo, pra um outro trabalho, só que era pra eu ser coordenadora de mídia, que era na área que eu queria, que a professora tinha falado e eu comecei a trabalhar em dois lugares. Então, era como se eu fizesse tipo ‘freela’, num e trabalhasse no outro. Então, eu ia presencial em um e no outro, um e no outro, era assim. E aí não existia nem pandemia, nem home office, mas eu dava meu jeito. E faculdade junto. Não, aí eu já tinha me formado, já era final de 2019, que eu me formei no meio. E aí, nisso, foi quando ‘virou minha chavinha’, eu entendi que eu era uma pessoa trans, foi no começo da minha transição, foi no final ali, de 2019, eu estava nesses dois lugares e aí eu me deparei comigo e falei: “Eu não vou conseguir ficar nesse lugar aqui, onde tem esse cara preconceituoso, porque ele não vai aceitar e vai ser um rolo, um stress” e eu pedi as contas. Já na agência e falei: “‘Meu’, eu vou falar” e aí eu falei para as meninas, que eram a Gabi, a Lívia e a Giovana e elas: “‘Meu’, está bom, está tudo bem, vamos juntos nessa” e aí tudo começou aí, quando eu entendi e ‘abri mão’ dessa empresa. Quando eu ‘abri mão’ dessa empresa e eu estava já na outra, só que eu já estava saindo da outra também, dessa agência de publicidade, porque eu tinha combinado com eles que eu ficaria só um determinado tempo e esse tempo estava acabando. Ou seja: o meu fixo, mesmo, era nessa empresa tradicional. Só que eu falei: “Chega, não dá mais”. E quando eu falei, meu telefone tocou, aí eu falei: “Gente, número esquisito, estranho”, atendi: “Oi, tudo bem?” Na época eu usava Alê, só. Aí: “Oi, tudo bem, Alê?” “Tudo” “Queria te chamar, aqui é a fulana, a gente é de uma consultoria LGBT e a gente está com seu currículo e tem uma vaga pra uma multinacional de eletrodomésticos e eles estão querendo contratar uma pessoa trans”. Aí eu fiquei assim: “Nossa!” Porque eu tinha acabado de entender que eu era trans, então eu falei: “Puts, ferrou. Qual o tipo de trans eles vão querer?” (risos) E aí era pra trabalhar em marketing, que era a minha área e foi aí o momento, foi muito louco: quando eu ‘abri mão’ de um trabalho pra ser quem eu era, surgiu a oportunidade ideal. Então, pra mim, esse foi o primeiro momento. Foi quando eu entrei na Electrolux. E aí, quando eu estava lá, surge o segundo momento, que foi quando eu trabalhava em marketing, eu gostava muito do que eu fazia, o meu time era ótimo, eu era a primeira pessoa trans que estava lá, então ensinei muito pra eles, eles aprenderam muito comigo, a gente errou junto, eu consegui fazer tudo lá e aí chegou um momento em que eu entrei pra um comitê de Diversidade e Inclusão e aí eu falei: “ ‘Meu’, eu estou gostando disso aqui, é legal trabalhar com isso” e aí foi quando eu entendi que eu queria trabalhar com Diversidade e Inclusão, porque eu postava vídeo, eu comecei a postar muito vídeo na internet e eu comecei a ter mais seguidores, as marcas começaram a me chamar, pra fazer as coisas. Então, foi quando eu comecei a produzir muita coisa, fazer muita coisa e aí eu falei: “‘Meu’, que loucura!” Foi até quando o ano passado eu fiz a campanha da Pantys, da cueca pra menstruação. Então, eu falei: “É isso que eu quero, esse é o meu propósito, vamos embora” e eu comecei a estudar muito sobre Diversidade e Inclusão, estando na Eletrolux, fazendo as coisas de marketing. E aí surgiu a oportunidade de eu ir pro Quinto Andar, que eu vi que tinha uma vaga pra especialista de diversidade e inclusão. No começo era pra coordenador de diversidade e inclusão, enfim, depois eles reorganizaram as coisas lá. E aí me candidatei, passei, entrei no Quinto Andar. Então, ali foi o primeiro momento onde eu entendi que eu queria diversidade, já vinha estudando sobre, já fazia parte do comitê e aí foi o segundo momento, quando eu falei: “ ‘Meu’, vou me jogar de cabeça nisso, é isso que quero, vamos embora”. E aí, o terceiro momento foi quando eu não me inscrevi, mas eu recebi a proposta da B3. Eu estava no Quinto Andar, bem, feliz e aí chegaram, me abordaram e falaram: “Oi, tudo bem? Aqui é uma consultoria, que está ajudando a B3 achar um coordenador de Diversidade e Inclusão”, aí eu falei: “Gente, o que é B3?” Já comecei assim. Joguei no Google, falei: “Eita, é a Bolsa, meu Deus do céu! (risos) ‘Meu’ – eu estava com a minha namorada – “Deus, a Bolsa quer que eu vá trabalhar lá! Nunca me imaginei no mercado financeiro”. E aí eu recusei, falei: “Não vou, porque eu estou feliz no Quinto Andar, aqui é um ambiente legal, startup, tanananana. Não vou. Vou ter que ensinar pra um monte de gente o que é diversidade”. Eu jurei que eu ia ter que ensinar pra um monte de gente, pros velhos de ‘cabeça branca’, o que era diversidade, recusei e a Ana Buchaim, que é BP da B3, de marketing me ligou e falou: “‘Meu’, eu não estou aqui pra te fazer proposta, estou aqui pra te convencer a vir pra B3, é isso”. Aí eu falei: “Gente, não é possível. Será que eu sou tão bom assim?”, porque a gente começa a se questionar: “Pô, como eles me acharam? Será que eu sou tão bom?” E eu vi que eu tinha feito coisas muito legais no Quinto Andar. E que eu estava sendo muito bem-visto. E foi muito difícil, por que o que aconteceu? Nessa transição pra esse terceiro momento, quando eu falei ‘não’, eu falei pro Quinto Andar: “Vou ficar” e, nisso, a BP lá do Quinto Andar tinha feito uma proposta que eu seria o coordenador, já deixaria de ser especialista e seria o coordenador, aí eu falei: “Beleza, tranquilo, vou ficar aqui” e nisso a Ana voltou, conversou comigo, fez uma contraproposta e eu falei: “‘Meu’, quer saber? Vou aceitar esse desafio”, porque é um desafio. Diversidade e Inclusão é pra incomodar, não é pra eu ficar aqui trabalhando numa zona de conforto, onde todo mundo sabe o que é diversidade e inclusão. É pra incomodar, então se eu vou lá pra B3, eu preciso fazer a diferença lá, fazer diferente. E