Entrevista de Edson Lopes e Morgana Masetti organizadores do projeto Memórias de Pacientes dos Doutores da Alegria- SP.
P - Então eu queria começar pedindo, por favor, que você dissesse seu nome completo, a sua data de nascimento e onde você nasceu?
R - Meu nome é Rodrigo Hübner Mendes. Nasci em 71 aqui na cidade de São Paulo.
P - Que dia de 71?
R - 30 de setembro.
P - Você nasceu aonde? Em que bairro?
R - Eu nasci na Maternidade de São Paulo e aí, quando eu era pequeno morava na Granja Viana, mas logo meus pais se mudaram aqui para região do Morumbi, aonde eu passei toda minha infância, depois eu mudei para uma outra casa no mesmo bairro. E agora pela primeira vez eu atravessei o rio, né? Fui morar em Pinheiros já com 32 anos.
P - E qual...eu ouvi teu sobrenome...o sobrenome do meio é...
R - Austríaco.
P - Austríaco?
R –É.
P - Qual que é a tua origem?
R - Então, é uma mistura, por parte da minha mãe tem esse lado austríaco alemão que teve até uma mistura com um dos tataravôs se encantou por uma índia. E pelo lado da minha avó por parte do meu pai tem descendência de italianos e espanhóis.
P - Teus avós maternos eram da onde? Teus avós maternos?
R - Maternos? Eles eram brasileiros.
P - Já eram brasileiros?
R - É. Já eram brasileiros com essa descendência de alemães e do lado do meu pai a descendência de italianos e espanhóis.
P - Teus avós paternos também são brasileiros?
R - Também. São brasileiros.
P - Teus bisavós são estrangeiros ou é mais pra atrás?
R - Não. Meus tataravôs são. Aliás, meu bisavô por parte do meu pai, acho que nasceu na Itália, é foi isso.
P - Teus avós nasceram aonde?
R - Então, por parte do meu pai meu avô nasceu no interior de São Paulo e a minha avó nasceu em Pinheiros. Por parte da minha mãe eles são mineiros, nasceram em Minas Gerais.
P - Que cidade? Você se lembra?
R - Minha avó é de Ubá e meu avô é de...não me lembro agora...daqui há pouco eu lembro.
P - Sua mãe, aonde nasceu?
R - Minha mãe nasceu em Ubá mesma cidade da minha avó. É... Manhumirim. Acho que a cidade do meu avô.
P - Teu pai nasceu...
R - Meu pai nasceu em São Paulo.
P - Os teus avós, qual era atividade deles? O que você sabe da estória dos teus avós? Maternos e paternos?
R - Então, por parte da minha mãe, meu avô ele tinha...Ele acabou herdando uma indústria de cerâmica. Então, ele era fabricante, ele trabalhava na área industrial, enfim ele comercializava cerâmicas. Minha avó era dona de casa. E por parte do meu pai, meu avô ele era mestre de obra. Depois chegou a ter um comércio. E se aposentou com uma loja de materiais de construção. E minha avó também era dona de casa.
P - E aí esses avós maternos num primeiro momento vieram pra São Paulo, como é que seus pais se conheceram?
R - Se conheceram em São Paulo. Por que minha avó materna teve câncer e ai meu avô trouxe ela pra se tratar em São Paulo. E meu pai já estava em São Paulo.
P - Você sabe como seus pais se conheceram?
R - Eles se conheceram na casa de um tio avô meu que era piloto da Varig que dava muitas festas, então foi num baile. Minha mãe era bem mais nova acho que ela tinha 15 anos e meu pai já uns 23. É, foi assim depois de um tempo eles começaram a namorar, e se casaram, minha já com 19.
P - E aí, você tem irmãos...como é que...
R - Então, eu sou do meio, minha irmã mais velha, ela tem agora 35, casada...
P - Como ela chama?
R - Fabiana. Ela se casou, tem um filho, nosso...é o primeiro sobrinho, primeiro desta geração na família, chama se Eric e eu tenho um irmão mais novo, uns seis anos de diferença comigo que hoje é advogado e vai se casar também.
P - Teu pai fazia o que, tua mãe...
R - Então, meu pai, ele herdou aquela loja do meu avô que não deu certo e aí ele voltou pra atividade que ele estudou. Ele estudou agrimensura. Então, ele atua como perito judicial, muito nessa área de disputa por posses e terrenos, questões ligadas a imóveis. Minha mãe, ela estudou pedagogia, então ela foi professora de escola pública durante muitos anos, chegou a ser diretora e se aposentou.
P - E aí você nasceu, você disse que quando você nasceu você morava...
R - Era uma casa que meus pais tinham na Granja Viana, inclusive um dos depósitos daquela loja ficava do lado daquela casa. Depois eles mudaram pra Igreja do Morumbi. Foi onde eu passei a adolescência.
P - Na Granja Viana você morou até que idade?
R - Eu não sei dizer, acho que dois anos, três anos no máximo. Eu não tenho lembrança de lá.
P - O que você lembra da sua infância? Você morava em casa?
R - Era uma casa térrea. Então, a gente quando comprou essa casa outras duas irmãs da minha mãe também compraram no mesmo bairro. Então, eu tinha uma tia vizinha mesmo, colada e tinha três primos que eram meus vizinhos o que era ótimo E a outra tia acabou nem morando em São Paulo, por que meu tio era militar e eles foram pra Brasília. Então, a minha infância sempre tive essa vantagem de estar do lado dos meus primos e a gente era muito junto, brincava na rua, naquela época ainda... esse bairro era muito calmo, assim não existia nenhum problema das crianças ficarem na rua. Passava o dia todo à vontade. Tinha uma liberdade grande.
P - E o que você gostava de brincar?
R - Eu sempre gostei muito de... bom tirando as coisas da infância, eu sempre gostei muito de futebol. Minha mãe tentou vários esportes comigo quando era pequeno, então primeiro ela me colocou na natação no vôlei e eu não gostava porque eu era o menor da turma e não existia assim uma certa tolerância pra minha diferença até de porte e físico. Me sentia muito sempre distante da capacidade dos outros. Enfim, não gostava. Depois eu tentei fazer judô que foi o mesmo problema, eu não sei porque acho que minha mãe sempre colocava numa turma de mais velhos porque eu só apanhava. E eu pedi pra sair e aí veio o futebol. Na terceira tentativa. Numa categoria bem de crianças em Pinheiros. E eu me dei muito bem Tinha, durante a semana toda tarde livre, estudava de manhã. E eu ficava muito tempo com a bola, tinha até na minha casa no fundo do quintal, tinha um muro alto e eu ficava batendo paredão com o pé, chutando a bola. E eu tinha um bom domínio, uma boa precisão de chute. Então, isso fez com que eu ganhasse meu espaço rapidamente e aí o futebol passou a ser o meu grande lazer.
P - Essa época que você lembra disso jogando futebol nos fundos da tua casa que idade você tinha?
R - Ah, eu devia ter uns oito anos, sete, oito anos. Isso foi assim até os 12 quando meus pais começaram construir num sítio, num terreno que a gente tinha em Itapevi, e aí todo final de semana a gente tinha que ir pra essa região pra poder acompanhar a obra e aí eu não podia mais ir pro clube e é onde tinha os campeonatos, eu acabei me distanciando das atividades coletivas onde eu tinha lá o meu lugar e que eu adorava Porque a gente estava todo final de semana lá no sítio, mas continuei adorando futebol. E isso foi até os 14 anos quando eu rompi menisco jogando futebol e aí eu tive alguns anos de tratamento. Eu operei o joelho que me limitou um pouquinho, fiquei alguns anos sem poder jogar, sempre com medo de voltar a machucar e aí decidi fazer remo porque era um esporte que seria bom para recuperação da minha musculatura, não forçaria pelo contrário ajudaria na questão do meu joelho e também naquela época eu queria ficar forte, um adolescente, tinha 16, tinha um pouco aquela vontade de ficar musculoso e aí fui fazer remo que também foi um esporte que eu adorei
P - Onde você fazia?
R - Então, na raia da USP você tem vários clubes ali, as garagens ficam todas lá. Eu comecei fazendo no Paulistano e depois fui pro Corinthians que também era no mesmo local.
P - Na tua infância, você conviveu com teus avós? Você os conheceu?
R - Convivi sim. Só minha avó que morreu de câncer, morreu nova, que eu tenho pouquíssima lembrança dela. Já na cama. Mas o meu avô por parte de minha mãe eu vi bastante, ele era um avô que dava muito atenção pros netos, ele sempre viajava com a gente pra Ubatuba, então convivi bastante do lado do meu pai também minha avó é viva até hoje, então ainda convivo com ela e meu avô que morreu em 1990, faz 14 anos, também é uma pessoa muito carinhosa e eu particularmente tinha uma afinidade grande com ele então...
P - O que você gostava de fazer com eles? O que vocês faziam juntos?
R - Com esse avô? Ele, assim, me acompanhava nos esportes, no remo por exemplo ele estava sempre, ia me acompanhar. Ele era também uma pessoa preocupada com a questão da saúde então, ele estimulava muito que eu andasse de bicicleta ao invés de andar de ônibus coisas assim. E mais finais de semana quando se reunia a família a gente estava sempre convivendo e era muito caloroso esse contato com meu avô.
P - O teu nome Rodrigo, tem alguma estória? Por que teus pais te deram esse nome?
R - Eu sei que minha mãe por algum motivo, ela queria que todos os filhos tivessem nomes com sete letras e aí ficou Fabiana, Rodrigo e Conrado, agora explicação cabalística ou esotérica disso eu acho que nunca perguntei com calma pra ela.
P - Bom, você estava contando que brincava muito com seus primos, isso você está contando é antes de ir pra escola, em que época?
R - Eu já ia pra escola, então ficava mais o período da tarde pra gente brincar e eu me lembro, por exemplo, uma vez, pra você ver como a gente tinha liberdade, a gente andava muito de bicicleta neste bairro. E o meu primo era um pouco mais velho que eu, e aí a gente convivia famílias um pouco mais pobres, mas que eram amigos de rua e tudo e uma vez desafiaram a gente pra uma corrida de bicicleta. Isso é uma coisa que marcou minha infância. E eu tinha uma bicicleta pequenininha não ia...eu disse não vou entrar porque eram bicicletas maiores e tal, e aí, meu primo falou assim: Você vai na minha garupa, vamos nos dois juntos e - porque a bicicleta dele era maior – daí você participa. Então a corrida foi o seguinte: o bairro era assim, era formado por ruas, por várias grandes descidas, era um bairro muito desnivelado. Então, a corrida acontecia no topo da maior da rua onde tinha maior altitude. A gente pegava essa grande descida e acabava no inicio da rua que dava acesso ao bairro. E aí topei, fui na garupa do meu primo e começou a corrida e a bicicleta em alta velocidade, e eu na garupa do meu primo e ele num dado momento viu que o rapaz que estava ganhando a corrida tirou a mão do guidão. Um pouco pra se mostrar que estava com a corrida ganha. E o meu primo foi imitar, ele tirou a mão do volante e botou as mãos assim pra cima tal, dizendo – você está ganhando a corrida, mas eu também tiro a mão do volante. E aí, a bicicleta capotou e eu ralei a cara no asfalto de uma forma que eu fiquei totalmente, totalmente marcado, metade do meu rosto era machucado. Isso era próximo já do final do ano quando a gente sempre ia pra praia e ficava a família inteira então, eu passei dois meses não podendo tomar sol porque aquilo marcaria tudo, enquanto meus primos ficavam na água eu ficava debaixo do coqueiro....
P - Que idade você tinha?
R - Então, devia ter o que uns seis anos. Uma das coisas que eu me lembro dessa coisa de estar na rua da gente conviver com famílias com nível um pouco mais carente e tudo.
P - Você lembra de quando você foi pra escola?
R - Eu lembro. Eu comecei no jardim de infância fazendo no clube, nesse clube eu fazia futebol e tudo, eu ia junto com meus primos, minha irmã também ia, então assim não tinha, não foi uma mudança que gerou algum tipo de dificuldade quando as crianças, você vai pra escola nos primeiros anos tudo, às vezes são difíceis. Quando eu fui pro colégio mesmo que era um colégio grande e aí não tinha meus primos juntos, só tinha minha irmã, mas que era outro horário, foi nessas primeiras semanas eu chorava muito, eu lembro que não era uma coisa agradável ir pra escola.
P - Isso foi em que série?
R - Jardim 2. Quantos anos sei lá... uns cinco.
P - E que escola era?
R - Era Porto Seguro, um colégio alemão, grande, bastante, uma área enorme, então acho que dava um pouco de medo. Mas, que depois foi um colégio que eu adorei estudar e passei a vida toda lá até o terceiro colegial.
P - Teus primos também estudaram nesse colégio?
R - Eles estudaram naquela escolinha do clube. No Porto Seguro era só eu e minha irmã e depois o meu irmão.
P - E como é que era com os teus irmãos?
R - Então, a minha irmã, a gente tinha uma relação boa, mas ela era muito “caxias”, a minha irmã. Então ela chegava do colégio e passava a tarde inteira estudando. Ela se fechava e era muito assim preocupada com notas com tudo e eu era o oposto, então, a gente não tinha durante a semana não tinha assim um momento de brincar juntos muito eu ficava mais com meus primos, mas sempre tivemos uma relação boa, nunca houve grandes conflitos e meu irmão pela distancia um pouco maior da gente...
P - ... mais novo do que vocês?
R - que eu... ele sempre foi um pouco assim, o queridinho, o protegido então quando ele era pequeno a gente adorava ficava com ele poder cuidar dele e ele é uma pessoa muito meiga, muito tranqüilo. Então minha relação com meu irmão sempre foi muito mais de... aquele irmão que é uma referencia, que quer proteger, do que de irmão que aprontam juntos não tinha muito isso.
P - De você cuidar dele?
R –É exatamente. E depois ele que foi cuidar de mim, né? Que depois... é interessante isso, né? Durante os primeiros anos após o meu acidente tudo, no período de reabilitação, o meu irmão ele participou muito disso. Mas vou chegar lá...
P - Então, aí como era o programa de vocês no fim de semana?
R - Então, tinha época antes do sítio que a gente ou ia pro clube ou a gente ia pra praia, meu avô tinha uma casa em Ubatuba, que eu comentei, uma casa grande, eram duas casas no terreno, espaçoso. Então iam várias famílias...
P - Então, vocês iam bastante para essa casa?
R - É principalmente nas férias. As nossas férias eram também momentos muito agradáveis por que ficava por parte de minha mãe eu tenho mais cinco tios - quatro tias e um tio e por parte do meu pai uns dois tios e dessas cinco tias – quatro tinham filhos eram três filhos cada uma. Era um grupo enorme de primos, então tinha essa coisa o final de ano na praia era muito gostoso. E aí veio a fase do sítio, eu tinha então, acho que eu tinha 12 anos. Era uma coisa assim não tinha muita discussão todo final de semana eu lembro que tinha que ir lá, tinha obra depois que ficou pronto meus enfim pais queriam melhorar, sempre tinha coisa, então eu fiquei praticamente três anos indo todo final de semana pra lá mas que era gostoso.
P - Você gostava de ir?
R - Gostava. Apesar de assim eu ter me afastado do futebol, tinham coisas que a gente não vive na cidade. Como a gente teve cavalo, eu andava muito, tinha o nosso caseiro que é um senhor já bem crescido nessa região de mata e tudo, então ele me levava pra essas caminhadas dentro do mato, tinha as estórias dele, tinha a questão até como plantar, como preparar o terreno, isso a minha mãe acabava envolvendo um pouco e eu sempre levava alguém, então os meus primos estavam sempre lá pra gente ter também um momento de brincar e se divertir.
P - Aonde ficava esse sítio?
R - Itapevi – São Roque.
P - Vocês ainda tem?
R - Ainda temos. Mas assim, eu praticamente não freqüento, é uma região muito fria, de montanha e venta o tempo inteiro e aí isso pra mim hoje é muito desconfortável, então eu não tenho ido.
P - E qual que é a época que você freqüentava?
R - Dos 12 até os 15. Foram três anos seguidos.
P - E ai você estava contando dos estudos no Porto Seguro, no primário?
R - Foi, e aí o que eu acho que foi muito bom no Porto Seguro é que... além de ser uma escola que dá muitas oportunidades, tem até uma estrutura na parte de esportes, então você aprende ginástica olímpica, atletismo todas as categorias, você tem aula de voleibol, basquetebol, então é um colégio que tem uma estrutura que veio da Alemanha então, é muito bem organizado.
P - Agora dá? Então você estava falando desse grupo coeso. Que ficou junto da 5ª série até o colegial?
R - É. Eu convivi com a mesma turma durante esses oito anos, o que foi muito bom porque formou-se ali um tipo de relação onde a gente viveu momentos importantes da adolescência cada um acompanhou o outro, isso foi formando um elo muito forte entre o grupo. Desde a primeira namorada de cada um, o primeiro baile, primeiro terno, todas essas coisas da adolescência.
P - Dá pra você contar um pouco da primeira namorada?
R - Deixa eu ver... coisas importantes... Bom no meu caso a minha primeira namorada, ela estudava na mesma classe, chamava Cristiana e na verdade eu comecei a gostar dela já na 5ª, quando a gente se conheceu, mas eu era muito tímido, não tinha ainda nesse primeiro ano experiência nem muita coragem para propor alguma coisa, pensando em namoro mesmo, o que eu consegui fazer na 5ª série foi escrever uma poesia pra ela no diário que as meninas tinham o tal dos diários que elas costumavam compartilhar entre elas, uma escrever pra outra e aí eu pedi pra ela se eu poderia escrever, que é uma coisa comum, então eu fiquei com vergonha de pedir, e aí eu fiz uma poesia que ela até hoje tem guardado, outro dia, inclusive, falando no telefone ela me deu a poesia. E aí eu fiquei sabendo que ela também estava gostando de mim e aí teve um baile, quase no final do ano na casa de uma menina chamada Priscila e aí com todo mundo acompanhando essa estória criou-se uma expectativa que no baile o Rodrigo teria de tomar uma atitude. Eu já fui pro baile nervoso porque tinha essa responsabilidade de como homem ir lá de alguma forma pedir em namoro. E aí eu consegui fazer com muito esforço foi tirá-la pra dançar, e eu lembro que meu coração batia tanto que eu achava que não ia ter ar, fôlego pra falar nada. Então, estava esperando voltar o ar e eu percebi que ela estava tão nervosa quanto. Então, ficou os dois super nervosos e quando estava já acabando a musica eu tive coragem de falar que ela era a mina de quem eu gostava e ela falou que isso era muito bom porque ela também gostava de mim e acabou a música. E aí naquela situação e todo mundo acompanhando enquanto isso, como eu te falei estava a classe inteira sabendo, então formou-se uma platéia pra ver o que ia acontecer. E aí eu não tive presença de espírito de propor qualquer coisa diferente depois que a musica acabou como, por exemplo: Vamos dar uma volta? E acabou ali Então isso foi o máximo que aconteceu na quinta série em termos da minha experiência amorosa.
P - Você lembra da poesia?
R - Ah, de cor eu não me lembro. Eu lembro que eu levei muitas horas pra escrever, fiz vários rascunhos. Até que eu achei que estava bom. Bom, então ela foi a minha primeira namorada. Mas isso só se concretizou na 8ª série depois de muitos anos de tentativas e convívio, na oitava série a gente decidiu então que namoraria. Mas então, eu estava contando do Porto Seguro...
P - Mas aí vocês começaram a namorar?
R - Começamos a namorar.
P - Namorar até?
R - A gente não namorou muito tempo não, porque o que aconteceu é o seguinte: na oitava série as meninas, eu lembro que as meninas, elas tinham um desenvolvimento físico que era muito mais avançado do que os meninos então, e ela era uma menina muito alta, muito vistosa, eu lembro até que ela era mais alta do que eu nessa época, então o que eu quero dizer com isso é assim, todos os meninos mais velhos viam buscar namoradas com as meninas mais novas. Então existia, e ela era muito bonita, existia assim uma tropa de meninos mais velhos que naturalmente estavam atrás dela, então isso fez com que eu me incomodasse muito, então alguns meses depois do namoro, ela tinha um outro menino que estava tentando já algum tempo se aproximar dela e ela acabou aceitando um convite pra ir numa festa onde ele estava e eu achei isso um absurdo. Eu acabei o namoro por telefone. Eu lembro que eu liguei e disse fiquei sabendo, como você vai numa festa e não me fala. Acho que a gente pode terminar nosso namoro. Depois fiquei pensando: Pôxa, não poderia terminar por telefone. Mas enfim, então não durou muito. Mas a gente continuou se gostando por muito tempo. E muito por causa do meu orgulho a gente não voltou a namorar, orgulho porque ela tinha ido na festa com o tal do rapaz . E eu acho que nem, pelo menos que eu fiquei sabendo, não aconteceu nada. Então, mas eu estava falando, então essa turma era muito próxima. A gente começou a freqüentar muito a casa um do outro. Então as mães tratavam quer dizer cada um do grupo chamava sempre as mães, eram chamadas de tias e acolhiam muito a gente. A gente viajava sempre junto. Então, eu tive essa riqueza de amizade. Durante todo o colégio. E aí teve um momento que foi bastante marcante quando chegou no 2º colegial o Porto Seguro lhe oferece a chance dos alunos irem para Alemanha fazer intercambio, e aí a gente foi quase que a classe toda. Foi a primeira vez que eu saí do Brasil, fiquei lá praticamente 3 meses na casa de uma família alemã, com os amigos por perto.
P - Na mesma cidade?
R - Era espalhado. Era espalhado na Alemanha toda. Na minha cidade, eu fiquei em Hamburgo, tinham 7 desses alunos, tinha bastante. Então tudo isso, a primeira viagem, primeira viagem de avião foi com essa turma, a primeira vez que a gente começou a andar de carro. A gente começou a dirigir antes dos dezoito e então esse momento de ter liberdade, de andar em São Paulo tudo, era sempre com a mesma turma. Então a gente se conhece muito bem a gente tem uma intimidade muito grande. Então acho que isso foi uma das coisas que fizeram que os anos de Porto Seguro fossem muito bons, lembranças, a maioria delas muito agradáveis.
P - E aí o 3º colegial ...
R - Deste a 5ª série que eu decidi que o que eu queria fazer medicina.Então, queria ser ortopedista porque eu vi o médico operando meu joelho e fiquei encantado com o poder dele de curar meu joelho e achei aquilo... seria minha pretensão profissional, poder curar outros atletas e eu mantive isso até o final do colegial, na época do vestibular e depois eu acabei tendo que mudar de planos. Eu prestei logo que eu sai do Porto Seguro o vestibular, não consegui entra na Pinheiros que era a faculdade que eu queria e aí decidi fazer cursinho, achei que valeria perder um ano pra tentar de novo entrar na USP e aí no meio desse ano, quando estava em agosto eu fui assaltado em São Paulo, eu levei um tiro na nuca, num sábado, numa situação completamente inesperada, eu estava saindo pra levar o meu irmão num jogo de tênis, meu irmão jogava tênis, ele teve muitos anos de dedicação pra isso. E aí tinha um carro parado na frente do meu carro então eu tive que dar uma ré pra poder sair, quando eu estava dando ré, meu irmão estava do meu lado, eu ouvi um movimento assim, algum vulto dos dois lados do carro, mas tudo muito rápido, e aí eu ouvi um barulho de disparo. Então, eu não sei porque o sujeito que estava do meu lado, ele não falou nada, ele deve ter ficado nervoso, quando ele viu que eu já estava andando com o carro, já disparou e aí a bala passou, atravessou meu pescoço. E aí eu vi ele me pegando do banco.
P - O assaltante?
R - O assaltante. Abriu a porta me tirou. Me jogou no chão. Eu até ouvi o outro assaltante falando pro meu irmão: Sai do carro E meu irmão teve essa chance de sair, eles não fizeram nada com ele, foi muito bom. E levaram o carro. Bom, aí tem várias coisas pra contar. Em relação a esse momento especifico, teve uma passagem interessante em que no momento que ele me tirou do carro e me jogou pro chão até o momento em que vi a minha mãe e minha irmã chegando no carro pra tentar me socorrer teve uma parada no tempo (sorriso) muitas pessoas costumam relatar esse momento entre a vida e a morte, né?
Que tipo de sensação tem, tudo. E pra mim foi muito marcante. Eu tive, assim, parece que eu fiquei horas naquele segundo. E aí entre as várias coisas que eu enxerguei que eu visualizei teve uma seqüência de flashes da minha vida toda. Eu tinha uma sensação dentro de mim, durante todo o tempo de que talvez não pudesse realizar os sonhos que eu tinha projetado, mas que eu tinha que encerrar a coisa antes da hora, tive um pouco essa sensação. Mas eu estava muito tentando entender, olhando pras cenas que passavam, tentando entender um pouco o que que era tudo aquilo. E aí, entre essas várias cenas, eu vi, teve uma cena que me marcou muito que era uma visão do planeta Terra, como se eu estivesse vendo o planeta de longe. E eu ficava olhando aquilo, vendo o que estava acontecendo. E, tinha uns sons, sons e cores ao redor que eu não sei explicar são cores, não são cores com as quais a gente está acostumado. Mas tinha um pouco essa coisa de cores ao meu redor e sons. E essa cena da Terra e esses flashes da minha vida e aí de repente veio uma cena, uma cena da minha mãe já mais envelhecida sentada num banco de um lugar com aspecto muito triste parecia até, assim, uma coisa de manicômio, ela muito abatida, sozinha nesse banco, aquilo me deu uma aflição enorme Foi uma cena que eu num, enfim... eu não sabia o que era aquilo e depois na seqüência eu vi meu pai, o meu pai estava andando numa calçada também envelhecido, mas com uma cara de perdido, alguém que anda assim sem rumo, e aquilo me deu uma sensação tão ruim que eu lembro que eu falei a palavra não E aquilo, eu falei não, quando eu falei não eu voltei pra cena do assalto, eu estava no chão, estava na rua e meu irmão berrando pedindo ajuda, e aí chegaram minha mãe e minha irmã.
P - E as cenas que te viam, viam involuntariamente?
R - Viam involuntariamente. É como se eu estivesse sentado assistindo.
P - Você estava acordado, você estava consciente?
R - Eu não sei qual estado, enfim, mas eu estava, eu não estava ali, né? Eu não estava naquele lugar, eu não estava na rua, eu não estava... é como se eu estivesse num sonho vamos dizer.
P - Você falou que viu imagens da tua vida? Que flashes?
R - Não, flashes, coisas simples: eu jogando futebol, eu com os meus primos, com os colegas da escola, cenas de quando eu estava viajando pra Alemanha, cenas até de eu brincando com a minha cachorra, cenas bem simples. Não tinha uma cronologia. O tempo de cada cena, o momento, no tempo de cada cena não era linear, cenas de criança, depois cenas da adolescência depois voltava pra infância assim, não tinha uma ordem, não tinha uma seqüência, mas foi isso. E aí, então teve esse momento de eu falar “não” que me trouxe de volta pra mesma cena, e aí eu fiquei falando “não” no sentido de não querer que aquilo acontecesse, ou seja, que meus pais ficassem naquela situação que eu acho que eu entendi que seria pela minha ausência e aí pararam um carro na rua...
P - Tua mãe estava próxima?
R - Minha mãe estava dentro de casa e meu irmão começou a berrar.
P - Isso foi saindo da tua casa?
R - É, na porta da minha casa como eu falei, isso na porta da minha casa, naquela casa do Morumbi que quando eu era pequeno era tranqüilo depois.... Bom, aí eu lembro que o meu irmão e outra pessoa pararam um carro que estava vindo, era um carro que tinha caçamba e aí tentaram me colocar nesse carro pra ir para o hospital e a hora que tentaram me colocar nesse carro pra ir para o hospital, a hora que foram me carregar, aí que eu percebi que meu corpo estava sem movimento. E eu vi que tinha um pouco de sangue no braço. Na hora já veio o entendimento de que eu tinha levado um tiro e provavelmente tinha afetado a coluna porque eu não estava mexendo. E veio a cena da cadeira de rodas, na hora. A pesar de que eu nem era tão entendido no assunto, mas quer dizer o raciocínio foi muito rápido ali e aquilo pra mim foi assim quase sem importância, ter que me imaginar numa cadeira de rodas, minha única preocupação no momento era não morrer, é muito interessante como o peso das coisas nessa hora muda. Era um detalhe se eu ia ficar na cadeira de rodas ou não. A única coisa que me preocupava: eu não poderia morrer. E aí minha respiração na hora também já praticamente não existia porque já atingiu centro respiratório. Muito pouca respiração que eu tinha. E aí fomos indo para o hospital na caçamba do tal carro. Eu, minha irmã, minha mãe e minha tia. Minha tia é minha vizinha que na confusão também veio ajudar. E aí eu fui, eu lembro direitinho, de casa até o hospital dizendo: Eu não posso morrer, eu não posso morrer, eu não posso morrer E ia com essa única preocupação. E aí quando cheguei no hospital, no pronto socorro e aí tinham vários médicos em volta de mim, me deitaram, começaram a tirar a minha roupa. E eu ouvi um deles dizendo “tetraplagia”, que na hora me assustou um pouquinho, porque até o nome... Enfim, eu não estava muito acostumado com essa palavra, mas continuava sendo uma coisa menor. A preocupação era que os caras me salvassem ali. E aí quando chego lá quer dizer, um monte de medico em volta aí eu fiquei mais tranqüilo porque eu imaginei que eles fossem dar um jeito. Eu não estava morto, alguma coisa os caras conseguiriam fazer. Bom aí que começou essa nova fase da minha vida.
P - Nesse processo você estava acordado?
R - Acordado. Quer dizer, eu me desliguei, eu não sei o quanto eu posso chamar de eu ter de fato chegado estar consciente naqueles poucos segundos entre o sujeito me jogar no chão e as pessoas chegarem. E aí eu fiquei semanas sem dormir com medo de morrer. Eu não dormia que é uma coisa também, foi muito assim desgastante, eu não conseguir dormir. Durante o dia quando eu estava assim com as pessoas ao redor às vezes eu tinha pequenos desmaios de cansaço. Mas dormir mesmo eu não conseguia com medo de não acordar. Mas enfim. Então aí começou essa nova fase que tem um milhão de detalhes, ai eu preciso ver o que você quer que eu fale.
P - Então, esse momento que você entrou no hospital, que estava com os médicos, que o médico falou, o que aconteceu?