na minha cabeça eles estavam começando a fazer Diversidade e Inclusão. E falei: “Puts, vou ter que ensinar, mas tudo bem, vamos embora, fazer acontecer”. E foi muito difícil essa minha saída, porque a BP do Quinto Andar não gostou muito, quando eu falei: “Então, agora eu vou pra B3”, porque pô, com aquele papapapapa, parecia um jogo de... enfim. Aí eu falei: “Gente, eu vou”. Decidi que eu ia e eu estava leve, falei: “Vou pra B3”. E, assim, foi a melhor decisão que eu tomei na minha vida, porque eu falo para as pessoas: não é sobre o dinheiro, gente, é sobre você fazer o que você gosta e cada dia é um dia. Então, eu sei que eu estou aqui e que pode surgir uma emergência muito louca, uma coisa ‘cabeluda’, que eu nunca tive que lidar, mas que eu vou aprender. E que aqui é coisa de ‘gente grande’. Quando eu recebi a proposta de vir pra B3 eu sabia que ia ser um desafio, porque era o mercado financeiro, mas eu percebi que, realmente, era pra ‘gente grande’ e aí e vi que eles estavam muito evoluídos na pauta e que a gente já estava no patamar de: “Pô, a gente tem meta corporativa”. Se não fizerem diversidade, quem vai fazer? Mudando critério de listagem. ‘Cara’, isso é demais! Eu não ia conseguir fazer tudo isso e o que eu queria pra minha vida em diversidade era fazer mudança, mudar o mundo, não era só mudar o meu ‘quintal’, que era o que ia acontecer ali no Quinto Andar. Na B3 eu tenho a possibilidade de mudar o mundo, o mercado. Então, hoje eu vejo que toda a minha jornada na vida, no mercado de trabalho, em todos os lugares que eu passei, eu queria mudar o mundo, mas que por mais que eu tivesse sempre as oportunidades, eu ainda não estava transformando tudo. Eu estava, primeiro, sempre transformando o meu ambiente e o que foi bom, porque eu fui me preparando. Eu transformava o meu ambiente e aí, depois, pra mudar o mundo. Hoje eu olho pra trás e vejo que a minha jornada é, sim, muito singular, é muito ‘fora da curva’, porque eu sempre estive nos lugares certos, nas horas certas, tive as oportunidades certas, as pessoas certas do meu lado e isso foi muito bom. Então, esses três momentos me marcaram muito, porque foi ‘abrir mão’ de trabalho para ser quem eu era; depois foi ‘abrir mão’ do que eu gostava, que era marketing, para trabalhar com propósito; e depois ser reconhecido pelo que eu fazia, pra trabalhar pra transformar o mundo e o mercado. Pra mim, esses três momentos são cruciais na minha jornada de trabalho.
P/1 – Você estava falando sobre você ter saído daquele primeiro trabalho, que você não se sentia bem e eu queria saber como você se sentiu, quando você saiu. O que esse momento significou pra você?
R – Foi leve, porque parecia que, pela primeira vez, eu não estava tendo que fazer nada pelo mundo, era por mim. Porque eu tinha uma escolha na minha mão, que era: ou você vai ficar aqui e você não vai ser feliz... porque eu lembro que eu fiz um questionamento pra mim, que foi: “Eu estou bem. Eu estou trabalhando”, na época eu namorava, tinha acabado de me formar. Então, para o que é estar ‘bem de vida’, eu estava bem, só que eu não estava bem comigo e, assim, se eu não estivesse bem comigo, essas outras coisas iam desmoronar. Então, eu lembro que foi um alívio poder sair de um ambiente como esse, pra eu poder ser eu mesmo e que eu falei: “É isso, eu vou ser eu mesmo, não vou ficar aqui, vou sair daqui” e logo em seguida, eu juro, eu não cheguei nem a ficar desempregado, porque eu já tinha decidido que eu ia sair, aí surgiu a oportunidade, eu pedi as contas, ainda tirei duas semanas de férias e fui pra Electrolux. Então, quando a gente se coloca em primeiro lugar e decide por nós, tudo parece que flui. Pra mim foi um alívio. Eu lembro que foi... nossa, parecia que alguém estava esmagando a minha cabeça e tinham soltado. Finalmente. Então, foi muito bom. Foi uma sensação, realmente, de libertação.
P/1 - E para além da sua vida profissional, nesse momento, o que estava acontecendo na sua vida pessoal? Como você se divertia? O que estava acontecendo? Você tinha relacionamentos? Quais foram as mudanças, enfim?
R – Então, na época eu estava namorando, mas durou muito pouco, não durou nada, porque, assim, eu tinha, também, relações muito superficiais, porque era isso: eu não estava bem comigo, aí eu me relacionava com alguém, sabe, só que eu não estava bem comigo. Então, consequentemente, ia ser uma ‘droga’. Eu tive umas duas relações super superficiais e que eu me questionava muito sobre mim, quem eu era, tudo isso. Então, eu lembro que eu estava muito nessa fase e eu estava entrando numa fase de crise existencial, que era tipo: “‘Meu’, não estou bem comigo. Estou namorando com uma pessoa que eu não estou sendo a melhor versão de mim. O que eu vou fazer?” Então, assim, eu comecei a questionar tudo. No paralelo, eu tinha meus amigos, eu estava prestes, inclusive, a ir pro Canadá, visitar meus pais, que foi... não, os visitei um ano antes, mas o start foi a viagem, quando eu falei: “Não dá mais”, mas aí, no final desse ano eu comecei a questionar tudo, falei: “‘Meu’, não dá, o que está acontecendo?” E a minha primeira reação foi procurar terapia. Então, eu falei: “Eu vou fazer terapia, porque eu estou me entendendo como uma pessoa trans, isso é algo novo, diferente, eu preciso de uma psicóloga que entenda desse assunto” e foi quando eu achei a Marlene, que é minha psicóloga até hoje. Então, eu sempre recomendo, falo: “Pessoas, façam terapia, todo mundo precisa fazer terapia, é bom demais”. Então, foi isso. Eu estava num momento que eu tinha os meus amigos, tinha as coisas, mas era isso, eu questionava tudo o tempo inteiro. Era isso: parecia que eu estava vivendo uma vida que não era a minha.
P/1 – Alexandre, quando você começou a se entender como um homem trans, você teve uma rede de apoio que te ajudou... ajudou, não, mas que estava lá pra te apoiar?