R - Então, aí depois eu tinha que fazer uma ressonância magnética para eles saberem enfim o que tinha acontecido, né? O percurso da bala se tinha seccionado a medula. Então eu lembro que fiz exame, que era desconfortável, que você fica praticamente num tubo, num túnel ali, e faz muito barulho e eu estava com muita dor no pescoço. Lembro dessa cena do exame que demorou um pouco, ah tem uma coisa importante, aí eu voltei pro pronto socorro para esperar a liberação de um quarto, não tinha nenhum quarto na semi-intensiva liberado. Aí meu pai, por que meu pai não estava em São Paulo, meu pai estava fazendo um serviço em alguma cidade próxima Itapecerica... eu não sei dizer, eu sei que nesse inicio meu pai não estava, aí chegou meu pai nessa hora que eu estava numa maca encostado numa parede esperando lá um quarto. Aí meu pai, acho que ele, eu já falei isso pra ele (sorriu), ele não tem assim, nem noção o quanto ele foi importante naquele momento em que ele me encontrou, quer dizer, o pai é uma figura importante,né? E eu estava de certa forma querendo ver meu pai pra ter a presença, a segurança que um pai representa, transmite e aí meu pai, ele chegou, ele chegou muito tranqüilamente e falou: -Filho, fique tranqüilo, agente vai sair dessa, você faça a sua parte aí, que eu resolvo as coisas aqui fora. Então, vãos fazer esse pacto, faça a sua parte que eu dou um jeito no resto. E aquilo foi tão forte pra mim que eu passava o dia inteiro pensando naquele pacto, então de certa forma nos primeiros dias e acho que foi meio uma filosofia durante todo período inicial eu nem dava chance para eventuais pensamentos negativos, de enfim questionamentos por que comigo ou que será de mim coisas assim porque eu sentia que eu tinha que cumprir com a minha parte. Eu entendia que a minha parte seria ser forte e buscar de alguma forma sempre uma postura de otimismo, uma postura de que a gente sairia, a gente conseguiria dar a volta por cima. Então isso foi muito importante e aí, depois de algumas horas eu fui pro quarto. E aí passei a primeira noite no hospital foi... eu tinha muita dor no pescoço...
P - Na região que tinha sido...
R –Na região do disparo, foi a única noite que eu tive dor depois eu não tive mais dor, nunca mais eu tive dor. Foi só a primeira noite.
P - E quem ficou com você essa primeira noite?
R - A minha família toda. A minha família toda...E aí que uma das coisas que fizeram a diferença acho, em todo o processo no hospital que foi o grupo de amigos que eu tinha. Pra você ter uma idéia... eu não me lembro da primeira noite, mas eu lembro que no 2º dia, foi segundo dia, a tarde que eu já estava mais confortável, tinha lá até um tipo de um oxigênio, uma coisa que ajuda a respirar, eu lembro que lotou a sala de espera do hospital. Tinha um espaço pra 50 pessoas, já tinha dois andares ocupados com pessoas que vinham me ver. E isso foi assim do segundo até o primeiro mês, até se completar o primeiro mês. Todos os dias tinha uma tropa de gente. Por que juntou, tinha esses amigos, grupo do Porto Seguro, que eu entrei, tinha a turma do remo que até então eu estava fazendo remo, ainda que formou um grupo também muito próximo de colegas, tinha uma outra turma de amigos, tinha uma banda, eu tocava, então também formou se um outro grupo que naquela fase estava todo mundo estudando, todo mundo tinha tempo, agente se encontrava muito. Tinha a turma do cursinho que era um outro grupo de amigos, formaram um exército de gente, tinha parente, tanto do lado do meu pai e da minha mãe, muitos primos e muitas tias e aí tinha próximo de mim sempre um grupo enorme o que me dava de uma forma força também. Porque eu me sentia mais ou menos assim, eu me sentia assim como... com o compromisso de retribuir minimamente, eu deveria dar atenção pras pessoas que iam me visitar que era até os médicos nem gostavam disso porque eu falava muito eu não deveria estar falando, porque isso era um desgaste físico, deveria me poupar, eu fazia questão eu chamava cada um e ficava batia papo...
P - Eu fiquei com vontade de saber porque você tinha escolhido medicina, porque essa escolha?
R - Então... Eu, assim, sempre achei uma profissão interessante você mexer com a saúde, muito nobre. Mas talvez isso tenha ficado ainda mais claro, mais forte, quando operei o joelho. Porque o cara resolveu o meu problema. Porque eu acho que eu comentei mais para trás que eu tinha lesado no início jogando futebol. E eu fiquei um ano tentando fisioterapia e tudo, e foi um ano assim, chato, frustrante. Eu moleque querendo fazer as coisas e não podia. E aí veio o sujeito lá, fez 4 furinhos e resolveu com a toscopia. Eu falei: “Nossa Né, olha que demais Você poder, você poder curar, né.” Daí eu decidi que ia ser médico.
P - E isso você tinha que idade quando aconteceu?
R: Tinha 14.
P - E desde então aí você sabia que ia na área de medicina?
R - É. Aí nunca mais tive dúvida.
P - E tinha alguma especialidade assim que você gostava mais?
R - Eu deixei meio em aberto. Não tinha definido não. Eu ia sentir ao longo do curso.
P - Como foi depois como que você mudou, você foi fazer administração, né?
R: É
P/2: Você tava falando que você tinha tomado o tiro e paramos na visita dos seus amigos, que seus amigos ajudaram bastante, que tava todo mundo do colégio indo lá.
R: Aí começou a história das visitas, né?
P/2: Isso.
R: Que tinha muita visita, muita visita. E, assim, eu me sentia muito prestigiado. Então, eu ficava querendo dar atenção para todo mundo.
P/1: Como é que foi, assim, qual foi o primeiro momento que um médico chegou para falar com você, conversar com você e explicar o que tinha acontecido e como era o teu estado, você lembra?
R: Então... de cara no pronto-socorro eu já ouvi. Diagnóstico frio, dizendo: “Olha, foi tetraplegia, lesão em C3 e C4”.
P/1: Ninguém, ninguém olhando para você te falou isso?
R: Pra dizer direito, ninguém sabia se era C3 ou C4. É: “lesão modular” o sujeito falou. Depois, com a ressonância, que eles tiveram certeza a altura da lesão.
P/1: Como é que você se sentiu quando ouviu isso?
R: Então, interessante. Porque quando eu estava indo para o hospital, com aquele desespero de não morrer, e aí meu raciocínio já projetou que talvez eu ficasse numa cadeira de rodas. Então já me vi numa cadeira de rodas, aquilo não teve peso nenhum. A hora que eu ouvi o sujeito falar “tetraplegia” me assustou, me assustou... Mas foi, logo depois eu já no circuito “não posso morrer” e aquilo então não teve peso de novo. E, de alguma forma, nesse momento, eu achava que ia ter uma solução. Depois, já com exames, no quarto, com a situação mais calma, os médicos explicaram que o projétil, a bala, passou muito próximo da coluna, chegou até a tirar uma lasquinha de um daqueles ossinhos que ficam na vértebra, não é? Então o que gerou a lesão foi o calor da bala. Não houve uma secção de nervo. E, na verdade, isso foi talvez a razão de toda a incerteza que sempre me acompanhou. Porque os médicos não se arriscavam a falar. Porque queimadura pode ser pequena, pode ser grande, né, pode ter algum tipo de recuperação. Então todo mundo dizia: “Vamos aguardar. Houve uma pequena queimadura. E agora o próximo passo é a fisioterapia. É o tempo que você vai precisar investindo em reabilitação e fisioterapia”. Foi então...
P/1: Esse próximo passo?
R: Não me assustou tanto, não me assustou. Mas, sobretudo porque eu achava: “Não, se não secionou, devem existir meios, né?”. Então, eu percebo, olhando para trás, que eu me apegava muito a essa possibilidade de recuperar os movimentos, voltar a andar, para eu me estabilizar emocionalmente. Demorou um tempo. Acho que foi dois anos e pouco depois, eu lembro do dia. Foi um dia que eu falei: “quer saber, não vou esperar. Vou tocar minha vida assim. Se tiver alguma coisa é lucro, mas eu não vou esperar mais”. Isso depois de ter ido para Cuba, ter ficado três meses fazendo 8 horas por dia fazendo fisioterapia, e tudo mais, todo o resto do período de total direcionamento para isso. É como se tivesse uma fase de digestão da situação e, de repente, eu tomo essa decisão.
P/1: Foram dois anos?
R: É.
P/1: Esse momento que você falou, teve um momento que os médicos falaram “vamos fazer fisioterapia e aguardar”. Isso foi depois de quanto tempo?
R: Ah, logo no segundo ou terceiro dia.
P/1: Tá. No terceiro dia você já tinha, vamos dizer, um... porque você não sofreu nenhuma cirurgia, nada?
R: Não. Mas aí a questão é que eu tive uma perda da minha capacidade respiratória significativa. Então a preocupação maior nesse inicio de hospitalização foi me tirar de um quadro de risco, né, enfim, de questões pulmonares. Tanto é que eu comecei bem na primeira semana, na semi-intensiva, mas sem nenhum tipo de intervenção, e eu fui enfraquecendo o pouquinho que eu tinha de diafragma. E aí chegou o momento que eu tive uma parada respiratória. Aí eu fui entubado. Então eu comecei a ter complicações. Fiquei três dias entubado. Depois veio um outro médico que tinha lá uma engenhoca que ele bolou que era super rústico até. Que era um aspirador de pó que você conectava num colete e aquilo ficava fazendo uma pressão negativa e ajudava à noite o processo respiratório e eu conseguia dormir. E o resto do dia eu ficava com a fisioterapia respiratória muito... Depois eu fui refortalecendo. Ah, outro talvez fator importante foi a traqueostomia que inicialmente eles cogitaram e tal. Falaram “não, talvez não precise”, e depois que eu fui entubado decidiram que eu tinha que fazer uma traqueostomia.
P/1: E isso foi quando, quanto tempo depois?
R: Depois do entubamento? Ah, foi dois ou três dias depois. Porque eu comecei a ter pneumonia. Eu tive uma pneumonia forte. Aí se decidiu pela traqueostomia. E aí eu fiquei sem falar, não conseguia falar. As pessoas tinham que ler os meus lábios. Então, eu não podia me mexer e não podia falar. (risos).
P/1:Isso foi quanto tempo depois do incidente?
R: O dia que eu entrei no hospital? Olha só, acho que eu fui entubado uma semana e meia duas depois.
P/1: Depois...
R: Aí fiquei três dias, voltei. Aí comecei esse processo do colete, tal, deu a pneumonia e aí decidiram fazer a traqueostomia. Depois da traqueostomia eu não tive mais nenhuma regressão, né? Depois foi um processo crescente de melhora.
P/1: quanto tempo você ficou?
R: Total 60 dias
P/1: Mas com a traqueostomia? Sem...
R: Traqueostomia demora. Traqueostomia é cansativo. Fui para casa, tal, ela começa a fechar, você vai trocando a cama por mais finas. Deixa ver... foi uns quatro meses para tirar. Foi isso.
P/1: E aí a fisioterapia começou no hospital, lá no hospital você começou a ...?
R: A motora?
P/1: É.
R: É. Mais manutenção: alongamento, um pouco de movimentação das articulações. E teve, eu lembro, teve uma fisioterapeuta que, acho que no terceiro ou quarto dia que comecei a sentir uns formigamentos. Aí eu peguei e já falei assim: “ah ótimo, já to ficando.bom” quer dizer, achar que era assim tão simples. Aí eu já falei: “Ô, mãe, eu já to voltando a sentir o meu corpo. Providencia umas muletas aí porque semana que vem vou para o cursinho.” Eu queria voltar para o cursinho já. E aí a fisioterapeuta ela foi muito assim... insensível, né?. Ela teve um comentário do tipo: “Rodrigo, isso não quer dizer nada. Você tem que estar mais consciente de que as coisas não são assim”, enfim, algum comentário do gênero, que foi muito ruim para mim, muito ruim. Tanto é que aquilo gerou uma confusão no hospital que a mulher até foi embora, a mulher não agüentou a pressão.
P/1: Que confusão?
R: Confusão. Eu comentei com meus pais, e aí tinha, imagina, 50 pessoas na sala. Então todo mundo ficou sabendo. Aí foram tirar satisfação com a moça. Foi uma pressão tão grande nela que ela sumiu. Não sei o que aconteceu com ela.
P/1: E aí, nesse primeiro mês, quem que ficava com você?
R: O esquema era o seguinte: minha mãe ficava o tempo todo. A minha namorada, na época, ela tava fazendo faculdade. Era o primeiro ano de faculdade dela. E ela chegou depois de alguns dias e decidiu que não iria mais na faculdade para ficar o tempo todo comigo. Foi uma coisa que eu não concordei, não queria, mas era uma coisa, assim, que ela tava tão me pedindo isso. Que eu não tive como dizer não. Então ficava ela também 24 horas. Minha mãe, minha namorada, e aí à noite eu tinha sempre um revezamento dos meus amigos.
P/1: Como chamava a sua namorada na época?
R: Camila.
P/1: Camila. E você tava namorando há quanto tempo já?
R: Quase um ano, um ano e um mês, por aí. Bom, então meus amigos eles se organizavam. Tinham até um caderninho no quarto. Então toda noite tinham dois ficavam do meu lado a noite toda enquanto minha mãe descansava e a Camila ia para casa dela.
P/1: Tá. E durante o dia ficava tua mãe...?
R: Camila e minha irmã tava muito também presente, mas ela tinha que estudar, tudo. Vinha visita o dia inteiro. Era o dia inteiro. O que é positivo é uma coisa... você se sente querido.
P/1: E quem, nesse período, foi a pessoa mais importante que você gostava de conversar, com quem você falava, comentava as coisas que estava sentindo? Com quem era?
R: Ah, eu gostava da minha namorada. Tipo da presença da minha namorada mais, por exemplo, do que, às vezes, parentes. Meus amigos também. Eu gostava de todo mundo. Eu não era assim de ficar me lamentando. Eu não tinha assim alguém que ia lá e chorava as lágrimas. Eu não tinha muito isso. Nem tinha esse momento, viu. Era um dia-a-dia tão assim. A cada meia hora vinha fisioterapia e depois vinha o outro, era um ritmo doido no quarto. De madrugada acalmava. Eu lembro que de madrugada ficava uma coisa mais calma. Mas eu não dormia. Dificilmente eu dormia. Eu levei três semanas para voltar a dormir...
P/1: Você ficava acordado, você cochilava...?
R: é, de cansaço...
P/1: Durante o dia
R: Mas à noite eu tinha dificuldade. Não só pelo medo, eu fiquei medo, medo de morrer. Mas porque era desconfortável. Você não tinha posição, sabe. É estranho. Você não tem como se ajeitar. É uma coisa estranha, inicialmente.
P/1: Você pensava na tua situação?
R: Para mim era muito claro que assim, eu tava na verdade, com todo o direcionamento do que ia acontecer em termos emocionais do grupo sob minha responsabilidade, ou seja, se eu tivesse momentos de muita tristeza, ou que seja, isso derrubava completamente todo mundo. Então eu tinha, assim, um exercício diário de me manter brincando com as pessoas, mostrando que eu tava com boas perspectivas, de que eu não tava, de que eu não ia desistir nada disso. E aí como é que era o momento. Tinha uma coisa que, sentia alguns minutos de baque, você: “de novo, lá vem esses caras de novo ficar me cutucando.” O cara vinha com uma agulhinha para ver onde eu tava sentindo. Uma hora começou a me incomodar aquele negócio. Então eu falava “de novo isso tudo, né?”. Mas ai era alguns minutos só... e era o lugar do meu pai, né: “eu tenho que fazer a minha parte aqui, e tudo.” Então foi um pouco assim essa a lógica.
P/1: Isso que você falou, assim, tinha um exercício diário. Isso era uma coisa nova para você, quer dizer, esse exercício de se manter confiante, mostrando que você estava lutando, ou era uma coisa já conhecida, que era uma coisa que tinha a ver com teu jeito de ser, ou foi uma coisa nova para você, era uma coisa nova?
R: Não é nova, porque eu me lembro nos piores momentos, os piores momentos foi quando eu tava entubado, sem isso, muito assim marcante. Foram os dias mais difíceis, porque eu ficava com aquele negócio e não conseguia falar, ficava com a boca com o tubo, enfim. Tinha momentos de falta de ar... então quando tinha esses momentos mais difíceis eu buscava força na minha adolescência, lembrando de coisas que eu passei na adolescência.
P/1: Dá para você dar um exemplo do que você lembrava?
R: Ah, coisas positivas que eu passei. Eu até comentei no inicio do depoimento, uma adolescência muito rica em termos de vivências, de amizades e de experiências, foi muito rico. Porque eu tinha um grupo de amigos muito próximo, tive a chance de fazer vários esportes, tinha uma, tinha duas bandas de música. Então, assim, eu era um jovem muito ativo. E então, por exemplo, sei lá, na época de remo. Na época do remo... É, acho teve um pouco isso. O remo é um pouco, é um esporte que exige muito de treinamento. Uma coisa até meio militar. Então, distâncias enormes de corrida, todo dia você tem que acordar de manhã, tem que treinar duas vezes por dia, final de semana e tudo. E o remo tem um pouco disso, que você não pode abrir mão, tem que ter uma fibra ali de estar presente e não desanimar . Eu tinha, por exemplo, um treinador, que ele era um cara muito carismático e ele trazia esse espírito de que depende do nosso esforço e tudo... Então o remo, por exemplo, era uma experiência que eu usava. Pensava: “não, vamos lá, não posso desanimar”, um pouco assim.
P/1: Essa história de imagens, e isso te ajudou?
R: Me ajudou. Isso é um exemplo, mas tinham coisas boas, do tipo: a experiência que eu tive quando eu fiz intercambio para a Alemanha foi muito bom também. Então eu lembrava dos momentos bons e que, talvez em pouco tempo, eu estaria fazendo viagens, essas coisas que eram boas. Então eu tinha, voltando a sua pergunta, não era, não era novo, tinha um resgate Tinha muito isso: de buscar referências.
P/1: E aí, como é que foi quando acabou esse primeiro mês? Como é que foi a sua alta do hospital? Como é que decidiram da alta?
R: A minha alta foi quando acabou o risco pulmonar. Quando eu recuperei uma autonomia respiratória, foi isso. Porque eu não fiz cirurgia nenhuma, quer dizer, não tinha que acompanhar nada em termos de interferência na estrutura da coluna.
P/1:Essa autonomia como que aconteceu, assim? Do ponto de vista físico, teu organismo se readaptou? Como é que isso...?
R: A autonomia media. Tinha um aparelho que media, por exemplo, minha força tanto na respiração como na respiração do volume de ar que conseguia ventilar no pulmão. Então isso foi crescendo, fui fazendo exercícios. E os exercícios também eu lembravam do remo: eu fazia lá 100 séries de 30. Pra mim aquilo lá não tinha segredo nenhum, para quem estava acostuma a fazer sei lá 30 series de 200 abdominais, sabe assim? Só voltando, essas coisas ajudaram. Então eu fui ficando mais forte e ai atingi um mínimo, vamos dizer, não voltei a ter aquela capacidade pulmonar, mas ai eu voltei a poder viver independentemente de aparelhos.
P/1:E aí como é que foi a sua volta para casa? Você...
R: A volta para casa, então... Foi, na verdade, com muita presença dos amigos. Porque tem, às vezes, casos em que a pessoa volta para casa e acaba essa fase. Eu acho comentei já que, depois de um ano e dois meses, pelo primeiro dia, eu não recebi duas visitas por dia, recebi uma. Para você ter uma idéia de como vinha gente. Então, o que mudou um pouco foi que no hospital você ta deitado, numa cama de hospital, quando todo mundo tá no hospital é assim, não muda muito. Em casa que eu comecei, assim, a ver a complicação de não se mexer, né? Porque você começa a tentar sentar mais. Aí você começa a ver que seu corpo não responde. Então, eu via que o problema era maior do que eu sentia, né, do que eu tinha. Minha noção passou a ser mais real do quadro. Que mais? Mas é mais confortável, né? Você tá em casa, tem liberdade...
P/1: Mas e assim, como é que era a rotina na tua casa? Ai você voltou, se alteraram coisas? Foi preciso fazer adaptações, como é que...?
R: Então. Meus pais já tinham preparado a sala da casa. Se transformou no meu quarto e precisou de uma cama hospitalar inicialmente. Precisava de espaço, essas coisas. Então eu fiquei ali na sala. Em termos de rotina... a minha mãe, acho que ela conseguiu licença. Ela tava para se aposentar já, ela já tava como diretora de uma escola. Então Minha mãe continuou o dia todo comigo durante um bom tempo. Aí tinha, começou a ter esse contexto de eu ter um acompanhante, né? Foi ali que começou essa historia.
P/1: que coisa?
R: Então, inicialmente tinha um rapaz que ele nem assim, na verdade, nos primeiros meses, a minha mãe e minha namorada que ficavam comigo. Elas nem se sentiam confortáveis para outra, alguém ajudar que não fosse medico ou enfermeiro mesmo. Com o tempo que a gente foi criando essa possibilidade de outras pessoas irem aprendendo e tudo. Começou com um rapaz, depois veio outro. E eu comecei a aprender como é que é isso, como é passar o dia inteiro com alguém por perto. Como é que você faz para gerenciar, porque tem coisas que são da sua intimidade. Por outro lado, você também tem que dar atenção, porque é uma pessoa que está lá do seu lado. Então, eu sempre me preocupei. Bom, inicialmente talvez eu fosse menos cuidadoso, mas hoje eu to sempre ligado, porque se eu vejo que a pessoa ta triste eu tento sempre dar atenção, para que o dia-a-dia dessa pessoa não seja chato. Porque é um trabalho de dedicação. Você ficar o tempo todo a disposição de alguém. E sempre me relaciono bem ou não dá certo. Mas geralmente eu desenvolvo um laço de amizade com meu acompanhante.
P/1: Você teve muitos acompanhantes?
R: Tive. Tive já um time de futebol no mínimo. Hoje eu tenho um acompanhante... Eu tenho sempre um que fica durante o dia, um à noite e pelo menos mais um que cubra um final de semana, um feriado, coisas assim. O que fica durante o dia, que é o meu motorista, a gente está junto a dez anos. E o rapaz que fica durante a noite já está há sete. Então tem essa, enfim, essa aprendizado. Mas porque eu falei isso mesmo?
P/1: Porque você tava contando um pouco como foi esse começo.
R: Que foi uma novidade.
P/1: De voltar pra casa. É.
R: Que foi uma novidade.
P/1: Que você teve que aprender, né, que no começo ficava sua mãe, a sua namorada...?
R: E outra coisa que mudou quando eu voltei para casa é que minha namorada ela desabou. Quer dizer, então... ela tinha sido a pessoa todo dia ali, forte, otimista, enfim. Quando eu voltei para casa, ela não agüentou a situação.
P/1: Em que sentido?
R: Emocionalmente eu acho. Então ela chorava constantemente. Ela teve, foi uma fase muito difícil, viu, muito difícil. Eu nem sei o quanto. Porque ela parou de vir na minha casa, vinha de vez em quando. Mas ela ficou muito mal, muito mal. Durante meses isso. Foi muito difícil. Pra família dela foi um problema enorme, porque eles ficaram desesperados com o que fazer. Tanto é que logo depois, na quarta semana, eu já terminei o namoro. Falei: “olha”
P/1: quarta semana?
R: Depois que eu mudei para casa.
P/1: Que você voltou, né?
R: Falei: “vamos terminar o namoro, a gente é jovem, você tem tanta coisa para viver, depois a gente vê o que acontece”, “Vamos dar prioridade para isso aqui que eu tenho que dar atenção”, para, é uma fase que você tem dar atenção, “depois a gente vê o que vai acontecer com a gente.”
P/1: Mas isso ela já tava mal ou ela ficou mal a partir desse incidente?
R: Não, a partir do dia que eu voltei para casa. E depois que eu percebi que não dava para, enfim, que tava sendo muito ruim, ai que a gente decidiu terminar.
P/1: E o que era ruim?
R: Então, eu não sei dizer muito bem para ela. Eu imagino que seja a perda? Aliás, eu sinto até hoje quando eu encontro com ela. Quando eu encontro com ela é um clima, é uma atmosfera de perda, ou seja, eu deixei de ser o Rodrigo que tinha, enfim, uma dinâmica com ela e aí passei a conviver com limitações que com outras namoradas que eu tive depois do incidente não tinha essa questão, porque ela já me conheceu daquele jeito.
P/1: Você viveu essa coisa de perda com você mesmo?
R: Ah, vivi também. Também. Eu não me sentia muito à vontade quando eu estava com ela de ter que pedir as coisas. E ela também... mas eu não ficava, quer dizer, eu não tive, emocionalmente para ela acho que foi mais difícil. Porque também, uma outra interpretação que eu faço, é que eu nem podia me dar ao luxo de ficar entrando, era uma questão mais objetiva e real, eu tinha que voltar a respirar.
P/1: Você tinha outras lutas, né?
R: Isso. Eu não tinha toda esse gama de possibilidades. Eu estava mais em situações limites. Talvez isso tenha me ajudado... Enfim, ela é outra, tem um outro jeito de pensar, né? Ela é uma pessoa diferente de mim, muito mais emocional.
P/1: E aí, como é que era o seu dia-a-dia quando você voltou para casa? O que você fazia durante o dia? Como era dia o dia teu?
R: Meu dia-a-dia era o seguinte: quando eu acordava, eu tinha primeiro a fisioterapia, que demorava uma hora, uma hora e pouco. Aí, antes do almoço, eu tinha que fazer a minha série de exercícios respiratórios, que eu já fazia sozinho, não precisava mais, tinha lá um aparelhinho que eu usava. Aí almoçava e de novo vinha a outra fisioterapia. Aí vinha a sessão... Eu fazia o respiratório três vezes por dia. Tinha a tarde e depois eu tinha que dormir.
P/1: quanto tempo?
R: Ah, cada sessão uns quarenta minutos, porque era uma repetição enorme de exercícios. E nesse, nos intervalos, tinham as visitas. Eram sempre tinha visita. Final de semana fazia volta na casa, era muita gente. Depois mudou um pouco, quando eu comecei a pintar, porque ai surgiu uma novidade na minha vida, não era só fisioterapia mais.
P/1: Quanto tempo depois aconteceu isso? Como é que foi isso? Como é que você decidiu começar?
R: Então, foi o seguinte: eu voltei para casa em setembro. Eu voltei dois dias antes do meu aniversario. Olha só. Depois...
P/1: Que dia você faz aniversário?
R: 30 de setembro
P/1: 30 de setembro.
P/2: Você comemorou isso?
R: Comemoramos
P/2: Como?
R: Lotou lá, fizeram festa. Eu tava na cama ainda.
P/1: Você não podia sentar ainda nesse primeiro?
R: Muito pouco.
P/1: Muito pouco. Quando é que você passou a sentar?
R: Pra valer? Então, foi gradual, né? Eu já sentava um pouquinho logo no inicio, mas sentar mesmo, de falar “vamos dar uma volta”, quase um ano depois. Que foi você está perguntando foi quando... Olha que interessante, então teve toda essa fase. Ah, uma coisa que acontecia quando eu sentava era desmaiar, porque caia a pressão. A gente perde completamente a capacidade, porque o sistema circulatório ele perde...
P/2: E por isso tem a fisioterapia, porque vai mexendo o corpo para poder circular, né?
R: A fisioterapia toda, na verdade, é para você preservar músculo e osso. A questão da circulação é mesmo ir forçando. Você vai sempre um pouquinho e volta e vai indo. É assim que você recupera. Mas então. Aí quando eu comecei a ter condições de sentar, um ano depois, foi no mês de agosto, no mês de setembro, foi o seguinte: uma amiga minha tinha uma casa no Guarujá, e ela deu um churrasco de aniversário. E aí a gente achou que daria para eu ir. Foi a primeira vez que eu dei uma saída de dentro de casa.
P/1: Viajou, foi pro Guarujá?
R: É, fui pro Guarujá. Aí estou lá eu de novo, com os mesmos amigos, mesmos amigos.
P/1: Como é que foi viajar, depois de um ano?
R: Então, estou lembrando a primeira vez que eu andei de carro. Quando eu saí do hospital e entrei num carro para ir para casa. É muito, muito estranho como é bruto o carro. A gente está acostumado, mas o movimento do carro ele é muito bruto. Chacoalha pra caramba. E, achei interessante isso, então é que essa sensação, a percepção, é coisa diferente. Bom, viajar não me lembra nada de mais, porque eu já ia para, ia três vezes por semana para uma clínica, então eu já saía de carro. Eu não comentei isso: às vezes a fisioterapia era numa clínica. Bom, daí chegou lá, nesse dia, era um sábado ou um domingo à tarde, não sei dizer se era sábado ou domingo. Então tava todo mundo lá, eu com meus amigos e... essa parte eu não contei ainda, né?
P/1: Não.
R: Tá. Aí a gente tava na beira de uma piscina e, nessa ocasião, a família da minha amiga, ela tinha amizade com um artista, um decorador, chamado Luca Vitali, que tava lá na festa. E ele me viu, foi lá perguntar para a dona da casa quem eu era e tudo, ficou curioso para saber da história. E ele pediu para falar comigo. Então ele se aproximou, se apresentou, pediu licença, disse que era um artista e tava com a intuição de que eu poderia pintar com a boca. E aí ele falou aquilo e ele tinha um jeito muito, um jeito de artista, cabelo cumprido, aquele olhar meio diferente. Então meus amigos, eu lembro, começaram a dar um pouco de risada do jeitão dele. E quando ele falou aquele negócio de eu pintar com a boca eu achei que ele estava completamente sem noção do que ele tava falando. Primeiro assim porque, naquele momento, eu tinha como modelo de Rodrigo, que dizer, a única opção de modelo de Rodrigo que eu buscava, era o Rodrigo anterior. Rodrigo sem limitações motoras. E aí pintar com a boca seria talvez o máximo da explicitação da minha limitação. Mas eu nem cogitei assim, “imagina que eu vou pintar com a boca”. Então eu já peguei uma antipatia. E já falei “olha, eu agradeço muito, mas não tenho pretensões” e dei, de certa forma, uma cortada nele. Aí ele deixou o telefone com a minha mãe se eu quisesse tal. E foi isso. E eu passei a tarde toda ali com meus amigos. E aí eu voltei para o meu dia-a-dia, e aí minha tia comentou “eu to com o telefone aqui daquele artista, se você quiser a gente pode ligar lá” Eu falei: “imagina que eu vou ligar para aquele cara”. Mas aí se passaram alguns dias, e não sei dizer muito bem porque, que eu voltei, quer dizer, eu comecei a considerar a possibilidade. Acho que talvez pela rotina do meu dia. Até porque eu tava cansado. Há um ano você fazer três vezes por dia fisioterapia é uma coisa, que não tem graça. Enquanto meus amigos todos... 18 anos é justamente a fase que você entra na faculdade, quando você começa a ter a liberdade de uma serie de coisas, se bem que eu já tinha carta com 18 anos, mas enfim. Viajar, uma série de coisas começam acontecer, uma liberdade maior nessa fase. Faculdade é uma fase muito de eventos e novidades. Então eu via todos os meus amigos vivendo isso e eu lá, em standby, esperando ver o que é que ia acontecer. Acho que foi isso. Eu falei: “quer saber, pintura, com a boca, que seja, eu vou ficar no canto aqui, não tem ninguém me olhando, vou me divertir talvez?” E foi assim que eu decidi ligar pro artista. Ai ele, assim, no mesmo dia já ficou super entusiasmado. Ele era um cara meio esotérico. Faz tempo que eu não falo com ele, mas ele tem esse jeito, e ele fala abertamente assim, ele nem disfarça, que ele tem umas intuições, que ele se comunica e coisas assim. Então ele já falou: “não, que eu tinha essa mensagem, eu sabia que você me ligaria.” Bom, e eu assim: “lá vem, né, mais uma...”. Porque teve isso também, não comentei. Todo o tipo de curandeirismo, religião, tudo que você imagina, eu já conheci. Desde o hospital até depois. Porque essas pessoas vêm trazendo com toda a boa vontade, você até fica sem graça de dizer não.