R – Sim. Eu tive uma rede de apoio muito forte. Então, eu me entendi através de uma amiga. Durante a faculdade eu tive uma amiga que era minha 'bixete' e aí eu vi toda a transição dela, ela é uma mulher trans, travesti. E eu vi toda a transição dela, então quando eu dei trote nela, ela falou: “Ai, vocês vão cortar a minha camisa, corta em cropped”. Então, eu vi o começo da transição toda dela, que é a Fê e quando eu estava muito confuso com tudo, eu a chamei pra conversar e aí ela falou: “Amigo, eu não posso te dar essa resposta, mas eu sabia que uma hora você ia vir conversar comigo sobre isso. Então, está aqui, vai assistir uns vídeos, ler uns livros, é só isso que eu posso te recomendar”. E aí eu comecei a ver vídeos, outros homens trans e eu comecei a me entender, então era muito louco, tudo que eles falavam, eu falava: “Meu Deus!” Minha cabeça explodia. Então, a Fê foi uma das primeiras pessoas; o Alan, que é meu melhor amigo, super me acolheu. Quando eu falei pra ele, ele falou assim: “Beleza, irmão”. Na hora ele já falou: “Beleza, irmão, estamos juntos, vamos embora”. Todos os amigos. A minha família eu contei para as minhas irmãs, falei como eu me sentia, elas foram compreensivas. Contei pra minha mãe e aí a minha mãe, pra mim, essa é uma das lembranças mais bonitas que eu tenho dela, porque eu falei como eu me entendia e eu tinha que ligar de vídeo pra minha mãe, porque eu não vejo a minha mãe, presencial, desde 2019. Então, ela não viu nem minha transição. Ela me vê por vídeo, mas ela não me viu pessoalmente. Então, eu tive que contar pra ela, liguei pra ela e falei: “Mãe, queria conversar com você uma coisa importante”, fui contextualizando, falei que tinha me entendido como uma pessoa trans e aí ela falou pra mim assim: “Olha, o que eu quero que você saiba é que...” – e ela fala tudo na terceira pessoa – “... a mamãe não tinha entendimento sobre isso. Eu sempre soube que você era uma criança diferente, mas eu fiz de tudo pra que você sofresse menos no mundo ‘lá fora’. Desculpa se eu não consegui fazer tudo que eu deveria como mãe, mas eu fiz o que eu podia, com o que eu tinha”. E aquilo, pra mim, foi tudo que eu precisava, saber que minha mãe estava do meu lado, porque eu lembro que eu fazia terapia e a pauta da minha terapia era a minha mãe, eu falava: “Se ninguém quiser falar comigo, tudo bem, eu posso ser sozinha, mas a minha mãe não dá, eu preciso dela”. E é muito louco, porque a minha relação se estreitou com a minha mãe quando ela foi embora, pro Canadá, em 2017. Então, antes a gente brigava muito. Era aquela coisa de adolescente. E aí eu falei assim: “Bom, beleza, vai ser isso”. E a gente ficou muito mais próxima, depois da minha transição. Muito mais próxima. Então, a minha mãe me liga duas vezes por dia, pra saber como eu estou. A dor dela foi quando eu fui fazer a mastectomia e ela não estava aqui. Então, ela sempre se fez muito presente. Eu perdi contato com meus avós paternos. Eles nem sabem, eu acho, que eu fiz a transição. O meu pai eu contei pra ele, mas ele também falou: “Ah, tá bom”. Não falo sobre com ele. Mas é isso. Quem tinha que estar aqui, está aqui. E eu acho que é muito sobre isso, porque quando você faz uma transição, eu gostaria que todas as pessoas pudessem sentir as coisas que eu senti fazendo uma transição, que é a gente se amar mais, se colocar em primeiro lugar e mais do que isso, a gente entender, de fato, que tem lugares que não vão ser nossos e não é que a gente tem que ir lá e obrigar que seja. É porque, realmente, não cabe para gente. Então, tem pessoas sim que a gente vai deixar ir embora, porque elas vão seguir caminhos diferentes e está tudo bem, não é que a gente brigou com a pessoa. Isso é ter maturidade. Então, a minha rede de apoio foi muito vasta, eu tive muita gente ao meu redor, mas é o que eu sempre falo: “A transição é coletiva, mas ela também é muito individual e é uma jornada solitária. Muitas vezes você olha pro lado e não vê pessoas como você”. Então, eu falo sempre isso, que eu olho pro lado, eu não vejo heads de diversidade e inclusão que são pessoas trans, eu não vejo pessoas trans em cargos altos, como o meu. Eu não vejo e quando eu vejo são donas da própria empresa delas, são CEOs de sei lá o quê. Então, é solitário. Você olha pro lado e vê que é solitário. Mas essa rede de apoio faz muita diferença, pra que a jornada seja mais amena. Então, ter companhia faz com que os dias fiquem menos solitários.
P/1 – Eu queria saber como seu trabalho, hoje, funciona. Como é ser coordenador de diversidade e inclusão?
R - Ser coordenador de diversidade e inclusão é um dia de cada vez. Então, a gente brinca e fala que cada dia é um ‘leão que a gente vai matar’, mas por quê? A gente tem um papel muito sério, que é um papel que eu estou ali, num cargo sério, que eu estou não só coordenando a minha equipe, mas a pauta. Então, além de gerir uma equipe, eu tenho que gerir uma pauta, que é uma pauta extremamente importante e hoje eu estou num momento B3, que é um momento que a gente não está mais naquela coisa de bê-á-bá. E, também, a gente não está em um momento de ter que convencer que diversidade é importante, as pessoas já entenderam. Nosso CEO já entendeu que diversidade é importante. A gente está em um momento em que sim, a gente precisa falar da pauta, sempre. Precisa. A gente precisa falar de racismo estrutural toda hora, de discriminação o tempo inteiro, precisa sim educar as pessoas toda hora, mesmo porque entra e sai gente da empresa. E a gente sabe também que tem muito comentário que as pessoas fazem, que não chega na gente, que as pessoas acabam ficando com medo, receio. Mas para além disso é ser estratégico, então como eu faço diversidade e inclusão mudar o meu mercado? Porque diversidade e inclusão por diversidade e inclusão todo mundo sabe fazer. Hoje em dia o que não falta é consultoria de Diversidade e Inclusão, gente falando de diversidade e inclusão, mas como isso muda realmente o ‘ponteiro’ do meu mercado? Então, como sendo a B3 a indutora de mercado, eu faço com que diversidade e inclusão atinjam meus clientes e o mercado ‘lá fora’ e que eles mudem? Será que é eu colocar um programa e fazer em conjunto com o mercado? Será que é eu mudar os critérios de listagem e falar para as pessoas: “Então, a gente precisa mudar”. Os conselhos administrativos têm que mudar. Então, é um dia de cada vez. Hoje eu posso estar ocupado, fazendo censo de diversidade, que a gente faz de dois em dois anos. Então, hoje eu posso estar ocupado fazendo o censo, olhando os números, entendendo o quanto a gente evoluiu. Amanhã pode ser que eu esteja tratando de um caso que alguém discriminou alguém. Então, é um cargo de muita responsabilidade, porque sim, as pessoas ouvem o que a gente está falando e muitas vezes o que a gente fala é verdade. Então, as pessoas tomam como verdade o que o Alexandre falar. Se o Alexandre falar não, é não. Porque é isso: eu sou formado em Diversidade e Inclusão, fiz pós-graduação disso, continuo estudando sobre isso, então eu tenho um vasto conhecimento sobre isso, que muita gente que está ali não sabe o quanto isso interfere nos ponteiros. Mas ao mesmo tempo é o que eu sempre falo e instigo nas pessoas: “Eu não sei tudo de diversidade e inclusão e não vou saber. As siglas mudam o tempo inteiro, as coisas mudam o tempo inteiro. Então, se eu não sei, vocês também têm que ir atrás do assunto”. É um assunto, muitas vezes, de professor no dia a dia, a gente tem que ensinar, contar como as coisas aconteceram. Muitas vezes ‘puxar’ a história, mesmo, que a história é ‘apagada’, com o tempo, a gente sabe disso. Mas para além disso também é ser estratégico, de verdade. Então, fazer coisas que realmente mexam e façam ‘barulho’. Então, ‘meu’, mudar esses critérios de diversidade fez ‘barulho’. Colocar isso em audiência pública fez um ‘barulho’ que a gente recebeu xingamento de um lado e elogio de outro. Teve gente que falou: “Muito bom o que vocês estão fazendo, mas ainda é pouco”. E é verdade. Ainda é pouco, mas a gente precisa começar de algum lugar. Então, hoje, quando eu olho pro meu trabalho e pra minha jornada, eu falo: “É isso”. Porque se hoje eu conseguir mudar a cabecinha de uma pessoa, eu já ‘ganhei o meu dia’. Se eu já conseguir a pessoa olhar pro filho dela, que está em casa e que ela não sabe o que está acontecendo com o filho, assim como minha mãe não sabia, que minha mãe não tinha experiência, insumo, pra mim já está ganho. Diversas vezes, eu recebo mensagens de mães falando: “Puts, meu filho se sente assim e eu não sabia”. Então, pra mim é muito isso: o meu trabalho vai muito além do que é um ambiente corporativo, dentro do que é a B3, o centro do capitalismo, que a gente brinca. É muito além, é realmente humanizar a causa, as pessoas e mudar a cultura, porque hoje a gente brinca e fala: “‘Cara’, a cultura da B3... ninguém sabe o que é a B3, até entrar lá”. As pessoas realmente acham que é isso: que a gente vai engravatado, que é chato, que é um monte de gente branco. ‘Cara’, a gente duplicou a quantidade de pessoas negras, triplicou a quantidade de estagiários negros. ‘Meu’, é muito louco isso! Mulheres em liderança a gente não para de crescer. E é muito doido porque, num ano, a gente cresceu muito tudo isso e a gente trabalha com isso desde 2018, o que é pouco tempo. É o que eu falo: a diversidade começou no Brasil há pouquíssimo tempo. Eu falei pra você: quando eu entrei na faculdade as pessoas falavam, mas era ok, era assim, sabe? Hoje, quando eu olho para as instituições da faculdade, pra bateria, pra atlética, é diverso. Hoje, quando a gente vai fazer jogos na faculdade, eu não estou mais na faculdade, mas eu vejo quando as pessoas falam. As pessoas se preocupam com banheiros sem gênero, porque tem pessoas trans que vão tomar banho. Então, hoje eu olho pra isso e eu falo: “O mundo está mudando”. É devagar? É, mas está mudando. E saber que eu consigo fazer parte dessa mudança, porque a B3 tem um papel muito importante, pra mim é maravilhoso. Então, o que eu falo: o meu dia não tem rotina. Eu acordo, hoje eu vou fazer uma coisa, amanhã outra, vou participar de um evento. É muito doido, mas é muito gratificante. Eu falo que todos os caminhos me levaram até a B3, porque era o que eu queria fazer da minha vida e levar visibilidade para essa pauta, de verdade. De forma genuína.
P/1 – Eu queria saber se, desde que você entrou no mercado financeiro, até hoje, você consegue perceber mudanças na questão da agenda da diversidade e inclusão.
R – Eu consigo perceber no mercado como um todo, eu acho que não só desde que eu entrei no mercado financeiro, mas desde que eu comecei a trabalhar, eu vejo a mudança no mercado financeiro acontecer de verdade. Então, é muito legal, sim, a gente saber que quando a gente fala de diversidade e inclusão, vem o Itaú na nossa cabeça, hoje pode vir a B3, amanhã vai vir outro banco, porque não era assim. Nunca foi assim. Quem estava lá... é que nem o que a gente fala de conselho administrativo, é por indicação e aí o branco vai indicar o branco, o velho vai indicar o velho, o amigo que fez Insper com ele. É assim que funciona. E hoje, quando a gente vê, semana passada a gente lançou a primeira turma de conselheiros negros. Isso, pra mim, é a mudança sendo feita. Acho que não precisa voltar lá atrás e falar de números. Então, eu vejo a mudança muito clara na minha frente, porque é o que eu falo: por isso que ‘lá atrás’, quando eu recebi a proposta, eu recusei, porque eu não acreditava que o mercado financeiro poderia ser diferente, mas quando eu entrei na B3, eu falei: “Pode ser” e é e, assim, pra você ter uma noção, a pauta de eu ser trans, nunca foi uma pauta, nunca me perguntaram, nunca me desrespeitaram, nunca nada. Eu sempre vivi minha vida normal, me respeitaram, como tinham que me respeitar e eu puxo as pautas. Então, mas quando era comigo era assim, assim e ‘assado’. Tanto que eu falo uma coisa: antes da transição, eu queria falar, dar opinião, eu não era escutado. Eu tinha que gritar, falar sei lá quantas vezes mais alto. Hoje eu falo e eu sou escutado, porque eu sou homem. Então, mesmo dentro da transição, eu sou um homem. Então, o mundo é muito machista ainda. Então, eu vejo a mudança, as pessoas se respeitando mais, se preparando mais, mas estar dentro do mercado financeiro e ver essa mudança acontecendo com os próprios olhos é incrível, porque sim, é ‘dor de cabeça’. No dia que a gente soltou a audiência pública, a gente falou: “Ferrou”. Um monte de gente criticando, mas assim: aquilo ali era contribuição? Não. Era crítica de muita gente que não estava embasada em nada. Então, assim: era só homofóbico, só machista, era isso. E quando eu olho o mercado que eu conheci lá atrás, que os meus amigos trabalhavam, tanto que antigamente era: “Vou trabalhar em banco, porque dá dinheiro”, hoje em dia eu vejo que não. Dá pra ser um ambiente sim, que você vai ganhar bem, mas feliz. Então: “Não estou bem, estou com ansiedade” “Tá bom, fica em casa” “Estou passando por uma transição” “Tá bom, a gente vai te ajudar, te acolher”. Então, assim: é o ambiente que eu sonhava pra mim quando eu entrei no mercado de trabalho. Hoje eu vejo essa geração entrando e eu falo: “Era tudo que eu queria ter quando eu entrei no mercado de trabalho”.