P/1: Depois você fala um pouco disso?
R: Falo. De algumas dá até para falar um monte. Bom, e ele tinha esse jeito. Aí ele chegou em casa no final do dia com um estojinho de aquarela e um bloco de papel canson. Então ele, muito animado, falou assim: “olha Rodrigo, é importante que você entenda que a arte é um campo onde você tem maior liberdade. Você não precisa ter uma precisão com os traços.”. Então ele pegou um papel, molhou, aí ele fez uma mancha verde com um pouco de azul em volta e uma base marrom. Aí ele falou: “isso pode ser uma paisagem, isso já uma árvore e coisa...”, mas eram manchas. Eu fiquei vendo ele, e tal. Mas não tinha muito como eu testar, porque eu não sabia aonde eu ia sentar, como ia se o suporte. Então ele falou: “Puxa, eu vou ver se eu trago um marceneiro aqui. Vou ver o que ele faz para fazer uma armação para você.” Então ele ficou de voltar no dia seguinte com um marceneiro. Então, aí, no dia seguinte, pela manhã, enquanto eu estava em casa esperando o almoço, eu vi que tinha dentre as coisas que eu ganhei, porque eu também ganhei um monte de coisas das pessoas, eu ganhei uma pranchetinha bem parecida com aquelas de hospital que as pessoas usam para comer na cama. Então ela tem uma base uma mesinha que reclina e um suporte com uma rodinha que entra na cama. Deu pra visualizar?
P/1: um, hum, uma mesinha assim.
R: É. E ela gira. Então ela vira tipo um apoio mesmo para um livro, vamos dizer. E aí eu fui puxar para ver se funciona. E eu ganhei também uma poltrona, uma poltrona muito boa do meu avô. Meu avô tinha falecido e aquela poltrona não tava sendo usada. Essas poltronas, tipo cadeira do papai, que você inclina e o apoio do pé sobe, tipo primeira classe de avião. Que era confortável aquela poltrona, porque ela inclinava e eu não ficava tão sentado, não me dava tontura. Então eu usei aquela poltrona, uma mesinha, e foi perfeito. Assim, tinha uma posição super adequada para eu poder alcançar o papel e tudo. Eu comecei então a brincar. E aí, meia hora depois, eu já estava fazendo paisagem. E vi que não era... Porque a gente tem um controle muito bom de cabeça, fazer retas e tal, fazer circunferências. É que a gente nunca testou isso na vida, mas o nosso controle é muito bom. Então aí chegou a noite e ele foi lá, sem o marceneiro, porque não achou o marceneiro. Quando ele chegou, eu tinha lá, uns quinze esboços, já. Ficou alucinado: “Eu sabia Tá vendo Você vai ver o que vem pela frente”. Bom, então essa coisa da pintura ganhou esse lado de uma novidade, de um H, de um charme. De ser uma coisa que eu nem imaginava. Mas eu, como sou uma pessoa mais racional, eu nunca dava muita bola pra esse tipo de coisa que ele falava. Eu falava: “Lá vem ele de novo com esse papo”. Quando não ia para o lado esotérico. O que era bom é que eu ficava ali me divertindo. Para mim o que importava era isso. Então começou assim: ele me dava uma aula por semana. Ele vinha e a gente travava uma aquarela juntos e os outros dias eu tentava me desenvolver sozinho. Então mudou o meu dia. À tarde, entre, inicialmente, entre 3 e 5 horas, depois foi aumentando, eu ficava pintando. Foi assim.
P/1: Todo dia?
R: Todo dia. Inclusive sábado e domingo.
P/1: você tem estes teus trabalhos?
R: Eu vendi tudo. Quer dizer, praticamente tudo. Mas eu tenho tudo fotografado.
P/1: E o que você gostava de pintar?
R: Paisagens. E a grande maioria dos lugares que eu tinha visitado. Então eu ficava buscando as minhas fotos até, lugares que eu lembrava e eu queria reproduzir. Bom, aí essa história da pintura, em poucos dias já foi ganhando uma dimensão maior, porque eu comecei a produzir coisas razoáveis. Na semana seguinte, eu já fazia uma paisagem, enfim, com uma certa qualidade. Isso na cabeça desse artista e também na minha mãe e tudo. Mas passou a ser um negócio, vamos dizer, fora do comum, uma coisa meio exagerada.
P/1: E pra você, o que que era? Ainda era...
R: Pra mim era coisa totalmente...Nada, nada fora do comum. Muito prazerosa e tal. Mas o que eu fazia e tudo bem. Começou a ganhar uma qualidade o meu trabalho. Eu ficava lá horas. E eu sou, tem essa, às vezes eu sou um pouco perfeccionista: Então eu vou lá, mexo, quinhentas horas até terminar, não terminava nunca. Agora, tinha um cuidado, para que tivesse um resultado e tal, de qualidade. Então só voltando: e aí surgiu a idéia de fazer uma exposição. Idéia dele.
P/1: Depois de quanto tempo?
R: Duas semanas.
P/1: Depois de duas semanas já, né?
R: Ah, é. Em duas semanas. Aí eu falei: “pronto, lá vem esse cara de novo. Pô, tudo bem, pintar com a boca eu já topei, mas fazer exposição, tá loco, né?”. Ai foi o mesmo processo: depois de alguns dias eu falei: “Ah, talvez não seja tão ruim” e tal. Aí topei a exposição. Ai começou a se pensar onde seria. E aí uma das mães dos meus amigos foi me dar uma força lá na minha casa e ofereceu, o salão do prédio onde ela morava, um prédio muito assim, espaçoso, condomínio, no alto de Pinheiros, um lugar bom, um salão de festas muito bom. E aí ofereceu e ficou sendo lá. E olha só, hein: acho que terceira semana depois que eu comecei a pintar já tinha local e já falaram a data: “vai ser em dezembro.” Eu tava, sei lá, final de setembro e ia ser em dezembro o negócio. Então eu, enfim, eu tenho um pouco esse jeito de tentar planejar, já calculei: falei: “quantos quadros devia ter na exposição?”. Eu falei: “Ah, 50”. Então perguntei para o Luca: “Luca, 50 tá bom?”. “tá ótimo”. Aí 50, pra tantos meses, dividi as semanas, e eu tinha que produzir acho que 6 trabalhos por semana, para eu conseguir cumprir os 50. Então ficava lá todo dia até sair o meu negócio. Eu passei a trabalhar 4 a 5 horas por dia, né? Tinha dias que eu não sabia o que pintar. Acabou. Não tem. O que eu vou pintar hoje? Não tenho idéia.
P/1: E você pintava é, em tela?
R: Aquarela. Aquarela sobre papel
P/1: Aquarela sobre papel.
R: É. Então é isso, né? Passei a ter uma, vamos dizer, uma meta diária, uma coisa que não tinha mais nada a ver com a fisioterapia. Isso era muito bom. E o que era muito bom, na verdade, na verdade o que era prazeroso, o que eu acho que é prazeroso, para mim, isso é uma coisa muito individual. O trabalho na pintura é, assim, o envolvimento que você estabelece com o seu trabalho. Geralmente eu fazia paisagens como se eu tivesse naquele lugar. Você entra naquela imagem. Até esse trabalho de refinamento: “onde eu quero por o rio...” Então você se desliga muito, é um trabalho prazeroso. Principalmente quando você acaba, quando você fala: “acabei”. E aí eu pendurava alguns trabalhos na parede do quarto, principalmente os que não estavam acabados. Quando acabava eu punha numa pastinha. Então quando eu estava assim quase para acabar, eu não sabia o que que eu ia fazer, o que que tava faltando, eu pendurava. Ficavam sempre uns 4 ou 5 pendurados. E eu ficava horas olhando aquilo, horas olhando, ficava namorando mesmo o trabalho. E isso eu adorava fazer. E eu tinha tempo para fazer. Hoje eu não tenho, não tenho esse tempo.
P/1: Você ainda pinta?
R: Não. Desde que eu entrei na faculdade na verdade acabou esse tempo.
P/1: Mas essa pratica te acompanhou por quanto tempo? Durante quanto tempo você pintou?
R: Então, eu pintei, intensamente (pausa). Teve fases porque sempre aí eu fazia uma exposição, aí eu começava a produzir. Mas, com os intervalos entre as exposições, que eu pintava com qualidade, eu pintei intensamente uns 3 anos.
P/1: E como é que foi a primeira exposição, quando chegou dezembro?
R: Pois é, aí eu fui juntando, e tal, e consegui fazer 60 aquarelas. Aí a gente mandou emoldurar, tudo E aí quando eu coloquei aquilo tudo junto, tudo emoldurado, assim, foi um impacto, sabe. Aquilo tinha uma força. E o local era muito bom. A gente comprou uns biombos, ficou uma montagem profissional. Então quando você olhava o conjunto, era muito forte, era muito, muito interessante. Principalmente é o que a gente ouve falar. Mas enfim, aí veio a exposição. Aí que tem um comentário importante, que é o seguinte: bom, tudo isso levou um ano, um ano e três meses. Do meu assalto até aí a exposição foi um ano e três meses. Nesse período todo, aquele grupo enorme de pessoas que visitavam o hospital e depois me visitaram na minha casa, e depois alguns nem tanto, mas assim, o número de pessoas que ficou sabendo do caso e que tinham curiosidade de saber como estava evoluindo era enorme o número de pessoas, que juntava colégio, com turma do remo, com turma da música, com os pais dessas pessoas. Porque foi um caso um pouco chocante: 18 anos, levar um tiro, as pessoas ficam sensibilizadas. Então tinha esse grupo enorme de pessoas acompanhando o caso. De repente chega na casa das pessoas um convite para a exposição. Assim, a maioria das pessoas não perdeu. Quis ir lá ver: “e aí, como é esse negócio do Rodrigo pintando.” Então lotou. Foi uma loucura, assim. Tinha, que a gente conseguiu contar, foi umas 700 pessoas chegando. Num salão de festas, imagina. E eu não tinha ainda muita autonomia. Depois de uma hora e meia eu tive que sair de lá e deitar, não tava agüentando, não estava mais tendo força, porque as pessoas queriam, todo mundo queria falar comigo, e eu dava atenção e tudo. Então, essa noite, ela teve um significado muito grande na historia porque foi ali que eu senti uma, na verdade isso já vinha acontecendo, isso vinha acontecendo, que era uma sensação de que eu recebia tanta ajuda, mas tanto apoio, que eu tinha que retribuir. Era quase que uma necessidade. Então eu ficava só pensando: “mas um dia eu vou ser médico?” No começo era assim: “um dia eu vou ser médico? Ai eu vou fazer uns trabalhos voluntários. Mas como é que eu vou retribuir esse negócio?” Então eu ficava pensando. Então, de repente, da forma como eu nem imaginava? Eu falei: “poxa, talvez, eu possa fazer assim, com a pintura. Como eu posso fazer? Mas como é que isso pode se tornar algo maior?” Aí, tuf, veio a idéia: “Fundar uma escola de arte. Não deve existir uma escola de arte para pessoas com deficiência, né?” E assim, deve, deve..., (às vezes?) eu falo: “foi bom para mim, tudo isso estar acontecendo, pode ser bom para um monte de gente”. Então foi um raciocínio muito simples assim. E aí, na verdade, na véspera da exposição, eu falei: “Puxa, eu vou fazer isso”. Porque na véspera eu fui lá e fiz a montagem. E quando eu vi aquele negócio montado eu senti o tamanho do resultado. E ai eu fiquei pensando a noite toda e tudo. Eu até comentei com o Luca: “Luca, to pensando em abrir uma escola, o que você acha, e tal”. E aí não preciso falar o que ele achou, né? Aí, na noite da exposição, com toda aquela energia no ar, eu comecei a falar: “tem mais, tô com um projeto. Vou fundar uma escola”, e tal. Porque era um pouco dessa minha necessidade de agradecer. Acho que era um pouco isso. Então, eu falando isso era um pouco assim: “Olha, tudo isso que vocês me ajudaram, eu vou retribuir”.Era exatamente isso. Em outras palavras, o que eu tava falando era isso. “Valeu a pena, tudo que você fez por mim. Eu não vou me esquecer disso tudo, né?” Enfim, então foi isso. E aí eu falei tanto que depois eu tive que fazer, né?
Eu tive que cumprir. Não, na verdade no inicio foi até, eu nem pensava assim. Eu fiz mesmo totalmente com a minha vontade. Mas teve momentos depois que o projeto começou, depois que você começa a ver as dificuldades. Teve momentos em que, assim, de crise da organização, que eu cogitei parar o projeto, não tenho vergonha de falar isso.
P/1: Eu queria antes de a gente entrar, eu queria saber como foi teu ano de tratamento do ponto de vista médico? Como é que era? O que é que aconteceu? Só para a gente chegar nesse um ano com essa informação. Você fazia a fisioterapia, você falou que você foi para Cuba, não sei você foi isso...
R: Ah, é. Foi isso.
P/1: Como é que foi isso do ponto de vista dos médicos? Você continuou? Como é que era essa parte?
R: Pois é. Assim, em termos alopatas, no aspecto do tratamento convencional, que eu recebi no hospital e tudo, não teve muita... Assim, não teve volume de medicamentos. No hospital sim, era muito antibiótico, muita coisa. Mas depois que eu saí do hospital, que eu não tinha mais infecção nem nada disso, era mesmo um dia-a-dia de fisioterapia.
P/1: Mas tinha um médico que te acompanhava?
R: Tinha.
P/1: Tinha teu médico?
R: Tinha um clinico geral e um neurologista, que o neurologista, na verdade, não chegou a ter. Obviamente que ele foi importante, ajudou, falou, tal, mas ele não teve grandes influências, porque ele não pode operar, não pode fazer nada. Ele ficou só olhando.
P/1: E você viu o médico de quanto em quanto tempo? Como é que era?
R: Então. No hospital, todo dia. E depois que sai do hospital, poucas vezes, viu. Poucas vezes. Vinha o cara, o médico que fez a traqueotomia, ele vinha porque ele vinha tirar a cama. O meu médico mesmo, o clínico-geral, eu vi uma vez na minha casa. Não sei, no hospital eu também não fui. O neurologista veio uma vez também. Mas não teve muito. Aí era muito mais o contato com o da fisioterapia.
P/1: Mas quem que trabalhava para dizer sobre o seu quadro, para dizer se estava evoluindo?
R: Era a chefe das fisioterapeutas. Ela é que tinha uma ligação com esses médicos. Que era uma fisioterapeuta já antiga, tinha uma celebridade, enfim, uma trajetória mesmo na área.
P/1: Porque assim, nesse primeiro ano, você estava trabalhando com a fisioterapeuta para recuperar tua vida...?
R: É verdade. E aí não tinha muito, quer dizer, é que era tão lento, né? E todo mundo caiu na real.
P/1: Como?
R: Eu digo assim, a expectativa de todo mundo baixou, em termos de velocidade. Não inicialmente em termos de resultado, mas em termos de velocidade. Porque, se você vê bem, sei lá, um ano para sentar pra valer, é porque o negócio era lento. Então não teve muito essa coisa de ficar, assim, esperando o que o médico vai falar.
P/1:Mas nesse um ano você tava trabalhando para readquirir a tua...
R: Eu levei dois anos, eu levei dois anos como eu falei.
P/1: Você trabalhava nessa expectativa?
R: Trabalhava. Totalmente. Acordava de manhã falava: “”Vamo, daqui a pouco eu to aí. Vamo embora.”
P/1: E com quem você checava essa tua expectativa? era com a fisioterapeuta?
R: Era. Era. Inclusive tinha um fisioterapeuta que ia à minha casa que era muito boa, é muito boa. Era com ela, agora eu to lembrando, era com ela que eu checava o meu andamento. “E aí, foi ou não foi. O que vai acontecer?”. Como sempre tinha uma novidadezinha: “Ah, o Tríceps contraiu um pouco.” “Ah, vou começar a ficar em pé.” Tinham novidadezinhas. Então ia na base da pequena conquista.
P/1: Você falou, que nesse um ano apareceram os milagreiros, curandeiros.
R: É. Desde o primeiro dia.
P/1: Como é que foi isso?
R: Ah, meu pai sempre se relacionou um pouco com pessoas que tem esse tipo de prática. Então, por exemplo, tinha o seu Homero, que era um senhor, morava no Embu, que fazia remédios de ervas, que era considerado tio do meu pai. Que uma vez quando eu era adolescente eu tive uma crise de rouquidão na fala que remédio nenhum curava aquele negócio. Eu fiquei rouco 4 meses, sei lá. E aí esse seu Homero ele fez um chá, com laranja e não sei o que, que em dois dias não teve mais, minha voz voltou ao normal. Então teve algumas coisas que já tinham acontecido e que meu pai, por exemplo, meu pai, acreditava muito nessas coisas. Então eu lembro, acho que na segunda noite, segunda noite de hospital, eu com febre enorme, os caras assim dando um monte de remédio. O cara chegou, eu lembro que, que eu até achei muito estranho, ele veio com, esse enfermeiro, com um saco de gelo, colocou no peito, eu achei muito agressivo aquilo, para abaixar a febre. E o seu Homero na sala. Que o seu Homero veio me visitar. Aí o enfermeiro saia do quarto ele falou “tira esse gelo daí”. Aí tiraram o gelo e ficaram lá, me dando dose de arnica. Então desde o segundo dia já começou a bagunça. Vinham uns dez e falavam uma coisa. Vinha outra pessoa e falava “faz nada disso”. Teve de tudo. Ah, acupuntura eu fazia, ver como era, curandeirismo era outro tipo diferente de tratamento. Tinha gente que fazia pomada, tinha... O seu Homero fez vários remédios para mim, que eu tomava, tal. Tinha pessoas que faziam energização. Uma moça que morava, morava ali perto da Raposo Tavares, enfim, e ela vinha e fazia lá, que até fazia calor, saia calor da mão dela. E depois que eu voltei para casa eu lembro que tinha que fazer uma vez por semana um jejum. Aí comia canjica no jejum. Teve aí práticas de espiritismo. Espiritismo teve umas cinco. Que a pessoa vinha, fazia serviço espiritual. Eu nunca assim duvidei, falando assim agora, o importante para mim, como é que era isso para mim. No início eu aceitava bem. “Ah, pode ser que aconteça, alguma coisa”. Depois, com o tempo, eu fui ficando meio, assim, mais crítico, porque eu via que tinha muito chute. Muito curioso, muito curioso tentando fazer alguma coisa. Que mais... Desses mais, assim, africanos, não teve nenhum. (risos)
P/1: Mais você tava aberto?
R: Tava aberto, tava aberto. Eu fiz um tratamento depois, com um médico, ele era um biólogo na verdade, que ele tinha uma teoria que a vida surgiu no mar. Então os elementos da água marinha tinham um poder regenerativo muito grande. Então ele fazia remédios à base de elementos marinhos. Nossa, mas o tratamento dele era assim era algo assim: você tinha que tomar ao longo do dia muitas doses, de umas águas, de umas gotas, né. Eu fiz por um bom tempo aquilo. Que eu acreditava, o jeito que ele falava. E tinha casos que ele tinha curado, uma série de doenças e tudo. Então teve esse também, que é diferente.
P/1: Nesse primeiro ano, tudo isso?
R: Foi.
P/1: E a relação com a tua família, nesse primeiro ano em casa, como é que...?
R: Então, eu sempre. Eu acho que eu, assim, o meu papel, o meu jeito, ele continuou sendo como é, não mudou, na minha família.
P/1: Não mudou a tua relação com tua a mãe, com o teu pai, com os teus irmãos?
R: Não mudou. É, nunca tinha pensado nisso, mas não mudou não. Mesma coisa.
P/1: E aí começou, segundo momento, meio por etapas porque é tanta informação, mas o seu segundo ano. A gente parou em dezembro, quando você fez a exposição...
R: Aí eu vendi os meus trabalhos. Aí juntei aquele dinheiro. Que era um dinheiro razoável, pra quem nunca tinha dinheiro.
P/1: quantos trabalhos você vendeu?
R: 60
P/1: Você vendeu todos?
R: É... teve três ou quatro que eu separei para mim.
P/1: E o resto vendeu tudo?
R: E um dei para minha namorada. Que eu tinha pintado ela. Quer dizer, a ex-namorada, né.
P/1: A Camila?
R: Depois eu até me arrependi, porque foi uma choradeira. Não sei o quanto aquilo foi bom pra ela...Mas enfim. Aí eu vendi tudo, peguei o dinheiro e guardei. E comecei a trabalhar com aquela idéia da escola. “Onde vai ser. Como fundar uma escola?”. Bom, e aí continuei pintando, continuei pintando. Aí teve uma segunda exposição em abril, pouco tempo depois. Aí eu comecei a trabalhar um pouco mais.
P/1: aonde foi essa segunda?
R: Foi numa, num espaço ali na Vila Olímpia. Eu fiz ali trinta e poucos, trinta e poucas aquarelas. Acho que eu fiz foi quarenta? Quarenta aquarelas, depois eu fiz trinta. Aí eu vendi de novo, juntei mais um dinheiro, ai já, acho, me senti à vontade pra começar o projeto.
P/1: E esse dinheiro na realidade era destinado...
R: Eu comprei umas coisas pra mim... eu comprei um som, umas coisas pra mim. Mas, assim, eu não gastei o dinheiro. Aí quando foi. Ah, então, aí nessa exposição, na segunda, eu coloquei um cartazinho muito vagabundo escrito: “Aulas de pintura.” Alguma coisa assim. “Venha, experimente você também essa praia.”, uma coisa assim, e tinha meu telefone. Eu comecei a sentir como é que a coisa ia acontecer. Aí um pai de uma outra amiga minha do colégio chamada Lurdes Florentini, com quem eu me dava muito bem, ele viu aquilo lá e falou: “Rodrigo, que é que é aquele cartazinho lá, né?”. Eu falei: “Ô, tio, você não está sabendo? Eu to querendo montar uma escola, né?. Desde a outra exposição.” Ele falou: “Interessante. Vou passar na sua casa um dia desses pra gente falar sobre isso.” Aí esse tio meu, né, eu chamo ele de tio, veio na minha casa e falou: “Como é que é isso, tal?”. E eu falei: “Ah, tio, eu tava pensando, tal. Uma escola para pessoa deficiente, e tal. Mas eu tô na dúvida. Eu tenho dinheiro, mas não tenho os alunos. Então, se eu for alugar uma casa, como é que eu faço? Se não tem aluno, né. Por outro lado, se eu não tenho o espaço também não vai vir aluno, né.”Aí ele falou: “Então, vou te ajudar. Vou te ajudar.” Porque ele é um publicitário e tal, tem muitas influências no meio. “E se você quiser eu te ajudo e vamos em frente. Aluga a casa. E depois a gente vê o que acontece.” Aí ele falou e eu fui com tudo. Três semanas eu já tinha a casa escolhida. Aí aluguei a casa. Peguei o dinheiro e assinei o contrato.
P/1: Aonde era?
R: Era na marginal. Na casa, um pedacinho da marginal, que às vezes as pessoas nem reparam muito. Naquela ponte que vai para (marginal?) bandeirantes, entre a Cidade Jardim e a Morumbi, tem aquela ponte da Bandeirantes. Naquele pedaço tem umas casinhas ali. Então foi ali. Era uma casa térrea. Aí começamos a ajeitar a casa, o Luca comigo, o Luca eu convidei ele pra estar junto. Aí levou um tempo pra: ele preparou, teve uma negociação, depois teve que dar uma ajeitada na casa. Daí a gente lançou mesmo a escola, porque aí o Armando fez o maior barulho na mídia, em setembro, em setembro desse ano.
P/1: Setembro de? Só fala o ano para a gente se localizar.
R: Então, o acidente foi em 90. Em agosto de 90. Comecei a pintar em setembro de 91. Aí a primeira exposição foi em dezembro de 91. E inauguramos a escola em setembro de 92. Bom, aí teve isso. Aí fundou. Começou. Teve um monte de divulgação em jornal. No dia seguinte um monte de gente ligou. Aí formou a primeira turma com dez alunos. Pessoas muito pobres.
P/1: Quem eram esses alunos?
R: Pessoas muito pobres. Todos com deficiência. Quem dava aula era o Luca. Porque eu também nunca senti preparado para dar aula, porque eu não estudei artes, e tal. E começou. Eles não podiam pagar nada. Ah, então, e como é que a escola ia sobreviver? A gente tava um pouco nessa aflição, porque o meu dinheiro acabou. Aluguei, arrumei a casa e acabou o dinheiro. Aí, no mês de julho, no mês de julho, eu dei uma entrevista para uma rádio, e aí uma pessoa de Guarulhos ouviu, e essa pessoa tinha uma gráfica, que já fazia cartões de natal com um grupo de pessoas deficientes e tal, mas tinha rompido o contrato e tava procurando alguém que substituísse. Então o sujeito veio lá oferecendo o contrato de doze meses, ele já me pagaria adiantado, ele pagaria por mês, na época se falava em dólar, antes se falava em dólar. Não tinha nem acabado a inflação. Então ele falava, o contrato era 1.000,00 dólares por mês, que dava exatamente para pagar o aluguel, água e luz, era mais ou menos isso. Então eu tinha um ano de tranqüilidade, por causa desse contrato.
P/1: com as pinturas, ele faria...?
R: ele usava as minhas pinturas.
P/1: As tuas?
R: É. Eu, acho, que uns dez cartões de natal e um calendário. Ficava umas doze imagens. E foi assim que começou. Eu completamente inexperiente. Tinha, quantos anos eu tinha? 20, né? Foi 18 no acidente, 19. É, eu fiz 20 naquele mês. No mês da inauguração, depois eu fiz 20. Aí já veio a história de Cuba. Aí que veio a história de Cuba.
P/1: O que é a história de Cuba?
R: Que eu tava nesse, enfim, nesse volume de matérias que saiam, tal, sobre o meu trabalho, teve um sujeito que leu e ele tinha acabado de voltar, ele era paraplégico e tinha acabado de voltar de Cuba e tinha ficado num centro de reabilitação. Aquilo eu já tinha ouvido falar, né? Tinha assim: “Ah, vai para os Estados Unidos. Vai para Cuba”, tinha muita gente falando. E ele me ligou, assim, contando maravilhas de Cuba. “Não, porque você tem que ir para Cuba. É sensacional. Eu tô, eu voltei porque acabou o dinheiro. Mas eu tô, assim que eu conseguir eu volto pra lá”, e tal.
P/1: ele tinha conseguido melhorar?
R: Melhorar? Então. Ele era paraplégico. Já tinha uma boa autonomia. Ele ganhou músculo, assim. Porque até ele era levantador, era halterofilista. Mas aí, e aí eu fiz: “Tudo bem, mas o que que você viu lá de real, né?”. Aí até marquei. Ele foi me visitar, até. Aí ele veio com um monte de fotos, e tal, e falou que tinha gente do mundo inteiro, muito europeu, e tinha visto casos de tetraplégicos que tinham tido melhoras muito importantes e tal. Aí me deu uma insegurança, do tipo “será que eu estou bobeando, né?” e tal. Me deu essa insegurança. E eu falei: “Será que eu devia estar lá, né?”. Que até então os médicos aqui nunca apoiaram, dizendo que aqui no Brasil tinha tudo. Aí falei para os meus pais e falei: “Ó, e agora, né?”. Contei para os meus pais, aí ficou nessa dúvida, falei com minha fisioterapeuta lá. Ela falou: “olha, pode ser legal, né? Bom saber. não conheço.” Aí o jeito era ir pra lá. Pra conhecer. Bom, o esquema desse hospital em Cuba era o seguinte: eles pediam para a pessoa ir lá, ficar uma semana, fazer mil exames e depois dessa uma semana eles davam um diagn..., uma previsão...
P/1: Parecer.
R: É, do que seria possível e tudo mais. Então lá fui eu lá. A escola inaugurou em setembro. Eu fui, já algumas semanas depois eu fui, para eu ficar essa uma semana. Fui eu, minha mãe e minha irmã. E, de fato, era um lugar diferente, assim. Ficava em Havana. Aí você ia para um bairro que era o Miramar, um bairro, antigamente um bairro luxuoso, né? E tinha esse hospital que tinha uma cara meio de hotel. E tinha gente, assim, o hospital tinha sido feito, engraçado, o hospital pra estrangeiros, que era uma das fontes de receita de Cuba, até hoje é, turismo e tal. Mas o lado da saúde passou a ser um destaque, assim, os cubanos tinham outras áreas em que eles se destacavam. E aí tinha lá muito europeu e muito sul-africano. Tinha um grupo assim, no mínimo, de 60 pessoas. E eu vi aquilo lá, e tal. Era legal, porque cada um ficava num quarto, super confortável. Aí descia, tinha um ginásio enorme, tipo um ginásio de esportes. E tudo mundo lá fazendo exercício. Então tinha uma coisa legal, era uma coisa. Tudo junto, todo mundo jovem. Era positivo aquilo. Aí fiquei animado com essa história de Cuba, porque eu fiz lá os exames e eles vieram com pareceres muito positivos. De que tinham tido casos de. Tinha tido um espanhol que ele tinha quebrado toda a musculatura do braço. Mas que eu precisava ficar lá um tempo mínimo lá de 6 meses e tal. Aí aquilo, pesou né. Apesar de todas as outras coisas que surgiram na minha vida, quando eu vi aquilo eu falei: “Nossa, acho que... isso é o mais importante. Isso acho que é prioridade.” Aí voltei para o Brasil e começamos a planejar como eu ia pra lá. E era caro. Eu pagava lá por mês era uma quantia importante. Então meus pais começaram a juntar esse dinheiro e tudo, e aí eu consegui, me programei e voltei para lá em novembro. Aí fiquei novembro, dezembro. Vamos ver. É, final de novembro eu fui. Então eu fui dezembro, janeiro.
P/1: Isso nós já estamos em 94?
R: No final de 92 ainda.
P/1: Final de 92.
R: É. Bom, aí qual a importância disso? Bom, então, a escola começou, veio o Luca, as pessoas chegando e surge Cuba. Aí eu falei: “Luca, tenho que ir para Cuba. Você segura as pontas aí.” Ele falou: “Vai, tal, pode deixar comigo”. Aí tem alguns, vários detalhes mas, quer que eu fale das mais importantes? E o, olha só, foi quando eu comecei, foi a primeira vez que eu voltei a namorar. Quando eu comecei a namorar, uma semana depois eu fui pra Cuba. Não teve, começou a escola, eu comecei a namorar, daí eu fui para Cuba.
P/1: Quem? Como foi isso? Conta um pouquinho pra mim...
R: Desse relacionamento? Foi... é o seguinte: eu saí numa, fui num programa da Márcia Countier no Rio de Janeiro. Um programa de entrevistas assim. E cada vez que eu ia num programas desses um monte de gente ligava. Hoje em dia não existe mais tanto, sabia? Pensando bem... O dia inteiro as pessoas ficavam me ligando. A maioria assim, sempre foi isso.
P/1: Você foi nesse programa por quê?
R: Por causa do lançamento da escola.
P/1: Da escola. Foi falar da escola?