P/1 – Como funcionam as iniciativas? Eu queria que você falasse um pouco sobre essa audiência, como foi, sobre o que era, enfim e como funcionam as outras iniciativas de diversidade e inclusão, de onde você trabalha.
R – Bom, sobre a audiência pública, o que acontece? A gente tem um órgão regulatório, que é a CVM e a gente tem que colocar em audiência pública, para votação. Então, se a gente quer mudar os critérios de listagem, a gente precisa colocar ali e provar pra CVM que faz sentido. Então a gente colocou em votação no sentido de contribuição, mesmo, para que as empresas contribuíssem. Então, não é um sim, ou não, é: o que você acha que pode melhorar? Por que você não concorda? Quais são seus argumentos? São as contribuições. E aí a gente colocou isso em audiência pública e isso ficou aberto por um mês, para que todo mundo contribuísse, então nossos fornecedores, clientes, parceiros, todo mundo e eles falassem, porque não é que a gente ‘tirou isso da cabeça’, pra falar melhor, mas a gente estudou sobre isso, olhou pro mundo ‘lá fora’ e falou: “O que tem que fazer de diferente, pra que diversidade mude o ‘ponteiro’?” E a gente olhou para as outras Bolsas: de Hong Kong, Nasdaq e a gente viu que eles já tinham alguns critérios. A Nasdaq, se eu não me engano, se não me falha a memória, já tem isso de ter mulheres em Conselhos e pessoas negras, para quem vai listar. Hong Kong também. Inclusive, a Nasdaq, se não me engano, também tem pessoas asiáticas, porque é isso: você tem que olhar o público que tem no seu país. E aí a gente começou a fazer esse estudo e olhar pra cá, pro Brasil. O que faria sentido? Hoje, uma pauta muito forte é a gente que está ascendendo, ter mulheres no Conselho. Então, ainda é fraco, mas é a que mais tem ascendido, ter mulheres em Conselho. Depois a gente foi e falou assim: “Está bom, então a gente vai estipular uma mulher em Conselho e mais algum grupo minoritário”. Então está bom, esse outro grupo seriam negros, pessoas com deficiência e LGBT. E aí também não tem, por quê? Porque tem empresas que já estão listadas e tudo isso parte do princípio que, quando a gente olhou números, a gente viu que 60% das empresas que estão listadas, não têm mulheres em Conselho. Então, a gente precisava mudar esse ‘ponteiro’. Beleza. Tem empresas que já estão listadas, tem empresas que querem listar. Então, a gente estipula esses critérios, a partir do momento que a CVM aprove em audiência pública e eles começam a valer a partir de 2025. Por quê? Porque a gente não quer que as pessoas façam diversidade, por fazer. Então, eu vou ‘enfiar’ uma mulher no meu Conselho de hoje pra amanhã, ‘enfiar’ uma pessoa negra de hoje pra amanhã. Então, não. A gente estipulou que até 2025 a gente quer ter essas mulheres em Conselho, o primeiro grupo, o primeiro público e até 2026 o segundo público. Uma pessoa pode absorver os dois públicos. Então, por exemplo: se eu tiver uma mulher negra, ou lésbica, ela pode absorver. Então, é isso: a gente estipulou tudo isso, estudou muito, entendeu como fazer, queremos fazer melhorias, achamos também que ainda é pouco, mas precisamos começar de algum lugar. Muitas pessoas perguntam: “Mas e os indígenas? Sei lá o quê”. Porque a gente não chegou nesse momento, ainda. Quando a gente fala de mercado financeiro, a gente ainda está ‘engatinhando’ com algumas coisas. A pauta de pessoas indígenas a gente ainda está falando disso e, assim, me corrija se eu estiver errado, mas quando a gente fala dessa pauta, a gente ainda está falando sobre direitos, que as pessoas não dão o básico pra eles. Então, assim: sentar num cargo de administração requer diversas outras coisas. Não é que eles não têm capacidade. É que a gente precisa ‘caminhar’ devagar. Quando a gente olha pra Brasil, sim, temos muitos indígenas. Então, no futuro, a gente pode mudar essa regra e pode ser que a gente fale: “Beleza, agora indígena vai entrar nesse outro grupo também, junto com PcDs, com LGBT e com pessoas negras”. Pode ser, existe uma evolução, nada é fixo, ‘desenhado em pedra’ e acabou. Então, esse é o anexo, que a gente fala, a ESG que a gente colocou em audiência pública. Então, a gente recebeu muitos comentários de: “‘Meu’, demais o que vocês estão fazendo, mas ainda é muito pouco, precisa melhorar mais”. Sim, é aquilo que eu falei, mas a gente vai começar de algum lugar e precisa ser desse lugar, então a gente estipulou essas datas, para que as pessoas procurem, realmente elas tragam essas pessoas e porque a gente também quer fazer. Então, um desses grupos a gente atinge, que é ter mulher em Conselho. Hoje a gente tem três mulheres em Conselho, se não me falha a memória e agora a gente precisa ter outro grupo minoritário. Então, qual vai ser? A gente ainda está vendo, mas provavelmente vai ser uma pessoa negra. Isso é uma coisa que está sendo super especulada e provavelmente vai ser algo que vai se sentar nessa nossa cadeira. E sobre as ações aqui dentro, todas elas têm que ser muito estruturadas e pensadas, então toda ação parte da nossa base. Então, o que é a nossa base, Alê? A nossa base é: a gente tem o censo, que é uma fotografia daquele momento e a base, que é atualizada todo mês, porque entra e sai funcionário. Então, a gente cruza essas fotografias. A gente acabou de fazer um censo, deu