R: É. Aí essa moça, essa menina do Rio, ela morava em Curitiba, ela fazia parte da equipe de natação brasileira, ia vir para uma competição em São Paulo. Daí ela me ligou querendo conhecer a escola e aí, depois escreveu uma carta para mim. Ai convidei ela para ficar, passar um final de semana na minha casa e aí começamos a namorar.
P/1: Como ela chama?
R: Miriam
P/1: Quantos anos ela tinha?
R: Quantos anos ela tinha? Boa pergunta, viu... eu tava com vinte e quantos... tava com vinte e um, eu acho... ela devia ter 19 ou 20. Bom, aí fui pra Cuba e comecei a fazer o tratamento, que era umas oito horas por dia. Quando eu acordava vinha um, que chamava de reabilitador, que era o fisioterapeuta. E eu tinha um fisioterapeuta exclusivamente para minha atenção. Então ele vinha, a gente tomava café da manhã, a gente ia pro ginásio, ficava até a hora do almoço, tinha lá uma hora de pausa, vinha de novo e ficava até as 6 da tarde. Era esse o esquema. E o tempo inteiro fazendo exercício.
P/1: Foi você e quem? Pra Cuba, foi você e quem nesse período?
R: Depois foi minha mãe. Depois ela voltou, foi meu irmão. Ficou um pouco. Então basicamente foi minha mãe. E esse era um pouco o esquema lá. Todo mundo com algum parente. Então as mães se reuniam. Era, era um clima positivo esse hospital. Então aí eu falei assim: “olha, já que tá com essa dúvida, eu tenho que, enfim, que aproveitar o máximo esse negócio, né?”. Então eu era super disciplinado. Eu, talvez lá dos pacientes o que mais seguia, lá, horário e me esforçava muito com os exercícios. Depois de três meses sem muito, é real eu tava mais forte, né, em termos da musculatura de ombro, pescoço, eu tinha mais assim, mais horas de autonomia. E tinha, e começou, começou a ter algumas contrações em fibras de tríceps e bíceps. Eles mediam. Tinha um aparelho que eles mediam. Mas aquilo era tão... humf... assim, para eu poder ter algum movimento funcional e tudo, eu teria que ter vinte vezes aquilo, em termos de contração. Então eles queriam que eu ficasse lá mais, sei lá, mais um ano. Depois de três meses eu não agüentava mais. O negócio era completamente estressante. E por outro lado a escola lá em São Paulo, eu tinha criado uma escola e fui embora. Então decidi ir embora. Eu falei: “Eu não vou ficar aqui. Não faz sentido. Eu nem acredito que eu vou voltar a, enfim.. não vai ser isso a solução. Porque existe uma coisa, enfim, existe um problema na transmissão nervosa, um problema celular, um problema de neurônios, não é? Eu não to acreditando nisso aqui. Não, não é o caminho”. Bom, então Cuba foi isso.
P/1: E a Miriam?
R: E foi quando eu voltei de Cuba que eu decidi, que eu falei: “Acabou. Não vou mais ficar acordando, dizendo: ‘Ah, legal. Vou jogar bola e tal.’.” Foi exatamente quando eu voltei de cuba que eu falei: “Acabou. Vou tocar a minha vida assim mesmo.”
P/1: E como é que foi isso? Você assim, nesse comecinho?
R: Foi assim, o dia que eu senti isso, nunca mais eu rateei. Nunca mais eu tive momentos de.... Foi assim uma decisão muito, vamos dizer, houve um amadurecimento. Não foi algo fragilizado. Foi uma decisão que, resolvida. Resolvida, essa é a palavra. Depois eu não tive mais dúvidas quanto a isso. Não, eu te juro que nunca mais eu fiquei “Ah, mais como é que vai ser.” Nunca. Foi um dia assim: “Daqui por diante, acabou.” Que era ruim isso. Era ruim porque você não consegue direito planejar a sua vida. Que por um lado você falava: “to aqui, criei uma escola”. Por outro você ainda fica, você ainda fica fazendo seus planos: “Porque vou ser médico. Porque vou fazer não sei o que.” É ruim. Não é... fica uma coisa de, ambígua. Enfim. É isso aí.
P/1: E esses três meses que você ficou lá, como é que foi o teu namoro? Como você manteve o teu namoro? O que é que aconteceu?
R: Ah, Então, o namoro pagou o preço. Porque quando eu tava lá. Primeiro que eu tava tão dedicado àquilo lá que eu dei uma desligada, um pouco. Toda aquela, enfim, toda aquela magia... que o namoro teve uma coisa toda especial. E então eu fui ficando mais frio. E naquela época não tinha E-Mail. Então de vez em quando ela mandava alguns fax, ainda. Eu mandava também de volta. Mas eu fui, assim, me sentindo mais frio. E eu me lembro que eu, não sei porque, mas às vezes eu tinha um pouco de, assim, de não sei se chamo saudade, mas, mas eu pensava um pouco na minha outra namorada.
P/1: na Camila?
R: Então, é uma confusão. Depois teve uma enfermeira lá com quem eu... enfim, fiquei muito próximo, eu fiquei meio confuso. Nesse lado aí eu tava meio confuso. E aí, olha só, eu fiquei três meses, né? Quando foi no segundo mês, num sábado de manhã, eu to indo pro ginásio, chega a Miriam. Ela pegou o avião e foi pra Cuba. Ela era super amorosa, super, uma pessoa assim, espontânea e tudo. Então ela pegou lá o dinheiro que ela tinha: “Vou lá visitar o Rodrigo.” Então teve uma semana que a gente ficou juntos lá. Mas, assim, o namoro não foi pra frente por minha culpa. Porque eu acho que não estava preparado. Então ela contou o dinheiro dela e falou: “Olha também se você está aí, se você não está me seguindo, eu vou buscar outra coisa, né.” Então, na verdade, eu é que não soube aproveitar a Miriam. Foi meu primeiro amor. O namoro foi isso.
P – Queria saber um pouco sobre esse seu quadro que você falou que pintou pro Fidel.
É assim, no meio da minha estadia lá eu comecei a cogitar de levar o meu reabilitador, eu não ia fazer outro, pro Brasil, porque aí eu poderia acompanhar o andamento da escola e não perder o tratamento. Mas isso era meio complicado porque o país proíbe, proibia na época que as pessoas saíssem, até com medo de não voltarem, tal, aí alguém me falou que talvez eu conseguisse isso se eu tivesse alguma influência no Ministério das Relações Exteriores, que tinha tido dois casos de franceses que tinham conseguido levar os fisioterapeutas e tudo. Aí eu tava pensando como é que eu faria isso, eu fiquei sabendo que a diretora do hospital, ela tinha um caso, ela era amante do Fidel Castro. Aí, tive essa idéia: talvez eu me aproxime dela e ela me ajuda, porque se ela tem contato com Fidel, deve ter alguma facilidade. Então eu fui falar com ela, dizer que eu queria dar um presente pro Fidel. Essa foi minha história e pintei um quadro pra ele, fiz uma carta. De fato eu o admirava, exagerei um pouco na carta e mandei através dela e comentei que eu tava até pensando que tinha uma escola no Brasil, que tava no início, que era muito difícil eu ficar à distância, se haveria a possibilidade de eu levar um dos fisioterapeutas pra cá. Bom, isso ficou um pouco sem notícias, ela também viajou, eu lembro que ela foi viajar. Aí eu até desanimei um pouco, achei que não ia dar em nada. Aí uma semana antes de eu ir embora, eu lembro que eu acordei, meu quarto tinha uma janela que dava pra entrada do hospital. Aí eu vi um carro chegando com bandeirinhas, um carro militar, carro de diplomata, achei curioso aquilo. Aí me ligaram pedindo para eu descer porque a secretaria do comandante Fidel Castro tava ali pra falar comigo. “Nossa, chegou lá o quadro, a mulher levou”... Aí eu fui lá falar e aí ela veio, toda muito educada, pedindo desculpas que o Fidel tava lá em Santiago de Cuba cuidando das eleições que iam ter lá, que tem eleições é partido único mas tem eleições. E aí ele mandou alguns presentes pra mim. Tinha umas cer6amicas, tipo um prato de cerâmica, uma foto enorme dele, que eu tenho emoldurada, um cartãozinho dele pessoal e um livro de discursos. Olha que demais
P 1 – Só podia ser. Ele gosta de discursos curtos.
R - Pois é, achei demais aquilo. Então eu tenho hoje guardado em casa a foto com a cartinha que eu escrevi e o cartão dele. Então foi isso.
P – Mas levar o fisioterapeuta que é bom....
R - É, depois também seria caro, eu desisti da idéia, nem dei mais atenção pra isso. Foi isso.
P – Daí você voltou para o Brasil, veio a escola...
E a escola, nessa fase muito inicial. Ainda estava naquele um ano de segurança com contrato lá dos cartões e aí fomos recebendo mais pessoas, vendo as dificuldades, enfim, fomos aprendendo. Aí eu fui estudar um pouco de artes plásticas.
P – Aonde?
Eu fiz cursos, cursos livres. Eu fiz um curso chamado “Como entender uma obra de arte” que eram 4 semanas, depois fiz um de 1 semestre que era sobre história da arte do renascimento pra frente. Daí comecei a me sentir mais a vontade de falar. Então, aí fiz uma terceira exposição em 93, foi muito positivo de novo. Aí em 93, eu e o Juca, a gente se afastou, ele deixou o projeto. Aí em 94 eu fiz minha quarta exposição e aí veio a idéia, que você tinha perguntado né, como é que eu fui estudar administração. Eu me conformei que eu não podia fazer medicina e aí talvez para que o projeto desse certo, fizesse sucesso, eu devesse entender um pouco de administração. Aí eu falei: ah, deve ser um curso tranqüilo, deve ser um curso que você pode faltar. Eu tinha essa imagem, achava que era curso tranqüilo, algumas horas só. Aí prestei vestibular em 94, prestei FUVEST e na época a GV era uma das opções da FUVEST, então foi minha última opção. Eu nunca imaginei estudar na GV, eu nunca tinha ido, não sabia nem o que era a GV. Coloquei porque tinha como opção. Queria estudar na USP, na Cidade Universitária, que eu conhecia bem, fiz remo lá, tal. E aí acabei entrando por acidente, porque eu não tinha essa, ninguém tava esperando... Cinco anos quase sem estudar. Aí eu entrei, entrei na verdade porque eu tava tão despreocupado. Fiz a primeira fase tão tranqüilo, que é uma das coisas que já faz você ter bom senso pra responder os testes. Aí passei. Passei na GV na última lista. Foi assim: não entrei na FEA, tal, aí tudo bem, “vou fazer cursinho pra prestar ano que vem”. Aí meu irmão falou um dia: “Você prestou GV também”. Meu irmão que lembrou. “Você não vai ver a lista lá”? A última lista. Aí meu pai por acaso tava na rua, eu liguei pro meu pai e falei “Pai, passa lá na GV porque tá colado lá na portaria”. Aí ele olhou, eu tava em 5º lugar na lista de espera. Aí eu falei: “Nossa, o que aquilo lá, não é possível, por causa de 5 lugares eu não vou entrar na faculdade”. Aí o processo era o seguinte, a pessoa tinha que declarar interesse pela vaga pra conseguir. Então quando foi segunda-feira já liguei. Fui pra lá, na GV, tinham 2 desistências só. Tinham 2 vagas e a 1ª da lista já tinha declarado interesse e até então só tinha aparecido eu. Falei do interesse, voltei pra casa e fiquei esperando dar o resto do dia. Aí ninguém mais apareceu. Fui eu e a menina. Fui o último cara a me matricular no curso. E aí comecei a fazer administração.
P – E como é que foi fazer administração?
R - Adorei. Foi uma época muito, muito agradável. Eu, bom, primeiro que eu não tinha idéia do que era o curso de administração né, então tipo essa coisa de novidade e a GV, apesar de ser um prédio vertical no meio da cidade, o ambiente lembrava um pouco o meu colégio, o esquema assim das classes. Então adorei, adorei, e aí comecei a ter aulas por exemplo, de sociologia, nunca tinha imaginado fazer sociologia, psicologia, adorei... Descobri mesmo, foram coisas que eu não planejava minha vida e a GV por outro lado abriu mil portas, pro projeto, pra escola. Primeiro que tudo que eu aprendi lá eu já vinha querer aplicar tudo. Desde gestão de pessoas até contabilidade. Fora as outras, enfim, oportunidades que serviram, por exemplo, no 2º ano foi criado um concurso pela FENEARD que é a Federação de Estudantes pra jovens que tinham iniciativas na área social, era o projeto. O prêmio FENEARD. Aí eu juntei alguns colegas, a gente fez um projeto de consultoria pra escola e aí ganhamos o concurso, foi um dos 3 vencedores. Ganhamos 20 mil reais, isso trouxe mais um monte de oportunidade, então pra associação foi um outro patamar já de maturidade, depois que a gente colheu os frutos da GV.
P - Você entrou na faculdade em 94...
R - Entrei no finalzinho, entrei em 95 e me formei em 98. Aí teve um outro fato que não tava programado, que assim que eu trabalhei nesse projeto como consultor, nessa equipe de 5 colegas durante 8 meses, e foi, o projeto teve um monte de resultados positivo tudo e aí nessa fase me surgiu um convite para trabalhar em uma empresa de consultoria, uma empresa grande, uma multinacional, que eu nunca na vida imaginei que ia trabalhar numa empresa. E ao longo do curso, ao longo dos anos de GV, fiquei um pouco com essa curiosidade. Do que é uma grande empresa, como é que esse negócio funciona Porque eu via a escola tão pequenininha acontecendo, então eu queria ver o que é uma mega organização. Aí surgiu um convite e era um desafio. Tinha o lado do desafio. Eu vou trabalhar numa empresa e como é que vai ser isso? Eu vou agüentar o tranco? Porque pra eles construírem, os caras trabalham que nem louco. Mas por outro lado tinha o glamour, consultoria é um mercado onde você é chamado por outra empresa pra trazer conhecimento, então você tá sempre aprendendo. Uma curva de aprendizado muito rápida. Então eu achei que valeria a pena depois de avaliar, pra minha própria posição de gestor valeria a pena essa experiência, até me sentiria muito mais a vontade, sendo alguém que já conhece o que é uma empresa, uma estrutura do setor privado, e fui. Fui, fiquei, era pra ficar 2 anos pra depois fazer mestrado, que era um plano já meu. Fiquei 4.
P – Em qual empresa, como chamava?
R - Quando eu entrei chamava Andersen Consulting e depois mudou de nome, agora chama Accenture.
P - É uma ótima empresa.
R - É... Que foram 4 anos super curiosos.
P – E era um esquema que você trabalhava o dia inteiro.
P – O dia inteiro.
P – E aí nessa etapa você continuava tendo que fazer fisioterapias, como é que era?
R - Eu criei um esqueminha que é até hoje: eu acordo cedo, fico de pé com um suporte que eu tenho, durante 20 minutos. Tomo banho, então vou trabalhar. Na hora do almoço eu faço 20 minutos de alongamento e ao final do dia, de novo alongamento e antes de dormir eu fico em pé de novo. E uma vez por semana eu vou ao fisioterapeuta mesmo, no final do dia. É assim que hoje eu me sustento, faço a manutenção do meu corpo.
P – Daí você intercala isso na rotina do seu trabalho?
R - A única diferença então é que na hora do almoço eu tinha que ficar esperto e gastar meus 20 minutos fazendo alongamento e outras pessoas não tinham isso.
P – E nessa época você trabalhou lá. A situação continuava, pessoas que...