X porcentagem, a gente evoluiu tanto, ok e a nossa base cruzou, a gente conseguiu os números. Beleza, a gente viu que a gente está aumentando o número de mulheres, muitas mulheres na B3, mas a gente quer mais mulheres na liderança. Então, o que a gente faz? Programa de aceleração de carreira. Então, hoje a gente tem um programa rodando agora, de mentoria, para mulheres e esse programa tem recorte racial, então 50% são mulheres negras e 50% mulheres brancas. Então, a gente olha pra isso, porque a gente também tem uma coisa, que é o nosso bound, uma dívida que a gente lançou pro mercado, que tem índice de diversidade e inclusão. Então, essa dívida, se não me falha a memória também, é de setecentos bilhões de dólares e os parâmetros dessa dívida de diversidade são a gente ter 35% de mulheres em cargo de liderança até 2026 e um índice de diversidade também, que a gente vai lançar pro mercado ano que vem, que é o ano teste. Então, pra que a gente tenha essas mulheres, 35% em liderança, a gente precisa trabalhar para que essas que estão aqui se desenvolvam, certo? Então, isso é a gente trabalhar estrategicamente. Quando a gente fala de pessoas com deficiência, a gente entende que pessoas com deficiência não são só aquela cota que o Ministério fala pra gente. E por que eu falo isso? Porque nas empresas, muitas vezes, tem muito mais pessoas com deficiência, que estão fora da cota, porque elas não são enquadradas perante o Ministério do Trabalho, mas a gente precisa olhar para elas e desenvolvê-las. Então, hoje cota é uma coisa que já ficou pra trás na B3, a gente trabalha o desenvolvimento dessas pessoas. Então, a gente fez o programa Plural, para que essas pessoas entrassem, hoje a gente está com um programa de colocar jovens autistas, então já entrou a primeira leva agora, a gente já está criando, para entrar a segunda. O nosso programa de estagiários negros está na segunda edição. Então, a gente traz mais pessoas negras, essas pessoas, 70% foram efetivadas no primeiro programa. A gente está com um programa de Jovens Aprendizes Trans, então estão entrando pessoas trans na B3. Então, é você ser estratégico, olhar pros números e falar: “Beleza, aqui eu não tenho, então o que eu preciso fazer? Contratar. Beleza, aqui eu tenho, mas o que eu preciso fazer? Desenvolver”. Então, é ter essa estratégia e ver qual o melhor programa, o melhor fornecedor para te ajudar com isso, porque não adianta: pô, beleza, esse fornecedor é da Natura, do Nubank, sei lá o que, mas e aí, vai funcionar pra B3? Talvez não, porque tudo tem a ver com cultura. Então, no final, todos os nossos programas, tudo que a gente faz, as ações que a gente faz reverberam de alguma forma. Uma coisa que eu gosto muito de fazer, que tem feito muito sentido, são as rodas de conversa, porque elas conscientizam muito as pessoas. Então, esse ano a gente fez roda de conversa de empregabilidade de pessoas trans, que eu participei, contei da minha história, expliquei, as pessoas ficaram: “O que é isso?” As pessoas sempre ficam: “Meu Deus, uau, nossa!” A gente trouxe também roda de empregabilidade de pessoas com deficiência, a gente fez da empregabilidade de mulher negra no mercado financeiro. Então, isso faz com que as pessoas comecem a ter mais consciência e entender, que é o famoso ‘teste do pescoço’, que a gente fala. É só você olhar pro seu lado e ver quem tem igual a você. Então, hoje, quando a gente olha pra B3, é muito legal, porque a gente faz o ‘teste do pescoço’ e ele é muito diferente do que há dois anos. Então, são essas as iniciativas e esse é o anexo ESG, que a gente fala sobre os critérios que a gente compõe a audiência pública.
P/1 – Alexandre, eu queria saber se você já enfrentou alguma dificuldade no trabalho, por ser quem você é e se houve algum tipo de preconceito, ou se foram barreiras, dificuldades.
R – Eu já enfrentei ‘lá atrás’. Hoje, não. Hoje não é uma coisa que eu enfrento, hoje eu sou super ouvido, super respeitado. No trabalho anterior também era super ouvido e respeitado. A gente sempre ouve um comentário, ou outro, que chega na gente, porque as pessoas nunca falam diretamente, mas eu já sofri no passado, sabe, que as pessoas realmente comentavam, falavam de mim. Muitas vezes elas também julgavam a minha vida pessoal com a vida profissional, então já aconteceu, quando eu trabalhei em agência de publicidade foi assim, difícil e teve até uma agência em específico, que uma mulher achou todos os pretextos possíveis pra falar, justificar o preconceito dela. E aí eu saí de lá também, falei: “Não vou ficar aqui, não, completamente sem noção”, mas eu já passei. É que grande parte do que a gente passa é velado e a gente descobre, a gente entende, na verdade, anos depois. Anos depois a gente fala: “Meu Deus, isso daqui aconteceu, eu não tinha percebido”. Então, já passei assédio moral, assédio sexual com homem ‘dando em cima’ de mim, mas é isso: anos depois eu entendi o que tinha acontecido e não no momento, então na hora eu não tive ação. E acho que até por isso que hoje eu sou super bronco com as coisas de denúncia. Eu levo muito a sério, falo: “Gente, é óbvio que isso está acontecendo. Vocês não estão vendo?” Então, sempre levei muito a sério isso.
P/1 – E qual o momento mais desafiador da sua trajetória profissional, até hoje?