R - Já tinha uma equipe na época, quer dizer, nesses anos aí, projeto, tal, formou-se uma equipe que foi sendo renovada e tudo. A minha mãe tinha se aposentado como professora e assumiu a gestão voluntariamente. Então um negócio que ela conseguiu sobreviver. E eu dava atenção de fim de semana. Eu continuei sendo o responsável por criar projetos, escrever coisas, avaliar, mas com um tempo, limitado. Então a escola pagou um preço grande, nesse 4 anos que eu fui lá me divertir na empresa. É, mas eu ficava nessa expectativa de que valeria a pena a longo prazo.
P – Você trabalhou de quando a quando?
R - Trabalhei de... No final de 98 era como estagiário, até 2002.
P – E aí você resolveu sair? Como é que foi?
R - Foi, é, eu tava como estagiário, virei consultor, virei analista depois virei consultor e aí eu já tava elegível a ser promovido a gerente. E aí foi um ponto de decisão mesmo, enfim, lutar por essa promoção, aí valia a pena ficar mais anos pra colher o que é ser um gerente. É que eu não via mais sentido, porque a vida de um profissional dessa área, ela é cada vez mais demandante em termos de horas, em termos de energia. E aí eu tava vendo que a escola, ia algum momento, ela ia provavelmente passar por uma crise, talvez até não continuasse, porque as pessoas seguraram o quanto puderam, mas chegou uma hora que não ia se sustentar naquela situação. E aí até meu estilo de vida, tudo, não me via mais assim a longo prazo naquele esquema de vida, então pesei um pouco essas coisas todas, tinha já uma vontade de fazer mestrado, pra poder dar aula e tudo, e foi isso , prestei mestrado, comecei a pós-graduação e aí saí da empresa.
P – E aí você fez aonde?
R - Tô fazendo, lá na GV.
P - Na área de administração?
R - É. O enfoque é em diversidade humana, que tem a ver com a escola.
P - O que é diversidade...
R - Vamos dizer assim: O impacto da diversidade humana nas organizações, ou seja, cada vez mais a sociedade mesmo impões, exige que as empresas dêem oportunidades à todos, tanto na questão de etnia, idade, conformação física, até opção sexual, quer dizer, nos Estados Unidos já tem muito isso, né, isso que se chama diversidade. Diversidade, ou seja, características, os atributos das pessoas que compõe a empresa. Que ainda as empresas são muito homog6eneas, a maioria é de brancos ou de europeus que fizeram engenharia ou administração, então é isso.
P – Você está em que fase da pós.
R - Eu acabei os créditos e agora estou fazendo a dissertação.
P – E vai defender quando?
R - Em fevereiro. Nem me fale... Você já passou por isso né?
P – Então quais são os teus planos?
R - Eu voltei a ser gestor da Associação este ano. O meu plano é ter uma vida com a maior parte do tempo profissionalmente voltada para a Associação e aí dentro do possível ter uma atividade acadêmica.
P - Na área de administração?
R –É, em termos profissionais é isso que eu vislumbro hoje.
P – E para a escola... Eu sei que vocês estão mudando de lugar, o que você imagina pra escola? A escola tem bastante tempo, desde 91...92... A Associação surgiu mesmo em 94, então são 10 anos de Associação. Aí teria que contar com calma os projetos e tal, mas a gente tem como pretensão usar um pouco dessa experiência, os 10 anos de trabalho inclusive em sala de aula, pra compartilhar isso com professores da rede pública que hoje são obrigados a lidar com a situação e hoje não tem nenhum preparo, não suportam, e a gente já começou a ser preparado pra isso. Tem plano de um livro de cursos que a gente daria pra professores gratuitamente. Tem a expectativa, tem um programa nosso que gera renda pros alunos, através de produtos que a gente desenvolve e direitos autorais que a gente comercializa também está crescendo. É um trabalho que me agrada muito porque faz parte da receita, vai diretamente pro aluno, então impacta na renda da família e também o próprio número de alunos, que com espaço novo a gente vai poder crescer um pouco. Esses são os planos hoje.
P – Desse teu percurso, dessa tua experiência, se você pudesse resumir, quais aprendizados que te trouxeram, de vida mesmo.
R - É difícil, vamos ver. Uma coisa que eu até costumo falar que ficou muito nítido nesse meu período de reabilitação, de convívio com uma debilitação motora, é a relatividade do nosso dia a dia, do nosso ponto de vista perante as coisas. O que eu quero dizer com isso, é assim, falando de uma forma muito... as chances, as possibilidades, a condição de construir uma vida que a gente considera rica, feliz, rica digo de experiências, ela é a mesma. Ela é agora e da que eu tinha antes. Ela é exatamente a mesma, porque a gente tem essa idéia. “Porque a pessoa passou por uma mudança brusca”, ainda mais com deficiente, que é uma coisa muito aparente, explícita. Fala “poxa vida, a vida dessa pessoa deve ser muito mais difícil, enfim, deve ser difícil que ela seja feliz”. Tem um pouco desse imaginário, pelo menos eu tinha e isso é uma bobagem. Na verdade você, todo dia, que tá dimensionando, o que é problema, o que é oportunidade, o que é ser feliz, é você que dimensiona. O ponto de vista é seu. É relativo, não tem parâmetros certos. Então esse é, como dizer, um pensamento que eu carrego. Os meus aprendizados são aprendizados que eu tenho pela vida mesmo, não tão ligados à questão da deficiência, eu acho. Outro aprendizado é, outro dia eu tava mesmo comentando com alguém, enfim, é que a gente tem a oportunidade de aprender na vida. A gente passa por uma experiência, um ciclo, um processo, aí você, olhando pra trás, analisando o que você viveu, você tira uma conclusão importante, então, nesse tipo de situação, talvez, como ser humano, deva dar importância a isso, a um aspecto qualquer e aí o que acontece, eu sinto isso, é que passa um certo tempo e é como se a gente perdesse a chance de usar aquele conhecimento e aí você passa pelo mesmo processo, exatamente pelo mesmo processo e TUM De novo.... “Mas eu já sabia disso”... Então tem 2 coisas na nossa evolução, no nosso amadurecimento, tem o aprender, de coisas novas e outra que não se fala muito é o exercer o que você aprendeu, o incrível como a gente, se não tiver essa preocupação, esse cuidado, a gente fica repetindo o mesmo ciclo. Isso não tem nada a ver com o “Rodrigo”, foi uma visão adquirida, acho que talvez de toda forma teria...
Quando você pergunta aprendizado é pela história, é isso?
P – Pela tua história, por isso que você viveu mesmo. Você vivia de certo modo, passou por uma situação que te levou a viver de um outro modo e o que isso...
R - Vamos ver que outras coisas eu relacionaria... Então, acho que tem uma coisa importante na história, que justamente começou com aquela minha busca, pela reconquista do meu movimento e tal, mais depois de se desprender disso, que é um pouco a importância da qualidade do seu pensamento, ou da característica do seu pensamento, ou seja, isso é uma coisa que todo mundo fala, mas que é muito verdade. Que colhe aquilo que a gente vai pensando. A gente às vezes não dá importância pra isso. A gente colhe o que a gente pensa ao longo do dia. É isso que a gente vai viver. Então, se você tem uma plena mudança de pensamentos, enfim, de que seus objetivos terão caminhos, que facilitarão a conquista de que você busca, acho que você vai colher um desenrolar da busca por esse objetivo mais rápido, mais tranqüilo do que alguém que fica vivendo sempre um lado de dúvidas, de muita preocupação. Pra mim, tenho que isso é verdade. O que mais que é importante...
P – Em termos de relacionamento, de maneira geral?
R - Ah, tem uma coisa de relacionamento. Em relacionamento, acho que eu mudei um pouco no seguinte sentido: eu acho que eu compreendo melhor as pessoas. Sou muito mais tolerante, muito mais. E aí eu fico, pra que isso seja possível, de uma forma real, que isso não seja frágil e eu depois tenha atitudes que não sejam coerentes, é o exercício de viver um pouco o lado do outro. Isso faz com que eu tenha mais tranqüilidade em situações que você tende a impor um ponto de vista.
P – Nesse teu percurso, teus amigos, que eram teus amigos. Como é que foi isso? Se mantiveram, você fez novos amigos? Como é que foi um pouco essa tua trajetória. Do teu círculo social...
R - Então, os meus amigos, muitos deles se mantiveram e aí por uma questão natural de fase de vida, alguns casam e a gente não tem mais tanto convívio. Surgiram novos grupos, talvez pessoas que eu nunca imaginei que eu conviveria, por causa da escola, por causa da situação, de viver, de ter que buscar sempre novidades em relação a esse universo da deficiência. Mas talvez continue socialmente sendo tão rico como era, sempre foi rico o meu universo social.
P - E a pintura pra você hoje? Teve um período que ela foi muito forte, muito presente. E hoje? Como é que você se relaciona com essa coisa de pintar?
R - Então, eu tenho pintado, mas como é que talvez eu entenda a pintura, acho que a pintura é um meio, uma ferramenta para várias coisas e aí vai depender do contexto, vai depender do repertório, dos objetivos da pessoa. Mas é uma ferramenta com várias possibilidades que a gente não imagina.
P – Mas você se vê como pintor?
R - Não muito, sabia.
P - Ou foi uma coisa que foi muito útil num determinado momento da sua vida?
R - É, é verdade, eu como gestor da escola, nem devia falar muito isso, como profissão, “Rodrigo, artista plástico”, eu fico meio assim... Artista plástico? Tudo bem, eu tive uma exposição, eu vendi, eu acho que o meu trabalho tem qualidade, mas eu me vejo bem mais como, por exemplo, um administrador, do que um pintor. Não me sinto totalmente estranho, me acostumei com a idéia de artista, pintor, mas até pro meu dia a dia, eu desempenho muito mais esse papel né.
P - O valor da pintura, quando você conta, está muito ligado a um determinado momento ali da tua trajetória, né?
R - Momento e a finalidade que eu criei. Mas eu pessoalmente, como eu me enxergo, talvez você queira saber, é muito mais como administrador.
P - Eu tô com uma curiosidade desde que a gente começou a conversar. A pessoa que te deu o tiro, vocês foram atrás, quiseram ir atrás? Como é que foi essa parte?
R - Foi o seguinte, que eu vi a pessoa Quando ela me tirou do carro eu vi o rosto da pessoa. Na época que estava hospitalizado nem se falava muito disso, porque as preocupações eram outras, mas quando eu voltei pra casa, teve uma vez um policial que ligou lá dizendo que tinham algumas pessoas suspeitas na delegacia, se eu teria interesse de ir lá olhar. Mas eu não tive esse negócio, esse sentimento de querer me vingar, talvez, ou de fazer justiça, eu não tive muito isso porque eu queria me ver distante daquele negócio, a verdade é isso. Ir lá, na delegacia, eu ia reviver, eu não queria me envolver com isso, eu não alimentava esse negócio. Toda vez que me vinha esse pensamento “Pô, o cara que me deu o tiro” eu cortava. Eu sabia que não ia levar a nada.
P - Por que tem pessoas que tem essa pergunta: “por que isso comigo”?
R - Boa pergunta. Eu acho que tem um pouco as 2 coisas. Em alguns momentos, em função de algumas coisas que eu vivo, eu sinto um pouco esse lado de que eu tô vivendo tem uma função, tem uma importância pra alguém, pra algum grupo de pessoas e eu tenho que fazer da melhor forma. Por outro lado eu sou uma pessoa mais racional e acho que tenha o lado aleatório, tudo depende do meu momento. Eu penso de uma forma diferente, porque eu acho que a nossa missão, ela é construída por aquilo que a gente percebe, então eu não acho que tenha: “Ah, Rodrigo, tava lá escrito que ele teria esse trajeto”. Eu acho que não é isso, eu acho que existem as circunstâncias e aí você cria a sua missão. Eu acredito mais nisso. E também, talvez eu acredite, que essa missão, esse papel que eu desempenho, poderia ter acontecido de várias formas, não necessariamente como foi. Então, se eu planejei isso, planejei desempenhar um papel em algum momento da eternidade e de outras fases da minha existência, é, não necessariamente foi assim. O detalhe, ele acontece em função, enfim, de um monte de coisas que vão acontecendo, o que importa, acho que é a essência do seu papel.
P - Você poderia ter chegado ao mesmo lugar por outros caminhos?
R - Exatamente. Pode até ser que eu mesmo, em outro momento da minha existência, tenha almejado chegar nesse lugar. Agora o caminho, ele é construído ao longo da vida. Ele não é predeterminado, ou seja, eu acredito que haja o processo de várias vidas, senão fica confusa a minha fala.
P - De reencarnação, você tem um lado mais espírita, espiritual, sei lá?
R - Eu acredito nisso. Não sei se é espírita. Até por aquele meu momento, do tiro, não acho que aquilo foi uma questão fisiológica, de alguma subst6ancia que veio do meu cérebro. Acho que não. Então como eu via aquela situação, aquela sensação e tudo, eu acho que tem uma coisa de uma consciência maior, a que a gente não acessa, mas a gente talvez vá passando por estágios. Você pesa o que é que você quer da vida ou não, e aí talvez você define os seus objetivos, o que a gente tava falando. Mas acho que não é predeterminado, o detalhe. A essência talvez, por nós. Acho que sempre tem a livre escolha. Mas acredito, agora que eu tô falando, agora com esse raciocínio, acredito que a gente tenha escolha sim.
P - Tem algo mais que você queira dizer, que voc6e ache importante e a gente acabou não falando?
R - É, eu acho que a gente colhe sim, o que a gente vai pensando. Eu acho que a vida é um pouco isso. A gente não aprende isso, ninguém fala isso pra gente. Talvez a gente até ouça, mas não de uma forma tão clara. Isso é tão impactante que a gente deveria todo o dia lembrar.
P - Isso que você está falando é verdadeiro pra você, só pra entender. Você falou muito dessa tua passagem no hospital, que isso foi muito forte, pra te dar força. Tem a ver com isso?
R - Tem a ver também. Tem a ver o tipo de pensamento que eu tinha no hospital eu acho. Eu sentia isso, que se eu desse espaço pra pensamentos muito lamentosos eu não sobreviveria. Porque era muito limite a minha situação. Então tinha a coisa da esperança. Falar em esperança é uma palavra importante nisso tudo. A esperança é o alimento que muda completamente a perspectiva.
P - Disciplina, acho. A tua história tem da coisa da disciplina, da força de vontade. e tiveram momentos de raiva?
R - Eu acho que teve algum momento sim. Raiva do desconforto. Tive. Tive raiva por exemplo, eu comentei, quando eu tava entubado, não respirar é muito ruim não conseguir respirar. Tive raiva disso. Ás vezes eu tive raiva de fazer, é, por exemplo, acupuntura é coisa que eu não gostava porque doía. Não gostava e tive momentos de raiva por aquela dor, de fica sendo espetado. Não sei se foi raiva, mas uma coisa que em assustou, acho que foi importante, foi quando eu vi que minha namorada, a gente não tinha mais condição de ficar junto. Me assustou porque eu era um pouco, não um príncipe encantado, mas era uma coisa assim, a forma como ela me olhava. Até a própria família dela. E de repente eu via ela constantemente desesperada. Isso me assustou. Não cheguei a ter raiva, mas me assustou.
P - E aí, como você respondeu isso no teu processo?
R - Vivendo outros relacionamentos. Que eu demorei pra me abrir. Eu fui tentando, é como foi com a Míriam, a Míriam eu não dei muito espaço, a verdade foi essa. Mas fui vivendo. E aí eu tinha um modelo um pouco de homem na cabeça, muito assim, de provedor, que tá ali, que faz e acontece, não que eu fosse muito machista, mas do homem no dia a dia, tá lá e... E não é que hoje eu não possa ser um provedor, mas de uma outra forma. É muito mais pela forma. Eu não preciso carregar a minha esposa no colo. Mas isso não é fácil. Você incorpora isso...
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