R – Eu acho que o momento mais desafiador está sendo agora, com certeza, porque junto com essa relevância toda, vem essa visibilidade. Então, é desafiador porque não é que a gente não pode errar, a gente pode, mas a gente se tornou referência no que a gente faz, então é desafiador. Eu já me tornei referência, como eu vou inovar mais ainda? Como eu vou fazer diferente? Então, é o que eu brinco: parece que antes eu estava no playground, sabe, brincando, nos trabalhos que eu passei, que eu trabalhei com diversidade. E não é uma crítica isso, é realmente sobre preparação, mesmo, sobre maturidade. Então, quando eu olho pro Quinto Andar, eu falo: "Putz, eu estava no playground da minha vida. Eu estava ali, naquela graminha, brincando e aprendendo o que era diversidade”. Hoje não, eu impacto vidas, mercado, eu tenho que olhar pra isso, eu tenho que mudar isso. Então, hoje com certeza é muito mais desafiador, porque o impacto é muito maior, a gente impacta milhões de pessoas, o Brasil inteiro e tem que ter muita responsabilidade pra fazer isso, muita cautela pra fazer tudo e então eu acho que isso é uma coisa que, pra mim, fez muita diferença essa jornada toda, lá atrás eu ter trabalhado como vendedor, como publicitário e tudo isso, porque eu absorvi o que era o mercado de trabalho, porque hoje eu vejo muito as pessoas querendo falar de diversidade, mas elas querem ‘chutar a porta’ da empresa, para entrar. Não é assim que você entra com diversidade no ambiente corporativo. Eu falo muito que é uma linha muito tênue entre você militar e você trabalhar no ambiente corporativo, com diversidade. Muita gente, muuuuita gente milita e não dá certo, porque as pessoas não ‘engolem’, não querem saber, falam que é mimimi, popopo. Por quê? Porque você não está mostrando o ‘ponteiro’ mudando, você só está falando o bê-á-bá, o que é diversidade. E você precisa mostrar o ‘ponteiro’ mudando, não em dinheiro, mas pra você mostrar o quanto está impactando no mercado, de verdade. Então, quanto essa diversidade está impactando o seu mercado? Você está tendo mais produtividade, de verdade? As pessoas estão mais felizes, tendo menos burnouts, menos crises de ansiedade, sabe? Tudo isso tem a ver com Diversidade e Inclusão. Tudo isso. Então, quando a gente olha pra isso, não é diversidade por diversidade, que é o que muita consultoria faz, que é o que eu falei que todo mundo hoje sabe fazer diversidade. É como você trabalha isso no mercado e o mercado financeiro é o mais desafiador pra mim. Eu acredito que a indústria deve ser difícil também, mas o mercado financeiro tem sido o meu maior desafio de todos e tem sido muito legal, porque tem muita coisa legal que a gente consegue fazer e que a gente não imaginava, porque a gente já vem com aqueles vieses do que é mercado financeiro.
P/1 – E até hoje, quais foram os maiores aprendizados na sua trajetória profissional?
R – (risos) Com certeza o maior aprendizado é paciência, muita paciência, porque tem hora que a gente ouve alguma coisa, alguém fala um não e você só quer matar e esgoelar alguém, mas eu acho que é você ter muita paciência, pra você ponderar. O maior aprendizado que eu tive foi escolher as minhas batalhas. Eu acho que não dá pra lutar todas as batalhas e, mais do que isso, pra que eu lute uma batalha, eu preciso de um exército e o meu exército não vão ser pessoas que estão contra mim, que eu vou tentar converter. O meu exército são pessoas que já estão comigo, que já entenderam a relevância e que a gente vai lutar, pra tentar converter as outras. Então, isso de escolher batalhas e ter pessoas com você, que lutam pelo mesmo que você, é crucial, porque muita gente ‘nada, nada, nada e morre na praia’, porque quer converter a empresa, quer mostrar que é importante, que precisa, isso e aquilo, mas ninguém está ‘comprando’, não tem uma alma ‘comprada’, só tem você. Então, você não vai mudar aquele ambiente. Pode ser que você mude, ótimo, mas você precisa de mais gente com você. Então, pra mim a paciência, essa calma para lidar com as coisas, escolher as batalhas e ter uma equipe, não necessariamente pessoas que são do seu time, mas ter uma equipe, um squad com você, é crucial. Eu aprendi muito isso, nesse tempo.
P/1 – E como é o seu dia a dia hoje?
R – Louco. (risos) Uma loucura! Eu brinco e falo que eu nunca me senti tão feliz trabalhando. Isso é fato. Que tinha vez que eu ficava: “Ah, não quero, sei lá o quê”. Eu amo ir pro escritório, pra mim é muito gostoso estar no escritório, com as pessoas, é bem bom, me traz energia. Eu sou uma pessoa que precisa de outras pessoas. Então, pra mim isso é muito gostoso, mas não tem rotina. Então, é isso. É uma loucura, mas eu acho que sempre eu chego no final do dia e eu fiz alguma coisa que mudou a minha vida, ou a de alguém e isso, pra mim, não tem preço. Às vezes, eu estou ‘morto’, cansado, esgotado, mas a gente conseguiu, então, puts, quando a gente fala: “ ‘Meu’, consegui enquadrar alguém que nunca foi enquadrado por nenhuma empresa”, mas a pessoa tem a deficiência. E aí o nosso médico é o médico certo, que sabe fazer, faz de forma correta. Ou quando a gente consegue contratar alguém que a gente fala: “ ‘Mano’, a gente queria muito esse candidato, mas um gestor estava super enviesado”, porque a gente não muda a nossa vida, a gente muda de uma família inteira, muitas vezes. Então, pra mim, uma das coisas mais legais nesses últimos tempos, foi fazer o programa para entrarem os meninos que estão dentro do espectro autista. É muito legal quanto as pessoas aprendem. Então, o que pra elas era estranho, diferente, se torna a rotina: “Ah, não, agora então eu vou ensinar de um jeito diferente, porque esse é o jeito que eu estou acostumado a aprender, mas não o outro”. Então, todos os dias são muito doidos, mas muito legais.
P/1 – E o que você gosta de fazer, nos seus horários de lazer?
R – Eu gosto muito de passear, eu sou a pessoa que gosta de passear pra comer, então eu gosto de conhecer restaurantes etc. Eu vou bastante pra chácara da minha namorada, com ela, então a gente desconecta 100%, fica lá em Itatiba, no interior. Eu voltei a fazer exercício, então eu gosto de correr, de ir pra academia. Eu toco ukulele, então eu também gosto de tocar, pra desestressar. Ver série, ler livro, estudar, porque, pra mim, não tem assunto que mais atualiza do que diversidade e inclusão. Vocês podem falar o que for. Diversidade é uma coisa, assim, que não tem fim. É livro atrás de livro que eu leio, artigo, então eu gosto muito. Mas é isso: muitas vezes eu só desconecto, eu gosto só de chegar... eu falo muito isso: a minha casa não é um ambiente de produtividade, é um ambiente de descanso. Então, quando eu estou em casa, eu estou assistindo alguma coisa, vendo alguma coisa, completamente desconectado, mas tem uma vela acesa, um incenso aceso, uma coisa assim, porque é pra eu desconectar. Então, eu também sou uma pessoa que gosta de relaxar, porque é o que eu falei: o assunto que a gente lida não é 100% fácil.
P/1 – E quais são as coisas mais importantes pra você, hoje?
R – Família, número um. Saúde, com certeza porque, se eu não tiver saúde, nada flui. E propósito. Acho que ter um propósito claro é muito legal, porque lembro muito do tempo que eu ficava: “Meu Deus, eu não tenho propósito” e hoje eu sei, hoje eu tenho muito claro o propósito que eu tenho na minha vida. Então, família, saúde e ter um propósito é o que me move.
P/1 – E quais são os seus maiores sonhos, hoje?
R – Viajar pelo mundo, eu quero viajar muito, mesmo; ter a minha casa, uma casa, poder ter uma casa, mesmo, num lugar com grama, campo aberto, ter essa segurança; e saúde, pra eu poder ter tudo isso. Então, pra mim essas são as coisas que eu mais busco, sabe? Então, eu trabalho muito, mas eu não me privo de nada. Então, puts, eu quero ir em uma viagem? Eu vou fazer. Eu quero fazer, eu vou fazer, nem que eu tenha que colocar mais dinheiro ali do que eu gostaria, mas eu tenho o sonho de conhecer a Europa toda, porque eu gosto muito de história e desde pequeno as nossas viagens eram sempre para Canadá e Estados Unidos. Então, eu nunca tive isso. Pra mim eu já realizei o meu primeiro sonho, porque ano que vem eu vou pra Itália. Então, esse já é o primeiro sonho realizado, que é uma coisa minha, uma conquista minha, sem ninguém. Então, isso, pra mim, está sendo muito bom e o segundo só é, realmente, ter essa minha casa.
P/1 – Qual o legado que você deixa para o futuro?
R – Eu acho que isso do propósito. Faça com propósito, com amor porque, no final, você só precisa colocar pro mundo aquilo que você quer, realmente, deixar, aquilo que faltou pra você, mas com amor, porque tem muitas pessoas que deixam as coisas com ódio. Eu não tive, então vou deixar assim, malfeito. Então, deixem com amor. Porque hoje, quando eu olho pra trás, eu não tive mesmo uma empresa no meu primeiro emprego, que fez por mim o que hoje eu faço pelas pessoas, mas é muito gostoso eu poder fazer. Então, tenham esse senso. E eu acho que o meu legado é muito: saiba os lugares que te cabem. Não se molde pra caber em lugar nenhum. E, mais do que isso, se você não tem uma referência, se não existe nenhuma referência de quem você quer ser, seja essa referência. Você pode se tornar essa referência. Então, pra mim é muito isso: hoje, quando eu olho pro Alexandre de hoje e pro Alexandre de cinco anos atrás, eu sou a minha maior referência. Eu cheguei num lugar que eu jamais achei que eu chegaria. Então, ter esse senso de pertencimento, acreditar em mim e poder fazer com muito amor e colocar para os outros, fazer com que os outros tenham o que eu não tive, é demais. Então, pra mim, é isso: a gente sempre ter esse senso.
P/1 – A gente já está chegando ao fim, tenho só mais duas perguntas. A primeira delas é um momento mais livre. Eu gostaria de saber se você quer contar alguma história que eu acabei não perguntando, ou deixar uma mensagem.
R – Eu queria contar a minha história da camisa branca. Eu nunca usava camisa branca. Nunca. Porque marcava o peito. E quando eu fiz a mastectomia, a primeira coisa que eu fiz foi colocar camisa branca, pra ver como ficava e óbvio, com outras cores, mas a cor que mais me ‘cai bem’ é branco e saber que eu posso usar é muito gostoso. Porque eu me libertei, me senti bem. E eu acho que isso tem muito a ver com aquilo que eu falei de não estar em lugares que não te cabem. Antes, tanto o meu corpo... e não porque era um corpo errado, porque as pessoas têm muito essa narrativa, de achar que era um corpo errado. Não, era o corpo certo, eram as minhas histórias, eu tinha que passar por tudo aquilo. Esse é o meu corpo. Mas antes eu estava num momento da minha vida que não me cabia a camisa branca. Eu insistia em colocar, não cabia, não ficava bom, isso pra tudo: pro trabalho, para as amizades, pros amores e depois, quando eu me encontrei, é a camisa que mais veste, perfeitamente. Nada fica ruim de camisa branca. Então, eu acho que é exatamente sobre isso, que é essa mensagem. Quando você vestir, você vai ver que vai ficar perfeito. E é isso: se não couber, não use, porque não vai funcionar. Vai te fazer mal e trazer muitas coisas piores. Então, seja branca, vermelha, preta, vista a camisa que te cabe, que te serve.
P/1 – Alexandre, o que você achou de contar um pouco da sua história hoje, revisitar um pouco da sua trajetória?
R – Foi muito gostoso. Tinha coisa que eu não revisitava fazia tempo, então acho que minha infância, adolescência, tem muitos lugares que a gente para de acessar com o tempo, por falta de tempo, por falta também de lembranças que a gente, muitas vezes, vai esquecendo e quando a gente revisita, a gente lembra, começa a lembrar melhor, então poxa, eu até descrevendo o sítio, eu lembrei dele, então pra mim foi muito gostoso, eu acho que me dá energia pra continuar. Porque eu estava no ‘piloto automático’ das coisas. Óbvio, eu trabalho muito feliz, com muito propósito, tudo, mas às vezes a gente esquece e isso é uma coisa que eu sempre falo: “Eu sou muito grato à pessoa que eu era, a pessoa que eu nasci, à criança que eu fui, o adolescente que eu fui”. Eu sou muito grato, porque eu olho pra trás e falo: “A gente conseguiu. A gente achou que não ia conseguir, mas a gente conseguiu”. Então, você foi firme, forte e bom. Então, olhar pra trás... eu lembro que mesmo no meio de muita crise de ansiedade, de choro, de incertezas, eu fui firme, eu ‘’segurei as pontas’, então é muito gostoso olhar pra trás e ver que eu cheguei aonde eu cheguei, que a gente chegou, eu e o eu do passado, juntos e é uma delícia revisitar.
P/1 – Alê, eu queria agradecer muito, muito mesmo, foi muito bom, muito bonito esse final, emocionante. E queria agradecer em nome do Museu, do Banco Pan, em meu nome.
[Fim da Entrevista]
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